Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 189/2021-T
Data da decisão: 2021-11-10  ISV  
Valor do pedido: € 13.128,97
Tema: Imposto sobre veículos – Pronúncia arbitral – legitimidade.
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SUMÁRIO:

 

1- Nos termos dos nº 1 e 4 do art.º 9º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicáveis por força da alínea a) do nº 1 do art.º 29º do RJAT, têm legitimidade no processo judicial tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.

2- Desenvolvendo essas normas, a parte final da alínea a) do nº 4 do art.º 18º da Lei Geral Tributária (LGT) reconhece o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou apresentar pedido de pronúncia arbitral, nos termos das leis tributárias, a quem, embora não sendo sujeito passivo do imposto, suporte por repercussão legal o encargo tributário.

3- Com a efetiva repercussão legal do imposto, distinta da repercussão meramente económica ou de facto, o pressuposto processual positivo do interesse em agir transfere-se do repercutente para o repercutido.

4- O Imposto sobre Veículos (ISV) não é, no entanto, um imposto de repercussão legal, já que a sua incorporação pelo fornecedor no preço do veículo vendido não resulta de qualquer imposição ou faculdade que seja concedida àquele pelo legislador, mas de uma relação jurídica de direito privado, não estando, assim, abrangida pela parte final da alínea b) do nº 4 do art.º 18º.

5- Segundo o nºs 1 e 2 do art.º 3ºdo Código do Imposto sobre Veículos (CISV), são sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira, bem como as pessoas que, de modo irregular, introduzam no consumo os veículos tributáveis.

6- Assim, o facto de o sujeito passivo de ISV já não ser proprietário do veículo aquando da dedução do pedido de pronúncia arbitral, por, entretanto o ter vendido a um particular, não prejudica o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e, portanto, a deduzir pronúncia arbitral.

7- A vinculação da AT ao princípio da legalidade, expressa no nº 2 do art.º 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no art.º 55º da LGT, impede aquela, bem como qualquer outro órgão da administração pública, de recusar a aplicação de uma norma de direito nacional com fundamento na sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, caso em que se substituiria aos tribunais, com a consequente violação do princípio da separação de poderes expresso no art.º 2º da CRP, a não ser quando estiver em causa a aplicação dos direitos, liberdades e garantias referidos no nº 1 do art.º 18º.

8- Deste modo, a ilegalidade, entendido tal conceito em sentido amplo, das liquidações impugnadas por violação pela legislação nacional de normas de direito comunitário com mero efeito direto, para efeitos da aplicação do meio de revisão oficiosa do nº 1 do art.º 78º da LGT, não pode ser considerada com causada pelos serviços, salvo quando o seu fundamento seja erro na interpretação dessas normas.

9- Não sendo aplicável o meio extraordinário de revisão do nº1 do art.º 78º da LGT, o ato tributário só pode ser anulado em consequência de reclamação graciosa ou impugnação judicial, a deduzir respetivamente nos termos do nº 1 do art.º 70º e do nº 1 do art.º 102º do CPPPT, aplicáveis a todas as ações análogas de natureza interna.

10- Pelo mesmo motivo da inaplicabilidade desse nº 1 do art.º 78º, o direito a juros indemnizatórios só pode ser reconhecido nos termos da alínea d) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT. na redação dada pelo art.º 2 da Lei n.º 9/2019, de 1 /2, ou seja, em consequência de  decisão judicial  declarando com força obrigatória geral , nos termos da alínea b) do nº 1 e do nº 3  do art.º 281º da Constituição da República Portuguesa (CRP)  a ilegalidade do   art.º 217º da Lei 42/2016 de 27/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2017), que alterou  o  art.º 11º do CISV,  voltando  a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo a  componente ambiental (emissão de CO2).

11- Tal declaração de ilegalidade com força obrigatória geral é, nos termos dessas normas da CRP, reservada ao Tribunal Constitucional e não abrange as normas de direito nacional incompatíveis com normas de direito internacional vinculativas do Estado português, designadamente do TFUE e do direito derivado da União.

12- Não viola o princípio constitucional do acesso ao Direito e à justiça  do sujeito processual Autoridade Tributária o facto de as decisões arbitrais apenas serem passíveis de recurso jurisdicional para tribunais estaduais  nos limitados termos do art.º 25º do RJAT, já que, em processo tributário ,a utilização da arbitragem como meio alternativo de resolução de litígios em matéria tributária não é necessária, dependendo da voluntária  vinculação  dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças  e da justiça nos termos do nº 1 do art.º 4º do RJAT e a recusa de aplicação das normas de direito interno com fundamento em violação das disposições do TFUE e do direito derivado ser sempre passível de recurso para o Tribunal Constitucional nos termos da alínea i) do nº 1 do art.º 70º da sua Lei Orgânica.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

1.            RELATÓRIO

 

1. Identificação das Partes

1.1. Requerente

A..., LDA., NIPC..., com sede na ..., ...-..., operador reconhecido nos termos do nº 1 do art.º 15º do CISV.

1.2. Requerida

Autoridade Tributária (AT), representada pelas juristas B... e C..., designadas a 27/4/2021

 

2.Tramitação e constituição do Tribunal

2.1. A 1/4/2021, a Requerente apresentou   o pedido de constituição de tribunal arbitral;

2.2. Após a nomeação do Árbitro, a 3/5/2021, o  Tribunal Arbitral foi constituído  por despacho  do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 9/6/2021;

2.3. A 13/7/2021, a AT apresentou a sua resposta e juntou aos autos o Processo Administrativo (PA).

 

3. O Pedido

A Requerente pretende:

a) A declaração de ilegalidade parcial dos atos de liquidação de ISV  com o nºs .../..., de 20/10, relativa a veículo de marca ... com a matrícula..., no valor de € 1.235,98,  .../..., de 6/11, relativa a veículo ... com  a matrícula..., no valor de € 2.274,48,  .../...,de 25/1, relativa  a veículo ... com a matrícula..., no valor de € 1.948,07 e  .../...,de 21/9,  relativa a veiculo ... com a matrícula..., no valor  de  € 26.477,81, todos praticados pela Alfândega do Freixieiro.

b) A consequente  anulação parcial dessas  liquidações  e restituição de ISV nos montantes de  € 30,64, € 280,66, € 188,66 e € 12.602,98 , referentes respetivamente aos veículos referidos em primeiro, segundo , terceiro e quarto lugares,  em  co sequência da  aplicação das taxas de desvalorização de 35 %, 28% , 28% e 60%  à parte do preço que integra a componente ambiental de ISV  com os valores respetivamente     87,53, € 1.002,36,€  657,35 e € 21.004,96, num montante total de € 13.098,34, acrescido dos  juros indemnizatórios, nos termos do art.º 43º da LGT, não especificando a  Requerente qual ou quais os diferentes nºs dessa norma que fundamentam   a pretensão do pagamento desses juros. 

 

Com efeito, segundo descrevem a Requerente, enquanto relativamente à componente cilindrada, o ISV foi liquidado pelo valor correspondente à redução pelo número de anos de uso, relativamente à   componente ambiental, foi liquidado, sem qualquer redução, quando, para cumprir o art.º 110º do TFUE, deveria ter sido também aplicada a esta componente a redução pelo número de anos de uso.

 

Por lapso evidente, resultante de uma elaboração porventura  menos cuidada do Doc. nº 1, anexo à Petição Inicial (PI), a Requerente pediu em duplicado a anulação da liquidação  com o nº .../...,  relativa ao veículo de marca ... com a matrícula ... e, em consequência,  reclamou  igualmente em duplicado o valor de € 30,64. Nessa linha, tal Doc. nº 1 comporta um segundo lapso: a imputação da liquidação de .../..., relativa a veículo ... com a marca..., ao ano de 2017 e não ao ano de 2020, ano em que essa liquidação foi realmente foi efetuada, de acordo com a respetiva DAV. É ainda esse Doc. omisso sobre a data de apresentação das Declarações Aduaneiras de Veículo (DAVs), que originaram as liquidações impugnadas, omissão irrelevante porque suprível através da consulta do Processo Administrativo (PA) e das DAVs que o integram.

 

 

4.Posição das partes

 

4.1. Posição da Requerente

 

Apesar de a Requerente ter procedido ao pagamento do imposto do qual dependia os veículos poderem circular legalmente em Portugal, considera, na PI, que as liquidações efetuadas do ISV estão feridas de um vício de ilegalidade da norma que constituiu o seu fundamento, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, por violação do já referido art.º 110º do TFUE.

 

Segundo a Requerente, com efeito, o montante do imposto cuja liquidação originaria o presente pedido de pronúncia arbitral., calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo na parte do preço que refletiria a componente ambiental, excederia o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.

 

Segundo a jurisprudência do TJUE amplamente citada pela Requerente na PI, um Estado-Membro não poderia cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deveria refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional, o que não seria o caso da norma legal ao abrigo da qual seria realizada a liquidação impugnada , o art.º 11º do Código  do Imposto sobre  Veículos (CISV), na redação do art.º 217º da Lei nº 42/2016, de 28/12, que reintroduziu uma medida discriminatória que tinha sido abolida pelo art.º 113º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, medida essa que apenas foi suprimida pelo art.º 391º da Lei nº 75-B/2021, de 31/12. .

 

Nessa medida, as liquidações acima referidas deveriam ser parcialmente anuladas em ordem a limitar o montante do imposto devido   ao  montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional, de acordo com critério idêntico ao estabelecido na Tabela D integrante do nº 1 do art.º 11º, que define a desvalorização comercial média dos veículos em mercado nacional, mas que reflete apenas a desvalorização da parte do preço relativa à componente cilindrada, com exclusão da relativa à  componente ambiental.

 

4.2. Posição da Requerida

Segundo a Requerida, de acordo com os art.º 4º a 13º da Resposta, a Requerente careceria de legitimidade ativa para a dedução do pedido de pronúncia arbitral.

 

O objeto da sua atividade é, na verdade, a comercialização de veículos automóveis, pelo que se deve presumir que os veículos relacionados a 3 não foram por ela adquiridos para uso próprio, mas para uso dos terceiros, consumidores finais, aos quais se destinariam a ser vendidos.   

 

Caso tais veículos tivessem sido alienados pela Requerente no exercício da sua atividade ,  como se deve presumir que foram dada a natureza da atividade exercida, a comercialização de veículos adquiridos para venda, no respetivo preço de transmissão  deveriam ter sido incluídos os montantes pagos, incluindo ISV,  resultantes da introdução no consumo em Portugal dessas viaturas, com a consequente repercussão nesse  preço  de todas as despesas assumidas pela Requerente necessárias à legalização desses bens .

 

Caso assim tenha acontecido, não se vislumbra como, na esfera jurídica da Requerente, pudesse   atualmente subsistir um interesse juridicamente protegido a satisfazer através do pedido de pronúncia arbitral apresentado, sob pena de se admitir a possibilidade do seu enriquecimento sem causa.

 

Assim, não tendo a Requerente comprovado que ainda detém a propriedade dos veículos que introduziu no consumo, também não ficaram demonstradas a legitimidade (ativa), que deveria sustentar a sua pretensão e consequente  titularidade do direito/interesse relevante da qual  se arroga na PI.

 

Sustenta a Requerente, por outro lado, nos art.º 13º a 19º da PI, faltaria causa de pedir quanto à liquidação identificada com o n.º .../... .

 

A Requerente juntou ao requerimento inicial um documento (Doc.1) que inclui uma lista na qual identifica os veículos pela matrícula que lhes foi atribuída, indicando os números das liquidações e os valores calculados em função dos elementos e taxas aplicadas nos termos da lei.

 

Sucede que, quanto à primeira “liquidação” constante da lista, identificada com o n.º .../... (1ª coluna da lista), além de não ser identificada a respetiva Declaração Aduaneira de Veículo ( DAV), como ,como, aliás, não é identificada pela Requerente qualquer outra DAV, também não é indicada a matrícula do veículo a que eventual liquidação do ISV respeitaria .

 

Consultada a base de dados SFA2 (Sistema de Fiscalidade Automóvel), nos termos do Ofício- circulado nº 35.084, de 22/12/2017), por referência ao operador em questão, ou seja, à ora Requerente, não teria sido possível à Requerida retirar qualquer informação concernente a uma hipotética liquidação com a data indicada, concluindo-se que a mesma não existe.

 

Como já se disse a 3 desta Decisão Arbitral, parece tratar- de um lapso, pois, conforme se retira da mesma lista, desta já consta uma liquidação com o mesmo número (3ª da lista), não obstante com data diversa, sendo que o montante a restituir (30,64€) é o mesmo da liquidação que surgiria na primeira coluna da lista.

 

No entanto, tendo a Requerente contabilizado aquele montante para efeitos de reembolso, que também constitui o valor da causa, entende a Requerida dever invocar, nesta parte, a falta de causa de pedir da Requerente.

 

Destarte, deveria ser reduzido o pedido, alterando-se o valor peticionado de acordo com o aludido (que deverá ser reduzido para 13.098,34 €), absolvendo-se a Requerida em conformidade (alínea b) do nº 1 do 278.º e alínea b) do art.º 577.º,  do Código do Processo Civil, CPC).

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Por outro lado, segundo desenvolve a Requerida,  a partir do art.º 20º da PI, atendendo a que a administração aduaneira  se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sob o espectro do princípio da legalidade e que  não tem a prerrogativa de desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o Direito Comunitário (atribuição reservada aos tribunais), será forçoso concluir pela inexistência de imputabilidade aos serviços de erro que fundamente um procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2ª parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT.

 

Com efeito, não pode ser imputado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tivesse determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (nº 2 do 266.º da CRP e art.º 55.º da LGT).

Consequentemente, segundo a Requerida, o pedido de revisão tendo  por objeto a anulação parcial das liquidações de ISV , cujo indeferimento é objeto do  presente pedido de pronúncia arbitral , teria sido igualmente extemporâneo.

É o que resultaria de o prazo para a apresentação da reclamação administrativa, nos termos do nº 1 do art.º 70º do CPPT, ser de 120 dias a contar do fim do prazo de pagamento

Passando do âmbito da alegação dessa exceção para o âmbito da defesa por impugnação, nos art.º 36º e seguintes da PI,  alega a Requerente que  o referido art.º 11º do CISV, ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objeto de redução, o Estado Português  não teve o objetivo discriminatório de restringir a entrada de veículos usados em Portugal, com o consequente benefício do comércio nacional deste tipo de bens,  mas sim  orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado- Membro.

O modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do CISV pela Lei n.º 2A/2007, de 29/6, foi, assim, norteado por preocupações ambientais com respeito pelas diretrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris, com o consequente afastamento da aplicação do referido art.º 110º do TFUE.

A tributação das emissões de CO2 dos veículos novos e usados não pretenderia, assim proteger a produção nacional, mas sim levar os consumidores a optar pela compra de veículos com menores emissões de CO2, tendo por fim último a proteção do ambiente, no cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º TFUE, sendo, assim, alheia a quaisquer propósitos discriminatórios.

Para além disso, nos art.º 117º a 132º da Resposta, sustenta a AT, o direito a juros indemnizatórios, consagrado no art.º 43.º da LGT pressupor que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

No caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária.

 

É que, efetivamente, repetindo o anteriormente dito sobre a caducidade do direito de ação, as liquidações em causa nos presentes autos decorreram exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo sido efetuadas nos termos das normas aplicáveis do CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto.

 

Estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a Requerida AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do art.º 43.º da LGT, posição que já teria sido sufragada em sede arbitral, conforme resultaria das decisões proferidas nos Processos n.º 348/2019-T e n.º 34/2020-T.

 

Consequentemente, tendo o presente pedido arbitral sido deduzido em consequência do indeferimento do pedido de revisão e sendo este intempestivo, além de infundado, intempestiva e infundada igualmente se mostraria a presente impugnação, verificando-se a caducidade do direito de ação, que constitui exceção perentória, impeditiva e extintiva do efeito jurídico dos factos articulados pela Requerente.

Sendo de conhecimento oficioso tal exceção, tem por consequência a absolvição da AT do pedido (cf., nºs 1 e 3 do 576.º e 579.º, ambos do CPC, ex vi da alínea e) do nº 1º do art.º 29.  do RJAT).

 

Finalmente, a 110º e seguintes da Resposta, alega a Requerida que, tendo a Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

 

É que o RJAT prevê, prossegue a Requerida, prevê tão somente três tipos de reações recursarias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.

 

Em sede arbitral, não existiria o clássico recurso assente em fundamentos de facto e de direito, em princípio a interpor para o Tribunal Central Administrativo competente.

 

Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE, no caso concreto, a proteção do ambiente, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só possa ter como fundamento as alíneas a) e b) do art.º 70.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), Lei nº 28/82, de 15/11, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, ou seja, a ilegalidade do art.º 217º da Lei nº 42/2016, se estaria  perante uma proibição  do princípio do livre acesso aos tribunais.

 

Verificar-se-ia, pois, face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, todos da CRP, a violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva caraterístico do Estado de direito.

 

5. Saneamento

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

 

6.Fundamentação de facto

6.1. Factos Provados

A..., LDA, representada por D... Lda., introduziu no consumo veículo automóvel usado, declarado através da DAV n. 2017/..., com a consequente liquidação de ISV nº .../..., de 20/10, no valor de € 1.235,98, relativa a veículo de marca ... com a matrícula ..., movido a gasóleo, proveniente de França, com data da primeira matrícula de 29/1/2014, cujo prazo de pagamento voluntário terminaria a 22/12/2017.

A..., LDA, representada igualmente por D... Lda., introduziu no consumo veículo automóvel usado através da DAV nº 2017/..., com a consequente liquidação de ISV .../..., de 6/11, no valor de € 2.274,48, relativa a veículo da marca ... ..., movido a gasóleo, procedente de França com a data de primeira matrícula de 17/6/2015, cujo prazo de pagamento voluntário terminaria a 18/12/2017.

A..., LDA, representada agora por E..., introduziu no consumo veículo automóvel usado através da DAV nº 2020/..., data da primeira matrícula 28/9/2017 com a consequente liquidação de ISV nº .../..., de 25/1, relativa a veículo ... com a marca ..., movido a gasóleo, no valor de € 1.948,07, cujo prazo de pagamento voluntário terminaria a 20/10/2020. 

A..., LDA, representada também por E..., introduziu no consumo veículo automóvel usado através da DAV nº 2020 /..., com a consequente liquidação.../...,de 21/9,  relativa a veiculo..., movido a gasolina, com a matrícula..., data da primeira matrícula 1/10/2014, no valor  de  € 26.477,81, cujo prazo  de pagamento voluntário terminaria a 6/10/2020.

O cálculo do ISV, que consta do Quadro R das DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do art.º 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo , que, como se referiu, , a partir da Lei nº 42/2016, apenas compreenderia a componente cilindrada.

 

Segundo a informação obtida da Requerida, no seguimento da solicitação de despacho arbitral a 14/01/2021 a Requerente já tinha solicitado à Alfândega do Freixieiro por requerimento em papel, a revisão oficiosa dessas liquidações com fundamento na parte final do nº 1 do art.º 78º da LGT, que seria indeferida por despacho do sr. diretor da Alfândega de 22/3/2021, baseada em informação dessa Alfândega de 19/3 anterior, com fundamento em a liquidação que a Requerente pretende ser parcialmente anulada   ter sido efetuada conforme a lei. Seria, assim, corrigida pela Requerida a informação contida no art.º 44º da Resposta de que esse pedido de revisão apenas teria sido apresentado no subsequente mês de fevereiro, o que é relevante para efeitos da apreciação da sua tempestividade.

 

Não foi produzida, por desnecessária, já que não se suscitam quaisquer dúvidas sobre os factos documentados no procedimento de revisão aberto por iniciativa da Requerente, a prova testemunhal oferecida por esta.

 

 

6.2.Factos não provados

 

Não se consideram não provados quaisquer factos suscetíveis de relevância para o conhecimento da presente causa.

 

7.Fundamentação de Direito

 

7.1. Da legitimidade da Requerente

 

A posição da Requerida sobre a ilegitimidade da Requerente contraria frontalmente a doutrina do   Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 22/10/2003, proc. 1038/03, que incidiu sobre situação similar à controvertida no presente Processo Arbitral, com a exceção de agora estar em causa o ISV e não o imposto automóvel., que seria substituído por aquele imposto pelo nº 1 do art.º 1º da Lei nº 22-/A/2007, de 29/6. Tal Acórdão consideraria dispor  de legitimidade ativa para reclamar ou impugnar o imposto automóvel, em caso de importação de  veículos automóveis usados provenientes de outro país da União Europeia(EU), o importador e requerente da respetiva matrícula, que atualmente , no caso do ISV, é efetuada em consequência  da apresentação da DAV, independentemente de posteriormente o importador/requerente ter porventura efetuado a venda desse veículo a um terceiro não determinado, por preço também não determinado.

 

A exceção da legitimidade apenas seria oponível pela Requerida se a Requerente tivesse agido em nome e por conta do comprador, o que não se demonstrou.

 

 Caberia à Requerida fazer essa demonstração, nos termos do nº 1 do art.º 332º do Código Civil (CC) e do nº 1 do art.º 74º da LGT.  

 

Com efeito, nos termos dos nº 1 e 4 do art.º 9º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicáveis por força da alínea a) do nº 1 do art.º 29º do RJAT, têm   legitimidade no processo judicial tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido. Por natureza, por força da posição que ocupam na relação jurídico- tributária, essas pessoas dispõem do direito a uma tutela jurisdicional efetiva que justifica o direito de reclamar ou impugnar.

 

Tal não significa que essas pessoas tenham necessariamente interesse em agir. Tal pressuposto processual ou procedimental, que é independente dos outros pressupostos processuais, cessa, por exemplo, quando a administração tributária tiver revogado oficiosamente o ato impugnado ou, quando, em virtude de repercussão legal, o sujeito passivo tiver transferido para outrem o encargo tributário.

 

Segundo o nºs 1 e 2 do art.º 3ºdo Código do Imposto sobre Veículos (CISV), são sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira, bem como as pessoas que, de modo irregular, introduzam no consumo os veículos tributáveis.

 

A qualidade de sujeito passivo de ISV, nos termos do nº 1 do art.º 5º do CISV, é o fabrico, montagem, admissão ou dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal.

 

É, assim, adquirida com o facto gerador do imposto.

 

Tal condição de sujeito passivo e consequente legitimidade processual ou procedimental não pode ser alterada por circunstâncias posteriores, sem prejuízo, no entanto, do pressuposto processual autónomo do interesse em agir se dever manter do início ao termo da causa, sob pena de inutilidade desta.

 

Assim, o facto de o sujeito passivo de ISV   já não ser proprietário do veículo aquando da dedução do pedido de pronúncia arbitral, por, entretanto o ter vendido a um particular, não prejudica o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e, portanto, a deduzir pronúncia arbitral, a não ser que entretanto tenha cessado o interesse em agir.

 

Desenvolvendo essas normas, a parte final da alínea a) do nº 4 do art.º 18º da LGT reconhece o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou apresentar pedido de pronúncia arbitral, nos termos das leis tributárias, a quem, embora não sendo sujeito passivo do imposto, suporte por repercussão legal o encargo tributário;

 

Com a efetiva repercussão legal do imposto, distinta da repercussão meramente económica ou de facto, não imposta nem prevista na lei, a titularidade do interesse em agir, que é condição de qualquer ação, transfere-se do repercutente sujeito passivo do imposto para o repercutido não sujeito passivo, não sendo concebível, já que outra solução implicaria a possibilidade de enriquecimento sem causa, a legitimidade simultânea ou concorrente de repercutente e repercutido.

 

O ISV não é, no entanto, um imposto de repercussão legal. A incorporação do ISV no preço a pagar ao fornecedor assenta em   uma relação jurídica de direito privado, não estando, assim, abrangida pela parte final da alínea b) do nº 4 do art.º 18º.

 

Na verdade, no comércio normal, o fornecedor do veículo , ao contrário do que acontece no IVA, exemplo típico do imposto de transmissão  de repercussão legal ou por natureza, não o adquire em nome e por conta do adquirente final, mas em seu nome próprio ( ver Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, TJUE, de 28/7/2011, processo C- 106/10, em especial nºs 39 a 41, que  , terminando com uma polémica relativamente longa sobre a inclusão do ISV na base tributável do IVA, nos termos da alínea a) do nº 5 do art.º 16º do CIVA, concluiria , ao contrário da lógica que subjaz à posição da Requerida expressa na Resposta,  em sentido afirmativo).

Com efeito, as despesas pagas por meio do ISV são pagas, não em nome do definitivo comprador do veículo, mas em nome do seu fornecedor no sentido do art.º 73º da Diretiva 2006/112, sendo consequentemente estabelecido um vínculo direto entre a transação de fornecimento realizada pelo fornecedor e esse imposto (sobre o assunto. Xavier de Basto, “Imposto sobre Veículos; Valor Tributável do IVA, Jurisprudência Comunitária sobre o Valor Tributável do IVA”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano IV, nº 3, págs. 109 e ss., que afastou claramente a conceção do ISV como um imposto de matrícula).

Deste modo, as únicas pessoas passíveis de pagar o ISV são os fornecedores dos veículos e não seus compradores.

Os fornecedores podem ou não integrar o ISV no preço de venda ao adquirente, de acordo com as relações contratuais que entre si estabelecerem, integrando então o ISV o valor tributável em IVA, mas nenhuma norma do CISV atribui ao sujeito passivo o ónus ou sequer o direito potestativo de o repercutir.

A haver repercussão, ela resulta de uma relação de direito privado, exterior à relação jurídico- tributária, entre fornecedor e comprador.

Ao contrário do ISV, no IVA a repercussão é inerente à natureza do imposto, nos termos do nº 1 do art.º 37º do CIVA, sendo sempre permitida e podendo ser obrigatória. Solução análoga vem consagrada no Código do Imposto do Selo, de acordo com o art.º 3º, que é igualmente um imposto de repercussão legal, mas não no Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC), em que o legislador, apesar de o objetivo último do imposto, ser a tributação do consumo final, determinou ser sujeito passivo quem coloca o bem no mercado. Um imposto como o ISV não pode, portanto, ficar de fora do valor tributável do IVA (ver ainda ponto (c) do primeiro parágrafo do art.º 79 da Diretiva 2006/112, a Diretiva IVA.

Segundo o Acórdão do Pleno do STA de 14/10/2020, proc. 506/17.2BEALM, a repercussão de um tributo só existe porque existe um tributo a repercutir, mas não basta para a legitimidade da repercutente e consequente legitimidade do repercutido a mera existência da repercussão. A repercussão, segundo essa jurisprudência, deve ser um reflexo necessário da tributação, resultando do exercício de uma imposição legal ou de um direito potestativo, únicos casos em que se deve entender o legislador ter delegado ao repercutente o poder de tributar o facto de integrar numerosos votos de vencido, aliás com fundamentos diversos. não obsta à sua caracterização desse Acórdão como representativo da jurisprudência consolidada do STA.

Assim, a legitimidade do repercutente depende de   o tributo ter sido instituído de forma que o encargo seja suportado pelo repercutido.

Nessa medida, porque, dada a inexistência de repercussão legal, o adquirente não pode substituir-se ao fornecedor na titularidade do direito de obter a restituição do imposto indevidamente pago, não se vislumbra como, no presente caso, possa ocorrer enriquecimento sem causa.

Tal posição é conforme com a do TJUE (ver Acórdão de 9/2/99, proc. C-343-95), que teve em conta os reflexos que possa ter na efetividade do direito de restituição dos impostos cobrados em violação do direito comunitário, que não sejam, por natureza, impostos de repercussão, a imposição ao sujeito passivo do ónus de prova do fato negativo da inexistência de repercussão económica ou de facto. Tal Acórdão é uma reação jurisprudencial à recusa de Estados membros da União Europeia restituírem os impostos cobrados em violação do Direito Comunitário, fazendo depender essa restituição da prova frequentemente impossível ou muito difícil da inexistência de repercussão.

Frontalmente, tal Acórdão declara, assim, na Conclusão C, o direito comunitário opor-se a que um Estado-Membro submeta o reembolso de direitos aduaneiros e de outras imposições contrários ao direito comunitário, em que, no nosso entendimento, se inclui o ISV, à condição da prova da ausência de repercussão destes direitos ou imposições sobre terceiros.

7.2.  Do valor da causa

Resulta dos autos que a Requerente solicitou por duas vezes a declaração de ilegalidade parcial do mesmo ato de liquidação de ISV com o nºs .../..., relativa a veículo de marca ... com a matrícula..., no valor de € 1.235,98, tendo reclamado consequentemente em duplicado o valor de € 30,64.

Nos termos do art.º 249º do Código Civil (CC), aplicável aos atos jurídicos por força do art.º 295º, o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta.

Tem sido entendimento constante da jurisprudência o princípio em causa aplicar-se a todos os atos processuais e das partes em que ocorra um lapso manifesto na declaração de vontade que concretizam e não apenas às sentenças (Acórdão da Relação de Lisboa de 3/19/91, proc. nº 0031956).

Nesse sentido, de acordo com a posição da Requerida a 19º da Resposta, o valor reclamado deve ser reduzido em € 30,64, com os consequentes efeitos em sede das custas processuais.

 

7.3. Da contrariedade com o art.º 110º do TFUE   da norma - fundamento da liquidação do ISV, o nº 1 do art.º 11º do CISV, na redação do art.º 217º da Lei nº 42/2016

A  incompatibilidade com norma de tratado internacional  (não inconstitucionalidade) da norma - fundamento das liquidações impugnadas por violação do Direito Comunitário  é indiscutível, como resulta do ainda muito recente  Acórdão do TJUE de 2/9/2021, no proc. C-169/2020 que, aliás, mais não faz que confirmar a já vasta jurisprudência do CAAD sobre o assunto em causa, em que avultam  as decisões dos processos nº 572/2018-T;  nº 346/2019-T;  nº 348/2019-T;  nº 350/2019-T;  nº 459/2019-T;  nº 466/2019-T;  nº 498/2019-T;  nº 660/2019-T;  nº 776/2019-T;  nº 833/2019-T;  nº 872/2019-T;  n º 13/2020-T;  nº 34/2020-T;  nº 52/2020-T;  nº 75/2020-T; nº 98/2020-T;  nº 113/2020-T;  nº 117/2020-T;  nº 117/2020-T; nº 158/2020-T;  nº 201/2020-T;  nº 209/2020-T;  nº 246/2020-T;  nº 293/2020-T;  nº 309/2020-T;  nº 329/2020-T;  nº 347/2020-T n 455/2020-T , nº  456-2020/T e nº 474-2020/T.

Tal Acórdão foi proferido em ação por incumprimento intentada contra o Estado português pela Comissão Europeia, nos termos do art.º 258º do TJUE.

Como resulta do nº 36 desse Acórdão, para efeitos da aplicação do art.º  110.º TFUE, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados já presentes no território do Estado Membro, que constituem produtos similares ou concorrentes aos primeiros, deve tomar se em consideração, não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve, assim, refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional.

Neste contexto, prosseguiriam os nº s 37 e 38. desse Acórdão, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre os veículos usados importados e os veículos usados similares anteriormente matriculados no território nacional e submetidos, no momento da matrícula, ao referido imposto.

Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do CISV prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, na legislação que vigorou entre a Lei nº 42/2016 e a Lei nº 75-B/2020, não esteve prevista, para os veículos importados. nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que refletisse a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

Daqui resulta, segundo os nºs 41 e 42 desse Acórdão que a legislação nacional que institui o imposto em causa tivesse por consequência que, durante esse período, o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros fosse calculado, relativamente à parte do preço que refletia a componente ambiental, sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a legislação nacional não garantiu que os veículos usados importados de outro Estado Membro fossem sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

Recorda o nº43 do mesmo Acórdão que, embora os Estados Membros sejam livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE . A eficaz proteção do ambiente pode efetuar-se tanto por meio de medidas discriminatórias por medidas não discriminatórias do comércio estrangeiro, apenas as primeiras sendo admissíveis.

O fato de o RFUE, como a CRP, consagrarem a proteção do ambiente, incluindo o princípio do poluidor- pagador, não significa uma prevalência absoluta desse princípio perante outros princípios fundamentais do Direito Comunitário ou da CRP com os quais deve ser conjugado.

O artigo 110.º TFUE opor-se-ia, assim, a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da classificação ambiental dos veículos, fosse calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplicasse a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapassasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já tivessem sido registados no Estado Membro de origem.

Chama a atenção o nº 45 do  Acórdão do TJUE, o que certamente foi uma circunstância decisiva na formação da  posição desse Tribunal,  que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente do que aquela que foi adotada pelo Estado português,  fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador .

Em lugar dessa medida, que seria irrepreensível perante o Direito Comunitário, o legislador optou por introduzir uma discriminação a favor do mercado nacional de carros usados, que não se pode fundar em si mesma na proteção do ambiente, já que, se assim fosse, seria aplicável a todos os veículos usados.

Assim, segundo o nº 51 desse Acórdão, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no CISV, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE no período entre a Lei nº 42/2016 e a Lei nº 75-B/2020.

 

7.4. Da tempestividade do pedido de revisão apresentado pela Requerente

No pedido de revisão apresentado à Alfândega do Freixieiro, a Requerente solicitou a anulação das quatro liquidações de ISV identificadas, duas delas datadas do ano de 2017, as outras duas datadas do ano de 2020, colocando-se a questão da tempestividade dessa iniciativa.

Como é sabido, segundo o nº 1 do art.º 78º da LGT, os atos tributários podem ser revistos pela entidade que os praticou:

- Por iniciativa do contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade, no prazo de reclamação graciosa previsto no nº 1 do art.º 70º do CPPT;

-Por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos ou a todo o tempo se o imposto ainda não tiver sido pago, tendo como fundamento apenas o erro imputável aos serviços.

No que concerne aos atos de liquidação de ISV nº s.../..., de 25/1, relativa a veículo ... com a marca ..., no valor de € 1.948,07 e .../..., de 21/9, relativa a veículo ... com a matrícula..., no valor de € 26.477,81, o pedido de revisão deduzido pela Requerente foi tempestivo, por dentro do prazo de 120 dias previsto no nº 1 do art.º 70º do CPPT, iniciado na data referida no Quadro T da respetiva DAV.

No que aos atos de liquidação de ISV com o nºs .../..., de 20/10, relativa a veículo de marca ... com a matrícula..., no valor de € 1.235,98, .../..., de 6/11, relativa a veículo ... com a matrícula..., no valor de € 2.274,48, o pedido foi apresentado muito após o termo do prazo de 120 dias iniciado na data indicada no Quadro T da respetiva DAV, não se aplicando o prazo de quatro anos da segunda parte do nº 1 do art.º 78º da LGT por inexistência de erro imputável aos serviços. Outra solução apenas se poderia basear numa pretensa aplicabilidade direta do art.º 110º do TFUE, que não é reconhecida pelo Direito Comunitário, nem pela legislação nacional.

O art.º 110.º do TFUE, correspondente ao anterior artigo 90.º do TCE, norma que fundamenta a pretensão da Requerente, declara, como anteriormente se referiu, que nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

O comando dessa norma que tem origem no art.º 12º do próprio Tratado de Roma dirige-se primordialmente aos Estados membros da UE que não podiam e continuam a não poder, através de medidas discriminatórias não fundamentadas nem adequadas para os fins a atingir, anteriores ou posteriores à entrada em vigor do TFUE, entravar a liberdade de circulação de mercadorias no então Mercado Comum, ora mercado interno da UE.

 

Em Direito Comunitário, apenas têm aplicação direta as normas cuja exequibilidade não dependa de medidas normativas, legislativas ou regulamentares nacionais ou atos administrativos adotados pelos Estados membros.

 

Têm, por outro lado, efeito direto as normas que, não sendo de aplicação direta, dada a exequibilidade depender da sua transposição pelos Estados membros para o direito nacional, podem, no entanto, ser invocadas pelos particulares junto dos tribunais, como fonte de direitos e obrigações.

 

Nos termos do art.º 288º do TFUE, apenas têm aplicação direta os Regulamentos e as Decisões. No caso de as Decisões identificarem destinatários, apenas a estes se lhes aplicam diretamente.

 

As normas do TJUE não têm, à luz desse critério, aplicação direta (Patrícia Fragoso Martins. “O Princípio do Primado do Direito Comunitário sobre as Normas Constitucionais dos Estados Membros- Dos Tratados ao Projeto de Constituição Europeia”, Lisboa, 2005, pg. 29). Podem, no entanto, caso sejam invocadas perante tribunais nacionais, ter efeito direto, consequente do primado do Direito Comunitário, como seria desenvolvido pela jurisprudência do TJUE logo a partir do Tratado de Roma.

 

Com efeito, o     Acórdão do TJUE C- 26/62, de 5/2/63, conhecido por Van Gend & Loos, tal art.º 12º   do Tratado de Roma reconheceu aos particulares direitos individuais que as jurisdições internas dos Estados membros deveriam salvaguardar, incluindo os direitos inerentes à liberdade de circulação.

 

Segundo o posterior Acórdão nº C- 166/77, de 9/3/78, conhecido por Simmenthal, a salvaguarda desses direitos não depende de o juiz solicitar ou esperar a prévia eliminação da norma interna incompatível, quer   por via legislativa, quer por qualquer outro processo constitucional do Estado membro.

 

É de referir que, a partir do Acórdão do TJUE C-/60, de 16/12/60, o TJUE consideraria não dispor, como hoje ainda não dispõe, mesmo no âmbito da ação por incumprimento atualmente regulada no art.º 260º do TFUE, da competência de anulação de atos dos Estados membros com fundamento em serem contrários ao Direito Comunitário, independentemente de tais atos serem individuais e concretos ou normativos. 

 

Assim, a sanção da violação do princípio do primado como foi desenvolvido por essa jurisprudência não é a invalidade, mas a mera ineficácia, por inaplicabilidade, perante o Direito Comunitário, seja este primário, como é o referido art.º 110º do TFUE, ou derivado, das normas de direito interno que o contrariem.

 

O princípio do primado não prejudica outras consequências que o direito interno de cada Estado membro possa extrair autonomamente da violação das normas do Direito Comunitário.

 

Assim o Direito Comunitário apenas obriga o juiz nacional a desaplicar as medidas normativas ou administrativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

 

Não lhe permite anular essas medidas, que apenas pode ser decidida, por esse juiz nacional, nos termos do seu próprio direito nacional, caso este assim permita.

Do mesmo modo, do princípio do primado não resulta a licitude de salvo em cumprimento de decisão judicial, as Administrações Públicas dos Estados Membros desaplicarem as medidas normativas nacionais incompatíveis com o Direito Comunitário.

A possibilidade de a Administração Pública se recusar a aplicar atos legislativos com fundamento em inconstitucionalidade, por violação da CRP,  ou mera ilegalidade,  em especial por violação de lei reforçada ou outros fundamentos enunciados no nº 2 do art.º 280º da CRP ,  exercendo um controlo da constitucionalidade ou legalidade dos atos normativos reservado aos tribunais ,  é, aliás, no modelo do Estado de direito adotado pela quase totalidade dos países da União Europeia,  incompatível com o princípio da separação de poderes, em Portugal com expressão no art.º 111º da Constituição da República Portuguesa(CRP),  que, no nº 1, dispõe que os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na CRP. Não se vislumbra, por exemplo, como possa ser compatível com esse modelo a possibilidade de um diretor-geral ou funcionário subalterno recusar a aplicação de uma lei do Parlamento, à margem do controlo deste sobre toda a atividade administrativa.

Esse princípio seria acolhido, passando agora para o direito interno, pelo nº 4 do art.º 8º da CRP, aditado pelo art.º 3º da Lei Constitucional nº 1/2004, de 24/7, que dispõe que as disposições dos Tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. É, assim, à luz do Direito Comunitário e não do direito nacional que deve ser apreciada a aplicabilidade direta do art.º 110º do TFUE.

 

Por comparação com o que constava do Projeto de Revisão Constitucional nº 3/IX, esse nº 4 não declara, assim, o direito primário dos Tratados e o direito derivado prevalecerem hierarquicamente sobre as normas do direito interno, mas apenas determinarem a sua ineficácia/ inaplicabilidade. 

 

A versão final   que viria a ser aprovada estaria de harmonia com o posterior Tratado de Lisboa resultante do cumprimento do mandato da conferência intergovernamental definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas de 22/06/2007, que retirou ao projeto de tratado inicial, o chamado Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa aprovado pelo Conselho Europeu de Roma de 29/10/2004, esse carácter constitucional.

 

Deste modo, as normas dos Tratados da União, como é o caso desse art.º 110º do TFUE: não são aplicáveis diretamente, mas têm efeito direto na medida em que a sua incompatibilidade com o Direito Comunitário pode ser invocada perante os tribunais para efeito da remoção da aplicação do direito interno contrário. Não são, no entanto, fundamento de invalidade de qualquer norma desse direito interno.

 

Na verdade, falta à ordem jurídica comunitária um dos traços fundamentais do federalismo consistente no princípio “Bundesrecht bricht Landsrecht”, de que decorre a nulidade da norma estadual que contrarie a norma federal. Em conformidade, o Tribunal de Justiça, mesmo quando exerça os poderes previstos no art.º 234º do TFUE no âmbito do reenvio prejudicial, não tem as características de um tribunal federal, caso em que disporia de competências para julgar da validade das normas estaduais que contrariassem o Direito Comunitário.  

 

No entanto, as normas dos Tratados e direito derivado   não são aplicáveis em Portugal sempre que a sua aplicação contrarie princípios fundamentais do Estado de direito democrático, hipótese de momento meramente académica, já que tais princípios fundamentais foram incorporados pelos Tratados, incluindo na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Está, assim, apenas afetada   pelo que alguns autores chamam de “inconstitucionalidade indireta”, por contrariar esse nº 3 do art.º 8º. a norma de direito nacional incompatível a aplicação de normas de tratados internacionais vinculativos do Estado português ou do próprio direito derivado da União Europeia.

 

No entanto, para a jurisprudência consolidada do TC, não sofre de inconstitucionalidade direta ou indireta   uma   medida normativa nacional da qual resulte a inaplicabilidade das normas de tratados internacionais vinculativos do Estado português, incluindo o TFUE (Jorge Miranda, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 95), que, deste modo, não está sujeita ao controlo abstrato da constitucionalidade referido no art.º 281º da CRP.

 

A eventual violação indireta de normas constitucionais por norma interposta em que se enquadra a vulgarmente chamada “inconstitucionalidade indireta “só cabe, segundo o TC, na figura da inconstitucionalidade quando a violação da norma interposta implicar igualmente a violação direta e autónoma de normas constitucionais diversas para além da que fixam as regras da hierarquia (Acórdão do Tribunal Constitucional de 31/10/84, Proc. 84-0043).

 

Mais recentemente, sobre a violação das normas dos Tratados de aplicação direta ou com efeito direto, confirmando que não configura inconstitucionalidade, pronunciou-se i Acórdão do TC nº 569/2016.Tal doutrina seria atualizada pelo Acórdão n.º 268/2021 do TC, na sequência dos Acórdãos 354/97, 122/98, 624/98, 650/98, 147/2005 e 569/2016), todos do TC.

 

Assim as normas que contrariem   direito convencional, vinculativo nos termos dos nºs 2 a 4 do art.º 8º. da CRP, de acordo com a chamada Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC. Lei nº 28/82, de 15/11) nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º: apenas são passíveis de um juízo de ilegalidade por esse Tribunal nos casos de decisões que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido pelo TC. Tais normas não estão abrangidas, como se referiu, pelo controlo abstrato da constitucionalidade previsto no art.º 282º.

 

Não cabe , no entanto, à Administração Pública, particularmente à Administração  Tributária, sob pena de subversão do princípio da separação de poderes, usurpando a função dos  tribunais nacionais aos quais cabe em primeira linha garantir a aplicação do Direito da União, recusar  a aplicação de medidas  de natureza legislativa  legitimamente aprovadas pelo Governo ou pela Assembleia da República, com fundamento em  inconstitucionalidade,  em  ilegalidade ou oposição a tratado internacional vinculativo do Estado português, ou ao direito derivado da União Europeia, salvo quando estiverem em causa direitos fundamentais.

 

Uma vez, de acordo com os critérios gerais de interpretação das leis previstos na lei civil e na lei fiscal, o resultado da interpretação dessas normas seja o da sua inconstitucionalidade, ilegalidade ou incompatibilidade com o TFUE ou o direito derivado da União, a Administração Tributária não pode deixar, mesmo assim, de as aplicar, deixando para os tribunais o controlo da constitucionalidade ou ilegalidade que exclusivamente lhes cabe.

 

Essa é a jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 30/1/2019, proc. 564/18.2BALSB), a propósito do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, quando, nos termos do nº 1 do art.º 43º da LGT, se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que tenha resultado pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Citando esse Acórdão. “Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da Administração Tributária qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da Administração Tributária decidir de modo de modo diferente daquele que decidiu, por estar sujeita ao princípio da legalidade (cf. nº 2 do art.º 266.º da CRP e art.º 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cf. art.º 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cf.  nº 1 do art.º 18º   da CRP)”.

 

Tal Acórdão abrange não apenas a inconstitucionalidade, mas a ilegalidade das normas: não faria sentido, aliás, que o efeito direto negado às normas constitucionais fosse reconhecido às normas ilegais, colocadas num plano inferior na hierarquia das   normas jurídicas. Abrange igualmente as normas de Direito Comunitário que, apesar de terem efeito direto, sejam desprovidas de aplicabilidade direta.

 

Traduz  jurisprudência consolidada, de acordo com os critérios que têm vindo a ser definidos pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo no preenchimento do conceito de “jurisprudência mais recentemente consolidada do STA”: esta deve transparecer ou do facto de a pronúncia respetiva constar de acórdão do Pleno assumido pela generalidade dos Conselheiros em exercício na Secção consoante prevê o  nº 2 do atual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais(ETAF) ou do facto de existir uma sequência ininterrupta de várias decisões no mesmo sentido, obtidas por unanimidade em todas as formações da Secção, como são particularmente, entre outras, as citadas na Decisão nº 362- 2020/T, do CAAD (Vide, por todos, o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, 12 /12/2012, proferido no processo com o n.º 932/12).

 

Essa jurisprudência consolidada do STA contrariaria   a dos Acórdãos de 31/10/2001, proc. 026167, 17/11/2001, proc. 026404, e   19/11/ 2014, Processo. 886/14-30, que fundamentariam o direito a juros indemnizatórios nos casos de anulação do ato tributário com fundamento na inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma aplicada com recurso a um tipo de responsabilidade objetiva da Administração Tributária resultante de uma pretensa alta dos serviços globalmente considerados.

 

Tal responsabilidade objetiva e consequentemente toda a construção em que se viria a basear essa jurisprudência e que seria seguida por quase duas dezenas de anos pelos tribunais nacionais e pela própria administração fiscal nacional,  é,  a nosso ver, inexistente, dado o  nº 2 do art.º 483º do Código Civil dispor só existir responsabilidade sem culpa nos termos previstos na lei, o  art.º 22º da CRP não impor  qualquer responsabilidade do Estado pelos danos normais causados pelo  exercício da função legislativa( nesse sentido, Jorge Miranda, “ A  Constituição e a Responsabilidade Civil do Estado”, nº 1, Janeiro  a Junho de 2003, Revista Brasileira de Direito Constitucional) e o nº 1 do art.º 15º da Lei 67/2007, de 31/12, se limitar a declarar  o Estado e as Regiões Autónomas serem  civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos por atos que, no exercício da função político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou ato legislativo de valor reforçado, solução , aliás, que, no essencial, já vinha consagrada no anterior DL 48.051, de 21/11/67 .

 

 Assim , apenas  são indemnizáveis os encargos ou danos especiais e anormais, o que significa que esta categoria de responsabilidade civil, procurando assegurar o pagamento de uma compensação a quem tenha sido afetado na sua esfera jurídica por razões de interesse comum, visa sobretudo dar concretização prática a um princípio de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, desvalorizando a ocorrência de danos generalizados ou de pequena gravidade que devam ser entendidos como um encargo normal exigível como contrapartida dos benefícios que derivam do funcionamento dos serviços públicos( Carlos Cadilha, O novo regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado”, Lisboa, 1ª edição, Anotação a esse art.º 15º).  ).

 

Não se vê como possa haver falta dos serviços globalmente considerados quando estes se limitaram a aplicar a lei existente e o dano causado seja suscetível a recondução a um encargo normal exigível como contrapartida dos benefícios auferidos pelos contribuintes em virtude do exercício de uma atividade pública.

 

O   art.º 217º da Lei 42/2016 de 27/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2017), que alterou o art.º 11º do Código do Imposto sobre Veículos (CSVI) voltando a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo de uma ilegalidade em sentido amplo, por contrariar o art.º 110º do TFUE.

 

Essa ilegalidade em sentido amplo não podia, no entanto, ser conhecida pelos serviços, dada a inexistência de efeito direto do art.º 110º do TJUE.

 

Embora tal jurisprudência do STA tenha sido construída a propósito do direito a juros indemnizatórios, a verdade é que dela logicamente resulta a inaplicabilidade do nº 1 do art.º 78º da LGT às liquidações em crise do ano de 2017.

 

Nessa medida, o fundamento da    decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução apenas é erro imputável aos serviços quando  a Administração Tributária não tiver procedido, ao apurar a situação tributária do contribuinte, a uma correta interpretação e aplicação  da lei (nesse sentido, as Decisões Arbitrais nºs Processos  848-2019/T, 396/20200-T,  393- 220/T, 414-2020/T, 419-2020/T, 165-2020 /T, 362-2020/T). Jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 20/10/2021, proc. 03421.1BALSB) entenderia tal tipo de Decisões Arbitrais, por, apesar de porem fim ao processo, não conhecerem do mérito da causa, não serem recorríveis nos termos do art.º 25º do RJAT.

Essa jurisprudência arbitral não é, no entanto, de modo nenhum uniforme ou sequer maioritária, como resulta, entre outras, das Decisões Arbitrais nos Processos  572-2018/T, 314-2020/T, 315-2020/T,  397-2020/T, 346-2019.T,  347/2019-T, 455/2020-T, 457-2020/T., que essencialmente se baseiam numa aplicabilidade direta, em bloco, das normas do TFUE, que não tem qualquer  apoio, ainda que ténue,  no Direito Comunitário e no próprio direito nacional. 

Com efeito, o Direito Comunitário não uniformizou nem sequer harmonizou os meios de reação judicial dos sujeitos passivos perante uma liquidação incompatível com as suas normas, nem determinou que a sanção dessa incompatibilidade não fosse a mera anulabilidade, sujeita aos prazos de anulação previstos no direito nacional, mas a mais gravosa nulidade.

Com efeito, de acordo com os nºs 32 e 33 do Acórdão do TJUE de 15/9/98, processo C-231/96, o chamado Caso Edis, o problema da contestação de taxas ilegalmente reclamadas ou da restituição de taxas indevidamente pagas é resolvido de modo diferente nos diversos Estados-Membros e mesmo, no interior do mesmo Estado, consoante os diversos tipos de imposições em causa.

Em certos casos, as contestações ou pedidos deste tipo estão sujeitos, pela lei, a condições precisas de forma e de prazo no que respeita tanto às reclamações apresentadas à administração fiscal como às ações judiciais. Noutros casos, as ações para restituição de taxas indevidamente pagas devem ser intentadas nos órgãos jurisdicionais ordinários, sob a forma, designadamente, de ações para restituição do indevido, podendo essas ações ser intentadas dentro de prazos mais ou menos longos, em certos casos durante o prazo de prescrição de direito comum.

Segundo admite o n.º 34 desse Acórdão, essa diversidade dos sistemas nacionais resulta, nomeadamente, da falta de regulamentação comunitária em matéria de restituição de taxas nacionais indevidamente cobradas.

 

Em tal situação, como se recordou no n.º 19 desse Acórdão, compete com efeito à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que decorrem, para os cidadãos, do direito comunitário, desde que, por um lado, essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das ações análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e, por outro, não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade).

O TJUE reconheceu, no nº 35 desse Acórdão Edis C- 231/96, a compatibilidade com o direito comunitário da fixação de prazos razoáveis de recurso, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica que protegem simultaneamente o contribuinte e a administração interessada.

 

A doutrina desse Acórdão C- 231/96 viria a ser completada pela doutrina do Acórdão C-30/02, de 17/4/2004, o chamado Caso Recheio, sobre a compatibilidade com o Direito Comunitário do prazo de caducidade de 90 dias para a interposição de um recurso de impugnação do ato que fixa a prestação tributária, contados a partir do seu pagamento voluntário, consagrado por essa .

 

Segundo o nº 20 desse Acórdão, se  o  acórdão Edis, já referido, dizia respeito a um prazo de caducidade de três anos a contar da data do pagamento do imposto, ou seja, um prazo claramente mais longo que o que está em causa no processo principal, também resulta desse acórdão e de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que os Estados Membros são livres de estabelecer prazos mais ou menos longos para a restituição do indevido, desde que não tornem impossível ou excessivamente difícil na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

 

No caso vertente, completa o nº 21 do Acórdão C-30/02, deve considerar se que um prazo de 90 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário do imposto, acolhido pelo direito processual português.  constitui um período de tempo suficientemente longo para permitir ao contribuinte tomar, com todo o conhecimento de causa, a decisão de interpor um recurso de impugnação e para reunir para o efeito todos os elementos de facto e de direito necessários.

 

Assim, as referidas normas do CPT, além de respeitarem o princípio da equivalência, não consagram um prazo de reclamação ou impugnação de tal modo exíguo que inviabilize ou dificulte excessivamente o exercício dos direitos que reconhecem.

Não violam, assim, isoladamente ou no seu conjunto, o nº 4 do art.º 268º da CRP que reconhece aos administrados a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.

7.5. Do direito a juros indemnizatórios

Nos termos do nº 1 do art.º 17º do CISV, a liquidação do imposto é titulada pela DAV.

Cabe, no entanto, à Administração Tributária, nos termos do nº 1 do art.º 25º, liquidar o ISV com base na DAV.

Assim, ao liquidar o imposto com base em uma norma – o art.º 217º da Lei 42/2016- sem dúvida incompatível com o Direito Comunitário, a Administração Tributária limitou-se a aplicar o direito em vigor, com a consequente exclusão de erro imputável aos serviços, na aceção da citada jurisprudência superior.

 

Segundo o n.º 1 daquele art.º 43º, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Considera-se também haver erro imputável aos serviços, segundo o n.º 2, bem como para efeitos do n.º 1 do art.º 78º, nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

Ampliando o direito a juros indemnizatórios a outros fundamentos que não incluem o erro imputável aos serviços na liquidação, o n.º 3 estabeleceria serem  também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

 

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do ato tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

 

Porventura em consequência da consolidação dessa  jurisprudência superior,  o  art.º 2º da Lei nº 9/2019, de 1/2,  introduziria nesse nº 3 uma nova alínea  d) que ampliaria  a extensão do direito a  juros indemnizatórios , não obstante , à luz desse critério  a inexistência nessas circunstâncias  de erro imputável aos serviços, aos casos  em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução ..

O legislador limitou-se a introduzir um  novo fundamento do direito a juros  indemnizatórios em caso de danos, ainda que de pequeno montante , causados por ato normativo declarado inconstitucional ou ilegal  , mas não ampliou o fundamento do meio extraordinário de revisão do nº 1 do art.º 78º da LGT, em ordem a incluir casos em que a liquidação  não tiver sido causada por erro imputável aos serviços (nesse sentido, é totalmente esclarecedor o Acórdão do STA de 23/10/2019, proc. 01974/16, 5BELRS).

Segundo a art.º 3º dessa Lei, a nova redação da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT aplica-se também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrada em vigor, sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1/1/ 2011.

Ao referir como fundamento do direito a juros indemnizatórios decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução, o legislador da Lei nº 9/2019, reportou-se diretamente ao mecanismo de fiscalização abstrata da inconstitucionalidade ou ilegalidade regulado no art. 281º da CRP e não à recusa de aplicação em casos concretos por qualquer tribunal de normas legislativas ou regulamentares com fundamento na sua ilegalidade ou inconstitucionalidade que, aliás, está sempre sujeita ao controlo do Tribunal Constitucional., nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 280º da CRP.

Ora, como se referiu, a incompatibilidade de norma de direito nacional com norma de direito internacional, incluindo o TFUE e o próprio direito derivado da União Europeia, vinculativa do Estado português, não está sujeita à fiscalização abstrata do TC, sendo apenas a recusa da sua aplicação pelos tribunais nacionais – e não a sua aplicação por estes- passível de recurso para o TC.

Tal Lei nº 9/2019, como explica o referido Acórdão do STA de 23/10/2019, segue-se à prolação do Acórdão n.º 848/2017, do Tribunal Constitucional, de 13/12/2017 que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do Regulamento Geral de Taxas, Preços e Outras Receitas do Município de Lisboa, ao abrigo das quais foram efetuadas as liquidações impugnadas, por violação do disposto no n.º 2 do art.º 103.° e na alínea i) do n.º 1  do art.º 165º, da CRP, bem como do nº 1 do art.º 43.º da LGT.

Tal possibilidade de declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral não é aplicável, porque o não prevê, o nº 1 do art.º 281º da CRP, às normas de direito nacional incompatíveis com o TFUE e o direito derivado, apenas passíveis da fiscalização concreta, em caso de recusa da sua aplicação, prevista na alínea i) do nº 1 do art.º 70º da LOTC.

As referidas decisões do CAAD, da autoria de tribunais arbitrais e não de tribunais judiciais, não têm caráter geral e o respetivo caso julgado limita-se ao processo em que foram proferidas, não podendo ser consideradas para efeitos do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do nº 3 do art.º 43º da LGT. Do mesmo modo, o Acórdão do TJUE no proc. C-169/2020 limita-se à verificação do incumprimento pelo Estado português das obrigações previstas no art.º 110º do TFUE, não contendo qualquer declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade do art.º 217º da Lei nº 42/2016, reservada aos tribunais nacionais.

Nessa medida, a Requerente não tem direito aos juros indemnizatórios requeridos, uma vez o mencionado art.º 217º da Lei nº 42/2016 não ser sido objeto de qualquer declaração com caráter geral de inconstitucionalidade ou ilegalidade.

7.6- Da violação do princípio do acesso à justiça

Segundo a  Requerida,  por  a Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, aquela teria ficado  coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, motivo pelo qual  a procedência do presente pedido de pronúncia arbitral violaria o princípio do acesso à justiça consagrado no nº 1 do art.º 20º da CRP.

Esse juízo tem por base do  nº 1 do art.º 25º do RJAT que dispõe que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso para o Tribunal Constitucional na parte em que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada., acrescentando o nº 2 apenas que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda suscetível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.

A jurisprudência do TC tem considerado compatível com o princípio do acesso à justiça a irrecorribilidade das decisões arbitrais para tribunais estaduais, desde que proferidas no âmbito da arbitragem   voluntária, mas não no âmbito da arbitragem necessária (ver o Acórdão nº 230/13 do TC, relativo ao art.º  4.º do Anexo ao Decreto n.º 128/XII que previa  a arbitragem necessária como único meio de resolução dos litígios em matéria desportiva  e não continha  qualquer exceção relativamente aos atos administrativos que pudessem  ser objeto de apreciação em tribunal arbitral, na medida em que abrangia todos os atos praticados no exercício de poderes de autoridade, incluindo os atos sancionatórios, para que reservava  apenas um meio interno de impugnação, pronunciando-se no sentido da   inconstitucionalidade dessa solução).

No entanto, em processo tributário, a utilização da arbitragem como meio alternativo de resolução de litígios em matéria tributária não é necessária, dependendo da voluntária vinculação dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça nos termos do nº 1 do art.º 4º do RJAT, vinculação que seria exercida pela Portaria nº 112-A/2011, de 22/3. Tal Portaria mantém-se plenamente em vigor.

Nessa medida, a solução adotada da limitação da recorribilidade das decisões dos tribunais arbitrais para tribunais estaduais não é, à luz da jurisprudência do TC, incompatível ao acesso à justiça, ainda que, por mera hipótese, se concedesse a esse direito uma dimensão tão ampla que permitisse a sua invocação contra os particulares pelo Estado, detentor do poder legislativo, enquanto sujeito processual.

O direito de recurso para o TC das decisões de quaisquer tribunais , incluindo arbitrais, da recusa de aplicação de normas do direito interno com fundamento em incompatibilidade com normas de tratados internacionais,  incluindo o TJUE, e do direito derivado da EU , está finalmente assegurado pela referida alínea i) do nº 1 do art.º 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional que, dado o seu carácter de lei reforçada, , nos termos do nº 2 do art.º 112º, do nº 2 do art.º 166º e da alínea c) do art.º 164º, não pode ser considerar-se explícita ou implicitamente derrogado pelo art.º 25º do RJAT.  A própria AT tem-no amplamente utilizado recorrendo para o TC das decisões do CAAT que têm recusado a aplicação, por contrariedade com o TFUE, do art.º 217º da Lei nº 42/2016, o que, à partida, põe em causa esse argumento da Requerida (ver Acórdão do TC nº 711/2020, de 9/12/202).

 

8.   Decisão

 

Termos em que, o Tribunal decide:

- Declarar a ilegalidade parcial dos atos de liquidação nº.../..., de 25/1, relativa a veículo ... com a marca..., no valor de € 1.948,07, e nº .../..., de 21/9, relativa a veículo ... com a matrícula ..., no valor de € 26.477,81, todos praticados pela Alfândega do Freixieiro, com a consequente anulação das liquidações de ISV no montante de € 12.787,04.

-  Não declarar a ilegalidade declaração de ilegalidade parcial dos atos de liquidação de ISV com o nºs.../..., de 20/10, relativa a veículo de marca ... com a matrícula..., no valor de € 1.235,98, .../..., de 6/11, relativa a veículo ... com a matrícula ..., no valor de € 2.274,48, mantendo-se, assim, o valor impugnado de € 331,32.

 

- Julgar totalmente improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios 

 

9. Valor do processo

 

 Fixa-se o valor do processo em (nos termos da alínea a) do n.º 1 do 97.º-A, n.º 1, do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), em € 13.098,00.

 

10. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e do n.º 2 do art.º 12.º, n.º 2, e do n.º 4 dos 22.º ambos do RJAT, a pagar por Requerente e Requerida em função do decaimento na causa (proporção respetivamente de 2,5 e 97,5 %).

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 10 de novembro de 2021

 

O Árbitro Singular

 

(António de Barros Lima Guerreiro)