Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 165/2019-T
Data da decisão: 2019-11-18  IRS  
Valor do pedido: € 503.515,08
Tema: IRS - Transformação de sociedades; Cláusula Geral Anti-Abuso.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros José Pedro Carvalho (árbitro-presidente), Carla Castelo Trindade e Jónatas Eduardo Mendes Machado (árbitros vogais), designados, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

I. Relatório

1. A... SGPS, S.A., pessoa coletiva n.º..., (doravante Requerente) com sede na Rua..., n.º..., ...- ... em Lisboa, ora Requerente, ..., ... (Receção)/... ...-... Lisboa, Portugal NIF: ..., tendo sido notificada, mediante o Ofício n.°..., datado de 10.12.2018, da Direção de Serviços de IRS, do Despacho proferido no dia 06.12.2018, pela Senhora Subdiretora-Geral da Direcção de Serviços de IRS, ao abrigo de poderes subdelegados, através do qual foi indeferido o Recurso Hierárquico à margem identificado, interposto contra o ato de liquidação de Retenção na Fonte de IRS n.º 2014 ... e os correspondentes atos de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2014 ... a 2014 ..., todos relativos ao exercício de 2010, dos quais resulta um valor a pagar de € 503.515,08, vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ("RJAT"), em conjugação com o disposto no artigo 99.° e na alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ("CPPT"), aplicável por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT, apresentar Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 11.03.2019, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 02.05.2019, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 22.05.2019.

 

6. Na sua Resposta, apresentada a 26.06.2019, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio sustentar improcedência da presente ação, devendo manter-se a correção adicional com os fundamentos do RIT, devendo a mesma ser absolvida de todos os pedidos, com as legais consequências. 

 

7. A REQUERENTE veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos seguintes argumentos:

Insuficiente fundamentação dos atos de liquidação e do RIT 

a)            A decisão corporizada nos atos de liquidação aqui em crise, é claramente insuficiente quanto à necessária fundamentação, de facto e de direito, pois não permite conhecer o itinerário cognoscitivo, de facto e de direito, que lhe subjaz, estando, por isso, inquinada de vício de forma, nos termos do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa ("CRP") e do artigo 77.º da LGT, devendo ser anulada em conformidade, de acordo com o disposto no artigo 163.º do Código de Procedimento Administrativo ("CPA").

b)           Mesmo que se admitisse que a notificação em causa se pode fundamentar em algum documento, externo à mesma, sem necessidade do cumprimento dos requisitos mínimos de fundamentação exigidos pelo disposto no artigo 77.º, n.° 2, da LGT, sempre se teria de exigir a expressa remissão, na própria notificação do ato de liquidação, para esse mesmo documento - o que in casu não ocorreu.

c)            Nos casos em que se admita a fundamentação por remissão, impõe-se que essa remissão seja expressa, de modo a que a fundamentação seja tão acessível ao contribuinte, como se constasse do próprio ato. Este princípio, consagrado no n.º 1 do artigo 77.º da LGT, resulta também do disposto no próprio artigo 63.º, n.1, do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira ("RCPITA"), que faz depender a fundamentação dos atos tributários ou em matéria tributária nas conclusões do RIT da expressa adesão ou concordância com estas, o que não aconteceu no caso vertente.

d)           A fundamentação do próprio RIT não é suficiente nem clara, não explicando o porquê de considerar que, no mom1   ento em que a REQUERENTE decidiu alterar a forma jurídica da sociedade já tinha em vista, em exclusivo, o objetivo de desoneração fiscal.

e)           A AT limita-se a apontar a realização de transformações societárias, de onde deduz, face à não sujeição dos reembolsos de créditos dos acionistas a imposto, o preenchimento de todos os demais requisitos de aplicação da CGAA, que se limita a enunciar, omitindo, por completo, a ponderação e valoração do iter cognoscitivo que conduziu à conclusão alcançada.

f)            A CGAA é uma norma de conteúdo excecional, cuja aplicação o legislador entendeu submeter a especiais garantias, criando para o efeito o procedimento específico constante do artigo 63.° do CPPT.

g)            Os Serviços de Inspeção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, ao não carrearem para as Conclusões do Relatório de Inspeção Tributária, de forma clara e inequívoca, os fatos concretos em que baseiam as correções propugnadas, não dão cumprimento ao dever legal, constitucionalmente consagrado, de fundamentação, expressa, clara e cabal, das decisões que sobre os mesmos impende, devendo, por conseguinte, ser anulados os atos de liquidação aqui em crise, como se requer.

h)           Os atos de liquidação em crise não se encontram fundamentados em consonância com os termos legalmente adequados, impondo-se, assim, a sua anulação, por violação do disposto nos artigos 268.º, n.°3, da CRP e 77.º da LGT.

 

Não verificação dos requisitos de aplicação da CGAA 

 

i)             Não se verificam, no caso, os requisitos cuja verificação cumulativa permite a aplicação da CGAA, a saber, (i) a prática de atos ou negócios jurídicos (elemento meio), (ii) essencial ou principalmente dirigidos (elemento intelectual), (ii) com o recurso a meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas (elemento normativo) e (iv) destinados à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de fatos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios (elemento resultado), pelo que os atos de liquidação de IRS retido na fonte em análise violam o disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e, bem assim, o disposto no artigo 63.°, n.º3, do CPPT.

j)             O elemento-meio não é devidamente provado, pois do RIT resulta que a Administração tributária se limita a indicar um conjunto de atos individualizáveis, incluindo alguns de relevância impercetível para a discussão em causa, sem qualquer análise de interligação entre os mesmos que justifique a sua consideração em conjunto, abstendo-se de descrever os atos ou negócios jurídicos praticados, fazer a demonstração de uma relação entre eles, que justifique a sua interdependência - o que não fez.

k)            A operação de alteração do tipo societário teve como objetivo permitir a entrada de capital externo e adaptar a sociedade às exigências decorrentes do crescimento verificado, incrementando, assim, a sua eficiência operacional e não, como argumenta - ainda que sem demonstrar -, a AT prosseguir qualquer operação abusiva do ponto de vista fiscal.

l)             Com a expansão e desenvolvimento da sua atividade comercial, a "B..., S.A." deixou de ser a única empresa existente, para passar a ser uma das entidades operacionais que, por razões de funcionalidade, gestão e economias de escala, passou a estar sob a alçada de uma sociedade holding, que, tendo em conta o objetivo único de reestruturação societária, passou a ser, naturalmente, detida pelos mesmos acionistas que anteriormente detinham a (única) entidade que desenvolvia toda a atividade empresarial do grupo entretanto constituído- a sociedade "B..., S.A.".

m)          É perfeitamente natural, no caso de entidades não cotadas em mercados regulamentados, que o seu valor real varie ao longo do tempo, como reflexo do próprio negócio, sem que essa variação seja refletida no valor nominal das participações detidas, sendo que, no caso, o valor determinado resulta de uma avaliação imparcial, realizada por um Revisor Oficial de Contas independente.

n)           Relativamente à relação entre o referido contrato "Management de Prestação de Serviços" e a correção proposta, a argumentação da AT é desfasada da realidade empresarial, na medida em que, em estruturas de grupo, a grande maioria das atividades relacionadas com a gestão e administração são desenvolvidas de forma mais competente, a nível centralizado, ainda que tal atividade seja realizada pela REQUERENTE a título complementar. 

o)           A AT limita-se a apontar uma sequência de atos - a transformação de uma sociedade por quotas numa sociedade anónima, a que se sucede, mais tarde, a transmissão das ações (devidamente avaliadas por uma entidade independente, como se impunha) para a aqui REQUERENTE – para dar concluir, sem mais, que o que se pretende é alterar a natureza dos valores recebidos pelos seus acionistas, transmutando-os de dividendos em reembolso de créditos, pelo que se há de ter por assente a sua interdependência, com claro prejuízo para o disposto nos artigos 38.º, n.º 2 e 77.º da LGT e 63.º, do CPPT.

p)           O elemento intelectual não se verifica porque a AT não consegue demonstrar que, no momento em que se concretizou a primeira das operações, muito separada temporalmente dos subsequentes reembolsos de créditos, este enquadramento jurídico-tributário dos valores a receber era já o objetivo dos sujeitos passivos.

q)           Tal operação não pode ser feita a posteriori, como o faz a AT, com base nos elementos agora disponíveis, porquanto tal análise retiraria todo o efeito útil à exigência da necessidade de interdependência dos atos e negócios praticados, na justa medida em que esta deve ser uma interdependência expectável a priori, no sentido em que o sujeito passivo pretendeu, desde o início, encadear uma série de atos, eventualmente mais onerosos, por forma a atingir uma vantagem fiscal que não seria alcançável de outro modo.

r)            O elemento normativo não se verifica, na medida em que a AT não demonstra que os atos ou negócios praticados são contrários aos fins de uma norma objetivamente identificada, já que a norma que previa a isenção da tributação das mais-valias geradas pela transmissão de ações tinha por finalidade incontestável incentivar o investimento em sociedades anónimas como forma de desenvolvimento do mercado nacional, abrindo-se o capital das sociedades a terceiros que pudessem aportar valor ao negócio e desenvolvendo, simultaneamente, o mercado de capitais, entendimento foi objeto de inequívoca confirmação na jurisprudência arbitral, designadamente no âmbito das Decisões proferidas nos Processos arbitrais n.os 138/2012-T, 123/2012-T e 124/2012-.

s)            A norma que prevê que as entradas em espécie carecem de avaliação externa do respetivo valor - como sucedeu no caso em apreço - pretende que as sociedades possam ser constituídas através de participações distintas do puro capital, devendo o valor das referidas entradas, para evitar fraude às expectativas criadas ao mercado, ser certificado por um Revisor Oficial de Contas - o que sucedeu - nada havendo de anti-jurídico neste comportamento.

t)            À AT cabe fazer prova integral dos elementos constitutivos do direito de proceder à aplicação da CGAA, não sendo, como acima invocado, suficiente invocar o preenchimento em abstrato dos requisitos de que depende a sua aplicação, devendo, sempre e necessariamente, deles fazer prova, sob pena de, ainda que se suscite alguma dúvida quanto à admissibilidade da sua aplicação, a mesma não ser aplicável por incumprimento, por parte da Administração tributária, do ónus reforçado que, sobre si impende, de demonstrar os fatos que alega.

u)           A AT deve demonstrar, em relação a todos e a cada um dos elementos que integram a CGAA, o seu concreto preenchimento individual, para que, da mesma, possa retirar a consequência sancionatória de desconsideração dos efeitos fiscais dos atos ou negócios jurídicos praticados.

v)            A AT nunca demonstrou as conclusões a que chega, bastando-se com meras afirmações (conclusivas) vagas é vazias de conteúdo, porque não suportadas em quaisquer elementos que as demonstrem, em violação do disposto no artigo 74.º, n.°1, da LGT.

w)          No âmbito do Direito da União Europeia, as condições de aplicabilidade das CGAA foram já objeto de análise e validadas, de forma consistente, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ("TJUE"), desde que devidamente balizadas e enquadradas pelos princípios de Direito da União, formando-se, assim, jurisprudência assente na matéria, nos termos da qual as Cláusulas Anti-Abuso poderão ser aceites, apenas e só, na medida em que sejam aplicáveis tão-somente a expedientes puramente artificiais.

x)            A CGAA portuguesa deve ser interpretada ao abrigo daquele conceito de abuso de direito, quando estejam em causa situações de Direito Europeu.

 

8. A Requerida respondeu, por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos:

a)            A Requerente foi notificada para, querendo, exercer o direito de audição prévia sobre o projeto de Relatório de Inspeção Tributária (RIT), como resulta do Capítulo IX daquele Relatório, sendo dispensada a audição antes da liquidação, nos termos do artigo 60º,, n.º3, da LGT, sendo que a mesma confessa, no ponto 192 da PI, que exerceu o direito de audiência;

b)           A Requerente demonstra perfeito conhecimento do teor da liquidação e RIT, meios de reação e prazos ao seu dispor;

c)            Para além de notificada para exercer o direito de audiência prévia (que exerceu) ainda foi notificada do RIT, no qual consta, o capítulo I.1 – Correções de Natureza Meramente Aritméticas;

d)           Na tabela do Capítulo I.1. do RIT é identificado o imposto em falta por exercício, sendo que se encontra ali o montante correspondente ao ano de 2010, a saber, € 447, 169,59 ao qual acrescerá o montante de juros compensatórios, sendo perfeitamente percetível de onde resulta a liquidação, assim como a sua fundamentação;

e)           O capítulo III. 5.1. - Imposto em falta de IRS, do RIT, descreve sucintamente todo o imposto em falta e correções que iriam ser efetuadas, assim como a base legal para o efeito, sendo que o artigo 76.º, n.º 1, da LGT, atribui fé às informações prestadas pela inspeção tributária, quando fundamentadas e baseadas em critérios objetivos, ao mesmo tempo que o artigo 77.º da LGT permite a fundamentação por concordância com os fundamentos que integrem o RIT; 

f)            As disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo exigidas pelo n.º 2 do art.º 77º da LGT, bem como os meios de reação, estão mencionadas nos documentos de cobrança / nota de liquidação, dos quais a Requerente foi notificada validamente;

g)            A Requerente, na sua longa PI, demonstra ser perfeitamente conhecedora dos fundamentos de facto e de direito, assim como do percurso que AT efetuou para chegar às conclusões que chegou; ´

h)           Resulta claro ao longo de todo o RIT a descrição dessa interligação dos atos descritos com essa intenção da R obter uma vantagem fiscal indevida, assim como resulta claro porque é que o legislador nunca teve em mente dar tal vantagem aos contribuintes;

i)             A sucessão de atos identificada e a alegada urgência em realizar as operações descritas no RIT revelam a intenção de aproveitar a exclusão de tributação, prevista no n.º 2 do artigo 10.º do CIRS (Revogado pela Lei n.° 3-B/2010 de 28 de abril), conjugada com o gerar créditos, na A... SGPS, SA a favor dos acionistas, no caso sob a denominação de "créditos" cujo recebimento, no futuro, não estaria sujeito a qualquer tributação; (cf. fls. 23 do cit. Doc. n.° 3).

j)             O Relatório Justificativo da Transformação Elaborado Pela Gerência da Sociedade, que serviu de base àquela transformação não contem qualquer justificação ou motivação para dar alguma substância à transformação do tipo legal, nem sequer quaisquer indícios de estratégia empresarial, incremento ou diversificação do objeto social;

k)            O que os acionistas (que são comuns a ambas as sociedades) pretenderam com a avaliação das ações da "B..., SA" (e para isso a realizaram naquela data - 9 dias antes da sua alienação), não foi avaliar a empresa operacional para efeitos de uma potencial venda, nem mesmo para efeitos de registo na A..., SGPS, SA, pelo seu «justo valor». "(cf. fls. 23 do cit. Doc. N. 3);

l)             Não é normal é uma valorização tão grande (superior a 100%)  em tão poucos meses, pelo menos sem que ocorra algum facto interno ou externo que faça com que isso aconteça;

m)          A A... é que tinha participações em sociedades em vários países, a B... SA era uma sociedade isolada, verificando-se uma situação em tudo idêntica àquela que foi apreciada no Processo nº 315/2014-T;

n)           É notória a interligação entre todos aqueles atos e negócios jurídicos os quais têm sempre em vista um determinado objetivo, de elidir a tributação;

o)           Os acionistas e administradores da A..., SGPS, SA são os mesmos da B..., SA, antes da venda das ações àquela e, precisamente, com a mesma percentagem de direitos de voto em ambas as sociedades, mantendo-se a estrutura acionista, facto que entra em contradição com a alegação de que as operações efetuadas pretendiam a entrada de capital externo;

p)           As transferências mensais efetuadas pela B... SA para a A... SA são de imediato canalizadas para os acionistas, a título de amortização de crédito gerado, observando-se, não é a entrada de capital externo, mas a saída de todo o capital detido pela sociedade;

q)           O contrato de Management e Prestação de Serviços era mais um ato fictício para distribuir lucros aos sócios, já que que os serviços de contabilidade e administrativos eram assegurados pela “B..., SA”, não obstante esta suportar gastos de igual natureza no âmbito daquele contrato; 

r)            A urgência em realizar as operações descritas, (nos últimos dias do exercício de 2009), é explicada pela intenção de aproveitar a exclusão de tributação, prevista no n.º 2 do artigo 10.º do CIRS (Revogado pela Lei n.º 3 - B/2010 de 28 de Abril), conjugada com o gerar créditos, na A... SGPS, SA a favor dos acionistas, no caso sob a denominação de “créditos “cujo recebimento, no futuro, não estaria sujeito a qualquer tributação;

s)            O objetivo foi, que a diferença entre os bens entregues (realização em espécie) e o valor nominal das ações, permitisse criar na A..., SGPS, SA, um "crédito", a favor dos acionistas, no montante de € 15.222.000,00, e desta forma, transferir para o património dos acionistas os lucros da atividade operacional da "B..., SA", sem qualquer tributação"(cf. fls. 23 do cit. Doc. n.° 3).

t)            Uma sucessão de normas (i.e., artigo 10.º, n. º1, alínea b) do CIRS, com a redação do DL n.º 442-A/88, de 30 de novembro; artigo 35.º do DL n.º 215/89, de 1 de julho (EBF); Lei n.º 30-B/92, de 28 de dezembro; Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro; Lei n.º30-G/2000, de 29 de dezembro; n.º 9 do art. 147.º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro; DL n.º 228/2002, de 31 de outubro; Lei n.º15/2010, de 26 de julho) permitiu que as mais valias resultantes da alienação de ações da sociedade transformada não fossem tributadas, porquanto considerou-se que as mesmas haviam sido adquiridas na data das quotas que lhes deram origem;

u)           O facto de, na década em questão, terem sido criados incentivos ao desenvolvimento económico, designadamente de sociedades anónimas, não significa que o legislador tenha previsto e querido que da conjugação daquele sistema resultassem transformações societárias motivadas unicamente por fins fiscais, sem qualquer desiderato económico, racionabilidade comercial e substância;

v)            Com estas operações, a Requerente procura evitar que sejam tributadas situações que a lei fiscal visa tributar, como é o caso dos dividendos, beneficiando de uma vantagem fiscal que não estava, certamente, no espírito do legislador, através da transformação dos dividendos distribuídos em recebimento da dívida;

w)          A interposição da SGPS, ora Requerente entre os acionistas e a sociedade “B..., SA”, através da transmissão realizada e a consequente alteração da titularidade jurídica direta, por uma titularidade indireta, teve como objetivo a retirada dos lucros da “B..., SA” e a transformação destes em pagamento da dívida gerada, resultando na eliminação da tributação dos acionistas, em sede de IRS, nos exercícios de 2010, 2011 e 2012;

x)            A Requerente reconhece que realizou uma série de atos mais onerosos do que seria praticado na normalidade da atividade económica da empresa, por forma a atingir uma vantagem fiscal e que não seria alcançável de outro modo (vide em especial pontos 154, 158, mas também 147 e 173 a 175 da PI);

y)            No elemento intelectual a prova é indiciária, no sentido de permitir deduzir, perante um contexto de razoabilidade e normalidade, a vontade do contribuinte na realização dos atos ou na celebração dos negócios jurídicos, pois que, a prova irrefutável, a confissão do contribuinte, é de difícil e raro alcance;

z)            Deve ser tomada em atenção a doutrina “step by step transactions” relacionada com a sequência de atos, olhando todos os atos como um todo, e não independentemente, porquanto, o último ato avaliado isoladamente pode não ser relevante, mas sim quando analisado em conjunto com outros atos;

aa)         Estão verificados os elementos meio, normativo, resultado e resultado pressupostos para a aplicação da CGAA, prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;

bb)         Os pagamentos efetuados pela REQUERENTE aos seus acionistas, a título de reembolso de créditos que estes detêm sobre si, deverão ser qualificados como pagamentos de dividendos ou adiantamento por conta de lucros, sujeitos a imposto por via de retenção na fonte de IRS, porquanto os mesmos correspondem à distribuição de lucros aos acionistas, estando conformados como reembolso de créditos apenas em virtude da "configuração abusiva" que a REQUERENTE atribuiu, em conjunto, à sequência de atos e negócios praticados exclusivamente com o objetivo de obter a vantagem fiscal atinente à não tributação do reembolso dos referidos créditos aos seus acionistas.

cc)          Existe, em relação aos rendimentos colocados à disposição dos acionistas, a título de reembolso de créditos, a obrigação de proceder à retenção na fonte a título de IRS, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 101.ç, do Código do IRS, cabendo essa obrigação à REQUERENTE, enquanto entidade pagadora dos referidos rendimentos.

 

9. Por despacho proferido a 26.08.2019 foi determinada a realização de audiência de julgamento, ao abrigo do art. 18.º, RJAT, para o dia 01.10.2019.

 

10. A 01.10.2019 teve lugar reunião deste Tribunal Arbitral, com a inquirição das testemunhas arroladas, que correu seus termos conforme ata lavrada para o efeito, tendo as partes sido notificadas, no final da audiência, para apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias bem como foi deliberado que a decisão final seria proferida até ao final do prazo fixado no art. 21.º, 1, do RJAT. Na reunião, foi ouvido C..., sócio gerente da empresa., que referiu a estratégia de crescimento da empresa confrontada com um sucesso imediato e o crescimento rápido e exponencial do modelo de negócio, da correspondente faturação e do valor dos ativos. Nesse quadro, salientou a indispensabilidade da constituição de uma SGPS, ao tempo do exercício em causa, para responder prontamente às diversas possibilidades de financiamento e investimento que se abriam para a expansão nacional e internacional da empresa. Em seguida, foi ouvida D..., responsável pela contabilidade da empresa, que acompanhou o crescimento do grupo desde o início. Em seu entender, a constituição de uma sociedade anónima afigurava-se essencial para responder ao rápido e exponencial crescimento nacional e internacional da empresa, da sua faturação e dos seus recursos humanos e às necessidades de capital intensivo. Neste contexto, marcado pela necessidade de responder ao abrupto crescimento da empresa, a questão das vantagens fiscais eventualmente associadas à constituição de uma SGPS esteve longe de constituir objeto de preocupação.  

 

11. A Requerente apresentarou alegações reiterando os argumentos apresentados no pedido de constituição do tribunal arbitral. Por seu turno, a entidade Requerida não apresentou alegações. 

 

II. SANEAMENTO

 

12. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

 

13. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. art.s 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

III. Do Mérito

 

III.1.1. Factos provados

 

 14. Consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A REQUERENTE é uma sociedade comercial anónima cujo objeto social consiste na gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indireta do exercício dessa atividade económica e prestação de serviços na área da gestão às empresas participadas; 

b)           Em 22.12.2009, as ações da “B..., S.A.”  foram avaliadas, em € 15.272.000,00, tendo sido alienadas por € 509,07 um valor superior ao valor nominal, de € 5,00, (cfr. relatório do ROC, de 22/12/2009);

c)            Esta avaliação independente mostrou uma valorização das ações numa percentagem de cerca de 10 000%;

d)           Em 30 de dezembro de 2009, os sócios / acionistas, pessoas singulares, procederam à venda das participações sociais, representativas de 100% do capital da “B..., S.A.” à sociedade “A..., SGPS, SA (RIT);

e)           A subscrição do capital social da “A..., SGPS, SA” foi realizada mediante a entrada em espécie no montante de € 50.000,00, havendo lugar à criação de um crédito a favor dos seus acionistas no montante de € 15.222.000,00 (RIT);

f)            O Relatório Justificativo da Transformação Elaborado Pela Gerência da Sociedade, que serviu de base àquela transformação não contém qualquer justificação ou motivação para dar alguma substância à transformação do tipo legal, nem sequer quaisquer indícios de estratégia empresarial, incremento ou diversificação do objeto social (RIT, Anexo 8);

g)            Os acionistas e administradores da “A..., SGPS, SA” são os mesmos da “B..., S.A.”, antes da venda das ações àquela e, precisamente, com a mesma percentagem de direitos de voto, em ambas as sociedades.

h)           Em 01.01.2010, foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre a “A..., SGPS, SA” e a “B..., SA” que permitiu à SGPS, obter meios financeiros para proceder, mensalmente, ao reembolso dos créditos aos acionistas; (RIT)

i)             De acordo com o referido contrato, os serviços seriam prestados pela “A..., SGPS, SA” à “B..., SA”, sendo o quadro de pessoal daquela, era composto por cinco elementos: os 3 membros do conselho de administração, e dois colaboradores (RIT);

j)             Nos períodos subsequentes, a “A... SGPS, SA” procedeu à transferência mensal de fluxos financeiros, a título de reembolso do crédito gerado; (RIT)

k)            Ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, foram realizados reembolsos a 4 dos acionistas, perfazendo o total anual atribuído, respetivamente, de € 2.112.543,65, € 818.250,84 e € 966.374,34. (cfr. RIT, anexos 20 ,21 e 22).             

l)             À data de 31/12/2012, estava por restituir o montante total de € 11.324.831,172. (cfr. RIT, anexo 11)

m)          Em cumprimento das Ordens de Serviço n.os..., ... e ..., emitidas em 03.07.2013 e da Ordem de Serviço n.º..., emitida em 03.10. 2013, a REQUERENTE foi sujeita a uma ação de Inspeção externa, de âmbito univalente/parcial, que incidiu sobre os exercícios de 2009 a 2012.

n)           A ação inspetiva teve início em 10.09.2013, com a assinatura das Ordens de Serviço n.os..., ... e ... e foi concluída em 08.11.2013, com a assinatura das Notas de Diligência (cf. fls. 5 do cit. Doc. N.° 3).

o)           A REQUERENTE foi notificada, mediante o Ofício n.º..., datado de 12 .02.2014, dos Serviços de Inspeção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, do Relatório de Inspeção Tributária (cf. cit. Doc. N. 3).

p)           A AT identificou um "fluxo financeiro" entre a sociedade "B..., S.A.", a ora REQUERENTE e os seus acionistas, sob a forma de amortização dos créditos/dívida formada (cf. fls. 22 do cit. Doc. N.° 3).

q)           As transferências mensais efetuadas pela B... SA para a A... SA foram de imediato canalizadas para os acionistas, a título de amortização de crédito gerado;

r)            Os serviços de contabilidade e administrativos eram assegurados pela “B..., SA”, não obstante esta suportar gastos de igual natureza no âmbito do contrato de Management; 

s)            A diferença entre os bens entregues (realização em espécie) e o valor nominal das ações, permitiu criar na A..., SGPS, SA, um "crédito" a favor dos acionistas no montante de € 15.222.000,00;  (cf. fls. 23 do cit. Doc. n.° 3).

t)            Os Serviços de Inspeção Tributária apuraram, atendendo à classificação por si atribuída aos rendimentos aqui em causa, no Capítulo I.1 do RIT - Correções de Natureza Meramente Aritmética, que estaria em falta IRS não retido na fonte e não entregue nos cofres do Estado, nos montantes de € 447.169,59, € 175.924,08 e € 247.672,81, relativos aos exercícios de 2010, 2011 e 2012, respetivamente, tendo introduzido, através da aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso ("CGAA"), correções, de natureza meramente aritmética, relacionadas com IRS não retido na fonte e não entregue nos cofres do Estado sobre pagamentos efetuados pela REQUERENTE nesses exercícios.

u)           Posteriormente, foi a REQUERENTE notificada do ato de liquidação de Retenção na Fonte de IRS n.º 2014 ... e os correspondentes atos de liquidação de Juros Compensatórios n.os 2014 ... a 2014 ..., todos relativos ao exercício de 2010, dos quais resulta um valor a pagar de € 503.515,08 (quinhentos e três mil, quinhentos e quinze euros e oito cêntimos).

v)            A REQUERENTE procedeu ao pagamento dos referidos atos de liquidação de Retenção na Fonte de IRS n.º 2014... e de Juros Compensatórios n.º 2014 ... a 2014..., referentes ao exercício de 2010, e bem assim, ao pagamento dos atos de liquidação de Retenção na Fonte de IRS n.º 2014 ... e de Juros Compensatórios n.º 2014 ... a 2014..., respeitantes ao exercício de 2011 e, ainda, dos atos de liquidação de Retenção na Fonte de IRS n.º 2014... e de Juros Compensatórios n.os 2014... a 2014..., atinentes ao exercício de 2012 (cfr. Doc. N.° 4).

w)          A REQUERENTE procedeu ao pagamento dos atos de liquidação de Retenções na Fonte de IRS acima identificados, através de uma única transferência bancária, realizada no dia 15.09.2016, no valor total de € 1.055.548,45 (cfr. DOC. N. 5).

Mais se provou, ao abrigo do disposto no art.º 5.º/2/a) do Código de Processo Civil, que:

x)            No ano de 2009 a sociedade “B...”, nesse ano transformada de sociedade por quotas em sociedade anónima, conheceu um crescimento considerável, tendo aberto, nesse ano, 9 novas lojas e tendo a faturação passado de cerca de €300.000,00, no ano de 2008, para cerca de €2.700.000, no ano de 2009.

y)            Nesse mesmo ano de 2009, a sociedade “B...” realizou investimentos de cerca de € 3.000.000,00, tendo tido necessidade de obter financiamento bancário.

z)            Em função do crescimento verificado, e tendo em vista a continuação da expansão do negócio, os sócios da sociedade “B...” decidiram proceder a uma diversificação da atividade, através da criação de novas marcas e produtos, a comercializar por aquelas, que criassem e aproveitassem sinergias com o negócio original.

aa)         Tendo em vista o referido propósito de diversificação da atividade, foi igualmente decidido pelos sócios da “B...” que o mais adequado seria as novas marcas serem detidas e exploradas por sociedades individuais.

bb)         No mesmo contexto foi decidido pelos sócios da “B...” iniciar um processo de internacionalização das suas marcar, no sentido de alargar a exploração do seu negócio a novos países.

cc)          Em função do crescimento verificado no ano de 2009, os sócios da “B...” começaram a ser abordados por interessados em comprar a sociedade, designadamente a fundos de investimento.

dd)         Nos anos seguintes a 2009, a Requerente, e as suas subsidiárias, abriram negócios na Polónia, Espanha e Brasil, para além de terem continuado a expansão do número de lojas em território nacional (continente e Madeira), e de terem aberto lojas com marcas distintas da explorada pela “B...”, designadamente um conjunto de lojas direcionado à comercialização de produtos à base de empadas, em colaboração com um reputado chef nacional, e um outro que explorava a marca e produtos “slow”.

ee)         À data de 2019, o negócio explorado pela Requerente está avaliado em cerca de €60.000.000,00.

 

III.1.2. Factos não provados

 

14. Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

15. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

16. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

17. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no art. 110.º, n.º 7, do CPPT, as provas documental e testemunhal apresentadas, bem como a declaração de parte que foi prestada, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Em especial, os factos constantes dos pontos x) a ee), resultaram do depoimento de parte e das declarações da testemunha D..., que relataram de forma detalhada e coerente a situação do negócio explorado pela sociedade “B...” no ano de 2019, bem como nos anos subsequentes, nos termos em que foram dados como provados.

Os referidos depoimentos foram conjugados com o facto público e notório da presença no mercado da marca “...”, criada e explorada pela sociedade “B...”.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

III.2.1. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados

Sobre a ordem do conhecimento dos vícios, determina o artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, que o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

Não tendo sido alegado nenhum vício conducente à nulidade, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pela Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público.

Assim sendo, começar-se-á por apreciar-se os vícios atinentes à falta de fundamentação do ato de liquidação de retenção na fonte de IRS e do Relatório de Inspeção Tributária.

 

III.2.2. Quanto à falta de fundamentação  

 

Principie-se pela apreciação da alegada falta de fundamentação da notificação do ato de liquidação e do Relatório de Inspeção Tributária, por não se encontrarem devidamente fundamentados, em violação do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 77. º da Lei Geral Tributária. 

 

18. Enuncie-se, em primeiro lugar, os argumentos avançados pelas partes:

 

Entende a Requerente que na base da ilegalidade do ato de liquidação de retenção na fonte de IRS e dos correspondentes juros compensatórios se encontra a insuficiente fundamentação, de facto e de direito, da notificação dos atos aqui em crise. De acordo com o entendimento da Requerente referencia-se, apenas, na notificação da liquidação da retenção na fonte de IRS, a seguinte alusão genérica: “Fica V.Ex.ª. notificado (a) para, até à data limite indicada, efetuar o pagamento da importância apurada proveniente da liquidação de retenções na fonte de IRS relativa ao ano indicado, mais se referindo que o acto de liquidação pode ser reclamado ou impugnado nos termos gerais e que, não sendo realizado o pagamento no prazo concedido para o efeito, haverá lugar a procedimento executivo”.

 

Contestando esse entendimento, defende a Requerida que a notificação do ato tributário em causa discriminou devidamente a quantificação e qualificação dos factos tributários, a natureza do imposto devido, assim como, os prazos e meios de reação. Nesses termos, teriam sido cumpridos os requisitos mínimos de fundamentação previstos no artigo 77.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária.

 

Por seu turno, alega a Requerente que embora se pudesse admitir a remissão para um documento externo ao próprio ato de notificação, essa remissão teria de ser contextual/explícita para um concreto documento que lhe tivesse sido notificado anteriormente. E, tratando-se o documento em causa do Relatório de Inspeção Tributária, a fundamentação do ato de liquidação deveria conter uma adesão/concordância expressa às conclusões desse documento, conforme o que se encontra previsto no artigo 63.º, n.º 1 do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária. Todavia, tal não teria ocorrido.

 

Em contraposição, conclui a Requerida que as notificações do Relatório de Inspeção Tributária e do ato de liquidação foram validamente efetuadas, nos termos do artigo 36.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do artigo 77.º da Lei Geral Tributária Por outro lado, defende ainda a Requerida, que a Requerente demonstrara, ao longo do seu pedido de pronúncia arbitral, perfeito conhecimento da factualidade subjacente às correções efetuadas à matéria tributável.

 

Relativamente à falta de fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária, sustenta a Requerente que o Relatório conteria conclusões vagas, desprovidas de factos concretos que pudessem explicar as correções efetuadas. Por outro lado, a Autoridade Tributária limitar-se-ia a elencar atos e negócios efetuados pela Requerente sem que, para tanto, estabelecesse qualquer tipo de ligação entre os mesmos. Consequentemente, o ato de liquidação estaria inquinado de ilegalidade, por vício de forma, nos termos do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 77.º da Lei Geral Tributária.

 

Avança em resposta a Requerida que dos factos constantes do Relatório de Inspeção Tributária é descrito um encadeamento lógico entre os atos praticados, tendente à obtenção de uma vantagem fiscal indevida.

Por tudo isto, seria perfeitamente possível conhecer o iter cognoscitivo encetado pela Requerida que, em última análise, culminara na emissão do ato de liquidação de retenção na fonte de IRS e dos correspondentes juros.

 

19. Em face do exposto e tendo em consideração os factos dados como provados, cumpre apreciar esta primeira questão controvertida.

Cumpre, em primeiro lugar, ter em atenção a redação da norma prevista no artigo 77.º da Lei Geral Tributária e desta retirar o seu conteúdo útil.

De acordo com o referido preceito, cuja epígrafe é a Fundamentação e eficácia: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos anteriores, pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária” e prossegue o segundo número do mesmo artigo, “A fundamentação dos actos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação.”

De acordo com DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA , a Constituição da República Portuguesa garante aos administrados o direito a uma fundamentação expressa e acessível de todos os atos administrativos que afetem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Ora, tendo em consideração o que se encontra previsto no artigo 120.º do Código de Procedimento Administrativo, ter-se-á como compreendido nesse conceito, os atos tributários. Por outro lado, o artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa garante aos interessados a impugnação contenciosa contra quaisquer atos administrativos que sejam lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos. Descortina-se assim, a razão pela qual o dever de fundamentação dos atos tributários e decisórios de procedimentos tributários surge reforçado no artigo 77.º da Lei Geral Tributária: a proteção dos administrados.

Em suma, impende sobre a Administração Tributária um dever de fundamentação sobre os atos tributários por ela praticados, devendo obrigatoriamente constar as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos atos tributários, assim como, os prazos e meios de defesa à disposição do contribuinte, conforme o disposto no artigo 77.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária.

Trata-se de uma disposição legal que visa assegurar a racionalidade das decisões cometidas à Administração Tributária, proporcionando um controlo interno do percurso lógico-valorativo encetado pela própria entidade antes de emitir a sua decisão e, que se destina, fundamentalmente, a desempenhar um controlo de legalidade das decisões da Administração Tributária, permitindo ao contribuinte optar, conscientemente, por cumprir a decisão, conformando-se com a mesma ou cumprir a decisão mas sindicá-la, seja pela via administrativa ou pela via judicial.

Na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre esta matéria, exige-se que a fundamentação possa ser considerada suficientemente clara e compreensível, nas razões de facto e de direito, para um destinatário médio colocado na situação concreta.

Nestes termos, embora a cláusula geral anti-abuso se encontre justificada como um meio preventivo da fraude à lei fiscal, a decisão da sua aplicação encontra-se condicionada por um especial dever de fundamentação. As especiais preocupações que rodeiam a fundamentação dos atos tributários explicam-se enquanto garantia do contribuinte que surge justificada pela ablação produzida, por decorrência da norma anti-abuso, na esfera patrimonial do contribuinte e, por outro lado, pela circunstância de se tratar de uma cláusula geral aberta que compreende conceitos indeterminados cuja concretização casuística envolve o exercício de uma margem livre de decisão.

Todavia, mesmo tendo o atrás referido em especial consideração, ainda assim e em face da prova documental produzida, entende o tribunal não ter havido falta de fundamentação da notificação do ato de liquidação nem, tão pouco, do Relatório de Inspeção Tributária.

Resulta claro que o procedimento especial de aplicação da cláusula geral anti-abuso foi bem fundamentado e resulta, também claro, da nota de liquidação que o imposto em causa se consubstancia numa retenção na fonte a título definitivo, sendo aplicável uma taxa de 28% aos rendimentos em causa, os quais são enquadráveis na categoria G do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. De facto, cumpre não olvidar que esta liquidação surge como decisão final de um procedimento instaurado contra a Requerente, nos termos do artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, tendo a liquidação sido baseada nos factos constantes do Relatório de Inspeção Tributária. O Relatório de Inspeção Tributária por sua vez tinha sido notificado à Requerente. Desse relatório constam os períodos fiscais atinentes às retenções efetuadas e reportadas aos exercícios fiscais de 2010, 2011 e 2012, assim como um quadro factual mais pormenorizado. Por conseguinte, não será difícil concluir que o destinatário do ato sempre podia saber qual foi a situação de facto ponderada, qual o direito escolhido e o modo como ele foi interpretado e aplicado ao caso concreto.

Verifica-se que os atos de liquidação em questão ocorreram na sequência de ato inspetivo e em conformidade com o relatório de inspeção tributária homologado por despacho, relatório esse onde constam os fundamentos das liquidações em causa, que a Requerente, desde a reclamação graciosa, demonstrou compreender, tomando, de maneira fundada, a decisão de não aceitar.

De resto, a própria Requerente acaba por conceder nisso mesmo – pelo menos de forma implícita – ao sustentar, também desde a reclamação graciosa, que a remissão para o relatório de inspeção deveria ser explícita.

Contudo, este entendimento é, desde logo, contrariado pelo Acórdão do STA de 19-05-2004, proferido no processo 0228/03, onde se lê que “Não vale como fundamentação a motivação apresentada posteriormente à prática do ato, nem a constante de peças instrutórias anteriores para as quais não tenha sido feita remissão, expressa ou implícita.”, admitindo-se, assim, que a remissão possa ser implícita, ou seja, decorrente do próprio contexto do ato tributário, ou do qual este emerge.

Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que “Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.” , e que “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.” .

Deste modo, entende-se que, considerado o contexto concreto em que foram produzidos os atos de liquidação em questão nos presentes autos, será percetível, para um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, que os fundamentos daqueles são os constantes do relatório de inspeção que os precedeu, sendo certo que mais se afigura evidente que a Requerente compreendeu isso mesmo.

Este, de resto, tem sido o juízo dos nossos tribunais superiores em casos análogos, podendo a esse respeito conferir-se os Acórdãos do STA de 10-09-2014, proferido no processo 01226/13 , do TCA-Norte de 13-09-2012, proferido no processo 00334/05.8BEBRG , e do TCA-Sul de 23-05-2006, proferido no processo 01156/06 .

 

III.2.3. Quanto à preterição de formalidades legais essenciais

 

20. Quanto a esta matéria, alega a Requerente, em suma, que não foi “notificada nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º. da Lei Geral Tributária”.

Já a Requerida sustenta a inexistência de qualquer preterição de formalidade essencial por violação do direito de participação, previsto no artigo 60.º/1-a) da LGT, porquanto o n.º 3 deste preceito prevê a dispensa de audição antes da liquidação do tributo nos casos em que, anteriormente, o contribuinte haja esse direito em sede de inspeção tributária

Como se constata dos factos dados como provados, certo é que a Requerente foi notificada para exercer o seu direito de audiência prévia, o que fez, no âmbito do procedimento inspetivo do qual resultaram as liquidações contra as quais se insurge.

Deste modo, e tendo em conta o disposto no artigo 60.º/3 da LGT, estava dispensada a audição da Requerente antes da liquidação, pelo que deve, também, este vício se dar por não verificado.

 

III.2.4. Quanto à aplicação da CGAA

 

Segue-se agora a apreciação da legitimidade, em face dos factos provados e não provados, da aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária

 

21. De acordo com o entendimento preconizado pela Autoridade Tributária:

 

No âmbito de um procedimento inspetivo instaurado contra a Requerente, a A... SGPS, S.A, decidiu-se pela aplicação da cláusula geral anti-abuso a um encadeamento de operações efetuadas pela Requerente. Desconsiderou-se, ao nível dos efeitos fiscais, o reembolso de um crédito efetuado pela Requerente, na esfera dos seus acionistas, sob pretexto de se tratar de uma distribuição “encapotada” de dividendos.

No entender da Requerida, o reembolso de créditos que, em bom rigor, consubstanciaria uma distribuição dissimulada de dividendos constituiria um facto fiscalmente relevante sujeito à obrigação de retenção na fonte, de acordo com o artigo 101.º, n.º 2, alínea (a) do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Essa obrigação recairia na esfera da Requerida, em virtude do que se encontra estabelecido no artigo 103.º, n.º 1 do Código de Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares, aplicando-se uma taxa de 28% aos rendimentos referidos.

Nestes termos, a decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso basear-se-ia, essencialmente, nas seguintes ordens de razão:

A Requerente seria autora de um esquema negocial desprovido de racionalidade económica cujo único escopo se destinaria a obter uma vantagem fiscal. Esse esquema negocial ter-se-ia concretizado, em primeiro lugar, na conversão tempestiva de uma sociedade por quotas em sociedade anónima (através do aumento do capital social, da divisão e cedência de quota). Posteriormente, na sequência desses atos, ter-se-ia avaliado o valor real das participações sociais no capital social da sociedade B..., SA, através do método Free Cash Flow to the Firm. Dessa avaliação ter-se-ia registado uma diferença positiva entre o valor real das ações e o seu valor nominal, assim, se viabilizando a venda das mesmas por um valor bastante superior ao valor nominal permitindo, desse modo, a subscrição da totalidade do capital social da A..., SGPS, SA, mediante entradas em espécie, no montante de 50.000 euros. Dessa alienação ter-se-ia constituído (em resultado da diferença positiva verificada) um ágio reembolsável aos “recém” acionistas da Requerente, no montante de 15.222.000 euros excluído de tributação.

De seguida, a Requerente teria celebrado um contrato de "management” de prestação de serviços com a sociedade “B..., SA”, nos termos do qual, a Requerente se obrigava a prestar serviços de gestão e administração por uma contrapartida de valor pecuniário variável.

Por força desse contrato, as prestações devidas pela “B..., SA” seriam diretamente canalizadas para a esfera dos acionistas, a título de reembolso de dívida.

Entende a Requerida que o único objetivo imputável a este esquema negocial seria tendente a adquirir, ilegitimamente, uma vantagem fiscal corporizada no aproveitamento da exclusão de tributação, prevista no artigo 10.º, n.º 2 do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, conjugado ao recebimento de “créditos” devidos pela Requerente aos seus acionistas, não sujeitos a tributação.

 

22. Entende por seu turno a Requerente, refutando o entendimento sufragado pela Autoridade Tributária que:

 

Não se encontrariam verificados os pressupostos, de facto e de direito, da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, ferindo de ilegalidade as correções efetuadas à matéria tributável. A ilegitimidade da decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso assentaria, por sua vez, na seguinte ordem de razões:

As operações encetadas por autoria da Requerente explicar-se-iam numa lógica de restruturação societária, tendo em conta que a sociedade “B..., SA” deixaria de ser a única entidade operacional do grupo. Consequentemente, considerando o aumento exponencial do volume de negócios terá havido uma necessidade efetiva de adaptar a forma societária da entidade “B..., SA” de forma a possibilitar a abertura do capital da sociedade ao investimento externo. No que diz respeito à valorização das ações correspondentes à participação no capital social da “B..., SA”, a Requerente sustenta que as ações haviam sido objeto de uma avaliação imparcial por uma entidade independente, a “E..., SROC, Lda.”. A diferença entre o valor real e o valor nominal das ações explicar-se-ia por se tratar de uma sociedade não-cotada em bolsa e cuja avaliação tinha um caráter meramente ocasional. 

No tocante à existência de um contrato de “management” de prestação de serviços entre as duas sociedades tal corresponderia, segundo a Requerente, a uma prática comum dentro de grupos de sociedades, onde se reclama, por razões de eficiência, o exercício a um nível centralizado dos serviços de gestão e de administração das várias entidades que compõem o grupo. Por conseguinte, entende a Requerente não estarem verificados os pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, por manifesto desfasamento com a realidade e desse modo inquinando de ilegalidade, por vício de violação de lei, o ato de liquidação de retenção na fonte de IRS.

 

24. Em face dos argumentos expostos pelas partes importa resolver a questão sub judice :

 

Cumpre-nos, em primeiro lugar, indagar pela redação da norma respeitante à cláusula geral anti-abuso, em vigor à data dos factos, e desta perscrutar o seu conteúdo útil. De acordo com o artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, cuja epígrafe é a Ineficácia dos atos e negócios jurídicos, “São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meio artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

A cláusula geral anti-abuso tem sido, na esteira de GUSTAVO LOPES COURINHA , usualmente objeto de uma aplicação em termos analíticos dependente do preenchimento, in casu, de cinco elementos. Desses cinco elementos, quatro reconduzir-se-iam à previsão da norma da cláusula geral anti-abuso e um corresponderia à sua estatuição. Esses requisitos traduzir-se-iam na verificação do elemento meio – a forma utilizada; do elemento resultado - a vantagem fiscal e a equivalência económica obtida; do elemento intelectual – a motivação do contribuinte; do elemento normativo – a contrariedade normativo-sistemática do resultado alcançado e, finalmente, do elemento sancionatório que diz respeito à efetivação da estatuição.

Por seu turno, com um entendimento distinto, assinala SÉRGIO VASQUES  que a cláusula geral anti-abuso seria composta por três elementos essenciais. Em primeiro lugar exigir-se-ia a prática de um ato ou negócio com abuso da respetiva forma jurídica, no sentido de se poder afirmar que o esquema negocial em causa oculta o seu verdadeiro propósito e, dando-se-lhe uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, postular-se-ia que o único ou principal objetivo presidindo a esse esquema seria tendente a obter uma vantagem fiscal, independentemente da sua natureza, com a marginalização evidente de objetivos económicos reais. Em terceiro lugar, impor-se-ia que da lei resultasse, com suficiente clareza, a intenção de tributar os bens em causa nos mesmos termos em que estes seriam tributados em condições normais, ou seja, recorrendo-se às formas e práticas jurídicas comuns.

No tocante à interpretação da cláusula geral anti-abuso, um entendimento que já foi dado por assente na jurisprudência é o de que o artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária não pode deixar de ser interpretado em conformidade com a Constituição, especialmente na vertente da liberdade de iniciativa económica e de gestão empresarial. Assim sendo, no âmbito da decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso deve ser especialmente ponderada e acautelada a liberdade de iniciativa económica, tal como, a liberdade de organização e de ordenação dos meios institucionais necessários para levar a cabo uma determinada atividade económica, admitindo-se nesta última vertente, a possibilidade de escolha da forma de organização da empresa.

Noutro plano, importa ter presente as regras de direito probatório que resultam do artigo 74.º da Lei Geral Tributária. Cabe à Administração Tributária a prova dos factos constitutivos da aplicação da cláusula anti-abuso e esse ónus probatório mantém-se no processo arbitral.

Por outro lado, a convicção sobre a existência e o conteúdo do facto tributário deve basear-se em meios probatórios idóneos e em pressupostos objetivos, não bastando a invocação de meras conjeturas ou pressuposições.

De acordo com a jurisprudência, a aplicação da cláusula geral anti-abuso é conformada por um vetor decisivo. Um vetor que impõe ao intérprete/aplicador do direito uma apreciação casuística do confronto entre a situação fiscalmente relevante e os princípios e valores do ordenamento jurídico tributário. Para esse efeito, exige-se a ponderação da atuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidas como assentes. 

Em síntese, exige-se que tenha sido praticado um ato ou um negócio artificioso que represente um abuso das formas jurídicas e que tenha tido como objetivo único ou principal a obtenção de uma vantagem fiscal.

No caso presente e depois de ponderadas todas as provas carreadas ao processo, mormente as produzidas aquando da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, entende este tribunal não estar verificado o preenchimento dos requisitos para a legítima aplicação da cláusula geral anti-abuso pelas razões que se irão expor, de seguida, na escalpelização de cada elemento constitutivo da norma prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária.

 

25. No tocante à verificação do elemento meio:

 

Entende a Requerente que o rápido crescimento operacional da "B..., SA” provocara a internacionalização da atividade e, naturalmente, a conversão do tipo societário para uma sociedade anónima se apresentou como uma garantia para os investidores financeiros, particulares e institucionais, acautelando-se por esta via a sustentabilidade financeira da sociedade.  Este facto foi corroborado pela audição de parte.

Em sentido diferente, defende a Requerida que o Relatório de Inspeção Tributária contempla uma descrição pormenorizada de atos e negócios efetuados, de forma interdependente e lógica, pela Requerente. Desse relatório, destacar-se-ia o esforço em serem cumpridos, tempestivamente, os requisitos mínimos para a constituição de uma sociedade anónima, pese embora, o Relatório Justificativo da Transformação elaborado pela gerência da “B..., SA” não fazer referência alguma às motivações subjacentes à transformação do tipo societário.

Relativamente à valorização das ações na sociedade “B..., SA”, a Requerente sustenta ser perfeitamente natural existir uma variação sensível entre o valor real e o valor nominal das ações. Tratando-se de uma sociedade não cotada em bolsa seria natural, por imperativo contabilístico, que essa variação não estivesse refletida no valor nominal das participações detidas. 

Em contraposição, a Requerida afirma que não era normal uma valorização das ações na ordem dos 10.000% sem que, para tanto, ocorresse um facto interno ou externo que a justificasse. A valorização provara ser benéfica para os acionistas da “B..., SA” posto que, permitira a subscrição da integralidade do capital social da Requerente, mediante entradas em espécie e, constituíra um crédito a favor dos acionistas, no montante de 15.222.000 euros, decorrente da diferença positiva entre o valor real (509, 07 euros) e o valor nominal (5 euros) das ações alienadas.

No que diz respeito à estrutura acionista comum às sociedades “B..., SA” e “A... SGPS, SA”, a Requerente opõe que a operação pretendida se consubstanciava numa reorganização do ponto de vista societário, ao nível do grupo, a qual não contendia com uma alteração da estrutura acionista. Como a entidade “B..., SA” deixara de ser a única entidade operacional, ficando sob a alçada de uma sociedade gestora de participações sociais, seria natural que os anteriores acionistas transitassem para a estrutura acionista da Requerente que passara a exercer toda a atividade empresarial do grupo, entretanto, constituído.

Contestando esse entendimento, a Requerida encerra na sua resposta que a estrutura acionista e o conselho de administração da Requerente eram exatamente idênticos àqueles existentes na sociedade “B..., SA”, antes da alienação das participações sociais. Tal factualidade entrava em contradição com um dos objetivos a que, alegadamente, se propunha a Requerente, a saber, a entrada de capital externo.

Finalmente, no que tange ao contrato de “management” de prestação de serviços, a Requerente contesta o entendimento da Autoridade Tributária, enquadrando o contrato como uma prática comum nos grandes grupos empresariais. O contrato de prestação de serviços justificava-se por a realidade empresarial do grupo reclamar, por razões de eficiência e racionalidade, o exercício centralizado das atividades de gestão e administração das várias entidades que o compunham. A existência desse contrato não implicava que as entidades mencionadas não pudessem, nem devessem exercer funções similares e suportar as correspondentes despesas que lhes eram associadas.

Em sentido antagónico, a Requerida justifica a existência do contrato de prestação de serviços na necessidade de a Requerente obter meios financeiros disponíveis de forma a “reembolsar”, mensalmente, os seus acionistas. A sociedade “B..., SA” continuava a suportar gastos de natureza relacionada aos serviços que lhe eram prestados pela Requerente, sendo que as contraprestações devidas, em virtude do contrato, eram diretamente canalizadas para os acionistas, a título de amortização do crédito gerado.

A verificação do “elemento meio” implica que a operação, globalmente considerada, se encontre determinada, na sua estrutura, em função de um determinado resultado fiscal, aferindo-se para esse efeito, o nível de incoerência entre o fim para que é empregue concretamente a forma adotada pelo ato/negócio e a causa que lhe é próprio. Como explica SALDANHA SANCHES , existe um negócio artificioso “quando a sua utilização só puder ser explicada por razões de natureza fiscal”.

Reputa-se que, em face da prova documental e, em especial, da prova testemunhal produzida, não procede o argumento da Requerida, segundo o qual, haveria uma interdependência lógica entre os vários atos e negócios praticados pela Requerente e exclusivamente destinada ao aproveitamento da exclusão de tributação.

A dimensão e a visibilidade notória da marca da sociedade “B..., SA” explicam a restruturação encetada pela Requerente para um tipo societário mais adaptado ao volume de negócios registado. É, pois, irrelevante que os objetivos a que se propunha a Requerente se tenham efetivamente concretizado, posto que, à data da conversão num tipo societário mais apropriado havia um propósito económico válido para o fazer.

Relativamente à valorização das ações, estas foram objeto de uma avaliação independente e certificada pela “E..., SROC, Lda”, sendo esse um requisito prévio obrigatório, por via do qual, podem ser realizadas entradas em espécie. No que concerne à alienação das participações sociais a favor da Requerente e à existência de um contrato de prestação de serviços trata-se de práticas correntes, em grupos de sociedades, entendidas no âmbito do exercício da atividade desenvolvida por uma sociedade gestora de participações sociais e bem explicadas pela parte, aquando da sua audição, e perfeitamente compreendidas pelo tribunal. Atenta a factualidade demonstrada, todos estes atos têm um propósito económico/empresarial que não é estranho à forma jurídica pelo qual se revestem.

 

26. No que diz respeito ao preenchimento do elemento intelectual:

 

Entende a Requerente que a Autoridade Tributária não soube demonstrar, à data do primeiro ato praticado, que era intenção exclusiva levar a cabo uma sucessão de atos tendentes a criar um crédito reembolsável na esfera dos acionistas. Tendo a Requerida optado, erroneamente, por tecer um juízo a posteriori sobre a globalidade das operações efetuadas, retirando-se, desse modo, o efeito útil à demonstração da relação de interdependência sujeita ao crivo da cláusula geral anti-abuso.

No polo oposto, alega a Requerida que teria havido urgência, por parte da Requerente, em reunir os requisitos necessários à conversão de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, de forma a aproveitar a exclusão de tributação das mais-valias. Nesse sentido, relembra que o Relatório Justificativo de Transformação da Sociedade não indicava nenhuma estratégia empresarial para o efeito. Por outro lado, sublinha que o método empregue para avaliar as participações sociais, efetuado por extrapolação a partir de indicadores referentes aos 3 anos de atividade seguintes, era desprovido de qualquer estudo de mercado. Conclui assim que, perante a prova indiciária recolhida, o único objetivo imputável a esta operação seria a exclusão de tributação.

No que concerne à interpretação da cláusula geral anti-abuso, segundo um sentido consentâneo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, entende a Requerente que esse tribunal tem admitido a existência das designadas tax driven structures. Estavam legitimadas, desse modo, estruturas económicas cuja constituição tivesse sido motivada por razões fiscais, desde que, não se consubstanciassem em meros expedientes formais. Nesses termos, a Autoridade Tributária estaria obrigada a interpretar a disposição atinente à cláusula geral anti-abuso em conformidade com o entendimento fixado em vasta jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Por seu turno, a Requerida considera que, no tocante às situações exclusivamente internas era inaplicável o direito da União Europeia visto que se tratava de uma baliza de soberania legislativa. A competência jurisdicional do Tribunal de Justiça da União Europeia e a correspondente aplicação do Direito da União Europeia reclamavam a existência de um elemento transfronteiriço. Consequentemente, a Requerida não se encontrava adstrita à interpretação da cláusula geral anti-abuso num sentido conforme ao propugnado pela jurisprudência comunitária.

O preenchimento do “elemento intelectual” depende da ausência de outras motivações, para além da redução da carga fiscal, que possam ser imputáveis às operações efetuadas pela Requerente. A verificação deste elemento sobrevém do decaimento das motivações apresentadas para a montagem da estrutura negocial face ao business purpose test.

Nesta linha de pensamento, se não existirem motivações empresariais legítimas, apuradas com base em evidências objetivas, reputar-se-á, em consequência, que as condutas da Requerente foram determinadas exclusivamente por motivos económicos fiscais. O apuramento desses motivos, na ausência de confissão expressa, tem de se fazer com base em factos objetivos concretamente apreensíveis, pois, só assim se detetam estados subjetivos.

No caso vertente, em face dos factos provados e pese embora se vislumbrem objetivos de eliminação da carga fiscal, não se pode dar por verificado o elemento intelectual.

A Requerente demonstrou que a transformação societária encetada por sua autoria não era predominantemente de índole fiscal. Comprovou que a realidade existente aquando do início da sua atividade – onde só detinham um restaurante – em nada se compadece com a realidade atualmente existente de uma cadeia de lojas abertas nos principais centros comerciais do país. É por demais evidente para o tribunal que quer a estrutura societária quer a valorização das ações, pese embora possam ter um abstrato móbil fiscal, objetivamente têm ou tiveram motivações económicas subjacentes que não podem ser desconsideradas. A doutrina das tax driven structures – que não pode ser desconsiderada  – leva então o presente tribunal a não ter como preenchido o elemento intelectual.

 

27. No que concerne à verificação do elemento normativo:

 

Entende a Requerente que as operações efetuadas, por sua autoria, não apresentam um caráter anti-jurídico. A norma prevista no artigo 10.º, n.º 2 do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares tinha por objetivo dinamizar o mercado de capitais, promovendo o investimento nas sociedades anónimas e excluindo-se de tributação as mais-valias. No tocante à avaliação do valor das entradas em espécie, explicar-se-ia pela preocupação do legislador em evitar a fraude às expectativas criadas ao mercado, tendo essa avaliação sido certificada por um Revisor Oficial de Contas. Finalmente, a interposição de uma sociedade gestora de participações sociais, as quais teriam origem nas sociedades de controlo, visava agregar um conjunto de participações sociais numa única sociedade em ordem à sua gestão centralizada e especializada, o que de resto não deixou de suceder.

Com um entendimento diferente, a Requerida defende que não se pode olvidar toda a montagem de negócios efetuados pela Requerente e que culminaram num resultado censurável, em face de uma norma objetivamente identificada.

Nessa senda, a Autoridade Tributária salienta que não põe em causa a conversão da “B..., SA” para uma sociedade anónima ou a constituição da Requerente enquanto empresa e, nem tão-pouco, a existência de um contrato de prestação de serviços. Ao invés, entende a Requerida que a exclusão de tributação resulta da conjugação de vários normativos que exigem planeamento fiscal abusivo. O legislador quando procedeu à feitura da redação do artigo 10.º, n.º 2 do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, pese embora tenha criado incentivos económicos, não previu, nem desejou que da conjugação desses normativos resultassem transformações societárias desprovidas de desiderato económico, racionabilidade comercial e substância. Face ao exposto, ter-se-ia por verificado o elemento normativo.

O preenchimento do elemento normativo está sujeito à verificação, in casu, de uma contrariedade normativo-sistemática em face do resultado obtido, ou seja, tem que existir uma contrariedade entre a finalidade da disciplina tributária em causa e a vantagem fiscal obtida. De tal modo, que se possa concluir que o resultado assim obtido e, ainda que preencha os requisitos formais, é contrário ao espírito de uma norma objetivamente identificada.

Da apreciação do caso sub judice, conclui-se que não se encontra verificado este elemento. O artigo 10.º, n.º 2 do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares tinha por objetivo dinamizar o mercado de capitais e o investimento nas sociedades anónimas, aliviando-se a carga fiscal aos sujeitos passivos que alienassem as suas ações. A conversão de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, com a subsequente venda das ações sem sujeição a tributação foi classificada por SALDANHA SANCHES como uma “lacuna consciente de tributação” sendo, por conseguinte, uma opção legítima do contribuinte, ainda que motivada por razões fiscais desde que exista um substrato económico para além do fiscal. Como é o caso.

 

28. Quanto ao que se diz a respeito da verificação do elemento resultado:

 

Entende a Requerente que a Administração Tributária falhara em demonstrar que a vantagem fiscal resultava direta e necessariamente do conjunto das operações efetuadas. Essa demonstração implicava que se comprovasse um nexo de causalidade entre o resultado obtido e cada operação, individualmente considerada. 

Diversamente, defende a Requerida que logrou comprovar a existência de um elo entre a vantagem fiscal obtida e o encadeamento de negócios/atos efetuados. Nestes termos, procedera a uma comparação dos atos equivalentes, do ponto de vista económico, àqueles que foram praticados pela Requerente. Consequentemente, os primeiros, enquanto atos normais sujeitos a tributação, a saber, a distribuição de dividendos, substituir-se-iam aos atos efetivamente praticados, ou seja, o reembolso dos créditos desonerado de carga fiscal.

Por outro lado, sustenta a Requerente que a verificação do elemento resultado dependeria sempre da prova do caráter anti-jurídico das operações em causa. Ora, tal como já teria ficado demonstrado, o resultado obtido através dos atos e negócios realizados pela Requerente não eram desconsiderados do ponto de vista normativo-sistemático.

O preenchimento do elemento resultado está dependente da possibilidade de se formular um juízo de comparabilidade entre atos equivalentes do ponto de vista económico. Através dessa comparação demonstra-se que o sujeito passivo logrou, através de um conjunto de atos/negócios, alcançar um resultado que em condições normais seria tributado.

A vantagem fiscal assim obtida reportar-se-ia a cada um dos atos constitutivos da operação artificial criada pelo sujeito, criando-se um resultado de efeitos económicos equivalentes ao ato normal tributado.

Na esteira de GUSTAVO LOPES COURINHA , “as situações de vantagem fiscal devem entender-se, para efeitos da CGAA, como qualquer situação pela qual, em virtude da prática de determinados actos, se obtém uma carga tributária mais favorável ao contribuinte do que aquela que resultaria da prática dos actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Assim, estaremos perante uma comparação entre os ónus fiscais normalmente suportados e os evitados com a atuação produzida. Se de tal análise resultar uma efectiva diferença, aritmética ou de outra natureza, que seja objectivamente vantajosa para o contribuinte, ter-se-á por verificado este requisito.”

No caso em apreço verificamos, pelo que se deixou claro, que não se encontra preenchido o elemento resultado.

 

29. No que tange à verificação do elemento sancionatório:

 

Não se tendo demonstrado a verificação dos requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral anti-abuso, não há lugar à aplicação da estatuição do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, mais concretamente, não há lugar à tributação de acordo com as normas aplicáveis, caso não se tivesse verificado o esquema elisivo.

Em consonância com este entendimento analítico, no que respeita à verificação dos requisitos da cláusula geral anti-abuso estabelecida no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, pode apontar-se como exemplo adotado pela jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul o arrêt de principe, segundo o qual: “A previsão da norma em análise consagra quatro pressupostos da sua aplicação, os quais são: 1-O elemento meio - o qual tem a ver com a forma utilizada, portanto, com a prática de certos actos ou negócios dirigidos, essencial ou principalmente, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos; 2-O elemento resultado - o qual visa a vantagem fiscal como fim da actividade do contribuinte, portanto, a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos; 3-O elemento intelectual - o qual tem a ver com a motivação fiscal do contribuinte, portanto, com o facto dos actos ou negócios pelo mesmo praticados serem essencial ou principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal; 4-Elemento normativo - o qual tem a ver com a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, portanto, o contribuinte atua com manifesto abuso das formas jurídicas. Na estatuição da norma vamos encontrar o elemento sancionatório que se traduz na ineficácia, no âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos em causa, os quais passam a ser inoponíveis à A. Fiscal (...). O elemento sancionatório corresponde, por isso, à estatuição da norma em apreciação, dependendo a sua aplicação da verificação cumulativa dos pressupostos consagrados na sua previsão”.

 

III.2.4. Pedido de restituição da quantia paga e juros indemnizatórios

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os actos e operações necessários para o efeito”.

O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, sendo consequentemente devida a restituição da quantia paga pela Requerente.

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

Há assim lugar, na sequência da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de retenção na fonte de IRS, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

IV. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, decide-se neste Tribunal Coletivo julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular o ato de liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2014... e as correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2014... a 2014..., bem como a decisão do recurso hierárquico que os teve como objeto;

b)           Condenar a Requerida no reembolso do montante de imposto, indevidamente, pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, nos termos anteriormente indicados;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

V. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em €503.515,08, nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de €7.693,02 (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), a cargo da Requerida, conformemente ao disposto nos art.s 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e art. 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 18 de novembro de 2019.

 

 

Árbitro Presidente

(José Pedro de Carvalho)

 

Árbitro Vogal

(Carla Castelo Trindade)

 

Árbitro Vogal

(Jónatas E. M. Machado)