Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 158/2021-T
Data da decisão: 2022-02-24  IVA  
Valor do pedido: € 1.127.520,21
Tema: IVA - Onerosidade de operações. Requisitos formais e direito à dedução.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

 

Os artigos do Código do IVA que estabelecem exigências formais para o exercício do direito à dedução, em particular os artigos 19.º e 36.º, têm de ser interpretados à luz da jurisprudência do TJUE, acompanhada e obviamente não desconhecida pelos tribunais nacionais, que é clara em admitir outros meios de prova para garantir que um elemento estruturante do sistema de tributação, o direito à dedução. Dessa jurisprudência decorre que este direito não é comprometido por falhas de natureza formal supríveis, sem prejuízo de situações de fraude ou má-fé dos agentes, as quais no presente processo nunca foram sequer invocadas.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Fernanda Maçãs, árbitro presidente, Pedro Manuel Paes de Vasconcellos e Silva, designado pela Requerente, e António de Barros Lima Guerreiro, designado pela Requerida, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., S.A., doravante “Requerente”, pessoa coletiva número..., com sede em ..., S/N, ...-... ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigo 6.º, n.º 2, alínea b), e artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com as alterações subsequentes, e nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

A Requerente peticiona a anulação das liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e juros compensatórios emitidas em relação aos períodos de imposto de 2017, 2018 e 2020, na importância global de € 1.127.520,21.

 

Em 18 de Março de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e seguiu a sua normal tramitação.

 

A Requerente designou como árbitro o Dr. Pedro Manuel Paes de Vasconcellos e Silva, no uso da prerrogativa prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.

 

Por seu turno, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 3 do RJAT, a Requerida indicou como árbitro o Dr. António de Barros Lima Guerreiro.

Na sequência dos requerimentos apresentados pelos árbitros designados pelas Partes para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, foi, por despacho do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, de 31 de maio de 2021, designada a Senhora Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.

 

Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Senhor Presidente do CAAD informado as partes dessa designação, em 28 de junho de 2021, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo estas manifestado oposição.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 16 de julho de 2021.

 

No dia 19 de novembro de 2021, teve lugar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT pelas 10,30 horas, nas instalações do CAAD e por meios telemáticos, conforme Ata que se dá por reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.

Nessa audiência, foram inquiridas as testemunhas arroladas pelas Partes. Concluída a inquirição das testemunhas, o Tribunal notificou a Requerente e a Requerida para apresentarem alegações escritas e sucessivas, no prazo de 15 dias, tendo sido fixada como data-limite para prolação da decisão arbitral a prevista no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, dia 16 de janeiro de 2022.

Ambas as partes apresentaram alegações, nas quais reiteraram a sua posição manifestada nas peças processuais anteriores.

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente sustenta a sua pretensão no facto de ser por si dedutível o IVA relativo à aquisição de couros que efetuou às entidades a quem prestou serviços de abate de animais, visto esses couros constituírem recursos necessários ao desenvolvimento da sua atividade, não obstante essas operações (ativas e passivas) terem sido objeto de compensação financeira.

 

Não poderão, portanto, proceder as questões formais invocadas pela Requerida que impediriam essa dedução – em particular a existência de apenas um único documento para cada conjunto de transações (o serviço de abate e a concomitante aquisição de couros dos animais abatidos), emitido pela Requerente, com compensação dos valores envolvidos, de acordo com a prática do setor.

 

Em apoio desta conclusão, estará o facto de o direito à dedução de IVA assumir uma prevalência neste sistema de tributação que não pode resultar prejudicada por questões formais como as indicadas pela Requerida, conforme interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) e de várias instâncias judiciais nacionais.

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERIDA

               

De acordo com a Requerida, a situação controvertida no presente processo traduz-se na prática em duas operações distintas para efeitos de IVA, de onerosidade e reciprocidade manifestas: uma referente à prestação de serviços de abate e outra relativa à aquisição de couros utilizados na atividade do sujeito passivo.

 

Ambas as operações tributáveis deviam ter tido tratamento individualizado com liquidação de IVA, não podendo ocorrer compensação das mesmas em faturas de “valor zero”.

 

Atendendo a que só pode ser deduzido o imposto que se encontre formalmente suportado, a Requerente não pode pretender recuperar o imposto associado às aquisições de couros pois não dispõe de uma fatura emitida pelos alienantes destes bens.

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de liquidação de IVA impugnados, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º e 11.º, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.o, n.o 1, alínea a) do RJAT, contado do termo do prazo para pagamento das liquidações de IVA impugnadas, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT (aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea a)).

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

Cumpre apreciar e decidir

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Há que atender aos seguintes factos relevantes para a decisão:

A.           A Requerente, à data dos factos, estava enquadrada para o exercício da atividade de abate de gado, nomeadamente de bovinos, suínos e pequenos ruminantes.

 

B.            Igualmente à data dos factos, a Requerente desenvolvia, entre outras atividades, a prestação de serviços de abate de gado aos apresentadores ou detentores de animais e, em contrapartida deste serviço, recebia o couro e outros subprodutos, por si posteriormente comercializados.

 

C.            De acordo com a prática do setor à data dos factos, a qual era seguida pela Requerente e pelas suas contrapartes, era efetuada uma compensação de valores entre a prestação de serviços de abate e a aquisição do couro dos mesmos animais, ainda que os montantes fossem identificados em linhas autonomizadas das faturas, conduzindo à emissão de faturas “de valor zero”, não ocorrendo portanto fluxos financeiros entre as partes.

 

D.           As partes atuavam de boa-fé na execução do procedimento descrito, em conformidade com o setor em que operavam, que reservava aos matadouros a responsabilidade pela emissão dos documentos representativos das operações, dispensando os detentores dos animais de responsabilidades neste âmbito, mesmo que se tratasse de agentes económicos e, portanto, sujeitos passivos de imposto.

 

E.            Em cada transação existiram, portanto, duas operações relevantes para efeitos de IVA, sendo evidente a onerosidade e o caráter sinalagmático das mesmas inerente a essa reciprocidade: o serviço de abate de animais e a aquisição dos respetivos couros.

 

F.            As contrapartes da Requerente eram maioritariamente sujeitos passivos de imposto e residualmente alguns particulares que esporadicamente apresentavam animais a abate

 

G.           Não foram apuradas em concreto nos autos nem sequer de alguma forma quantificadas ou estimadas estas situações.

 

H.           A Requerente foi objeto de ação inspetiva com origem num pedido de reembolso a um crédito de IVA solicitado na declaração periódica de março de 2018.

 

I.             A Requerente foi notificada do projeto de Relatório dessa inspeção tributária em 9 de novembro de 2020.

 

J.             A Requerente exerceu direito de audição prévia em 4 de dezembro de 2020, tendo sido mantidas pela AT as correções, pelo que, em 16 de dezembro de 2020, foi notificada do Relatório de Inspeção.

 

K.            Após a inspeção realizada pela AT, foi modificado o procedimento adotado pela Requerente e suas contrapartes, passando a primeira a emitir uma fatura pela prestação de serviços de abate e emitindo as contrapartes uma fatura pelos couros transmitidos, ambas com liquidação de IVA.

 

L.            As correções de IVA derivadas do procedimento inspetivo materializaram-se em liquidações adicionais de imposto.

 

M.          A Requerida aceitou a realidade das operações ocorridas e utilizou a informação contida nos documentos emitidos pela Requerente (para titular ambas as operações, os serviços de abate prestados e os couros adquiridos) para quantificar o imposto que entendeu adicionalmente devido.

 

N.           Não foi, até pelo descrito no ponto anterior, invocada a existência de fraude, má-fé, simulação ou adulteração de operações por parte da Requerente ou das entidades com quem se relacionou e que deram origem à emissão pela Requerente dos documentos representativos das operações.

 

O.           Os fundamentos das correções efetuadas constam do Relatório de Inspeção Tributária emitido na conclusão do procedimento acima referido, de que se transcrevem infra determinados excertos relevantes:

(...) o sujeito passivo encontra-se registado para o exercício da atividade de abate de gado, nomeadamente de bovinos, suínos e pequenos ruminantes.

(...)

Consultada a base de dados da AT, nomeadamente os elementos das faturas comunicadas em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do DL n.º 198/2012, verificou-se que parte significativa das faturas emitidas pelo sujeito passivo aos seus clientes têm valor nulo, ou seja, estão a “zeros”.

A fim de apurar a origem destas situações, foram analisados os elementos contabilísticos, tendo-se verificado que a maioria das faturas emitidas e contabilizadas na conta 721011 – serviços de abate, apresentam um valor a crédito que é anulado por um movimento a débito de igual montante, fazendo com que o valor da operação na prática fique nulo. Ou seja, o valor da prestação de serviços de abate é na “prática” anulado por um movimento a negativo de montante equivalente relativo a “Serv. Abate p/Couros”, originando que a fatura fique a zeros com a consequente não liquidação de qualquer imposto.

Questionado o sujeito passivo na pessoa da contabilista certificada, a mesma informou que por regra nesta área de negócio é usual os matadouros receberem, por contrapartida dos serviços prestados, a entrega dos couros dos animais pelos seus apresentantes/detentores, para posterior venda por parte da A..., no mercado nacional ou comunitário. Ou seja, as faturas ficam com valor nulo, uma vez que o montante atribuído à prestação dos serviços de abate (com inclusão da taxa SIRCA) é anulado pelo valor atribuído aos couros que a A... recebe em contrapartida.

Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA que:

“1 – Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado:

a)            As transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;(...)”

Já o n.º 1 do artigo 4.º do CIVA refere que:

“São consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.”

As prestações de serviços em causa são tributáveis no território nacional, de acordo com a alínea a) do n.º 6 do artigo 6.º do Código do IVA que dispõe:

“6 – São tributáveis as prestações de serviços efetuadas a:

a)            Um sujeito passivo dos referidos no n.º 5 do artigo 2.º, cuja sede, estabelecimento estável ou, na sua falta, o domicílio, para o qual os serviços são prestados, se situe no território nacional, onde quer que se situe a sede, estabelecimento estável ou, na sua falta, o domicílio do prestador; (...)”

Portanto, quando a sociedade A... procede à prestação de serviços de abate dos animais e posteriormente entrega o animal já devidamente abatido ao apresentante/detentor desses animais, esta operação está enquadrada como uma prestação de serviços para efeitos de liquidação de IVA, à taxa normal de 23% prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA.

Quanto ao valor tributável refere o n.º 1 do artigo 16.º do CIVA que:

“1 – Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.”

Conforme mencionado no n.º 1 do artigo 37.º do CIVA:

“1 – A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da fatura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços.”

Verifica-se assim que a situação acima descrita traduz-se na prática em duas operações distintas para efeitos de IVA, uma referente à prestação dos serviços de abate (operação ativa) e outra relativa à aquisição de couros (operação passiva), que posteriormente são vendidos pelo sujeito passivo.

De referir que o conceito “a título oneroso” referido no n.º 1 do artigo 1.º do CIVA, torna-se bastante abrangente, na medida em que existem determinadas operações económicas cujo valor da contraprestação não é dinheiro. Assim consideram-se operações efetuadas a título oneroso todas aquelas operações que tenham subjacente uma contrapartida, seja ela em dinheiro, entrega de um bem ou a prestação de um serviço. Ou seja, uma prestação de serviços é considerada efetuada a título oneroso e assim tributável, sempre que exista uma relação jurídica entre o prestador e o beneficiário, durante a qual são transacionadas prestações recíprocas, constituindo a contraprestação recebida pelo prestador o contravalor efetivo do serviço fornecido ao beneficiário, existindo, para tal, um nexo direto entre o serviço prestado e o contravalor recebido.

Este tipo de operações, em que existem prestações recíprocas entre sujeitos passivos, devem ser tratadas como duas operações em separado, ou seja, cada um dos intervenientes deve atribuir um valor à prestação recebida em troca, o que se traduz para cada um dos sujeitos passivos numa operação sujeita a IVA. Ou seja, ambos os intervenientes ficam adstritos ao cumprimento de obrigações de faturação e declarativas pelas operações ativas realizadas (venda de bens e prestações de serviços).

Conclui-se assim que apesar da obtenção de couros não estar refletida/valorizada contabilisticamente, a operação em causa não deixa de ser qualificada como efetuada a título oneroso dado que existe ligação direta entre a prestação de serviços de abate, devidamente discriminada e quantificada na fatura emitida e a contrapartida em espécie (couros dos animais) recebida pelo matadouro.

Segundo o n.º 3 do artigo 16.º do CIVA:

“Nos casos em que a contraprestação não seja definida, no todo ou em parte, em dinheiro, o valor tributável é o montante recebido ou a receber, acrescido do valor normal dos bens ou serviços dados em troca.”

Neste sentido, quando o matadouro efetua o abate dos animais e procede à entrega dos mesmos ao apresentante/detentor (produto final), essa operação será enquadrada como uma prestação de serviços para efeitos de liquidação de IVA, à taxa normal de 23%. O enquadramento descrito não se altera, ainda que o pagamento do referido serviço de abate, seja efetuado em espécie (ou “maquia”), ou seja, os couros dos bovinos que recebe em troca pela prestação dos seus serviços.

A entrega da “maquia” por parte do apresentante/detentor dos animais será a segunda operação que neste caso é efetuada em conjunto com a prestação dos serviços de abate.

Conclui-se assim que o sujeito passivo não liquidou e consequentemente não entregou nos cofres do Estado o IVA devido pelas prestações de serviços de abate de animais, a que estava obrigado face ao disposto nos artigos 1.º, 4.º e 6.º do CIVA, pelo que vai proceder-se à sua correção, conforme descrito no ponto III deste relatório.

 

P.            O valor total de IVA e juros compensatórios devido no âmbito das liquidações adicionais é de € 1.127.520,21, relativo aos anos 2017, 2018 e 2020 (neste último caso devido à correção da conta-corrente), conforme tabela-resumo das liquidações constante do ponto 8.º do pedido de pronúncia arbitral cujo teor se dá como reproduzido:

 

2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão não se identificaram factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos atendendo à sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à matéria de facto consolidada.

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos por ambas as Partes, na prova testemunhal e nas posições assumidas pelas Partes em relação aos factos, que é consensual.

 

IV.          DO DIREITO

 

1.            QUESTÕES DECIDENDAS

 

A questão controvertida nos presentes autos é de direito e respeita à possibilidade de dedução de IVA por parte da Requerente relativamente às aquisições de couros realizadas às mesmas entidades que lhe solicitaram serviços de abate de animais (cujos couros foram adquiridos), operações recíprocas e inequivocamente onerosas e, portanto, não segmentáveis apenas para determinados efeitos e não para outros. Tal deve-se ao facto de que, em cada transação, existiu um único documento emitido pela Requerente para titular e identificar o valor de ambas as operações (a prestação de serviços de abate e a venda dos couros) e, sendo estas de montante equivalente, essa compensação resultou em faturas de “valor zero”.

 

A divergência assenta na admissibilidade de um único documento poder titular ambas as operações e, nessa sequência, poder servir de base à dedução de imposto pela Requerente, pois, segundo a Requerida na sua Resposta, os requisitos formais estabelecidos no Código do IVA para sustentar essa recuperação de imposto, em particular nos artigos 19.º e 36.º, não admitem tal possibilidade.

 

Ao contrário, a Requerente entende que, não obstante a incorreção formal ocorrida ao nível da emissão dos documentos que titulavam as operações, a mesma não pode ser suficiente para comprometer o exercício do direito à dedução de IVA, preconizando que os preceitos relevantes para este efeito devem ser interpretados de acordo com a jurisprudência emanada do TJUE e de outras instâncias judiciais nacionais e em observância dos respetivos princípios aí consagrados.

 

2.            O ENQUADRAMENTO JURÍDICO SUBJACENTE À DECISÃO

 

Analisados os factos, ficou provado que a Requerente e as suas contrapartes (nas transações desenvolvidas no período abrangido pelas liquidações adicionais acima referidas) compensaram as operações em causa por o valor tributável das mesmas ter sido considerado idêntico.

 

De acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do Código do IVA, estão sujeitas a imposto “as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal”.

 

O n.º 1 do artigo 3.º do mesmo diploma dispõe que é transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade e o n.º 1 do artigo 4.º considera como prestações de serviços “as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens”.

 

O artigo 16.º n.º 1 do Código do IVA estabelece que “o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”.

 

O n.º 3 do mesmo diploma prevê que “nos casos em que a contraprestação não seja definida, no todo ou em parte, em dinheiro, o valor tributável é o montante recebido ou a receber, acrescido do valor normal dos bens ou serviços dados em troca”.

 

O artigo 19.º n.º 1 do Código do IVA, por seu turno, esclarece que “para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem (...) ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram:

a)            O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos (...)”

 

O n.º 2 do mesmo preceito legal estabelece que “só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:

a)            Em faturas passadas na forma legal (...)”

 

Por seu turno, o n.º 3 ainda do mesmo artigo 19.º prevê que “não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura” e o n.º 6 refere que, “para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos”.

 

Na situação objeto do presente processo, estamos inequivocamente perante operações onerosas, com um nexo sinalagmático evidente entre os serviços de abate prestados pela Requerente e a aquisição dos respetivos couros aos proprietários/detentores dos animais. As partes pretenderam dar a ambos os elos dessa cadeia de transações uma inegável correspetividade e, portanto, ambas encontram-se sujeitas a IVA.

 

Não se olvida, igualmente, que o procedimento correto no âmbito do cumprimento das obrigações formais associadas à prática dessas operações teria sido a emissão pela Requerente de uma fatura pela prestação de serviços de abate, liquidando IVA (potencialmente dedutível pela contraparte) e, concomitantemente, a contraparte emitiria uma outra fatura pela alienação dos couros à Requerente, liquidando igualmente IVA (potencialmente dedutível pela Requerente).

 

O facto de ter a Requerente concentrado em si a emissão dos documentos representativos das transações, substituindo-se ao alienante dos couros nessa tarefa, seguindo as práticas e costumes do setor, e resultando desses documentos “faturas de valor zero” (pois compensaram-se os valores identificados para ambas as operações), constituiu uma simplificação não expressamente prevista nas disposições estabelecidas no Código do IVA relativas à emissão de documentos, particularmente nos artigos 19.º e 36.º deste diploma.

 

Contudo, tais normas não são alheias a algum nível de simplificação, ou até mesmo a concentração no adquirente das responsabilidades formais atinentes à emissão de documentos representativos de transações, em particular quando o número 11 do artigo 36.º estabelece a possibilidade de as partes numa determinada transação recorrerem ao instituto da autofaturação (em que é o adquirente a emitir os documentos representativos das operações mediante o cumprimento de certas formalidades específicas), quando os pressupostos e circunstâncias do negócio a isso recomendarem.

 

Por outro lado, importa referir que, na maior parte das situações em causa no presente processo, foi alegado pela Requerente - e não contestado - que estiveram envolvidos sujeitos passivos de imposto, ainda que ao Tribunal não tenham sido fornecidos elementos por qualquer das Partes que permitissem alguma quantificação exata dessa proporção. Assim, o imposto envolvido nessas operações de valor simétrico, associado aos serviços de abate e à aquisição dos couros, calculado tal como previsto nos citados preceitos do artigo 16.º do Código do IVA, acabaria por não resultar em entrega líquida de IVA ao Estado mesmo que emitidos por cada entidade em documentos autónomos, pois aquilo que uma das partes liquidaria a outra deduziria.

 

Ao contrário, nas situações de contrapartes não sujeitos passivos, simples particulares, já teria ocorrido uma entrega líquida de imposto ao Estado, visto que a Requerente liquidaria o IVA relativo ao serviço de abate prestado, mas este nunca poderia ser compensado com um putativo IVA liquidado pelo particular, o qual, por não ser entidade que desenvolvesse operações económicas com caráter de habitualidade, não teria obrigação nem forma de liquidar imposto.

 

Assim, mesmo admitindo ter ocorrido uma incorreção de natureza formal por parte das entidades envolvidas nas transações em causa, ao concentrar-se de comum acordo na esfera da Requerente o cumprimento da obrigação de emissão da documentação relevante e fazendo esta refletir num único documento ambas as transações (quer o serviço por si prestado, quer a aquisição dos couros), a verdade é que não foi invocada pela Requerida a ocorrência de fraude ou má-fé das Partes na adoção, concretização ou repetição habitual deste procedimento.

 

Aliás, o procedimento, apesar da sua imperfeição formal, não constituía propriamente um caso isolado ou de aplicação exclusiva pela Requerente e suas contrapartes, sendo antes - incorretamente - aplicado pela generalidade dos intervenientes neste setor de atividade económica, seguindo uma praxe comercial cujo início no tempo não é possível concretizar, concentrando-se nos matadouros essa obrigação de emissão e simplificação documental, facto não desconhecido pela Requerida.

 

Além disso, não obstante a citada incorreção formal, a Requerida não deixou de aproveitar todos esses documentos emitidos pela Requerente, os elementos neles constantes e respetivos registos contabilísticos a que deram lugar, para proceder ao cálculo de um eventual imposto adicional devido ao Estado, não destrinçando contrapartes sujeitos passivos de não sujeitos passivos, e acabando mesmo por realizar uma dupla validação:

 

- Dos documentos em si mesmos e da materialidade das operações a eles subjacentes, uma materialidade que titulava duas operações, os serviços de abate e a alienação dos couros, com onerosidade inequivocamente reconhecida;

 

- Do concreto conteúdo que esses documentos evidenciaram, designadamente ao nível dos montantes envolvidos nas operações, pois apenas o resultado das faturas apresentava zero, mas as parcelas ou quantias subjacentes ao cálculo efetuado encontravam-se objetivamente identificadas.

 

De facto, de acordo com o ponto 38. da Resposta apresentada pela Requerida, “as facturas emitidas discriminam a quantidade e o valor dos serviços prestados, no entanto no final da factura esse valor é anulado por contrapartida dos couros recebidos”.

 

Não se tratou, portanto, de faturas de valor zero sem qualquer discriminação, sem qualquer capacidade de controlo do que se passou facticamente entre as Partes, mas sim de faturas que, apesar de evidenciarem um propósito simplificador eventualmente exagerado de acordo com o citado costume ou praxe do setor, não deixaram de apresentar elementos e dados disponíveis para validação, os quais, insista-se, foram aproveitados pela AT para elaborar as suas correções no âmbito do procedimento inspetivo.

 

Pelo que tais elementos alguma garantia de certeza e correção ofereceram à Requerida.

 

Para a Requerida, a questão é, pois, puramente formal e não está em causa a existência ou a natureza de operações a que se pretenda dar relevância e para as quais não exista documento, ou o documento seja uma mera tábua rasa sem qualquer informação relevante para além da identificação das partes, pois documentos existiram e eles - e o seu conteúdo - até foram aproveitados pela Requerida, mas sem um exame crítico de quais as situações que respeitavam a sujeitos passivos e quais a eles não se referiam (visto que neste último caso as consequências poderiam ser distintas ao nível da arrecadação efetiva de imposto).

 

Assim, e apesar de existirem situações no ordenamento jurídico em que os formalismos têm de se impor ao próprio carácter fáctico das operações, operando como que uma ratificação estruturante da materialidade subjacente, no presente processo, na interpretação das regras e princípios a ele aplicáveis, e designadamente em benefício do princípio da verdade material e suas consequências, não pode deixar de se atender aos seguintes fatores:

 

- Jurisprudência emanada do TJUE, atendendo às competências uniformizadoras que assume – e de última instância - na interpretação a conferir aos preceitos relevantes em matéria de IVA, em particular os de natureza formal que vão sendo adotados pelos Estados-membros para controlo das operações realizadas pelos agentes económicos, uniformização essa que ocorre em todo o espaço da União Europeia;

 

-Outros preceitos aplicáveis neste âmbito no ordenamento jurídico português, ao nível da incidência tributária e em particular da sua dupla natureza, objetiva e subjetiva.

 

a)            Jurisprudência do TJUE a considerar no caso vertente

 

O TJUE tem sido bastante profícuo na sua jurisprudência atinente à relevância e às consequências de disposições legais de ordem formal emanadas pelos vários Estados-membros, e fá-lo de forma constante, pois a progressiva adesão de novos países à União Europeia, e a necessária adaptação destes às exigências impostas por um sistema de tributação indireta como o IVA, exigem destrinçar o que é e o que não é adequado para controlar as operações realizadas e o imposto devido ou aquilo que, sendo adequado para esse controlo, não pode ser interpretado de forma desproporcionada.

 

De facto, o controlo das operações realizadas pelos agentes económicos constitui uma preocupação natural e legítima de qualquer Estado-membro e, em concreto, das suas autoridades tributárias, mas, como é evidente e absolutamente compreensível, por essa via do controlo administrativo não é possível comprometer princípios estruturantes do imposto ou mesmo a sua natureza e idiossincrasia próprias, designadamente por uma incorreta ou assistemática interpretação que conduza à desproporção dos mecanismos empregues.

 

Efetivamente, um dos elementos que distingue este sistema de tributação de IVA vigente no território da União Europeia de outras realidades fiscais, mesmo de tributação indireta, é a primazia conferida ao exercício do direito à dedução de imposto para assegurar que, em cada elo da cadeia económica, os sujeitos passivos são integralmente desonerados do imposto em que incorreram nas suas aquisições.

 

O TJUE declara consistentemente que o regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA. O direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado (veja-se, por exemplo, os Acórdãos Ghent Coal, processo C-37/95; Gabalfrisa, processo C-110/98; Bockemuhl, processo C-90/02; EMS Bulgaria, processo C-284/11; Marie Participations, processo C-320/17; Grupa Lotos, processo C-225/18; The Chancellor, processo C-316/18; PAGE International, processo C-630/19).

 

Caso os sujeitos passivos não fossem desonerados do IVA em que foram incorrendo ao longo do circuito económico, tal constituiria uma extraordinária desvirtuação deste sistema tributário, que pretende que nenhuma carga tributária resida nessas entidades, com as exceções conhecidas (por exemplo, a das entidades que desenvolvam operações isentas sem direito à dedução ou as que realizem atividades mistas, umas que conferem e outras que não conferem o exercício do direito à dedução, e onde se tem de lançar mão de critérios para quantificar o imposto em concreto recuperável).

 

A desoneração de sujeitos passivos do IVA incorrido deve, quando a sua atividade permitir, ser completa. É o princípio da neutralidade tributária em sede deste imposto, com ampla consagração jurisprudencial.

 

Veja-se também o Acórdão Nidera, proferido no processo C-385/09, quando refere no seu ponto 42. que “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução do IVA pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais (...) Uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transações em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito”.

 

Mas, e quando ocorrem incorreções ou imperfeições de ordem formal que, numa primeira análise (e dado o caráter normalmente estrito ou aparentemente impreterível dessas regras atinentes a formalidades, como os artigos 19.º e 36.º do Código do IVA), indiciariam a impossibilidade de um dado sujeito passivo recuperar o imposto em que incorre nas suas aquisições?

 

Para este efeito, o Acórdão Salomie, proferido no processo C-183/14, estabelece no seu ponto 63 que, sancionar-se o incumprimento das obrigações contabilísticas e declarativas do sujeito passivo “com a negação do direito à dedução vai claramente além do que é necessário para atingir o objetivo de assegurar a correta aplicação destas obrigações, tanto mais que o direito da União não impede os Estados-Membros de aplicarem, sendo caso disso, multas ou sanções pecuniárias proporcionadas à gravidade da infração.”

 

E esse Acórdão prossegue no mesmo ponto 63, não com menos clareza, referindo que impedir o exercício do direito à dedução de IVA por questões formais excede o que é necessário para garantir a cobrança exata do IVA e prevenir a fraude.

 

Ou seja, o TJUE é claro em indicar que os incumprimentos formais podem obviamente ser penalizados pelos Estados-membros, com as devidas multas ou sanções pecuniárias, mas entre estas consequências não se pode contar com a eliminação do exercício do direito à dedução, pois mesmo um sujeito passivo negligente no cumprimento das suas obrigações formais não pode ser desproporcionadamente penalizado.

 

Realmente, retirar o direito à dedução de IVA por incumprimento de uma questão formal – suprível - seria amputar a esse sujeito passivo parte da sua natureza como sujeito passivo, numa desmedida e inadmissível desproporção, quando penalidades de grau inferior podem contribuir para acautelar as necessidades sancionatórias ou mesmo preventivas que ao caso possam caber.

 

A propósito da importância do princípio da proporcionalidade em IVA também são abundantes os Acórdãos do TJUE.

 

Refira-se o Acórdão proferido no processo Ampafrance (C-177/99), quando no ponto 60 se refere que “para que um ato comunitário relativo ao sistema do IVA esteja em conformidade com o princípio da proporcionalidade, as disposições que ele contém devem ser necessárias para a realização do objetivo específico que ele prossegue e afetar o menos possível os objetivos e os princípios da Sexta Diretiva”.

 

Prosseguindo no ponto 61, esclarecendo que “uma medida que consiste em excluir, por princípio, todas as despesas (...) do direito à dedução do IVA, que constitui um princípio fundamental do sistema de IVA posto em prática pela Sexta Diretiva, quando meios adequados, menos atentatórios deste princípio do que a exclusão do direito à dedução em relação a certas despesas, são possíveis ou existem já na ordem jurídica nacional, não se mostra ser necessária para lutar contra a fraude e evasão fiscais.”

 

E quanto a uma aplicação do princípio da proporcionalidade ainda mais concreta do que no caso Ampafrance (onde se discutia a validade de legislação de um Estado-membro face às disposições comunitárias, facto que não sucede no presente processo), veja-se o caso Tibor Farkas, proferido no processo C-564/15: depois de relembrar mais uma vez a jurisprudência constante de que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado (ponto 42), vem pronunciar-se sobre a admissibilidade de uma sanção fiscal que ascenda a 50% do montante do IVA que se está obrigado a pagar à Administração Tributária, quando esta não sofreu qualquer perda de receitas fiscais e não há indícios de fraude fiscal.

 

E o TJUE, nos pontos 65 e 66 desse Acórdão, exprimiu-se com uma meridiana clareza que recomenda a sua citação: 

 

“65. No que se refere à proporcionalidade da sanção imposta (...) no âmbito do litígio no processo principal, há que constatar que, quanto à natureza e gravidade da infração em causa no processo principal, como defende a Comissão nas observações escritas que apresentou ao Tribunal de Justiça, esta infração consiste num erro relativo à aplicação do mecanismo do IVA, que corresponde a uma infração de natureza administrativa e que, tendo em conta os elementos de facto decorrentes dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça, por um lado, não causou à Administração Tributária qualquer perda de receitas e, por outro, caracteriza-se pela inexistência de indícios de fraude.

 

66. Nestas circunstâncias, a aplicação (...) de uma coima de 50% do montante do IVA aplicável à operação em causa afigura-se desproporcionada, o que incumbe ao órgão jurisdicional verificar.”

 

Portanto, é legítimo concluir que nem 50%, nem 10%, nem 100% de restrições no exercício do direito à dedução serão admissíveis, não sendo possível coartar o mesmo como forma de sancionar irregularidades formais, por desproporcionalidade gritante.

 

Não seria assim se existisse fraude ou má-fé das Partes, as quais comprometeriam os alicerces em que se pode fundar um correto e legítimo exercício do direito à dedução.

 

De facto, numa situação de fraude, má-fé ou simulação ou adulteração de operações, a proteção que é concedida ao agente económico no sentido da sua desoneração do IVA incorrido cairia pela base, visto que esse putativo agente económico se converteria afinal numa entidade diversa. Já não lhe interessaria a venda de bens ou serviços com caráter de habitualidade, no exercício de uma legítima atividade económica, mas sim defraudar o sistema tributário, equivocar as autoridades tributárias ou mesmo iludir a sua contraparte numa dada operação, não sendo meras coimas suscetíveis de serem suficientes perante uma conduta com essa gravidade.

 

Compreende-se bem a opção do TJUE ao excecionar esse caso de fraude, em que lança mão de um recurso extraordinário – a rejeição do direito à dedução – para uma situação extraordinária, em que verdadeiramente não se registam regulares operações económicas entre normais agentes económicos sujeitos passivos do imposto. De facto, a tutela garantida ao direito à dedução e aos sujeitos passivos que legitimamente o exercem não pode ser estendida a quem visa aproveitar-se deste sistema de tributação indireta e atuar apenas numa aparência de agente económico para realizar fins ilegítimos.

 

Mas, em circunstâncias normais, o direito à dedução não pode ser comprometido.

 

E, acrescente-se, para esclarecer de forma completa a interpretação do TJUE, o Acórdão Uszodaépito, proferido no processo C-392/09, absolutamente claro, ao concluir o seguinte nos seus pontos 42 a 44:

 

“42. Em primeiro lugar, resulta do processo que os requisitos materiais para a obtenção do direito a dedução do IVA, previstos no artigo 168.°, alínea a), da Directiva 2006/112, se encontram preenchidos, de modo que a recorrente no processo principal pode beneficiar do referido direito (...) Há que salientar que estas últimas operações foram, com efeito, utilizadas para os fins das operações tributáveis do sujeito passivo no Estado Membro em causa. Além disso, com base na declaração fiscal relativa ao exercício de 2007, a autoridade fiscal em causa tinha conhecimento do preenchimento dos referidos requisitos materiais.

 

43. Em segundo lugar, é pacífico que, na data em que a autoridade fiscal recusou à recorrente no processo principal o direito a dedução do IVA, essa autoridade dispunha, com base na declaração fiscal relativa ao exercício de 2007 e na declaração de 14 de Fevereiro de 2008, de todas as informações necessárias (...)”.

 

E prossegue esse mesmo Acórdão, esclarecendo no ponto 44 que a Comissão Europeia (a guardiã dos Tratados, sempre vigilante a violações da legalidade comunitária e dos princípios a ela subjacentes) salientou que a imposição de formalidades como as que estavam em causa nesse processo poderia ter como efeito a impossibilidade absoluta do exercício do direito à dedução.

 

Ou ainda o Acórdão Kopalnia, proferido no processo C-280/10, que vai ainda mais longe e no seu ponto 48 esclarece, apelando ao Acórdão proferido no processo C-90/02 (Bockemuhl), que: “O Tribunal de Justiça declarou, por outro lado, que, embora uma fatura tenha efetivamente uma função documental importante pelo facto de poder conter dados controláveis, existem circunstâncias nas quais os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura e em que a exigência de dispor de uma fatura em todos os pontos conforme com as disposições da Diretiva 2006/112 teria como consequência pôr em causa o direito a dedução de um sujeito passivo”.

 

De acordo com o TJUE é, pois, inequívoco que os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura para legitimar o exercício do direito à dedução pelo sujeito passivo.

 

O que no caso concreto nem se verificou, pois até existe fatura, ainda que apenas emitida pela Requerente, mas não com pouca informação, pois da sua análise, bem como dos relevantes registos contabilísticos, foi possível à AT chegar às conclusões que apresentou no Relatório da Inspeção.

 

E, finalmente, o Acórdão Barlis (processo C-516/14), proferido no âmbito de um processo originado no CAAD, o qual refere expressamente nos pontos 43 e 44:

 

“43. Daqui resulta que a Administração Fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.os 6 e 7, da Diretiva 2006/112, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos.

 

44. A este respeito, a Administração Fiscal não deve limitar se ao exame da própria fatura. Deve igualmente ter em conta informações complementares prestadas pelo sujeito passivo. (...)

 

45. No processo principal, cabe assim ao órgão jurisdicional de reenvio ter em conta todas as informações constantes das faturas em causa e dos documentos anexos apresentados pela Barlis com vista a verificar se os requisitos substantivos do seu direito a dedução do IVA se encontram satisfeitos.”

 

E finaliza pouco depois salvaguardando que o direito da União não impede os Estados-membros de aplicarem, sendo caso disso, uma multa ou uma sanção pecuniária proporcionada à gravidade da infração, a fim de punir a violação das exigências formais (ponto 48).

 

Ora, seguindo esta jurisprudência pacífica, constante e perfeitamente clara, formulada ao longo de décadas de laboriosa densificação, não admitir na situação da Requerente a possibilidade de dedução de um imposto simétrico ao que deveria ter sido liquidado no âmbito das operações em causa resultaria numa flagrante violação da Diretiva do IVA, onde se funda o Código do IVA português, já que a Requerida teve na sua disposição em todos os momentos os elementos necessários para aferir da veracidade das transações e não desconhece – pelo contrário, invoca-a – a onerosidade e profunda interligação das prestações de serviços de abate de animais e as concomitantes aquisições dos respetivos couros.

 

Os Tribunais nacionais têm, aliás, vindo a acompanhar esta jurisprudência comunitária, destacando-se em particular o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19/11/20 (processo 208/04.0BESNT), cujo sumário transcrevemos:

 

 “I - Em conformidade com a jurisprudência do TJUE, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Assim, será de aceitar o direito à dedução do IVA de uma fatura que não respeite a totalidade dos elementos formais requeridos, desde que seja ainda possível estabelecer uma conexão com a operação material subjacente, admitindo-se outros meios de prova para superar tais falhas formais.

 

II – Resulta da jurisprudência do TJ que não basta que se constate que o IVA dedutível seja referente a um sujeito passivo com número de identificação fiscal inexistente ou inválido ou que tenha suspenso ou cessado a sua atividade sendo necessário também que o sujeito passivo em causa sabia ou devia saber que a operação invocada como fundamento do direito a dedução estava implicado numa fraude cometida pelo emissor da fatura ou por outro operador interveniente a montante na cadeia de prestações, designadamente, não basta, para recusar o direito à dedução, constatar que o sujeito passivo não se certificou de que o emitente da fatura correspondente aos bens em relação aos quais o direito à dedução é requerido tinha a qualidade de sujeito passivo.”

 

Assim, os artigos do Código do IVA que estabelecem exigências formais para o exercício do direito à dedução, em particular os artigos 19.º e 36.º, têm de ser interpretados à luz da jurisprudência do TJUE, acompanhada e obviamente não desconhecida pelos tribunais nacionais, que é clara em admitir outros meios de prova para garantir que um elemento estruturante do sistema de tributação, o direito à dedução. Dessa jurisprudência decorre que este direito não é comprometido por falhas de natureza formal supríveis, sem prejuízo de situações de fraude ou má-fé dos agentes, as quais no presente processo nunca foram sequer invocadas.

 

b)           Outras ilegalidades

 

Verifica-se, por outro lado, que a Requerida só atente à dimensão

objetiva do facto tributário - existência de prestação de serviços ou troca, tornando-se necessário, no caso, averiguar se em todas as operações sindicadas estamos ou não perante sujeitos passivos de IVA - dimensão subjetiva, uma vez decorrer da factualidade dada provada a existência de contrapartes consideradas sujeitos não passivos de IVA.

 

E se não se desconhece que o caráter objetivo do princípio de incidência permite relevar as operações praticadas – prestações de serviços de abate e aquisições de couros, tituladas num único documento – não se olvida também que há que atender às questões subjetivas associadas a essa incidência. Como se verificou, as operações compensadas, compensação essa processada num único documento – ocorreram na generalidade dos casos entre sujeitos passivos de IVA, pelo que redundariam em qualquer caso numa não entrega líquida de imposto ao Estado.

 

As situações de contrapartes não sujeitos passivos, onde aí sim uma compensação não teria efeito nulo como vimos, deveriam ter sido concretamente identificadas, segregadas e quantificadas pela AT, o que não sucedeu, numa preterição do requisito da subjetividade da incidência aqui subjacente, cujo ónus de verificação impendia sobre a Requerida.

 

Nesta sequência, para se dar cabal resposta à observância da verdade material na situação vertente, seria de exigir um cálculo aturado e pormenorizado pela AT de todas as situações em que, pela intervenção de não sujeitos passivos, seria realmente devido, em termos líquidos, um determinado montante de imposto ao Estado.

 

Afigura-se, assim, não sendo aceitável uma liquidação sem mais, sem se atender às circunstâncias fácticas, sem qualquer segmentação de quem era ou não sujeito passivo de imposto, enquanto contraparte da Requerente.

 

Não é possível, pois, sem preterição do princípio da verdade material, pretender aproveitar documentos emitidos pela Requerente que se consideram legítimos para um propósito, dando como bom igualmente o seu conteúdo específico – o propósito da emissão de liquidações adicionais de imposto – e simplesmente desconsiderá-los ou negligenciá-los para efeitos que aproveitam aos sujeitos passivos e em algo como o exercício do direito à dedução, segmentando-os artificialmente numa complexa e indefinível teleologia.

 

A incidência tributária é, assim, objetiva e subjetiva, e aqui os atos tributários postos em crise pela Requerente não estão a atender devidamente ao elemento subjetivo, conferindo a Requerida uma primazia às questões formais e olvidando a materialidade. E ignorando igualmente a onerosidade das operações, mas apenas naquilo que essa reciprocidade aproveita à Requerente, a existência das aquisições de bens efetuadas por esta última a sujeitos passivos de imposto.

 

Em suma,  quanto às situações em que as contrapartes da Requerente eram não sujeitos passivos, portanto simples particulares e de onde não resultaria a possibilidade de a Requerente deduzir qualquer imposto, quedando apenas a liquidação de IVA pelos abates de animais como devida, os respetivos valores deveriam ter sido concretamente identificados, calculados, aferidos pela AT na sua ação inspetiva. Era esse trabalho de concretização subjetiva da incidência tributária que a onerosidade e evidente correspectividade de ambas as transações impunha, não sendo admissível analisar essa incidência apenas de acordo com o ângulo reputado mais oportuno ou interessante para os propósitos de liquidação adicional.

 

Pelo contrário, o entendimento da Requerida foi o de simplesmente não atender à realidade, pretendendo eliminar-se mesmo parte dela, o que implica, nesta perspetiva, erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

Termos em que, por tudo o quanto vai exposto, conclui-se que, atentas as circunstâncias do caso, a inexistência de invocação de fraude ou má-fé no âmbito das operações em causa no presente processo, que se dão como fidedignas tal como a conduta dos agentes envolvidos, deve prevalecer a Jurisprudência do TJUE no sentido da prevalência da materialidade das operações (que a AT não põe em causa) em relação à omissão das formalidades em causa.

 

Adotar um outro entendimento, não havendo fraude ou má-fé das partes intervenientes, seria inverter a lógica que deve presidir a este sistema de tributação, e os formalismos passariam a valer só por si e para si próprios, numa lógica auto-fundamentante, sem atender às circunstâncias concretas do caso, sem atender à doutrina amplamente firmada pelo TJUE.

 

V.           DECISÃO

 

Em conformidade com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral com a consequente anulação das liquidações adicionais supra identificadas com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.127.520,21, conforme indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de fevereiro de 2022.

 

Os Árbitros,

 

Fernanda Maçãs

Pedro Manuel Paes de Vasconcellos e Silva

António de Barros Lima Guerreiro, vencido conforme voto em anexo.

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

1-A minha concordância com a presente Decisão Arbitral limita-se ao enquadramento abstrato das operações efetuadas entre Requerente e os seus clientes. As minhas divergências com  tal Decisão Arbitral consistem em  ter fixado como  provados factos que não o foram e que, ainda que ficassem provados tais factos, não confeririam  em caso algum à Requerente o direito à dedução. O reconhecimento desse direito sem que o contribuinte tivesse cumprido os requisitos formais mínimos de que dependeria o seu adequado controlo pela administração fiscal, não garante, por outro lado, a legalidade do reembolso consequente da presente Decisão Arbitral , nem previne o risco de enriquecimento sem causa.

 

2- O caso objeto do presente pronúncia arbitral insere-se na tipologia dos negócios jurídicos de prestações recíprocas, em que o cliente é simultaneamente fornecedor do sujeito passivo do IVA, ou seja, a mesma pessoa, física ou  coletiva , é simultaneamente recipiendário e recipiente no mesmo contrato .  Com efeito, a Requerente exerce a atividade de abate de gado, comprometendo-se os clientes dos serviços de abate, criadores ou intermediários de criadores-  em vez de pagar em dinheiro a totalidade do preço da operação, a ceder ao prestador a propriedade dos couros e subprodutos do abate que posteriormente à operação e a Requerente comercializa. Não foram juntos pela inspeção tributária, nem invocados pela Requerente, quaisquer documentos escritos que formalizassem tais operações, sendo, no entanto, indiscutida por Requerente e Requerida a reciprocidade das prestações das partes.

 

Considera a Decisão Arbitral, os requisitos substanciais do direito à dedução ficarem preenchidos com a mera prova da realização material das operações recíprocas, independentemente do incumprimento(evidente) dos requisitos formais.

 

3- Caso se venha a generalizar a doutrina implícita na Decisão Arbitral , ficaria posta  em causa, com efeito, a eficácia do combate à economia informal, à fraude e evasão fiscal , o principal objetivo do DL nº 28/2019, de 15/2,  que regulamenta as  obrigações relativas ao processamento de faturas e outros documentos fiscalmente relevantes,  bem como as obrigações de conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte que recaem sobre os sujeitos passivos de IVA, bem como da demais legislação nacional aplicável ao exercício do direito  à dedução. Citando o preâmbulo desse DL, o seu objetivo, além da simplificação das obrigações dos operadores económicos, seria o combate à fraude e a evasão fiscais, através de   mecanismos que permitam reforçar o controlo das operações realizadas pelos sujeitos passivos, por meio da  identificação dos programas de faturação comercializados, dos estabelecimentos onde estão instalados terminais de faturação  e da obrigação de as faturas emitidas passarem a conter  um código único de documento. Caso a inobservância dessas obrigações fosse apenas punível com simples coimas,  como pretende a Decisão Arbitral, em geral de valor muito económico muito inferior ao benefício económico obtido com a dedução indevida , a fraude e evasão fiscal seriam compensatórias. 

É , com efeito ,consequência lógica da aceitação do enquadramento dos factos provados efetuado pela Requerente,  acolhido pela Decisão Arbitral, a  fatura  passada em forma legal deixar de ser um requisito substancial  da dedução para passar a ser uma mera faculdade  do sujeito passivo, que livremente poderia comprovar a operação por outros meios que não tivessem as características da fatura,  como vêm enunciadas no art. 226º da Diretiva IVA, ainda que sem a certeza e segurança da fatura, incluindo prova testemunhal . Seria suficiente a prova da realização material das operações recíprocas, sem que, no entanto, fosse assegurada a fiscalização pela administração fiscal das obrigações aplicáveis aos seus intervenientes.

 

4-Esse enquadramento do direito à dedução contraria, por outro lado, a demais legislação nacional aplicável, em especial o referido nº 19 do art. 29º do CIVA, que proíbe aos sujeitos passivos a emissão e entrega de documentos de natureza diferente da fatura aos respetivos adquirentes ou destinatários, sob pena de aplicação das penalidades legalmente previstas.

 

Retiraria, por outro lado, a maior parte da utilidade a  todo o edifício  legislativo  laboriosamente construído com sucesso  pela União Europeia e os Estados membros para assegurar a fiabilidade da faturação eletrónica    e a consequente  promoção do comércio eletrónico , que implica a  observância dos requisitos formais das faturas processadas  através do sistema e-fatura cuja efetividade  seria posta em causa, não obstante os elevados custos  até aqui suportados pelo Estado e pelos operadores económicos para implementar. (Diretiva (EU) 2017/2455 do Conselho, de 5 /12/ 2017, e Diretiva (EU) 2019/1995, do Conselho, de 21/11/2019, transpostas para o direito interno pela Lei nº 47/2020, de 24/8, e DL nº 29/2019), bem como o reforço de simplificação da faturação operado pela  Segunda Diretiva Faturação(Diretiva 2010/45/EU, do Conselho).

No limite, seria sempre possível a substituição das faturas -por qualquer documento elaborado manualmente ou até por prova testemunhal, sem quaisquer consequências a não ser, como se referiu, a aplicação de coimas, de acordo com as molduras penais aplicáveis em Portugal e outros Estados membros da União Europeia(EU) de valor muito inferior ao benefício económico que o contribuinte obtivesse com esse comportamento.

Seria igualmente diminuída a eficácia do controlo dos impostos sobre o rendimento, uma vez, nesses impostos, o rendimento coletável ser apurado essencialmente com base no valor bruto  das transmissões de bens e prestações de serviços deduzido dos custos suportados para o obter, a declarar separadamente pelo contribuinte à administração fiscal para efeitos de esta os poder controlar.

5- É o presente caso paralelo, entre muitos outros,  àqueles em que o  revendedor presta serviços de publicidade  ao grossista que lhe forneceu os bens, em que, no arrendamento de um imóvel  ,  a cobrança total ou parcial das rendas é substituída pela   realização, pelo locatário , de obras  no imóvel  que revertem para o locador no final do contrato ou em que parte do salário do trabalhador da empresa é satisfeita através de prestações em espécie, como o fornecimento de refeições ou alojamento  ou vales para aquisição de serviços prestados, cujo montante é, assim, descontado no vencimento posto à sua disposição.

Tais prestações em espécie,  independentemente de serem a contrapartida  de transmissões de bens ou de prestações de serviços, quando preenchidos os respetivos pressupostos de incidência, por serem realizadas por sujeito passivo agindo como tal e  não estarem  abrangidas por qualquer norma de isenção,  geram a obrigação de pagamento do IVA sobre a totalidade do  valor de cada uma delas, determinado segundo o art. 16º do CIVA, bastando que este tenha expressão monetária, nos termos do nº 1 do  art. 7º do CIVA .

É pacífico, na verdade, que, nas operações onerosas sujeitas a IVA, como resulta dos nºs 1 e 3 do ar.º . 16º do CIVA, a contrapartida não tem de ser, necessariamente, dinheiro.  Para esse efeito, o valor tributável em IVA pode ser, tanto   a quantia paga em dinheiro pelo adquirente, como a expressão em dinheiro da prestação em espécie que este receba. Nos casos em que a contraprestação no todo ou em parte, não seja definida em dinheiro, nos termos do nº 3 do art. 16º do CIVA, valor tributável é o valor normal dos bens ou serviços dados em troca, estabelecido de acordo com os critérios referidos no nº 5, acrescido dos montantes a receber eventualmente pelo permutante dos bens de maior valor  .

Essa doutrina vem sendo continuadamente seguida a partir do Acórdão de 5/2/81, proc. C-154/80, do TJUE, que, para efeitos deste imposto,  declara estar sujeita a IVA, por ser onerosa,  uma prestação de serviços efetuada por sujeito passivo agindo como tal,  cuja contrapartida, ainda que parcial,  seja uma entrega de bens que lhe estiver diretamente ligada .

Essa doutrina seria  completada pela doutrina do  Acórdão de  23/11/88, proc. C- 230/87,  que, a propósito de operação de sentido inverso,  consideraria constituir uma   operação a título oneroso uma entrega de bens cuja contrapartida, ainda que parcial, seja uma prestação de serviços, também por natureza diretamente ligada, opinião que seria  retomada pelo  Acórdão de 2/6/94, proc. 33/93, que esclareceu que, quando uma das prestações de serviços consista na entrega de um bem, esse valor só pode ser o preço de compra que o fornecedor pagou para a aquisição do artigo que fornece , sem consideração das despesas suplementares que possam constituir  contrapartida dos serviços em questão.

Segundo essa jurisprudência, tal ligação direta é demonstrada quando exista entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica no quadro da qual se trocam prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo do serviço fornecido ao beneficiário (  nesse sentido, em particular,  nº 27 do acórdão do TJUE de 3/5/2012, proc. C-520/2010).

Em caso de inexistência dessa relação jurídica, ainda  que se conclua  haver contrapartida indireta, a operação  está fora do campo de incidência do IVA, salvo quando  equiparada a transmissão de bens ou a prestação de serviços, nos termos respetivamente da alínea f) do nº 3 do art. 3º e da alínea a) e b)  do nº 2 do art. 4º do CIVA, por constituírem a afetação de bens ou serviços   da empresa sobre os quais foi deduzido imposto a fins alheios à mesma, caso em que é tributada.

6-Assim, segundo essa jurisprudência, a  possibilidade de qualificar uma operação de «operação a título oneroso» na aceção do art. 2.° da Sexta Diretiva basta-se com  a existência de uma ligação direta entre a entrega de bens ou a prestação de serviços e uma contrapartida efetiva recebida pelo sujeito passivo, pelo que o facto de uma operação económica ser concluída por um preço superior ou inferior ao preço de custo, e ,logo, por um preço superior ou inferior ao preço normal do mercado, é irrelevante para essa qualificação, o que põe diretamente em causa, nas prestações recíprocas, a qualificação como operação passiva do desconto(Acórdão do TJUE de 20/5/2005, proc. C- 412/03).

Assim, desde que tenha sido negociada e realmente paga ao sujeito passivo a contrapartida direta do bem que entregou ou do serviço que prestou, essa contrapartida resulta da realização de uma operação a título oneroso, mesmo que tenha sido realizada entre partes ligadas entre si e o preço acordado e realmente pago seja manifestamente inferior ao preço normal do mercado, sem prejuízo dos casos em que este deva prevalecer sobre o preço real. 

 O valor tributável em IVA não é, assim, como é pressuposto do comportamento da Requerente, validado pela Decisão Arbitral, a diferença entre os valores das prestações recíprocas, caso que em  que, quando houvesse perfeita  equivalência entre ambas, seria necessariamente zero, mas a  totalidade do valor de cada uma dessas prestações.

A violação dessa regra criaria graves distorções no funcionamento do imposto, afetaria  a receita fiscal do IVA e comprometeria  a fiabilidade das estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Banco de Portugal, bem como reflexamente  a fiabilidade dos dados utilizados pelo EUROSTAT sobre a atividade económica nacional, que deixariam de refletir o valor real dos bens e serviços prestados, mas um valor inferior. A ausência de adequado sancionamento dessas distorções, apenas possível através da retirada do direito à dedução( obviamente apenas caso se venha a generalizar com base no precedente desta Decisão Arbitral),   não beneficiaria a imagem do Estado português,   de acordo com as padrões dos organismos internacionais a que pertence.

7-É consequência lógica desse enquadramento das prestações recíprocas ambos os intervenientes sujeitos passivos não abrangidos por qualquer regime especial ficarem  adstritos ao  cumprimento de obrigações  de faturação e declarativas resultantes das   operações ativas realizadas (venda de  bens e prestações de serviços), sem como consequentemente beneficiarem dos mesmos direitos dos sujeitos passivos plenos, incluindo o direito à dedução.

O   cumprimento dessas obrigações por um deles não isenta o outro desse cumprimento. O facto de um desses sujeitos passivos aproveitar do direito à dedução não significa que o outro dele possa beneficiar.

A alegada  “prática do sector” de fazer recair a taxa do IVA sobre a diferença de  valor entre as prestações recíprocas  a que a Requerente se reporta, em vez de sobre o valor de cada uma delas ilíquido de qualquer desconto associado à contraprestação, ainda que tivesse sido  demonstrada por outros meios além de pela prova testemunhal apresentada pela Requerente, o que não é o caso, é, assim, ilegal: o costume , em particular o costume “contra legem”, não é, no ordenamento fiscal português,  fonte de direito fiscal. O facto de a prática da Requerente ser comum a outros operadores económicos, não sendo um argumento inédito, não tem qualquer relevância para a apreciação da legalidade das liquidações controvertidas, sob pena de uma verdadeira cartelização do direito fiscal.

Esse argumento apenas seria admissível num contexto em que seriam os próprios operadores económicos, em contexto de autorregulação, a definir as suas próprias obrigações fiscais. Esta cartelização é, legal e constitucionalmente, em Estado de direito, inamissível.

Tal prática, no entanto, seria    validada pela Decisão Arbitral que, para o efeito, convocaria a tese, em meu entender sem  apoio na jurisprudência nacional e do TJUE ,  de o direito à dedução não depender de quaisquer requisitos formais, bastando a prova por qualquer meio , incluindo testemunhal , de que as operações tributáveis foram  materialmente realizadas , como se nenhum dos requisitos formais desse direito pudesse ser também substancial. Tal pressuposto, no entanto, não resiste, em meu entender, a um exame mais detalhado dessa jurisprudência.

8-Esta, na minha interpretação,  aponta em sentido totalmente  inverso: uma parte dos requisitos do direito à dedução não é   exclusivamente formal ,mas também substancial, pelo que o seu incumprimento é fundamento suficiente para a recusa do direito à dedução.

         Assim, em caso de prestações recíprocas, cada uma das partes sujeito passivo do IVA não abrangido por regime especial e não somente uma delas, como aconteceu no presente processo arbitral, é obrigada a liquidar IVA sobre a totalidade do valor da operação tributável, seja esta transmissão de bens ou prestação de serviços.

         Salvo esse regimes especiais, ambos os intervenientes sujeitos passivos ficam adstritos separadamente ao cumprimento de obrigações de faturação e declarativas previstas no CIVA nos termos gerais referidos nomeadamente nas alíneas b), d) e d) nº 1 do art. 29º do CIVA( faturação, inclusão   na declaração periódica e integração  na declaração de informação contabilística e fiscal, parte  integrante da declaração anual de IRS ou IRC) .

         Cada permutante sujeito passivo deve, assim, faturar e declarar as operações que realiza.

         Quando apenas um dos permutantes seja sujeito passivo, é a este que se dirigem exclusivamente as obrigações mencionadas.

        Assim, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 29º do CIVA, sem prejuízo dos regimes especiais, o permutante que seja   sujeito passivo fatura e liquida  sempre IVA ao outro permutante, independentemente de este ter a qualidade de sujeito passivo ou não, salvo nos casos legalmente previstos da autofacturação, que, por natureza, apenas compreendem as operações entre sujeitos passivos

        O permutante não sujeito passivo não está, por outro lado, abrangido pela obrigação de faturação dessa norma, bem como pelos restantes deveres previstos no nº 1 do art. 29º do CIVA, mas também não pode deduzir o IVA liquidado pelo outro permutante, sendo sempre tratado como consumidor final.

         Por outro lado, o IVA suportado por cada permutante  sujeito passivo é, por este, dedutível ao IVA que liquida ao outro, salvo em caso de operações fora do campo ou isentas sem direito à dedução .

         Quando a contraparte não seja   sujeito passivo do IVA, por não exercer habitualmente qualquer atividade económica não pode liquidar IVA ao sujeito passivo que, por isso, não o pode deduzir o imposto oculto suportado.

 A matéria coletável dessas operações  é necessariamente  determinada nos termos da regra geral enunciada na alínea a) do nº 1 do 11.°, A,  da Sexta Diretiva,  correspondente ao  art.  73º da Diretiva IVA, e do nº 1   do art. 16º do CIVA, de acordo com a qual  ela é o que constitua a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações , do adquirente , do destinatário ou de um terceiro.

9- No entanto, os  sujeito passivos  abrangidos pelo regime especial de isenção no art. 53º, pelo regime forfetário  dos produtores agrícolas regulado na Subsecção II da Secção IV do Capítulo V do CIVA, aplicável aos criadores de gado  por força da remissão da alínea b) do nº dos preço  do art. 59º-A para o Anexo G do CIVA,  ou pelo regime substitutivo dos pequenos retalhistas previsto no art. 60, em que o imposto é determinado, sem qualquer dedução através da aplicação de um, coeficiente de 25 % ao valor do imposto suportado nas aquisições de bens destinados a vendas sem transformação, salvo em qualquer desse casos se tiverem renunciado à isenção, não têm direito à dedução do imposto.

Estão, no entanto, sujeitos às obrigações de faturação dos restantes sujeitos passivos,  nos termos do art. 57º e do nº 1 do art. 58º, este último aplicável aos produtores agrícolas, incluindo criadores de gado,  por força dos nºs  1 e 2  do art. 59º- D e aos pequenos retalhistas  por força do art. 62º, com a menção, nos dois primeiros casos, “IVA- regime de isenção “ e, no terceiro caso, “ A menção IVA não confere direito à dedução”.

Essa obrigação de emitir fatura permite à administração fiscal comprovar se o volume de negócios do sujeito passivo ultrapassa ou não os limites do nº 1 do art. 53º, do nº 1 do art. 59º-D e do nº 1 do art. 60º do CIVA. É, assim, elemento essencial ao combate à fraude e evasão fiscal.

Assim, nas operações   efetuadas entre a Requerente e os apresentadores/detentores dos animais o IVA deveria ter incidido separadamente sobre o seu valor ilíquido dos descontos causados da contraprestação do adquirente dos serviços.

          A solução contrária implica, mesmo que parcialmente, a transformação de uma operação ativa como é o abate dos animais,  em redução  ao valor tributável de   uma prestação de serviços ou venda, tratado como operação passiva , quando a verdade é que esta operação passiva é a contrapartida de uma   operação ativa diferente da primeira ( Ana Cristina Silva , “Prestações Recíprocas- Tratamento em IVA” , Jornal de Negócios de 4/10/2013, disponível igualmente no sítio na Internet da Associação dos Contabilistas Certificados), o que é uma clara distorção do funcionamento do imposto e põe em causa a receita fiscal .

         Tal redução não é comparável aos descontos promocionais, sazonais ou por pronto pagamento, bem como aos abatimentos ou bónus com idêntica natureza, que não são a contraprestação de qualquer prestação ativa da outra parte., ainda quando possam servir de justificação da anulação parcial do valor da fatura inicial, mas operações passivas genuínas.

Na verdade, seguindo sempre a jurisprudência do TJUE (Acórdão de 3/7/97, proc. C-330/95), os contratos de permuta, em que a contrapartida é por definição em espécie, e as  operações em relação às quais a contrapartida é monetária são, do ponto de vista económico e comercial,  situações idênticas, recebendo o tratamento fiscal também comum

Só, assim, fica assegurada, com a desejável plenitude a neutralidade das operações tributáveis pagas em espécie por comparação com as  pagas em dinheiro (Acórdão do TJUE de 29/12/2011, proc.  C-549/11), que, segundo me parece, a Decisão Arbitral não tem em conta.

10- Entendimento contrário, de que o valor tributável em IVA não seria o valor das vendas e serviços prestados, mas o saldo positivo, necessariamente inferior, das prestações recíprocas, adulteraria o conceito de volume de negócios expresso no nº 1 do art. 42º do CIVA, impossibilitando ou dificultando desproporcionadamente o conhecimento pelo Estado português com um mínimo de exatidão do volume das operações realizadas pelos sujeitos passivos

Ficaria, assim prejudicada  uma eficaz fiscalização do universo dos sujeitos passivos abrangidos por regimes especiais de isenção cujos pressupostos dependem do seu volume de negócios, a efetuar através da sua faturação.

Do mesmo modo, seria   distorcido o universo dos sujeitos passivos abrangidos, de acordo com o seu volume de negócios, à obrigação mensal ou trimestral de apresentação da declaração periódica estabelecidos no nº 1 do art. 41º

Do mesmo modo, ficaria prejudicado um eficaz controlo dos rendimentos declarados em IRS ou IRC, dos pagamentos especiais por conta e dos pressupostos dos benefícios fiscais dependentes  do volume de negócios dos titulares, definido com carácter geral pelo nº 1 do art. 42º do CIVA como o valor , com exclusão do IVA , das transmissões de bens e prestações de serviços efetuadas pelo sujeito passivo.

Na verdade, é o valor global do volume de negócios contabilizado na Classe 7, 7.1. e 7.2., do Código de Contas (Portaria nº 1011/2009, de 9/9), que serve de base ao apuramento do IRS e IRC, posto que corrigido, de acordo com o princípio do acréscimo.

Por outro lado, o cálculo dos pagamentos especiais por conta   tem por base igualmente, nos termos do nº 2 do art. 106º , o valor do  volume de negócios relativo ao período de tributação anterior, entendido  adaptadamente, nos termos do nº 4,  como o valor das vendas e serviços prestados geradores de rendimentos sujeitos e não isentos.

Finalmente, os   benefícios fiscais do art.  41º.-B (instalação de empresas no interior) e 43º-A do EBF (programa Semente), concedidos respetivamente , nos termos da alínea a) do nº 1 da primeira norma e da alínea a) do nº 5 da segunda norma, são aplicáveis às  micro, pequenas e médias empresas , nos termos da  alínea d) do art. 2º do DL nº 372/2007, de 6/11, também em função do volume de negócios dessas unidades económicas, que a administração fiscal deixaria de poder eficazmente controlar e que, com este tipo de expedientes, fica artificialmente reduzido, com a consequente ampliação artificial dos destinatários do benefício.

Tal conceito de volume de negócios é frequentemente utilizado para fins extra-fiscais, como condição de acesso a outros recursos públicos e avaliação da sua legitimidade perante o Direito Comunitário da concorrência. A credibilidade da informação que serve de base a essas decisões seria posta em causa.

Distorcida também seria   a informação da declaração de informação contabilística e fiscal que serve de base às estatísticas nacionais elaboradas pelo INE e Banco de Portugal em especial as que se reportam ao apuramento do PIB nacional e regional, que tem efeitos na repartição dos fundos de coesão e na definição das regiões dos Estados membros beneficiários desses fundos. A distorção seria suscetível de abranger a aplicação do Regulamento (CEE, Euratom) nº  1553/89 do Conselho, de 29/5/1989, relativo ao regime uniforme e definitivo de cobrança dos recursos próprios provenientes do  IVA .

Não se vislumbram quaisquer razões excecionais para que se excluam da aplicação dessas normas de interesse geral toda uma categoria inteira da atividade económica, os matadouros, ainda para mais em claro detrimento do interesse público.

11- Resulta da alínea a) do nº 2 do art. 19º do CIVA só conferir o direito à dedução o imposto mencionado em fatura com a forma legal, de acordo com o nº 5 do art. 36º do CIVA, em nome e na posse do sujeito passivo.

A menção do IVA na fatura constitui, assim, formalidade substancial, de que depende o direito à dedução.

O legislador, na verdade, não se limitou à imposição da obrigação de emissão de fatura na forma legal, cuja violação seria apenas punível contra-ordenacionalmente. Sancionou com a recusa da dedução o incumprimento dessa obrigação (“Só confere o direito à dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos…”).

Não podem consequentemente as faturas ser substituídas por outro qualquer outro meio de prova, testemunhal ou documental da realização da operação como admite a Decisão Arbitral (Patrícia Noiret Cunha, “Imposto sobre o Valor Acrescentado- Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transações intracomunitárias”, Lisboa, 2005, pg. 381).

A fatura é, assim, o título do direito à dedução, não passível de substituição.

Não havendo esse título, o direito à dedução não pode ser exercido, não sendo admissível, a não ser numa perspetiva puramente assistencial das relações entre Fisco e contribuinte,  inconcebível em Estado de direito, a administração fiscal se substitua ao sujeito passivo no exercício do direito à dedução .

Questão totalmente distinta é de as irregularidades formais da fatura, uma vez supridas, prejudicarem o exercício da dedução: fatura irregular não se confunde com a  fatura inexistente.

Este regime é devido ao carácter rígido e formalista do IVA, a o sujeito passivo destinatário da fatura ser titular do direito de dedução  correspondente, da natureza plurifásica deste imposto e da consequente necessidade de controlo eficaz, por parte da AT, relativamente às operações económicas tituladas  por esses documentos, com vista a prevenir e reprimir a fraude e evasão fiscais( nesse sentido, Acórdãos do STA de 31/1/2008, nº 0902/07, e de 15/2/2009. proc.  JST A00065680, e do TCA Sul de 23/3/2021, proc.  744/11.1BELRA e de 27/5/2021, proc. 744/11.1BELRA).

Segundo todos esses Acórdãos, o direito à dedução dos requisitos previstos na lei depende de o sujeito passivo estar na posse de fatura emitida em seu nome em forma legal.

Esse é um requisito substancial do direito à dedução.

12- Quando os vícios formais, por não devidamente supridos, impeçam a eficaz cobrança e fiscalização do imposto, o. direito à dedução não pode ser exercido, tornando-se esses vícios formais em vícios substanciais. Essa a doutrina comum aos referidos Acórdãos do TCA Sul  de 23/3/2021, proc.  744/11.1BELRA e de 27/5/2021, proc. 744/11.1BELRA).

Subsiste o direito à dedução quando os requisitos formais violados, porque atempadamente  corrigidos, não impeçam a dedução do imposto, sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional do sujeito passivo.

A sanção da responsabilidade contra-ordenacional não se substitui, quando tiverem sido infringidos os requisitos substanciais do direito à dedução, à recusa desse direito. 

Como afirmam Alexandra Martins e Lídia Santos, pg. 238  do “Código do IVA e RITI Notas e Comentários “,  Coimbra, 2014, edição  coordenada por  Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos) em II, n.º 2 , do Comentário ao art.º 19º, a exigência de fatura como condição para a dedução do IVA erige-a em formalidade “ad substantiam”, o que significa que, para a prova dos correspondentes factos, a mesma não pode ser dispensada nem substituída por outros meios de prova, atento o disposto no nº 5 do art. 607ºdo Código de Processo Civil(CPC).

Essa exigência decorre igualmente do Direito Comunitário, já que a alínea a) do 178º e o art. 220º do Diretiva IVA  não só impõem aos Estados membros o dever de emissão de fatura , com  determinam  que para efeitos do exercício do direito à dedução essa fatura seja emitida nos termos da Diretiva IVA.

Como resulta do Acórdão do STA de 7/11/2018, proc. 359/16, os elementos comprovativos das operações justificativos do direito à dedução, em que figuram os suportes documentais das faturas, não podem ser substituídos por prova testemunhal, que não tem obviamente a certeza e segurança da prova documental.

13-O documento que titula essas operações recíprocas, emitido pela Requerente, não contém os elementos essenciais de qualquer fatura referidos no nº 11 do art. 36º do CIVA, como a quantidade dos serviços prestados apenas genericamente referenciados como de abates, o preço líquido de imposto e outros elementos  ainda quando eventualmente  não devessem ser incluídos no valor tributável,  como a taxa SIRCA,  e menção do IVA devido. Não preenche os requisitos mínimos de qualquer fatura.

 

A ausência desses requisitos não inviabilizou obviamente a liquidação adicional, já que a administração fiscal conhecia a contrapartida real das operações efetuadas.

Com efeito, no presente caso, a administração fiscal entendeu, com efeito, através de um exame da contabilidade da Requerente enquadrado na apreciação de pedido de reembolso deduzido por esta, que o valor tributável que deveria ter servido de base à liquidação do IVA, correspondente à contrapartida real suportada pelos adquirentes dos serviços de abate, ser diferente, por superior, ao valor das faturas emitidas.

Tal valor teria sido indevidamente anulado, com a consequente evitação da liquidação do IVA aos apresentadores/detentores dos animais. por movimentos de crédito a favor dos adquirentes dos serviços de abate, evidenciados em linha separada de cada documento.

Em conformidade, corrigiria, com base na contabilidade da Requerente e sem necessidade de recurso a métodos indiretos, o valor tributável debitado aos clientes, que deveria ser servido de base a liquidação do IVA nos termos do nº 1 do art. 16º do CIVA

14- A administração fiscal não se substituiu, no entanto, à Requerente, nem o podia fazer, no exercício do direito à dedução.

Tal direito à dedução era da exclusiva competência da Requerente.

Por outro lado, ainda que se admitisse, por absurda hipótese, a Requerida se pudesse substituir à Requerente no exercício do direito à dedução, não dispunha de quaisquer elementos para o fazer, em virtude do incumprimento por esta das suas obrigações de faturação 

 Não rem nem é, exigível à Requerida que, para justificar a recusa da dedução, identificasse  um a um os apresentadores/detentores dos animais , em número de centenas , através da discriminação individualizada da sua  condição de sujeitos passivos abrangidos pelo regime geral do IVA, de sujeitos passivos abrangidos por cada um dos regimes especiais ou de  não sujeitos passivos.

Essa tarefa não podia deixar de ser da Requerente.

Não era nem podia ser da Requerida a não ser que se entendesse ser obrigação sua organizar uma estrutura tentacular, do tipo um fiscal por cidadão, que não é razoável nem tem paralelo em qualquer país da União Europeia.

15- Com efeito, o exercício do direito à dedução dependeria de a Requerente deter e possuir uma fatura passada em seu nome emitida pela contraparte, que a Requerente não tinha nem tem .

Na verdade, os apresentadores/detentores dos animais não emitiram qualquer fatura que pudesse titular o exercício pela Requerente do direito à dedução.

É certo que essa fatura poderia ser elaborada pelo adquirente, mediante o  cumprimento dos requisitos cumulativos do nº 11 do art. 36º do CIVA, ou seja, acordo prévio entre o vendedor dos bens ou prestador dos serviços e o adquirente ou destinatário dos mesmos,  prova que o transmitente ou prestador dos serviços tomou conhecimento da fatura e aceitou o seu conteúdo e  a menção “autofacturação” incorporada, bem como  integrar essas  operações na declaração anual de IRS ou IRC 

Essa regulamentação tem por base o art. 224º da Diretiva IVA, que reproduziria a  doutrina do  Acórdão  C-141/96 do TJUE, já anteriormente acolhida pelo legislador nacional.

Esses requisitos, ainda antes da Diretiva IVA, eram essenciais ao exercício do direito à dedução e não meramente formais (Acórdão do STA de 6/5/2020, proc. 0Z337/12.1.BELRS). Sem eles, autorização prévia da administração fiscal ou acordo escrito de autofaturação, o direito à dedução não podia ser exercido.

Ora, a Decisão Arbitral pressupõe  a dedução poder ser concedida  ainda que não haja acordo escrito anterior às operações  entre o vendedor dos bens ou prestador dos serviços e o adquirente ou destinatário dos mesmos , que o adquirente não prove  que o transmitente ou prestador dos serviços tomou conhecimento da fatura e aceitou o seu conteúdo e  a menção “autofacturação” incorporada, bem como  integrar essas  operações na declaração anual de IRS ou IRC, todos requisitos substanciais  e não apenas formais do direito à dedução.

Bastariam a prova da realização material das operações tributáveis e a” boa fé” dos intervenientes,que, ao contrário do que a Decisão Arbitral considera provado, não foi reconhecida pela administração fiscal: esta, na verdade, abriu inquérito criminal com base nos factos relatados pela Inspeção tributária.

16- Segundo os nºs 29 a 33º das Alegações, a reciprocidade das operações em causa exigiria que a administração fiscal tivesse tido a iniciativa de no âmbito da ação inspetiva, deduzir oficiosamente ao IVA, ou seja, independentemente de qualquer iniciativa da Requerente nesse sentido, que viria a resultar da aplicação da taxa normal de 23 % à   contrapartida  dos serviços de abate que seria a transmissão dos couros dos animais.

Para a Requerente, cada fatura emitida documentaria simultaneamente   uma operações ativa ( prestações  de serviços de abate) e uma  operação passiva (a aquisição de couros aos respetivos alienantes ), pelo que o valor tributável das operações efetuadas deveria corresponder a essa diferença, à qual seria aplicável , caso fosse positiva, a taxa normal de IVA. Caso essa diferença fosse negativa, deveria ser a outra parte a liquidar o IVA.

Assim o exigiria o princípio da imparcialidade previsto no art. 55ºda LGT, que obriga a administração fiscal no procedimento inspetivo   a promover oficiosamente não só as correções desfavoráveis, mas também as correções favoráveis aos sujeitos passivos.

Essa pretensa obrigação da administração fiscal carece de base legal.

Caso inexista fatura ou a fatura apresentada contenha insuficiências formais que não sejam suscetíveis de pôr em causa o controlo do imposto, é do contribuinte e não da administração fiscal o ónus, conforme os casos, de apresentação da fatura omitida ou de correção dessas insuficiências.

Cabe apenas à administração fiscal o ónus, no âmbito do procedimento inspetivo, de solicitar ao contribuinte, dando-lhe um prazo razoável, a correção dessas inssuficências-mas não se as suprir, quando o contribuinte o não faça.

17- É certo que, segundo o Acórdão do TJUE de 15/7/2010, proc. C-368/09, os Estados membros não podem recusar o direito à dedução, sempre que os pressupostos materiais do direito à dedução estiverem preenchidos.

 

Tal só se verifica geralmente, no entanto, apenas  quando,  antes da decisão  da autoridade visada, o sujeito passivo apresente fatura retificada em que as deficiências da fatura inicial  sejam  supridas  nos termos do art.219º dessa Diretiva  , que assimila fatura qualquer documento ou mensagem que altera  a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca. Tal possibilidade de retificação é admitida internamente no nº 7 do art. 29º do CIVA, de acordo com o qual o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura.

Tal possibilidade de retificação da fatura é, na legislação nacional, possível dentro do prazo de caducidade do direito de liquidação previsto no nº 1 do art, 45º da LGT , independentemente do tempo decorrido após a realização das operações. O incumprimento do prazo de emissão da fatura referido no nº 1 do art. 36º do CIVA é passível de responsabilidade contra-ordenacional, mas não exclui o direito à dedução.  

Deste modo, quando a fatura inicial não contenha a informação necessária ao controlo da dedução, ,  nos termos previstos no art. 226º da Diretiva IVA, mas, até ao final do procedimento inspetivo, tal informação seja prestada , o direito  à dedução não pode ser recusado (Acórdão do TJUE C-516/14, de 15/9/2016). Também o não pode ser, de acordo com o Acórdão do TJUE C-518/154, quando a administração fiscal possa obter, no âmbito da mesma ação inspetiva , por  a eles ter acesso , os elementos necessários para suprir as deficiências de fatura passada na forma legal .

O exercício do direito de retificação da fatura resulta diretamente da lei. Não depende, assim, de qualquer prévia autorização da administração fiscal, nem a administração fiscal está obrigada a notificar o sujeito passivo para proceder à retificação dentro de dado prazo. É o sujeito passivo que o deve fazer.

Inversamente, tal direito não pode ser concedido quando a fatura seja retificada após a liquidação do IVA consequente do termo do procedimento inspetivo, como resulta do Acórdão do TJUE de 8/5/2013, proc. 271/12, em especial nº 35, tal  como em caso de inexistência de retificação ou  indícios fundados de falta de veracidade da fatura.

18- Também esse ser o único entendimento compatível, além de com o regime de prova legal consagrado na Diretiva IVA,  com as regras gerais do ónus de prova, expressas no art.º 342º do Código Civil  e no art.º 74º da LGT, apenas inaplicáveis, nos termos do nº 2 deste último,  quando os suportes dos documentos necessários à comprovação do direito à dedução já estiverem em poder da Administração  Tributária e o contribuinte indique  a sua localização durante o procedimento.

É de referir que cabe sempre ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA provar o preenchimento de todos requisitos para dela beneficiar (neste sentido, Acórdão do TJUE de 18/7/2013, proc. C-78/12).

As autoridades fiscais podem, assim, exigir ao próprio contribuinte as provas que considerem necessárias para apreciar se há ou não que conceder a dedução solicitada (Acórdão do TJUE de 29/9/2007, proc. C-149/05).

A prova do direito à dedução cabe a quem o invoca e não daquele contra quem esse direito é invocado (Acórdão do TJUE de 21/12/2018, proc. C-664/16, nº 42).

A posição da Decisão Arbitral que considera a dedução dever ser concedida apesar da inexistência de qualquer fatura ou do incumprimento dos requisitos formais mínimos que qualquer fatura deve revestir, bastando a “materialidade” das operações e a “boa-fé” dos intervenientes, é totalmente incompatível com essa jurisprudência.

19- É referido nessa Decisão Arbitral que a notória omissão de faturação ou auto-faturação  por banda dos apresentadores/detentores dos animais ou da Requerente não prejudicou a  realização das liquidações controvertidas, o que é um facto.

No entanto, o formalismo das faturas não tem apenas como função o controlo da situação tributária do adquirente dos bens ou destinatários dos serviços.

A obrigação de faturação tem por objetivo o controlo de todo o sistema do imposto, através de todo o universo dos sujeitos passivos, vendedores de bens, prestadores de serviços e adquirentes de bens e serviços que atuem na qualidade de sujeitos passivos, e não segregadamente através  de um segmento deles.

Visa o controlo, através dessa informação cruzada, não apenas de quem liquida o imposto como se quem o deduz, que, nas operações recíprocas, são ambas as partes.

A não emissão da faturação relativa aos apresentadores/detentores dos animais não dificultaria apenas o apuramento da situação tributária dos matadouros e seus clientes. Inviabiliza também uma confirmação segura  dos pressupostos dos regimes especiais eventualmente aplicáveis a  esses operadores económicos, assentes em  um volume de negócios máximo, ultrapassado o qual ficam sujeitos ao regime geral do IVA. Impossibilitaria também um real controlo das suas obrigações de IRS ou IRC, comum aos contribuintes que cumprem adequadamente os seus deveres de faturação.

Garantir apesar disso, em nome das vantagens de uma pretensa simplificação, tem por objetiva consequência, ou, pelo menos, comporta um sério risco de redução artificial do volume de negócios desses operadores, com uma regressão inadmissível ao ambiente que enquadrava a tributação indireta anteriormente ao IVA .  Na verdade, a complexidade (por vezes real, muitas vezes imaginária do imposto) seria um dos argumentos invocados contra a sua introdução em Portugal, mas continua a ser invocada, não obstante as medidas de simplificação tomadas, para justificar o incumprimento das obrigações mínimas de faturação.

20- Invoca a Requerente em abono da sua posição a jurisprudência do Acórdão do TJUE de 15/12/2017, proc C-374/16 e de muitos outros do TJUE, do STA e do CAAD, elencados entre os arts. 37º e 60º das Alegações, de acordo com a qual a dedução do IVA pago a montante deve ser concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais.

No entanto, a sua pretensão não tem qualquer suporte nesse Acórdão, em especial nos Considerandos nºs 35 a 38. Tal Acórdão limita-se a esclarecer que os Estados membros não podem exigir para efeitos do exercício do direito à dedução o cumprimento de outras formalidades das faturas para além das formalidades obrigatórias exigidas no art. 226º da Diretiva IVA, não obstante o artº. 273 da Diretiva IVA lhes permitir medidas adicionais de combate à evasão fiscal  Não admite a dispensa dessas formalidades obrigatórias.

Segundo o º 41 desse Acórdão, que respeita à interpretação teleológica do art 226.o da Diretiva IVA, a finalidade das menções que devem obrigatoriamente (não facultativamente) constar da fatura consiste em permitir às administrações fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA.

De acordo com essa jurisprudência, outras menções a constar das faturas para além das previstas no art. 226º, recusadas por esse art. 273º. não teriam por justificação assegurar o controlo do imposto e seriam de considerar desproporcionais.

Nessa medida, a alínea a) do  - A jurisprudência mais recente do TJUE (Acórdão de 21/11/2018, proc. C-664/16, nº s 42 a 45), admitira, aprofundando a jurisprudência anterior, que  a aplicação estrita do requisito formal de apresentar faturas pode colidir  com os princípios da  neutralidade e da proporcionalidade,  quando tiver por efeito  impedir de forma desproporcionada o  sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal correspondente às suas operações. Tal aconteceria, no caso concreto sobre o qual esse Acórdão se pronunciou identificado nos nºs 31 e 40, a propósito da eventual    incompatibilidade com o princípio da proporcionalidade da restrição do direito à dedução do IVA quando o sujeito passivo  não possa apresentar faturas, por, no momento da aquisição dos bens ou serviços não as poder exigir ao transmitente dos bens ou ao prestador dos serviços  , dado a  legislação nacional aplicável  reservar a obrigatoriedade de emissão das faturas às transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas a outros sujeitos passivos, qualidade que adquirente ainda não tinha a quando da aquisição ou a pessoas coletivas, com exclusão das pessoas singulares.

Essa  inexistência de obrigatoriedade de emissão de faturas quando as transmissões de bens ou prestações de serviços tiverem como adquirentes ou destinatários pessoas singulares não sujeitos passivos resultaria  do  exercício de uma faculdade prevista no art. 220º, 1), da Diretiva IVA por um Estado membro(tal faculdade não foi exercida pelo legislador nacional  , já que a alínea b) do nº 1 do art. 29º do CIVA, na redação do ar. 1º do DL nº 197/12, de 24/8,instituiu a obrigatoriedade da emissão de fatura, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços ser ou não sujeito passivo, ainda que fosse pessoa singular).

 Para já, tal jurisprudência está   bastante longe de suportar o enquadramento dos factos da Requerente: na verdade, não está em causa no presente processo arbitral uma pretensa a impossibilidade de a Requerente, matadouro, e contra-partes, . apresentadores/detentores dos animais apresentarem faturas, mas a opção de ambos as não elaborarem na forma legal.

A não elaboração de faturas na forma legalmente exigida resulta do modelo particular  de relacionamento entre a Requerente e os seus clientes, livremente escolhido por ambos,  mas que é típico de uma economia informal, não de um sistema fiscal moderno como o IVA.

22- Ainda assim, segundo esse Acórdão C-664/16, mesmo nos casos em que o sujeito  passivo estiver impossibilitado   de apresentar fatura por razões que não dependam da sua vontade, , o direito à dedução dependeria  de provas objetivas de que os bens e os serviços lhe foram efetivamente entregues ou prestados a montante pelos sujeitos passivos, para os fins das suas próprias operações sujeitas ao IVA, e, por causa de tais serviços, pagou efetivamente  IVA ( nº 45 do referido  Acórdão do TJUE C-664/16).

Estes elementos de prova poderiam incluir, citando ainda esse Acórdão, por exemplo, documentos na posse dos fornecedores ou prestadores de serviços a quem o sujeito passivo tenha adquirido bens ou serviços relativamente aos quais pagou imposto.

 

Nessa medida, qualquer aplicação dessa jurisprudência ao presente caso teria de ser considerada abusiva, já que não foi demonstrado qualquer pagamento de IVA, nem a documentação apresentada tem as caraterística referidas nesse Acórdão.

23- - Tal direito à dedução, no caso concreto, poderia ter sido exercido até ao termo da ação inspetiva pela Requerente, ou seja, ainda dentro do prazo de caducidade do direito de liquidação,   mediante o preenchimento cumulativo das seguintes condições:

a) Emissão de novas faturas em substituição das anteriormente emitidas refletindo corretamente a contrapartida real dos serviços de abate;

b) Posse de faturas elaboradas pela Requerente, nos termos do nº 11 do art. 36º do CIVA ou emitidas pelos apresentadores/detentores dos animais, refletindo a contrapartida real da transmissão de couros,

c) Apresentação de declaração periódica de substituição, nos termos do nº 3, iii), do art. 59º do CPPT, em que ao imposto liquidado referido na alínea a) seja deduzido o imposto efetivamente suportado mencionado na alínea b).

Não é admissível que decisão arbitral possa pôr em causa o preenchimento dessas condições legais, independentemente da maior ou menor dificuldade de que se possa revestir para o sujeito passivo o seu cumprimento, que teria sido evitada caso as faturas em causa tivessem sido processadas conforme a lei.

24- Resta afirmar que a Requerente poderia sempre repercutir a liquidação impugnada nos seus clientes, assim como estes, caso sejam, como a Requerente pretende, sujeitos passivos plenos, não isentos nem abrangidos por qualquer regime especial, podem deduzir o imposto suportado, não obstando ao facto o decurso do prazo de quatro anos referido no nº 1 do art. 98º do CIVA.

Tal resulta da jurisprudência do Acórdão do TJUE de 22/4/2019, proc. C-8/17, de acordo com a qual os arts.  63.°, 167.°, 168.°, 178.° a 180.°, 182.° e 219.° da Diretiva IVA, bem como o princípio da neutralidade fiscal, devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado* *Membro nos termos da qual, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, nas quais, na sequência de uma liquidação adicional, um acréscimo de IVA foi pago ao Estado e foi objeto de documentos retificativos das faturas iniciais vários anos após a entrega dos bens em causa, o benefício do direito à dedução do IVA é recusado com o fundamento de que o prazo previsto na referida legislação para o exercício deste direito se conta a partir da data de emissão das referidas faturas iniciais e expirou.*

Tal  Acórdão foi proferido na sequência de  reenvio prejudicial nos termos do art. 234º do TFUE deduzido pelo Supremo Tribunal de Justiça português relativa a um litígio em que um sujeito passivo do  IVA se recusou a pagar a outro sujeito passivo do IVA o imposto que este obrigatoriamente  lhe faturou , nos termos do nº 1 do art. 37º do CIVA, em virtude de liquidação adicional realizada pela administração fiscal  dentro do prazo legal de caducidade, invocando para essa recusa o nº  2 do art. 98º do CIVA, de acordo com o qual  ,sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respetivamente.

Consideraria esse Acórdão, no nº 41, invocando o Acórdão do TJUE de 21/3/2018, proc. C-533/16) que , embora, por força do artigo 167.° da Diretiva IVA, o direito à dedução do IVA se constitua no momento em que o imposto se torna exigível, o exercício do referido direito só é possível, em princípio, de acordo com o artigo 178.° da Diretiva IVA, a  partir do momento em que o sujeito passivo está na posse de uma fatura.

Por outro lado, passando para o direito interno, nos termos do art. 329º do CC, o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.

Na sequência do desfecho do reenvio prejudicial, o Acórdão do STJ de 5/7/2018, proc, 10290/13.3YPRT.L1,S1, consideraria o prazo de caducidade desse nº 2 do art. 98º apenas se iniciaria quando a a autora recebeu os avisos de lançamento enviados pela Ré e destinados a retificar as faturas anteriormente emitidas, pois só a partir de então está em condições de exercer o direito à dedução.

Não se vislumbra, assim, obstáculo legal a que a Requerente faturasse , caso quisesse , aos seus clientes pelo valor total os serviços prestados, emitindo novas faturas em substituição das anteriores e que os clientes  que sejam sujeitos passivos  não isentos ou isentos com direito à  o incluam em futuras declarações periódicas,  abatendo globalmente o  montante do imposto suportado do montante total de imposto incidente sobre a totalidade das operações tributáveis que efetuaram. Do mesmo modo, em caso de o imposto repercutido se mostre de cobrança duvidosa ou incobrável, seria aplicável a regularização prevista no art. 78º - A do CIVA.

Ao não utilizar esse procedimento que legalmente lhe assistia e que lhe permitiria satisfazer cabalmente as suas pretensões, caso houvesse fundamento para isso, é de admitir que a Requerente não estava, nem está, não fosse a Decisão Arbitral. em condições de deduzir o imposto e consequentemente obter o seu reembolso, que agora lhe é concedido, não obstante o incumprimento dos requisitos mínimos de faturação.

No entanto, a “pratica comum do sector”, ainda que a Requerente a tivesse comprovado por outros meios além do depoimento dos seus colaboradores, não é fonte de direito fiscal e não pode ser oposta às consequências legais do incumprimento reiterado e generalizado das obrigações previstas no CIVA.

Resta concluir que a generalização da doutrina da presente Decisão Arbitral, caso porventura se venha a verificar, com o consequente regresso em toda a plenitude, ao chamado “abate por couro”, não seria um progresso, no sentido de um maior simplicidade e modernização do sistema fiscal, em consonância com a “lei do sector”. Atrevo-me a dizer que seria uma regressão perante os exigentes padrões definidos pelas organizações internacionais de que Portugal faz parte para uma fiscalidade moderna e eficiente. As práticas identificadas reportam-se geralmente a padrões de comportamento menos exigentes, a sistemas estatísticos menos fiáveis e a sistemas económicos social e economicamente menos desenvolvidos, em parte por uma economia paralela ou, se se quiser, não oficial, de dimensão desproporcionada.

 

O árbitro

(António de Barros Lima Guerreiro)