Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 15/2021-T
Data da decisão: 2021-09-24  IRC IVA  
Valor do pedido: € 175.254,30
Tema: IRC e IVA. Métodos Indiretos. Incompetência Material.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o tribunal arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Fernando Matos e José Nunes Barata (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o tribunal Arbitral, constituído em 25 de maio de 2021, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., doravante “Requerente”, titular do número de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., ...-..., ..., Alcobaça, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), na redação vigente, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

 

A Requerente visa a anulação dos atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e juros compensatórios inerentes, reportados ao ano 2017, no valor parcial de € 175.254,30, com as legais consequências, nomeadamente quanto ao direito a juros indemnizatórios relativos ao valor pago de IRC (de € 5.001,29) e a indemnização por garantia indevidamente prestada na quantia remanescente, nos termos dos artigos 53.º, 43.º e 100.º  da Lei Geral Tributária (“LGT”) e 171.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). Como objeto do pedido, a Requerente identifica ainda a decisão do pedido de revisão da matéria coletável (artigo 91.º da LGT), meramente confirmativa.

 

A pretensão da Requerente alicerça-se nos seguintes vícios, de índole formal e substantiva:

a)            Insuficiente fundamentação dos atos de liquidação, ao abrigo do disposto nos artigos 77.º da LGT e 268.º, n.º 3 da Constituição;

b)           Erro nos pressupostos no recurso à aplicação de métodos indiretos, que constituem um regime subsidiário à avaliação direta (artigo 85.º, n.º 1 da LGT), porquanto:

i.             In casu, não se verifica a inexistência ou insuficiência de elementos da contabilidade, representativa da realidade factual;

ii.            Ad cautelem, se existisse uma anomalia, a AT não fez a prova que lhe competia da impossibilidade de reconstituição da contabilidade do sujeito passivo e de quantificação direta (artigo 87.º, n.º 1, b) da LGT);

c)            Mesmo que se admitisse o recurso a métodos indiretos, a quantificação da matéria tributável não teve em conta os elementos previstos no artigo 90.º da LGT, nem os parâmetros adequados à atividade e circunstâncias da Requerente, pelo que enferma de erro;

d)           Falta de demonstração, pela AT, do pressuposto de imputação do retardamento da liquidação do imposto ao sujeito passivo geradora de vício autónomo de ilegalidade dos juros compensatórios (artigo 35.º LGT).

 

                A Requerente juntou 39 documentos e requereu a produção de prova testemunhal, arrolando 3 testemunhas.

 

Em 8 de janeiro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, em 11 de janeiro de 2021.

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos processuais e procedimentais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação em 5 de maio de 2021, não se opuseram (artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 25 de maio de 2021.

 

A Requerida, notificada para o efeito, apresentou Resposta em 28 de junho de 2021, na qual se defendeu por exceção e por impugnação, tendo junto o processo administrativo (“PA”).

 

Na defesa por exceção, invoca a incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria, na parte, aqui impugnada, em que os atos tributários derivam da fixação da matéria tributável por métodos indiretos de avaliação, em virtude da exclusão da jurisdição arbitral expressa pelo artigo 2.º, alínea b) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

Por impugnação, declina o vício formal, entendendo que o conteúdo da fundamentação dos atos tributários é claro, suficiente e congruente e foi percecionado pela Requerente. Refuta também a alegação de ausência de pressupostos para o recurso a métodos indiretos, considerando que os mesmos se encontram reunidos. No tocante ao excesso de quantificação, argui que a Requerente não o demonstrou, limitando-se a invocar a não concordância com a aplicação do rácio. Por fim, sobre os juros compensatórios, sublinha que a Inspeção Tributária verificou o incumprimento, pela Requerente, de preceitos fiscais e que esta não logrou afastar a culpa.

 

A Requerida conclui pela procedência da exceção de incompetência e, caso assim não se entenda, pela improcedência do pedido. 

 

Notificada para exercer o contraditório relativamente à matéria de exceção, a Requerente pronunciou-se no sentido de que ao tribunal arbitral apenas é vedado conhecer dos atos de fixação da matéria tributável por métodos indiretos e já não do ato definitivo de liquidação. Deste modo, entende que a exceção dilatória suscitada pela Requerida deve improceder e o tribunal arbitral considerar-se competente.

 

Por despacho de 6 de setembro de 2021, o tribunal arbitral decidiu dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, por desnecessidade, atenta a manifesta procedência da matéria de exceção, e fixou a data de prolação da decisão arbitral em 24 de setembro de 2021, advertindo a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até essa data.

 

II.            SANEAMENTO – EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA MATERIAL

 

A pronúncia jurisdicional deve conhecer “em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica” (v. artigo 608.º, n.º 1 do Código de Processo Civil – “CPC”, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

Neste âmbito, dispõe o artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – “CPTA” (aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT) que a competência e o âmbito da jurisdição são de “ordem pública, e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, pelo que se impõe a apreciação, em primeiro lugar, da questão prévia suscitada pela Requerida, de incompetência deste Tribunal Arbitral  por estar em causa a apreciação de atos tributários derivados da fixação da matéria tributável por métodos indiretos de avaliação.

 

1.            MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevância para a decisão da exceção de incompetência material, importa atender aos seguintes factos, que se julgam provados com base na análise crítica da prova documental junta aos autos por ambas as Partes e nas posições por estas assumidas:

 

A.           A A..., LDA., aqui Requerente, é uma sociedade de direito português, que tem por objeto a “[i]ndústria de moldes para plástico e injeção, nomeadamente através de soluções inovadoras na engenharia de moldes e ferramentas especiais. Prestação de serviços de consultoria na área dos moldes. Comércio de produtos relacionados com a atividade desenvolvida.” – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) constante do PA.

B.            A AT efetuou uma inspeção à Requerente, ao abrigo da Ordem de Serviço OI2019..., abrangendo o período de tributação de 2017, de âmbito parcial, IVA e IRC, com o objetivo de controlo declarativo – cf. RIT.

C.            Na sequência deste procedimento, foi elaborado o projeto de Relatório com proposta de correções aritméticas e por métodos indiretos, tendo a Requerente exercido o direito de audição por escrito, aceitando a parte das correções aritméticas, mas opondo-se às correções por métodos indiretos, por considerar não estarem reunidos os respetivos pressupostos e ocorrer erro de quantificação – cf. documento 24 junto pela Requerente.

D.           O projeto converteu-se no Relatório da Inspeção Tributária (“RIT”), cujo teor se dá por reproduzido, que manteve todas as correções propostas. Refere o RIT que a Requerente “em sede de apuramento do resultado tributável praticou omissões e inexatidões, não foram passíveis de quantificação direta. Com recurso a métodos indiretos propõe-se alteração ao resultado tributável […]. Pela omissão de rendimentos, cujo montante foi determinado com recurso a métodos indiretos, apurou-se IVA não liquidado […]” – cf. RIT.

E.            E conclui [o RIT] pelas seguintes correções:

i.             Aritméticas, de IVA, no valor de € 97.688,49 (imposto a pagar), que a Requerente aceitou e que não constituem o objeto da presente ação arbitral;

ii.            Com recurso a métodos indiretos, resultando em:

             IRC – na importância de € 861.080,14 de ajustamento à matéria coletável com € 654,50 de imposto a pagar, e

             IVA – no montante de € 147.722,64 de imposto a pagar.

F.            A Requerente apresentou pedido de revisão da matéria coletável em 20 de junho de 2020, no qual contesta a verificação dos pressupostos de aplicação de métodos indiretos, bem como a quantificação daí resultante – cf. documento 23 junto pela Requerente.

G.           O pedido de revisão foi indeferido, por despacho do Senhor Diretor de Finanças da Direção de Finanças de Leiria, de 27 de julho de 2020, atenta a falta de acordo (ata n.º 9/2020), conforme notificado pelo Ofício SPGAI-...-2020, com a mesma data – cf. PA.

H.           Nestes termos, mantiveram-se as correções preconizadas no RIT com a consequente emissão dos correspondentes atos de liquidação de IRC, de IVA e juros compensatórios associados, referentes ao ano 2017, no valor total de € 273.237,40, cuja data limite de pagamento foi fixada em 8 de outubro de 2020 (IVA) e 9 de novembro de 2020 (IRC). Os referidos atos tributários foram emitidos com os seguintes números:

i.             Liquidações de IVA n.ºs 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020... e 2020...;

ii.            Liquidação de IRC n.º 2020...;

iii.           Liquidações de juros compensatórios n.ºs 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020...; 2020..., 2020...; 2020 ...

– cf. documentos 1 a 22 juntos pela Requerente.

I.             Do valor total de imposto (IRC e IVA) e juros compensatórios a pagar, de € 273.237,40, a Requerente aceitou € 97.983,10 relativo às correções aritméticas, não se conformando, porém, com o remanescente, de € 175.254,30, relativos às correções por recurso a métodos indiciários, pelo que apresentou junto do CAAD, em 6 de janeiro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo, sendo objeto da ação as liquidações parciais no valor de € 175.254,30 provenientes da aplicação de métodos indiretos de avaliação – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

 

2.            A INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL ARBITRAL PARA APRECIAR E DECIDIR PRETENSÕES RELATIVAS A ATOS DE LIQUIDAÇÃO RESULTANTES DA APLICAÇÃO DE MÉTODOS INDIRETOS

 

A Requerida suscitou na sua Resposta a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria, por considerar que as pretensões relativas a atos tributários que provenham da fixação da matéria tributável por métodos indiretos de avaliação estão excluídas da jurisdição arbitral, atento o acordo com o disposto na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, adiante “Portaria de Vinculação”, que dispõe nos seguintes termos:

 

“Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam -se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

[…]

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;”

 

A questão a decidir é, assim, antes de mais, a de saber se o Tribunal Arbitral é materialmente competente para o conhecimento do pedido de pronúncia objeto da presente ação. Como refere a decisão arbitral n.º 76/2012-T, de 29 de outubro de 2012, é pacífico que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, como expresso no artigo 18.º, n.º 1 da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro) que, na ausência de regulação pelo RJAT, é aplicável por analogia .

 

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD está limitada, num primeiro patamar, pelo elenco de pretensões que consta do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, que compreende “[a] declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” (alínea a)) e “[a] declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais” (alínea b)). Nesta hipótese normativa cabem os pedidos de invalidação dos atos tributários, sejam eles provenientes de avaliação direta ou da fixação da base de incidência por métodos indiretos de avaliação.

 

Porém, num segundo patamar, verifica-se uma delimitação negativa da vinculação da AT à jurisdição arbitral, cujo recorte visa especificamente os atos de determinação da matéria coletável/tributável por métodos indiretos e a respetiva decisão do procedimento de revisão (v. citada alínea b) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação).

 

Como escreve Jorge Lopes de Sousa, “a Administração Tributária afastou essa possibilidade ao excluir expressamente da sua vinculação àqueles tribunais as «pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão» [alínea b) do artigo 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março]” (v. Guia da Arbitragem Tributária, Coord.: Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina,  pp.138-139).

Neste contexto, afirma a decisão arbitral n.º 76/2012-T, de 29 de outubro de 2012, que “nem foi o legislador que excluiu a determinação da matéria colectável por métodos indirectos do âmbito da jurisdição arbitral, mas sim a própria Administração, através de Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois esta não é um acto legislativo, mas sim de um acto de natureza regulamentar, praticado por membros do Governo ao abrigo da sua competência administrativa, no caso a prevista na alínea c) do art. 199.º da CRP, e não da competência legislativa, indicada no artigo anterior.”

 

Neste ponto, a jurisprudência arbitral maioritária, que se acompanha, considera que esta exclusão abrange os atos tributários de liquidação que materializam a decisão do procedimento de revisão, externando-a na esfera do sujeito passivo, pois estes limitam-se a projetar os efeitos dessa decisão precedente (v., entre outras, as decisões arbitrais n.ºs 17/2012-T, de 14 de maio de 2012; 52/2012-T, de 22 de outubro de 2012; 70/2012-T, de 31 de outubro de 2012; 175/2013-T, de 16 de janeiro de 2013; 310/2014-T, de 26 de novembro de 2014; 324/2016-T, de 27 de fevereiro de 2017; 359/2017-T, de 17 de dezembro de 2017; 544/2018-T, de 7 de julho de 2019 e 112/2020, de 20 de janeiro de 2021).

 

Entendimento distinto, foi, no entanto, sufragado no processo arbitral n.º 694/2014-T, de 15 de abril de 2015, e nas posições doutrinárias de Carla Castelo Trindade (v. “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, Almedina, 2015, pp. 108-112) e de Francisco Geraldes Simões (v. “A Arbitrabilidade dos Atos de Liquidação por Métodos Indiretos”, in revista Arbitragem Tributária n.º 1, Coord.: Nuno Villa-Lobos-Tânia Carvalhais Pereira, 2014, pp. 18-21).

 

Os autores citados defendem a arbitrabilidade dos atos de liquidação resultantes da fixação da matéria coletável por métodos indiretos, numa interpretação que cinge a exclusão da jurisdição arbitral às realidades sujeitas aos mecanismos de fixação da matéria tributável previstos no artigo 90.º da LGT, ou seja, à discussão da decisão do procedimento de revisão a que se refere os artigos 91.º a 94.º da LGT, regime cuja finalidade entendem ter sido apenas a de impedir que a jurisdição arbitral passasse a constituir um meio de resolução de litígios alternativo ao procedimento de revisão, mantendo-se, desta forma a impugnabilidade arbitral do ato (definitivo) de liquidação. Em síntese, procedem a uma distinção entre, por um lado, a decisão do procedimento de revisão e, por outro, o ato tributário de liquidação propriamente dito. A primeira estaria excluída da jurisdição arbitral, a segunda não.

 

Não é esta, contudo a solução que aqui se preconiza, pelas razões expendidas nas decisões arbitrais atrás enumeradas. Conforme fundamenta a decisão arbitral n.º 324/2016, que apreciou idêntica questão, são diversos os argumentos que militam no sentido da aplicabilidade da exclusão ínsita na alínea b) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação aos atos tributários (de liquidação) e não apenas aos atos de determinação da matéria coletável/tributável com recurso a métodos indiretos. Refere-se neste aresto que:

 

“Em primeiro lugar, nos termos do art. 62º, nº 1, do Código de Procedimento e Processo Tributário «Em caso de fixação ou a revisão da matéria tributável dever ter lugar, por procedimento próprio, a liquidação efetua-se de acordo com a decisão do referido procedimento, salvo em caso de violar manifestamente competências legais».

É o caso da fixação da matéria tributável por métodos indiretos cuja revisão está sujeita ao regime específico dos artigos 91º e seguintes da Lei Geral Tributária.

Assim, salvo em caso de manifesta violação das competências legais, a decisão de fixação da matéria tributável por métodos indiretos determina o conteúdo da subsequente liquidação, fazendo sentido submeter ao mesmo regime processual os atos de fixação da matéria tributável por métodos indiretos, propriamente ditos e os atos tributários de liquidação em que a matéria tributável tenha sido determinada com base em avaliação indireta, uma vez que o essencial da matéria sobre que vai incidir a pronúncia arbitral é, em ambos os casos, idêntica.

[…]

No preâmbulo da portaria em questão [trata-se da Portaria de Vinculação] pode ler-se que “com a presente portaria, a administração fiscal vincula-se também à jurisdição do CAAD (…) associando-se a este mecanismo de resolução alternativa de litígios e nos termos e condições aqui estabelecidos, atendendo à especificidade e valor das matérias em causa”.

Para além do valor, o critério de vinculação da portaria consistiu, assim, em atender à especificidade das matérias em causa.

Parece pois, que o pensamento legislativo foi a da vinculação atendendo ao critério substantivo das matérias a apreciar pelo tribunal, excluindo da vinculação as pretensões relativas a ato de determinação da matéria coletável ou da matéria tributável  por métodos indiretos, quer a pretensão incida diretamente sobre o ato administrativo de fixação, quer incida indiretamente através da impugnação do subsequente ato de liquidação em que a matéria coletável ou matéria tributável tenha sido determinada por métodos indiretos.

Entendemos, assim, que a requerida não se encontra vinculada à jurisdição do CAAD quanto a esta matéria.”

 

Adicionalmente, como assinala a decisão do processo n.º 17/2012-T:

 

“A liquidação, em sentido estrito, é a última fase do procedimento administrativo de liquidação tributária, regulado nos artigos 59.º a 64.º do CPPT, constituído por uma série de actos destinados a obter um resultado jurídico final, o montante de imposto a entregar nos cofres do Estado [seguindo o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 0188/09, de 9 de setembro de 2009].

 

Portanto, a liquidação hoc sensu é a fase que se traduz na aplicação da taxa de imposto à matéria colectável já determinada, não sendo os actos preparatórios autonomamente impugnáveis, podendo sim ser postos em causa quando da impugnação do acto definitivo, final, em obediência ao princípio da impugnação unitária expresso no artigo 54.º do CPPT [Este princípio comporta algumas excepções, podendo os actos de determinação da matéria tributável ser autonomamente impugnáveis. Cfr.Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, págs. 140 a 191].

No caso da determinação da matéria tributável por métodos indirectos a lei prevê um procedimento próprio, efectuando-se a liquidação de acordo com a decisão do referido procedimento – cfr. n.º 1 do artigo 62.º do CPPT.

Ademais, constitui condição de procedibilidade da acção impugnatória do acto (final) de liquidação de imposto por aplicação de métodos indirectos a prévia submissão de um pedido de revisão da matéria tributável, que tem efeitos suspensivos da liquidação, cujo procedimento está contido nos artigos 91.º a 94.º do CPPT.

Nestas circunstâncias, constitui condição essencial de impugnação do acto de liquidação que tenha previamente lugar o procedimento de revisão da matéria tributável, desencadeado pelo contribuinte, que culminará numa decisão, sendo o acto de liquidação daí decorrente uma mera consequência do mesmo, desempenhando apenas uma função concretizadora. Aliás, a epígrafe do artigo 62.º do CPPT refere-se-lhe como «acto de liquidação consequente».

 

Retomando o caso concreto, o legislador exclui ex professo da jurisdição arbitral, pois a ela não se vincula a Autoridade Tributária e Aduaneira, as «pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão».

 

Este procedimento de revisão visa, segundo o artigo 92.º do CPPT, o estabelecimento de um acordo, nos termos da lei, quanto ao valor da matéria tributável a considerar para efeitos de liquidação. Havendo acordo, o tributo será liquidado com base na matéria tributável acordada. Na falta de acordo, a Autoridade Tributária e Aduaneira decide de acordo com o seu prudente juízo.

Ou seja, o acto de liquidação do imposto é a consequência directa da decisão do procedimento de revisão, que constitui seu fundamento e que está excluída desta jurisdição.

Tal acto de liquidação substantivamente nada acrescenta, limitando-se a materializar a decisão do procedimento, a concretizar o valor de imposto que deriva aritmeticamente desta decisão e a externá-la, para que esta possa produzir os efeitos jurídicos da relação jurídico-tributária constituída.

Ora, se está vedada a apreciação de pretensões que se refiram à decisão do procedimento de revisão, cujo objecto é o da determinação da matéria tributável por métodos indirectos, e se a causa de pedir da presente acção é precisamente o excesso de quantificação dessa matéria (cerne do próprio procedimento de revisão), então dúvidas não restam de que a apreciação do acto de liquidação, com fundamento nesse excesso de quantificação, está excluída da jurisdição deste tribunal.

Aliás, se assim não se entendesse, uma vez que os fundamentos e causa de pedir do pedido de pronúncia arbitral respeitam precisamente ao excesso de quantificação, perfilhar a posição da Requerente significaria permitir, através da referida apreciação do acto de liquidação, o julgamento de uma pretensão relativa “a actos de determinação da matéria colectável (…) por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão” expressamente vedada pela Portaria de Vinculação, em concreto pelo seu artigo 2.º, alínea b).

A quantificação da matéria tributável por métodos indirectos constitui o objecto da decisão do procedimento de revisão que está excluída da jurisdição arbitral tributária, nos termos da alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-B/2011, de 22 de Março.

O acto de liquidação de imposto corporiza tal decisão, concretizando-a, e não pode ser objecto de apreciação individualizada, pois não reveste autonomia relativamente àquela.

 

Por outro lado, considera a decisão arbitral proferida no processo n.º 76/2012-T, de 29 de outubro de 2012, a respeito da não equiparação dos atos de liquidação respeitantes a correções de preços de transferência a atos tributários de liquidação por recurso a métodos indiretos, que “a eventual explicação para a opção governamental de exclusão do âmbito da jurisdição arbitral das questões relativas à determinação da matéria tributável através de métodos indirectos, não estará na existência de uma margem de subjectividade, mas sim no facto de para apreciação dessas questões já se prever no âmbito do procedimento tributário um procedimento especial com características essencialmente semelhantes às que enformam os tribunais arbitrais colectivos no âmbito da arbitragem voluntária, em que é indicado um perito pelo contribuinte e outro pela administração tributária e há intervenção de um terceiro perito independente de nomeação pelas partes (arts. 91.º a 93.º da LGT).”

 

À face do exposto, interessa reter que:

 

a)            O teor da alínea b) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, que exceciona a vinculação da AT à jurisdição arbitral em relação aos atos de determinação da matéria coletável e tributável por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão dessa fixação;

b)           O procedimento de revisão pode ter por objeto, quer os pressupostos de aplicação de métodos indiretos, quer a quantificação e respetivos critérios (contrariamente ao que sucedia no anterior regime do Código de Processo Tributário que apenas o admitia relativamente à vertente da quantificação) como resulta do cotejo dos artigos 86.º, n.º 5 e 91.º, n.º 14 da LGT, dupla faculdade que foi aqui exercida pela Requerente, cujo pedido de revisão da matéria tributável (tal como a presente ação arbitral) tem, simultaneamente, por causa de pedir, o erro nos pressupostos na aplicação de métodos indiretos e o erro na quantificação;

c)            A decisão desse pedido de revisão, dotada de definitividade, tem como ato (meramente) consequente o ato de liquidação, sem caráter inovatório, limitando-se a concretizar a operação aritmética de multiplicação da taxa de imposto à matéria tributável fixada no procedimento de revisão e projetando os efeitos da decisão do procedimento na esfera do sujeito passivo (mediante a criação da correspondente obrigação prestativa).

 

                Nestes termos, permitir a impugnação arbitral de atos de liquidação sequentes à aplicação de métodos indiretos com fundamentos que são objeto do pedido de revisão (pressupostos de aplicação de métodos indiretos e erro de quantificação) sobre os quais foi proferida a decisão pelo órgão competente, equivale a sindicar essa decisão [do procedimento de revisão], a qual está, de forma expressa, vedada pela Portaria de Vinculação.

 

Assim, segundo entendemos, tais atos de liquidação apenas poderiam ser arbitráveis em relação a vícios formais próprios ou na medida em que fossem desconformes à decisão do procedimento de revisão (por ex. por erro de cálculo), circunstâncias que não se suscitam in casu, e não com fundamentos que ponham em causa a decisão do procedimento, pois como referido pretensões relativas a essa decisão foram excluídas ex professo pela AT da sua sujeição à jurisdição arbitral.

 

Pelos motivos expostos, constata-se a falta de vinculação da AT ao tribunal arbitral de que deriva a impossibilidade da eficácia subjetiva do julgado, caso viesse a ser proferido por este tribunal nas matérias excluídas, consubstanciando falta de jurisdição, delimitada em função da matéria, pelo que geradora da incompetência material deste tribunal arbitral (v. artigos 2.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1 do RJAT conjugados com a alínea b) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação) .

 

Julga-se, nestes termos, verificada a exceção de incompetência material que constitui uma exceção dilatória, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea a) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.  As exceções dilatórias obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduzem à absolvição da instância (v. artigo 576.º, n.º 2) do CPC, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), sem prejuízo de a Requerente poder beneficiar do disposto no artigo 24.º, n.º 3 do RJAT, nomeadamente propondo uma ação, na espécie de impugnação judicial, nos tribunais tributários, se verificados os correspondentes pressupostos.

 

V.           DECISÃO

 

À face do exposto, julga-se procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, com a consequente absolvição da Requerida da instância. 

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 175.254,30 correspondente ao montante das liquidações de IVA, de IRC e de juros que se pretende anulado, indicado pela Requerente e não contraditado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerente, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de setembro de 2021

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Fernando Matos

José Nunes Barata