Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 140/2021-T
Data da decisão: 2021-09-10  ISV  
Valor do pedido: € 56.317,64
Tema: ISV - Tempestividade do pedido (artigo 78.º, n.º 1, da LGT); Componente ambiental do ISV em veículos usados provenientes da União Europeia; Juros em caso de desconformidade com o Direito da União.
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Sumário:

1.            Porque a Administração está simultaneamente vinculada a menos Direito do que os Tribunais (na medida em que a Constituição e o Direito da União que imponham soluções diversas da lei não lhe são acessíveis), e a mais Direito do que os Tribunais (na medida em que está sujeita a circulares e normas fundadas no poder hierárquico que não vinculam os Tribunais), o que é o Direito para a Administração não é o mesmo que é o Direito para os Tribunais. Consequentemente, o que é erro de Direito para a Administração difere do que é erro de Direito por parte da Administração para os Tribunais. Isso tem implicações sobre o preenchimento dos requisitos para suscitar a revisão oficiosa dos actos de liquidação (artigo 78.º, n.º 1, da LGT).

2.            Tendo o TJUE proferido decisão sobre a incompatibilidade da legislação nacional com o Direito da União, o juízo que releva para a avaliação de mérito não é o do Tribunal nacional (e, portanto, a sua ponderação do Direito aplicável e dos argumentos das partes no processo nacional, que passa a constituir obiter dicta), mas sim o juízo do TJUE (e, portanto, a ponderação que este fez do Direito aplicável e dos argumentos das partes no processo comunitário).

3.            Uma vez que o Tribunal Constitucional suscitou perante o TJUE a questão prejudicial da conformidade do tratamento diferenciado das componentes cilindrada e ambiental do ISV com o Direito da União e uma vez que o TJUE se pronunciou sobre essa mesma questão (não em sede de reenvio, mas em sede de acção por incumprimento), o juízo de prognose sobre as decisões de ambos é suficiente para substituir a avaliação de mérito das questões de constitucionalidade material suscitadas pela AT.

4.            A AT também suscitou uma questão de violação do princípio do livre acesso aos tribunais por causa do sistema legal de recursos de decisões arbitrais. Tal pretensão de a AT sindicar a conformidade constitucional das normas legais é contraditória com a sua manifestada convicção, que se tem por correcta, de estar vinculada ao cumprimento das normas legais, mesmo quando elas são postas em causa perante parâmetros normativos de grau superior. Ou a AT se reserva a possibilidade de sindicar, perante normas de hierarquia superior, as normas legais que se lhe aplicam, ou não.

5.            Desde a alteração do artigo 43.º da LGT resultante da Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro (que aditou uma nova alínea d) ao seu n.º 3), a liquidação de prestações tributárias fundadas em normas supervenientemente julgadas ou declaradas inconstitucionais ou ilegais gera pagamento de juros indemnizatórios pela AT, mas só a partir do trânsito em julgado da respectiva decisão. 

 

DECISÃO ARBITRAL

I.             RELATÓRIO

 

1.            No dia 4 de Março de 2021, A...Unipessoal, Lda., com o NIF..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa (Requerente), apresentou junto do CAAD impugnação da liquidação do Imposto sobre Veículos (ISV) dando origem à constituição do presente tribunal arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).

2.            Pretendia que fosse declarada a ilegalidade e se procedesse à consequente anulação parcial dos actos de liquidação de ISV – que ascenderam ao montante total de € 283 139,74 – no que se refere a uma parcela da componente ambiental que entendia indevidamente paga (que fixava no montante de € 56 317,54) pela introdução em Portugal, nos anos de 2016 e 2017, de 90 veículos usados, com primeira matrícula de outros Estados-membros da União Europeia.

3.            Nomeado o presente árbitro, que aceitou a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 25 de Maio de 2021.

4.            Seguindo-se os normais trâmites, em 26 de Junho a AT juntou o processo administrativo (PA) e apresentou resposta em que, além de defesa de mérito, suscitou a excepção de caducidade do direito de acção e questões de constitucionalidade.

5.            Em 14 de Julho foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a prescindir da produção de alegações e a fixar o dia 1 de Setembro como data para a pronúncia da decisão arbitral. 

6.            Em 22 de Julho, invocando o direito ao contraditório, a Requerente entendeu pronunciar-se sobre excepção suscitada pela Requerida.

7.            No dia 26 de Agosto foi proferido Despacho a admitir a pronúncia da Requerente, a suspender a instância até à prolação da decisão do Tribunal de Justiça no processo de infracção instaurado pela Comissão contra Portugal em 12 de Fevereiro de 2020 (https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/PT/IP_20_210) – que a imprensa divulgou estar prevista para o dia 2 de Setembro –, e a fixar como nova data para a decisão o dia 1 de Outubro.

8.            No dia 2 de Setembro foi divulgada a referida decisão do Tribunal de Justiça (https://curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf?docid=245564&text=&dir=&doclang=PT&part=1&occ=first&mode=lst&pageIndex=0&cid=5192026).

9.            Nesse mesmo dia foi proferido novo despacho declarando finda a suspensão da instância e antecipando para o dia 10 de Setembro a nova data para a decisão.

 

 

II.            PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

10.          O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

11.          As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

12.          Na sua Resposta, a AT invocou uma excepção de “caducidade do direito de ação” com fundamento, designadamente, em que

“além do prazo de 120 dias para a apresentação do pedido de revisão oficiosa das liquidações, por iniciativa do sujeito passivo, se encontrar claramente ultrapassado, por outro lado, à data dos factos tributários, a AT aplicou aos mesmos a lei aplicável em vigor, em estrita observância do princípio da legalidade, não existindo, pois, erro imputável aos serviços que fundamente a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.”

 

13.          A redacção do invocado n.º 1 do artigo 78.º da LGT é a seguinte:

“A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”

14.          Como resulta da letra da lei, o legislador terá pretendido criar uma bifurcação entre as revisões suscitadas por iniciativa do sujeito passivo, circunscritas ao prazo de reclamação administrativa (120 dias), mas com fundamento em qualquer ilegalidade, e as revisões suscitadas por iniciativa da administração tributária, que beneficiariam de um duplo prazo alargado, embora apenas com fundamento em erro imputável aos serviços: quatro anos após a liquidação, e sem limite de tempo se o tributo ainda não tivesse sido pago. Traduzido para linguagem comum, o regime seria este: se a AT cometesse alguma ilegalidade contra o sujeito passivo, este teria de pedir a revisão do acto tributário num prazo máximo de 4 meses; se a AT errasse a favor do sujeito passivo , a AT poderia corrigir esse erro nos 4 anos seguintes. 

15.          Parece relativamente claro que é isso que está na lei, e foi isso que a AT durante muito tempo defendeu (a título de exemplo, veja-se, no Relatório do Acórdão do STA de 14 de Março de 2012, proferido no processo n.º 01007/11, a transcrição das razões que tipicamente esgrimia ).

16.          Fosse porque um tal regime dual era excessivamente desequilibrado, fosse porque havia lógica e justiça em admitir que a correcção dos erros pela AT, durante os períodos alargados que dispunha, também devia favorecer os contribuintes (afinal, a letra da lei não distinguia...), a jurisprudência introduziu um “efeito nivelador” na norma:  como exemplarmente se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Abril de 2009, proferido no processo n.º 065/09, não atribuindo ao legislador más intenções mas apenas má técnica,

“Na redacção infeliz do n.º 1 deste artigo distinguem-se dois tipos fundamentais de revisão dos actos tributários, com iniciativas, prazos e fundamentos autónomos:

– por iniciativa sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade;

– por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

Porém, apesar da aparente repartição dos dois tipos de revisão do acto tributário em função da «iniciativa» do procedimento, constata-se que no também infeliz n.º 7 se faz referência a «pedido do contribuinte» para realização de «revisão oficiosa».

«Revisão oficiosa» é a realizada por iniciativa dos serviços, sendo esse o alcance natural da expressão «oficiosa» na terminologia jurídica. Mas, é inequívoco pela referência a «pedido do contribuinte» «para a sua realização» que, afinal, essa revisão não tem de ser de iniciativa da administração tributária, podendo ser assentar também em iniciativa do contribuinte.

Das infelizes redacções dos n.ºs 1 e 7, conclui-se assim, que os dois tipos fundamentais de revisão do acto tributário são afinal os seguintes:

– há um em que a revisão é pedida pelo contribuinte no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade;

– há outro em que a revisão é da iniciativa dos serviços ou é pedida pelo contribuinte, que se denomina sempre «revisão oficiosa», que pode ser efectuada no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.” 

 

17.          Essa jurisprudência mantém-se plenamente actual: nos Acórdãos do STA de 13 de Julho e de 3 de Fevereiro de 2021, proferidos, respectivamente, nos processos

0111/18.6BEPNF e 02683/14.5BELRS 0181/18 escreveu-se (destaques aditados) o seguinte:

No mais recente (de 13 de Julho de 2021):

“para além do pedido de revisão a  deduzir no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, nos termos do art. 78º nº 1 da L.G.T., o contribuinte tem ainda a faculdade de pedir a denominada revisão oficiosa do acto, dentro dos prazos em que a Administração Tributária a pode efectuar, previstos no art. 78º da L.G.T., sendo que é hoje pacífico que a revisão prevista no art. 78º da LGT constitui um poder-dever da AT, à qual se impõe, por força dos princípios justiça, da igualdade e da legalidade dos impostos, que a AT está obrigada a observar na sua actividade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e art. 55.º da LGT), que não exija dos contribuintes senão o imposto resultante dos termos da lei; e é também jurisprudência consolidada, que, tal como a AT deve, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do acto tributário (no prazo de quatro anos após a liquidação, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, como decorre do n.º 1 do art. 78.º da LGT), com fundamento em erro imputável aos serviços, também o contribuinte pode, dentro dos mesmos prazos, pedir que seja cumprido esse dever (Cfr. RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2012, 28.5, págs. 212 a 214.) - cfr. Ac. do S.T.A. de 04-05-2016, Proc. nº 0407/15, www.dgsi.pt.”

 

No anterior (de 3 de Fevereiro de 2021):

“Para além do pedido de revisão a deduzir no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, nos termos do artº.78, nº.1, da L.G.T., o contribuinte tem ainda a faculdade de pedir a denominada  revisão  oficiosa  do acto, dentro dos prazos em que a Administração Tributária a pode efectuar, previstos no artº.78, da L.G.T. (cfr. Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Editora Encontro da Escrita, 4ª. edição, 2012, pág.701 e seg.; José Maria Fernandes Pires e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Almedina, 2015, pág.841 e seg.).

Recorde-se que nos casos previstos na norma de iniciativa oficiosa de revisão, podem os contribuintes provocar a revisão (cfr.nº.7 da norma) a levar a efeito pela A. Fiscal, visto se entender a mesma revisão como um poder-dever (natureza vinculada), pois os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a Fazenda Pública tem de observar na globalidade da sua actividade (artº.266, nº.2, da C.R.P., artº.55, da L.G.T.), impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/05/2006, rec.16/06; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 9/11/2016, rec.1524/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 6/04/2017, proc. 887/11.1BELRA; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Editora Encontro da Escrita, 4ª. Edição, 2012, pág.704; José Maria Fernandes Pires e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Almedina, 2015, pág.846 e seg.).”

18.          Esse entendimento consolidado na ordem dos Tribunais tributários tem por si a doutrina  e (como já se verá) a jurisprudência arbitral, mesmo que o enquadramento conceptual não fosse o de caducidade do direito de acção, mas sim o de inimpugnabilidade .

19.          Também a questão de saber se o rigoroso cumprimento da lei por parte da AT pode configurar “erro de Direito”, de modo a permitir preencher a hipótese normativa da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, está há muito pacificada: no Acórdão do STA de 11 de Maio de 2005, proferido no processo n.º 0319/05, escreveu-se (destaques aditados):

“Como se refere no Ac. de 12/12/2001, rec. 26.233: «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços». Cfr., no mesmo sentido e por todos, os Acds. de 06/02/2002 rec. 26.690, 05/06/2002 rec. 392/02, 12/12/2001 rec. 26.233, 16/01/2002 rec. 26.391, 30/01/2002 rec. 26.231, 20/03/2002 rec. 26.580, 10/07/2002 rec. 26.668.”

20.          Também na jurisprudência arbitral estas duas questões – a de ser admitido aos interessados fazer um pedido de revisão oficiosa durante o prazo previsto para esta, e de tal revisão oficiosa poder ter como possível fundamento a desconformidade com o Direito da União Aduaneira – estão estabilizadas: vejam-se, por exemplo, só entre as decisões proferidas em 2021 na arbitragem do CAAD, os processos ns. 314/2020-T, 315/2020-T, 317/2020-T, 320/2020-T, 328/2020-T, 331/2020-T, 378/2020-T, 396/2020-T, 456/2020-T e 457/2020-T, em que estava em causa a exacta situação dos autos: um pedido de revisão da liquidação do ISV, efectuado dentro do prazo de 4 anos, por causa da não aplicação à componente ambiental das reduções estabelecidas no artigo 11.º do Código do ISV para a cilindrada.

21.          Mesmo as duas decisões arbitrais a que a AT faz breve menção num parágrafo da sua Resposta (processos ns. 345/2017-T e 114/2019-T) não depõem em contrário:

22.          A primeira destas decisões (processo n.º 345/2017-T) era referente à liquidação do imposto de selo sobre um prédio de apartamentos não sujeito a propriedade horizontal e não envolvia nenhum parâmetro normativo relevante que não o Direito nacional .

23.          Na segunda das referidas decisões (processo n.º 114/2019-T) não parece ter havido qualquer falha de Direito, uma vez que a AT fez incidir a tributação sobre a titular do registo do veículo (que só solicitou o cancelamento da matrícula junto do IMT depois da verificação dos factos tributários). Ainda que tenha apresentado pedido de revisão, a requerente fê-lo com fundamento em ilegalidade (não em erro imputável aos serviços) e, consequentemente, tal pedido foi indeferido com fundamento em intempestividade. Tendo sido apresentado recurso hierárquico desse indeferimento, foi este também indeferido (com o mesmo fundamento e referências adicionais à situação específica em causa ). Demais, no processo n.º 309/2020-T, a mesma Senhora Juíza-Árbitro que decidiu o processo n.º 114/2019-T sublinhou que tal decisão assentara no enquadramento do pedido de revisão na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT (ilegalidade) e não na 2.ª (erro imputável aos serviços). Tal como no caso anterior, nem sequer havia nenhum parâmetro normativo relevante que não o Direito nacional, pelo que, salvo melhor opinião, não há utilidade em tal precedente para o caso dos autos.

24.          Aliás, ainda que com diferente fundamentação, o mesmo se concluiu na decisão do processo 456/2020-T:

“Note-se ainda que a Decisão Arbitral proferida no processo 345/2017-T, referenciada pela Requerida, pronunciou-se no sentido da extemporaneidade do Pedido de Revisão Oficiosa do ato de liquidação de Imposto do Selo com base em questões que não foram levantadas nos presentes autos (a falta de impugnação, no PPA, da decisão proferida no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa). Por sua vez, a Decisão Arbitral proferida no processo 114/2019-T, também referenciada pela Requerida, tem por fundamento a inexistência de erro imputável aos serviços (uma vez que o IUC foi emitido pela AT com base nas informações disponibilizadas pelo IMT e pelo IRN) — situação que não tem qualquer correspondência com a situação em causa nos presentes autos, em que o Requerente alega que a Requerida incorreu em erro no apuramento do ISV liquidado.”

25.          Maior atenção é, compreensivelmente, concedida pela AT à decisão do processo n.º 362/2020, onde, de facto, há identidade entre as circunstâncias relevantes no caso com as dos presentes autos e onde, portanto, o precedente seria relevante. Sucede que não pode o signatário partilhar a lógica que aí se seguiu – e que, na verdade, se reconduz a reabilitar a dualidade que se viu estar contida na letra da norma do artigo 78.º da LGT e, portanto, a rasurar a sua re-conformação jurisprudencial.

Vejamos:

26.          Sem discutir se a jurisprudência devia ter corrigido o legislador, o facto é que corrigiu, e esse dado está actualmente incorporado na aplicação do referido artigo 78.º da LGT. Consequentemente, no prazo de 4 anos que a letra da disposição reserva à iniciativa da AT, o sujeito passivo também pode (ter a iniciativa de) suscitar perante a AT uma reapreciação do acto tributário.

27.          Posto é que, para isso poder ser feito, tenha havido erro imputável aos serviços.

28.          Ora, a doutrina e a jurisprudência também já estabeleceram que, mesmo em situações em que a AT cumpre estritamente a lei, há erro de Direito (que, para este efeito corresponde a erro imputável aos serviços) se a aplicação da lei for desconforme à Constituição ou ao Direito da União. Especificamente para o caso dos autos, aí está a comprová-lo a dezena de decisões arbitrais do CAAD proferidas este ano (identificadas no parágrafo 20).

29.          Na decisão do processo n.º 362/2020 equacionou-se com toda a clareza o núcleo do problema: 

“29. E é precisamente neste ponto que se situa a discordância das Partes: para a AT, alegando o princípio da legalidade a que se encontra legalmente vinculada, o ato questionado não enferma de erro que lhe seja imputável já que não estava na sua disponibilidade proceder de forma diferente daquela que procedeu. Face aquele princípio, não podia deixar de aplicar uma norma do direito interno com fundamento na sua eventual incompatibilidade com o direito comunitário; em sentido diverso, conforme se poderá extrair do entendimento do Requerente, a aplicação de uma norma que considera ilegal, integraria o conceito de erro imputável aos serviços.”

 

30.          A conclusão que a decisão retirava dessa divergência era a de que a AT tinha razão:

“31. Com efeito, a vinculação da AT ao princípio da legalidade (cfr, CRP, art. 66.º, n.º 2 e LGT, art. 55.º) impede que possa desaplicar uma norma com fundamento na sua incompatibilidade com o direito comunitário. Sobre esta matéria - embora com referência ao direito a juros indemnizatórios e à eventual inconstitucionalidade das normas - é pacífica a jurisprudência( ) dos tribunais superiores, como, de resto, refere a Requerida.

32. Assim, ao proceder como procedeu no ato de liquidação em causa, a AT não incorreu em erro que lhe fosse imputável, pelo que o pedido de revisão apresentado pelo contribuinte, como fundamento dele constante, só produziria efeitos se tivesse sido deduzido no prazo previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, o que não aconteceu.”

31.          Diferentemente, parece ao signatário – ainda que isso possa parecer prima facie paradoxal – que quer a AT quer o Requerente têm razão.

32.          Na verdade, o facto de a AT não poder desviar-se da lei quando esta é desconforme com a Constituição, ou com o Direito da União, não pode implicar que os Tribunais fiquem vinculados a essa limitação da AT. Se assim fosse, não poderia a generalidade dos tribunais fazer mais do que reconhecer a insindicabilidade dos actos administrativos que cumprem a lei – mesmo quando esta fosse desconforme com a Constituição (ou, vamos admitir que por consequência, com o Direito da União). Seria, diga-se, um sistema possível (dito “concentrado”, ou “austríaco”): a sindicabilidade da constitucionalidade (e, por via indirecta, do Direito da União) caberia apenas a um único Tribunal (um Tribunal Constitucional, ou a instituição de topo da hierarquia judiciária).

33.          O nosso sistema não é, porém, esse: é antes o sistema “difuso” ou “americano”, em que todos os tribunais têm acesso à Constituição (e ao Direito da União). Consequentemente, o que é o Direito para a Administração, não é o mesmo que é o Direito para os Tribunais (incluindo os arbitrais).

34.          Salvo o devido respeito por entendimento diverso, é entendimento do signatário que, no nosso ordenamento jurídico, a Administração está simultaneamente vinculada a menos Direito do que os Tribunais (na medida em que a Constituição e o Direito da União que imponham soluções diversas da lei não lhe são acessíveis), e a mais Direito do que os Tribunais (na medida em que está sujeita a circulares e normas fundadas no poder hierárquico que não vinculam os Tribunais).

35.          Não há, portanto, coincidência entre o que é erro de Direito para a Administração e o que é erro de Direito por parte da Administração para os Tribunais: a Administração pode estar absolutamente certa (porque está obrigada a cumprir a lei e, ou, as normas administrativas com eficácia interna e porque o fez sem falhas) – e estar errada face aos parâmetros diversos que os Tribunais são obrigados a convocar.

36.          Ora, ao admitir que não se pode dar como preenchida a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT porque a AT “não podia deixar de aplicar uma norma do direito interno com fundamento na sua eventual incompatibilidade com o direito comunitário”, o que a decisão referida fez, na opinião do signatário, foi fazer prevalecer o bloco de normatividade da AT sobre o bloco de normatividade dos Tribunais, ou seja, a razão da Administração sobre a razão dos Tribunais. 

37.          Considerando que o que está em causa nessa divergência é o acesso de um particular ao Tribunal, é entendimento do signatário que, face à legislação então vigente, ainda que a AT não pudesse ter feito outra coisa quando não aplicou a mesma redução percentual na componente ambiental do ISV que aplicou na componente de cilindrada – e, portanto, não tivesse errado face ao Direito que lhe cumpria aplicar –, a conclusão a retirar por um Tribunal – obrigado a aplicar outro Direito – tem de ser a de que a AT errou ao não aplicar a mesma redução percentual na componente ambiental do ISV que aplicou na componente de cilindrada. 

38.          Consequentemente, entende o signatário – com a generalidade da jurisprudência arbitral já invocada – que o recurso à 2.ª parte do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT por parte de um qualquer sujeito passivo que invoque erro dos serviços é admissível mesmo quando, na perspectiva da AT, esta não errou.

39.          Entender de outro modo seria bloquear o recurso dos sujeitos passivos à 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT nos casos que são, no fundo, os mais relevantes: aqueles em que os dois critérios de erro (o da AT e o dos Tribunais) não coincidem – e, portanto, como se disse – reinstalar a dualidade de tratamento que o legislador parece ter querido, mas a jurisprudência lhe recusou.

40.          Improcede, portanto, a excepção de caducidade do direito de acção invocada pela AT. E improcede na totalidade porque, muito embora parte das liquidações referidas em III.1.b) sejam de 2016 e o pedido que a Requerente dirigiu à AT, ao abrigo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 17.º da LGT, seja, digamos, tangente a 2021 (data de 17 de Dezembro de 2020), todas as datas das liquidações do ISV (e, portanto, do respectivo pagamento) ocorreram em 2017 (excepto uma liquidação, que remontava a 2016, embora com prazo de pagamento até 6 de Janeiro de 2017, mas que, em todo o caso, era de 23 de Dezembro de 2016). Portanto, todas estavam abrangidas pelo prazo de 4 anos que as tornava susceptíveis de reavaliação nos termos dessa norma.

41.          Importa, pois, decidir de mérito.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

a)            Em 2016 e 2017 a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz emitiu à Requerente 90 (noventa) Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV), para introdução no consumo de outros tantos veículos com primeira matrícula em Estados-Membros da União Europeia.

b)           Dessas DAV, que constam individualmente do Processo Administrativo, 13 (treze) referem-se ao ano de 2016 (as que têm os seguintes números:...; ...;...;...;...;...;...;...;...;...; ...; ... e ...) e 77 (setenta e sete) referem-se ao ano de 2017 (as que têm os seguintes números:...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...;  ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ..., ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ... e ...), como resulta do Quadro elaborado no Processo de Revisão Oficiosa abaixo reproduzido : 

 

 

 

c)            Dando cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV , a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz aplicou a cada veículo matriculado a redução percentual prevista na tabela D à componente cilindrada, não o tendo feito à componente ambiental do ISV.

d)           Perfazendo assim o conjunto das Declarações o montante global de € 283.139,74 de ISV e o montante reclamado, idêntico ao montante descontado pela componente cilindrada em função do número de anos de uso do veículo, a € 56.317,65 (nas contas da AT ).

e)           Em 17 de Dezembro de 2020, a Requerente pediu, junto da mesma delegação, expressamente ao abrigo “da 2.ª parte do nº 1 do art. 78.º da LGT” (e, portanto, com fundamento em erro dos serviços), a revisão das liquidações efectuadas em 2017 (na verdade, como decorre do Quadro transcrito em b), a partir do dia 23 de Dezembro de 2016).

f)            Tal pedido veio a ser indeferido por despacho da Directora da Alfândega de Aveiro de 16 de Fevereiro, notificado por Ofício da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz de 25 de Fevereiro de 2021.

g)            Não se conformando com a disparidade de tratamento legalmente prevista para as duas componentes do ISV, que considerou incompatível com o Direito da União Europeia, o Requerente apresentou um Pedido de Pronúncia Arbitral no CAAD logo no dia 4 de Março de 2021.

h)           O Requerente pagou integralmente todos os valores constantes das DAV.

 

                III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

                Tendo em conta as posições das partes e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, não há factos não provados.

 

                III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e não foram controvertidos.

 

IV.          DIREITO

IV.1. Questões a decidir

Como improcedeu a excepção de caducidade do direito de acção que foi invocada pela Requerida, haverá que apreciar:

i)             a necessidade de proceder ao reenvio;

ii)            a conformidade da liquidação efectuada com a legislação interna;

iii)           a conformidade da legislação interna com as normas de Direito da União;

iv)           as questões de inconstitucionalidade suscitadas pela AT;

v)            as consequências indemnizatórias de uma decisão favorável à Requerente.

 

IV.2. Sobre o reenvio prejudicial

No seu pedido de pronúncia arbitral (PPA), a Requerente sugeria (§§ 73-74), caso houvesse dúvida sobre a compatibilidade do artigo 11.º do Código do ISV com o artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), que o Tribunal Arbitral consultasse o Tribunal de Justiça da UE (TJUE) ao abrigo do mecanismo do reenvio prejudicial. Na sua Resposta, a AT sugeriu o mesmo (§ 100).

Face à anterior jurisprudência do TJUE isso não se afigurava necessário, mormente porque o mesmo Tribunal estava a apreciar a exacta questão dos autos no âmbito de uma acção por incumprimento cujos contornos eram conhecidos. A prolação da decisão do TJUE, nos termos indicados em I.8., tornou, entretanto, supervenientemente inútil o tratamento da supra-referida questão i).

 

IV.3. Posição da Requerente sobre o mérito

Não pondo em causa a conformidade da liquidação efectuada com a legislação interna (e, portanto, não se pronunciando sequer sobre a supra-referida questão ii)), a Requerente centrou a sua argumentação na desconformidade da legislação interna com as normas de Direito da União (referida supra como questão iii)), argumentando, essencialmente, que:

a)            Como, no caso de admissão de veículos usados, o cálculo do imposto a pagar depende da cilindrada do veículo e da componente ambiental, e, nos termos do disposto no artigo 11.º do Código do ISV, se aplica no cálculo de imposto uma percentagem de redução conforme o número de anos do veículo, equiparável à desvalorização comercial média dos veículos usados comercializados no mercado nacional, essa redução devia incidir tanto numa como em outra dessas componentes.

b)           A Comissão Europeia instaurou o processo por infração 2009/2296 contra a República Portuguesa por não ser tida em conta a depreciação dos veículos para efeitos do cálculo da componente ambiental do ISV, processo esse que foi encerrado após alteração ao Código do ISV, introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que passou a contemplar a componente ambiental na percentagem de redução.

c)            A Comissão Europeia instaurou um novo processo contra a República Portuguesa, com a natureza de acção por incumprimento, que correu termos com o n.º C-200/15, por causa da manutenção da divergência nos cálculos de ISV entre os veículos usados matriculados em Portugal e os veículos usados provenientes de outros Estados-membros até ao final do 1.º ano de uso e após 5 anos de uso.

d)           Por Acórdão de 16 de Junho de 2016 foi decidido que a República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.

e)           Na sequência deste acórdão, o legislador nacional introduziu uma nova alteração ao Código do ISV, através da Lei n.º 42/2006, de 27 de Dezembro, dando uma nova redação ao seu artigo 11.º do CISV e à sua tabela D, no sentido de alargar as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-as até aos 10 e mais anos de uso.

f)            Com a nova redação dada a esse artigo 11.º, porém, voltou a limitar a aplicação das percentagens de redução à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental, regressando, na prática, à norma que esteve na base da alteração legislativa operada com a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, e, naturalmente, violando novamente o artigo 110.º do TFUE.

g)            Indiciando que tal solução normativa era inadmissível face ao Direito da União:

i.             a Comissão Europeia instaurou um novo processo por incumprimento contra a República Portuguesa, que corria termos com o n.º C-169/20;

ii.            o legislador alterou o artigo 11.º do Código do ISV na Lei n.º 75-B/2020, de 20 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2021), reintroduzindo uma tabela de redução da componente ambiental do ISV em função do número de anos dos veículos.

 

IV.4. Posição da Requerida sobre o mérito

Respondendo aos argumentos da Requerente e defendendo a conformidade da legislação interna com as normas de Direito da União (referida supra como questão iii)) , a Requerida invocou também na sua Resposta a conformidade da liquidação efectuada com a legislação interna (referida supra como questão ii)), defendendo, designadamente:

a)            Que “no contexto da tributação automóvel” releva “o disposto no artigo 1.º do CISV que consagra o Princípio da Equivalência, de acordo com o qual:

“O imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios

do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização

de uma regra geral de igualdade tributária.””

b)           Que não está em causa apenas o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia [TFUE] (que proíbe um tratamento fiscal diferenciado para produtos de outros Estados-membros) mas também o disposto no artigo 191.º do mesmo Tratado (sobre a política da União no domínio do ambiente) e o disposto no artigo 66.º da Constituição (sobre ambiente e qualidade de vida, designadamente no que diz respeito às incumbências do Estado previstas no seu n.º 2, das quais transcrevia as seguintes:

“Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com a participação dos cidadãos: (…)

a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;

(…)

f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;

g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;

h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.”

c)            Que as liquidações impugnadas cumpriram o disposto na lei.

d)           Que “não obstante a alteração ao artigo 11.º do CISV tenha surgido após o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (Cilindrada) (…)”.

e)           Que “O modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do CISV pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, foi norteada por preocupações ambientais com respeito pelas diretrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris.”

f)            Que “a interpretação do artigo 110.º do TFUE [deve] ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental.”

g)            Que “A alteração ao artigo 11.º do CISV operada pela Lei n.º 22-A/2007 encontrava-se, assim, também, em consonância com o disposto no artigo 1.º do mesmo código, que consagra o “Princípio da Equivalência”, nos termos do qual o imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”

h)           Que “Face ao previsto no n.º 1, do artigo 11.º do CISV, constata-se que o legislador teve em consideração que a componente ambiental representa o custo do impacto ambiental, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 11.º do CISV, também suportada pelos veículos novos, devendo a mesma ser entendida como um montante que os sujeitos passivos pagam ao Estado, destinado a compensar os efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente, sendo que esse montante é progressivo em função das emissões de dióxido de carbono.”

i)             Que, “em nome da unidade e da coerência do modelo de tributação automóvel vigente em Portugal, a não aplicação da totalidade da componente ambiental aos veículos usados violaria os princípios suprarreferidos, tornando-se fonte de graves injustiças, já que beneficiaria claramente os veículos usados em detrimento dos novos, sem que, para tal, se encontrem razões válidas.”

j)             Que “os artigos 7.º e 11.º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110.º do TFUE, por gerarem uma descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que estes artigos não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional.”

k)            Que “não se poderá concluir que, ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objeto de redução, o Estado Português teve por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas sim como corolário orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado-Membro.”

l)             Que “não se pode olvidar, igualmente, o estabelecido no artigo 66.º, relativo ao Ambiente e Qualidade de Vida, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (n.º 1), e, especificamente, o disposto na alínea h), do n.º 2 do mesmo artigo, quando se refere a um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente.”

 

IV.5. Ponderação dos argumentos das Partes

Ainda que a razão essencial da decisão a proferir resida na obrigação de acatar a interpretação que o TJUE fez da incompatibilidade da norma legal aplicada como fundamento da tributação com o Direito da União, vão tecer-se breves considerações sobre as posições das Partes, ainda que, dadas as circunstâncias, agora já só a título de obiter dicta. O que importa não é o juízo do presente Tribunal Arbitral sobre a questão da conformidade do regime legal impugnado com o Direito da União – a que chegaria pela ponderação dos argumentos das partes e pela interpretação das normas internas e da União Europeia – mas sim o juízo que foi feito pelo TJUE.

A)           Sobre os argumentos da Requerente:

A argumentação da Requerente no sentido de defender a desconformidade da norma de tributação diferenciada das duas componentes do ISV era essencialmente histórica, dando nota da persistente divergência da legislação nacional em matéria de tributação automóvel com as exigências da União e dos incidentes que tal tinha suscitado junto das instâncias europeias. Como se constatou pela superveniente decisão do TJUE, estava em sintonia com o entendimento que este tornou vinculativo do Direito da União.

B)           Sobre os argumentos da AT:

a)            Como se referiu, a AT argumentou que a liquidação impugnada cumpriu o disposto na lei – o que é verdade e nem sequer foi controvertido pela Requerente.

b)           A AT defendeu também que a lei deve obediência não apenas ao disposto no artigo 110.º do TFUE, mas também ao disposto no artigo 191.º do mesmo Tratado e ao artigo 66.º da Constituição.

Esta segunda linha de defesa da liquidação parece, ao signatário, algo estranha: se alguém tem de defender a conformidade (com a Constituição ou com o Direito da União) das normas legais é quem as produz, não quem as aplica. À AT cabe responder pela sua actuação, não pela actuação do poder legislativo.

Por outro lado, a AT deve ter-se considerado vinculada a fazer tal defesa porque no caso em apreço a sua actuação face à lei foi irrepreensível, e, não obstante, em anteriores casos análogos foi condenada a reverter essa sua actuação (e a pagar juros por isso).

Não sendo a ocasião própria para aprofundar esta questão, sempre se dirá que incumbe a este Tribunal – como aos que o antecederam nesta matéria – uma obrigação de respeitar a supremacia do Direito da União nos termos impostos pelo artigo 8.º, n.º 4, da Constituição. Isso resulta, desde logo, da vinculação a suscitar as questões de reenvio prejudicial que sejam necessárias para a “interpretação e a aplicação uniformes” do Direito da União Europeia , mas decorre também do disposto no artigo 204.º da Constituição (apesar da sua epígrafe aparentemente restritiva: “Apreciação da inconstitucionalidade”) .

Pese embora o entendimento que o TJUE se empenha em fazer valer quanto à mobilização da administração pública contra as leis dos Estados para assegurar o primado do Direito da União , como nenhuma dessas possibilidades (o reenvio e a apreciação da constitucionalidade das leis) está aberta à Administração Pública, entende o signatário que não faz sentido pretender que esta se pode afastar das leis internas com base numa suposta – e sempre falível – desconformidade dessas leis com a Constituição ou com o Direito da União.

Não só isso contrariaria a presunção de constitucionalidade das leis que resulta da sua promulgação, como nem haveria qualquer vantagem em que a Administração Pública o pudesse fazer: se acaso houver uma tal desconformidade, quem se considerar prejudicado tem meios para levar – directa ou indirectamente – essa questão aos tribunais. E os tribunais, esses sim, estão habilitados, vinculados e dotados dos instrumentos para fazer esses juízos de conformidade com a Constituição e com o Direito da União (e, mesmo assim, não poucas vezes são desautorizados pelos Tribunais em última instância competentes para tais juízos: o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Justiça da União Europeia).

Tal como a Administração deve obediência à lei, o legislador comum deve obediência à Constituição – incluindo naquilo que nesta o vincula ao Direito da União e ao Direito internacional. Se o legislador falha no cumprimento dessas suas obrigações, é entendimento do signatário que no quadro de um Estado de Direito, não pode ser, nem deve ser, a Administração a corrigi-lo.

Não sendo caso de recorrer, em reenvio, ao Tribunal de Justiça da União Europeia (como, ao contrário da AT, estaria o presente Tribunal Arbitral obrigado em caso de dúvida fundada sobre a desconformidade da lei com o Direito da União), está qualquer Tribunal obrigado a aferir da conformidade da legislação aplicada pela AT com o Direito da União, já se tendo referido (supra, II. § 34-35) que há consideráveis diferenças na composição do ordenamento jurídico aplicado por cada um.

Nessa medida, compreende-se, até certo ponto, que a AT estivesse condicionada a advogar essa conformidade, defendendo as opções do legislador. Não é uma situação ideal, nem é a sua função – sobretudo quando as opções do legislador são ditas serem ditadas por razões ambientais, estranhas ao negócio da AT.

c)            Que tais opções fizessem sentido é coisa diversa. Refere a AT que haveria na solução legislativa introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, uma intenção de “orientar a escolha dos consumidores”, uma vez que “a não aplicação da totalidade da componente ambiental aos veículos usados” tornar-se-ia “fonte de graves injustiças, já que beneficiaria claramente os veículos usados em detrimento dos novos, sem que, para tal, se encontrem razões válidas.”

O argumento parece implicar que a tributação mais elevada sobre veículos usados – decorrente da não diminuição da componente ambiental do ISV (ao contrário da decorrente da cilindrada) – teria um efeito de transferência das compras de veículos usados para os veículos novos. Numa das várias formulações do argumento usadas na Resposta da AT, “a aplicação da mesma percentagem de redução às duas componentes (…) dá origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes”.

Acontece, porém, que tal “incentivo” só existiria se fosse possível estabelecer que o mercado dos veículos usados importados é um sucedâneo do mercado de veículos novos e não do mercado de veículos usados já matriculados em Portugal. Ora, está por demonstrar que a alternativa mais próxima para um comprador normal de um veículo usado (que corre o risco inerente ao desconhecimento das vicissitudes anteriores da viatura e do seu real estado mecânico) seja entre comprar carros novos ou usados e não entre comprar veículos usados matriculados originariamente no mercado nacional e comprar veículos usados originariamente matriculados noutros Estados-membros. E, na medida em que os veículos que são matriculados pela primeira vez em Portugal incorporam um maior volume de imposto de registo do que em outras jurisdições (que, aliás, de modelo para modelo variam de país para país) – e, também por isso, se apresentam mais caros também no mercado nacional de veículos em 2.ª mão – não é difícil admitir que o “incentivo” a que alude a AT actue em sentido inverso da suposta opção menos poluidora, como resulta da mera consideração das alternativas (e da presunção, que a AT assumiu para si, de que quanto mais anos de vida tem um carro, mais poluente se torna):

Na verdade, quer se pense que a decisão do potencial adquirente foi determinada por uma específica marca e modelo de veículo, quer se pense que a sua opção está condicionada por um limite de preço – pela sua carteira –, as hipóteses de aquisição irão variar ao longo de um leque de preços comportáveis, sendo que as opções de aquisição de um veículo usado já disponível no mercado nacional ou proveniente de outro Estado-Membro aparecem, para cada marca, modelo, e antiguidade, como tendencialmente vantajosas no segundo caso (mesmo sem esse desconto ambiental, mais ainda com ele). O que é dizer que a inflexibilidade da componente ambiental pode bem acabar por dissuadir a compra ao estrangeiro de um carro com 2 ou 3 (ou 4, ou 5…) anos, levando antes à compra do sucedâneo mais próximo em termos de preço: um carro idêntico, com 4, ou 5 (ou 6, ou 7…) anos cuja introdução no consumo tenha ocorrido originariamente no mercado nacional.

A Resposta da AT constrói até um sofisma: “se o regime nacional atribuísse um desconto comercial à componente ambiental do ISV para veículos usados adquiridos noutro Estado-Membro da União Europeia, estaria a subverter aquele princípio e a atribuir um alívio fiscal à admissão e importação de veículos usados mais poluentes.” E é um sofisma porque o imposto em causa é de aplicação única (não é um imposto em função do uso, como o próprio TJUE recomendou como meio adequado de obter os efeitos ambientais pretendidos ) e nos veículos usados nacionais já foi cobrado no momento da sua matrícula original, de modo que o que pode ser imposto aos veículos que não o pagaram (por terem sido matriculados noutros Estados-membros) é o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional. Portanto, a comparação relevante não é, mais uma vez, entre veículos novos e veículos usados vindos de outro Estado-membro, é entre veículos que já pagaram um certo imposto no momento da matrícula num outro Estado-membro e veículos que já pagaram um certo imposto no momento da matrícula em Portugal: a norma do artigo 110.º do TFUE vale justamente para estes casos e “visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.” 

Não haveria, portanto, “subversão” alguma do princípio do poluidor-pagador, nem a atribuição de “um alívio fiscal à admissão e importação de veículos usados mais poluentes” (não são certamente mais poluentes do que os que, já disponíveis no mercado nacional, têm o mesmo número de anos e, ou, quilometragem – e esses, sendo mais caros, é que são a primeira alternativa para quem não pode, ou não quer, comprar um veículo novo).

Logo, o argumento ambiental não era credível – como o próprio legislador terá reconhecido ao alterar a redacção do artigo 11.º do Código do ISV na Lei n.º 75-B/2020, de 20 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2021) por antecipação à decisão do Tribunal de Justiça (perante o qual tinha defendido que o regime de não redução na componente ambiental era conforme com o Direito da União).

 

IV.5. A fundamentação do Acórdão do TJUE de 2 de Setembro de 2021

A) Antecedentes

No sítio do Tribunal de Justiça da União Europeia  consta a seguinte informação sobre os fundamentos do processo C-169/20, referente à acção intentada em 23 de Abril de 2020 pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa , na sequência da inércia face ao início de um procedimento por infracção em 24 de Janeiro de 2019 , e ao subsequente Parecer Fundamentado que a Comissão enviara ao Governo Português em 27 de Novembro de 2019 :

“A legislação portuguesa em causa consagra uma discriminação entre a tributação que incide sobre o veículo importado e aquela que incide sobre o veículo nacional similar. As modalidades e a forma de cálculo em vigor levam a que a tributação do veículo importado seja quase sempre mais elevada.

Esta situação é tanto mais preocupante quanto ela é contrária à jurisprudência assente do Tribunal de Justiça: a legislação portuguesa relativa ao cálculo do imposto aplicável aos veículos usados adquiridos noutros Estados-Membros já foi objeto de procedimentos de infração anteriores e de vários acórdãos do Tribunal de Justiça.

A legislação portuguesa não garante que os veículos usados importados de outros Estados-Membros sejam tributados num montante que não exceda o imposto refletido nos veículos usados domésticos similares. Tal pode ser explicado pelo facto de, em consequência da alteração da legislação em 2016, a componente ambiental utilizada para calcular o valor de um veículo usado não ser desvalorizada.

Daqui resulta que a tabela de desvalorização adotada pela legislação nacional não conduz a uma aproximação razoável do valor real do veículo usado importado. Consequentemente, o montante pago para registar um veículo usado importado excede o montante relativo a um veículo usado similar já registado em Portugal, o que configura uma violação do artigo 110.º do TFUE e da jurisprudência do Tribunal de Justiça.”

 

Recorde-se que o artigo 110.º do TFUE dispõe que

“Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares.

Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções.”

 

                B) A decisão por incumprimento do artigo 110.º do TFUE

Por decisão de 2 de Setembro de 2021 , o Tribunal de Justiça confirmou o entendimento da Comissão, condenando a República Portuguesa e escrevendo, designadamente, o seguinte:

“42      A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.

43      Ora, importa recordar que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).

44      A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C 290/05 e C 333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).

45      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).

46      Em contrapartida, um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º TFUE.”

É esse entendimento que o presente Tribunal tem de aplicar, considerando, em consequência, que “as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva” estipuladas no n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV tal como resultante da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, e que aí eram limitadas à componente cilindrada têm de ser aplicadas igualmente à componente ambiental do ISV, impondo à AT a reforma das liquidações efectuadas.

 

IV.7. Questões de constitucionalidade

As questões de inconstitucionalidade que a AT suscitou em diversos parágrafos da sua Resposta tinham a ver com dois tipos de questões:

- por um lado, de regime substantivo;

- por outro lado, de possibilidade de reacção em relação à decisão a proferir pelo Tribunal arbitral (regime adjectivo)

 Em relação às primeiras – com formulação algo variável quer quanto à dimensão normativa em causa , quer em relação ao parâmetro de controle invocado  – pode admitir-se que tenham ficado consumidas com o próprio reenvio prejudicial que o Tribunal Constitucional decidiu fazer para o TJUE no seu acórdão n.º 711/2020, de 9 de Dezembro, no qual se colocou a seguinte questão:

“Pode o artigo 110.º do TFUE, isoladamente ou em conjunto com o artigo 191.º do TFUE, em especial com o seu n.º 2, ser interpretado no sentido de não se opor a uma norma de direito nacional que omite a componente ambiental na aplicação de reduções associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional ao imposto incidente sobre veículos usados portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia, permitindo que o valor assim calculado seja superior ao relativo a veículos usados nacionais equivalentes?”

 

Ainda que a suspensão do processo n.º 173/20 do TC (onde foi suscitada a referida questão prejudicial) se mantenha até à decisão do TJUE nesse pedido, é de supor que essa pronúncia do TJUE alinhará pelo que foi decidido em 2 de Setembro pela sua 9.ª Secção no processo C-169/20, e que se deixou registado.

Sobretudo, é de sublinhar que o Tribunal Constitucional admitiu explicitamente que o seu juízo nesta matéria estava condicionado pelo juízo do TJUE. Logo, pode antever-se com segurança que as questões de constitucionalidade material suscitadas pela AT não irão proceder no nosso Tribunal especializado em questões de constitucionalidade, o que, com base num juízo de prognose, permite dispensar um juízo de mérito.

 

Em relação às questões de inconstitucionalidade procedimental, o que a AT invoca nos parágrafos 93 a 98 da sua Resposta  é, no fundo, “uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais” resultante do Direito constituído.

Quanto a isto, não pode o signatário deixar de manifestar a sua estranheza perante a duplicidade de entendimento da AT, que quanto a questões substantivas se considera estritamente vinculada pelas leis que determinam a sua actuação, considerando que não pode pô-las em causa , e quanto a questões procedimentais se arroga a possibilidade de as confrontar com o Direito Constitucional para efeitos de se eximir a elas. O que o signatário acharia normal seria que a AT se considerasse sempre e em todas as circunstâncias vinculada pelas leis da República alertando só para as inconstitucionalidades eventualmente decorrentes de se dar preferência a entendimentos preconizados pelos sujeitos passivos que se pretendessem eximir do seu cumprimento (como fez a propósito das questões de constitucionalidade substantivas que suscitou). Ou, por outras palavras: tal como acima se estranhou a defesa, pela AT, da conformidade constitucional das leis, sobretudo quando estas visam objectivos que lhe são alheios (como a salvaguarda de valores ambientais) – uma vez que o que cabe à AT não é defender as opções do legislador, mas sim defender a sua actuação vinculada a estas – estranha-se agora a defesa da inconstitucionalidade das normas que, de igual modo, não cabe à AT sindicar.

Em suma: se ainda faz algum sentido que a AT, posto que fora do seu papel, se arvore em defensora da conformidade constitucional das leis que lhe cabe aplicar (ie, poderia dizer-se, importando terminologia que tem aplicação no domínio jurisdicional, de decisões negativas de inconstitucionalidade), menos sentido faz que a AT se arrogue defensora da inconstitucionalidade de leis que, de igual modo, lhe cabe acatar (ie, de decisões que pretende positivas de inconstitucionalidade). 

Mais: tendo em conta que uma das características da jurisdição arbitral é o encurtamento do sistema de recursos, justamente para melhor assegurar a celeridade que se lhe pretende imprimir, faz pouco sentido que a AT ponha em causa as opções do legislador nessa matéria. Sobretudo quando, ao mesmo tempo, entende não poder fazê-lo em matérias substantivas. Uma vez que a sujeição da AT à jurisdição arbitral implica essa restrição por opção do legislador, trata-se, se não de venire contra factum proprium, pelo menos de uma discordância da AT em relação às opções do poder político. 

Em todo o caso, sempre se dirá que se não afigura ao presente Tribunal que esta questão de constitucionalidade suscitada pela AT tenha fundamento: a falta de um grau de recurso em matéria de facto, que a AT invoca , é irrelevante para o caso, uma vez que foi a própria AT que reconheceu (§ 108 da sua Resposta ) que se tratava de uma pura questão de Direito. Por outro lado, em matéria de conformidade com o Direito da União, os tribunais – incluindo os arbitrais – estão obrigados a consultar o TJUE quando a sua decisão seja final e haja fundadas dúvidas sobre a interpretação do Direito da União. Ora, como se viu, a AT conseguirá, por via desse mecanismo accionado pelo Tribunal Constitucional, a sindicância das decisões dos Tribunais arbitrais – ainda que essa pronúncia tenha já sido antecipada por outra via.

Quer dizer que não há a invocada falta de recursos que lese princípios constitucionais.

 

IV.8. Juros

                O Requerente pediu que lhe fossem pagos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, sobre a importância paga em excesso (cifrada num total de €56 317,64) “desde a data do pagamento do imposto até à efetiva restituição”.

                Está firmemente sedimentada a possibilidade de determinação do pagamento de juros pela jurisdição do CAAD, e, em casos análogos – ie: em casos em que estava em causa a questão da legalidade da cobrança da totalidade da componente ambiental do ISV sobre veículos usados provenientes de outros Estados-membros da UE introduzidos em Portugal –, ela foi quase sempre atribuída (embora em termos nem sempre coincidentes quanto ao início da contagem quando estava em causa um pedido de revisão). As excepções foram as decisões proferidas nos processos n.º 348/2019-T, decidido em 31 de Janeiro de 2020, e 34/2020-T, decidido em 10 de Setembro de 2020, em que, embora dando procedência ao pedido dos sujeitos passivos, se considerou que não tinha havido “erro imputável aos serviços”.

                Face à actual redacção do artigo 43.º da LGT, parece ao signatário que o enquadramento legal é outro. Na decisão de um caso referente a uma outra matéria – proferida em 14 de Setembro de 2020 no processo n.º 786/2019-T – escreveu o seguinte (mantêm-se os itálicos, os negritos e as notas do original):

“O artigo 43.º da LGT, na sua actual redacção (resultante, por último, da Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, que lhe aditou a nova alínea d)), estabelece que

“1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”

Nos termos das duas primeiras disposições deste artigo, a obrigação de pagamento de juros está ligada à existência de “erro imputável aos serviços”. Quer dizer que a lei impõe que, quando por erro na determinação dos factos ou na aplicação do Direito, o que foi exigido ao sujeito passivo exceder o que legalmente lhe era exigível, deve a AT indemnizar quem pagou o que não devia, ou pagou mais do que devia. Foi nessa base que foram determinados os anteriores pagamentos de juros indemnizatórios.

O n.º 3, embora não fazendo referência a um erro singular e concreto (como no n.º 1) ou a um erro geral e abstracto (como no n.º 2) imputável aos serviços, continuava, até à intervenção do legislador de 2019, a fazer depender a obrigação de indemnização de um quadro de culpa da AT: esta tinha de indemnizar porque excedia os prazos legalmente previstos ou aqueles que se poderiam ter como razoáveis. Com o aditamento da alínea d) ao n.º 3 desse artigo ficou pela primeira vez consagrada na LGT a indemnização assente, não nalguma forma de culpa sua, mas naquilo que, para quem cobra tributos, constitui uma espécie de responsabilidade objectiva: mesmo obedecendo escrupulosamente àquilo que o criador de normas legislativas ou regulamentares determinou, pode a AT (em sentido lato) ser obrigada a pagar juros indemnizatórios. Ou seja: pode ser chamada a pagá-los mesmo inexistindo da sua parte qualquer desvio em relação às normas aplicáveis – ie: mesmo inexistindo erro dos serviços.

Noutro prisma, o que a alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º fez foi introduzir na LGT um outro erro, o erro do legislador (lato sensu), e, com isso, ampliar o leque de responsáveis pela obrigação de ressarcimento a cargo de quem cobra: não apenas quem executa fica sujeito a indemnizar quando executa mal, como fica também sujeito a indemnizar quando o que executa bem foi mal concebido.

Neste último caso, porém, isso só acontece quando a norma aplicada for julgada (ou declarada) inconstitucional ou ilegal e, portanto, só a partir do trânsito em julgado de tal decisão.

No caso, o pagamento indevido não resultou de erro imputável aos serviços da Administração Tributária: resultou do cumprimento de uma norma em relação à qual a AT não está autorizada a desviar-se, mas que é desconforme com o Direito da União –  que goza de prevalência sobre o Direito interno nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição, e que incumbe a este Tribunal (como aos que o antecederam nesta matéria) fazer respeitar. Isso resulta, desde logo, da vinculação a suscitar as questões de reenvio prejudicial que sejam necessárias para a “interpretação e a aplicação uniformes” do Direito da União Europeia , mas decorre também do disposto no artigo 204.º da Constituição (apesar da sua epígrafe: “Apreciação da inconstitucionalidade”) . Uma vez que tal norma é, por essa via, ilegal, os juros são devidos, mas apenas desde o trânsito da presente decisão.

Como o Requerente procedeu ao pagamento da totalidade da importância em parte indevidamente liquidada, tem direito, segundo a jurisprudência uniforme do CAAD, e como pediu, à devolução do montante pago em excesso.

Tem também direito ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, a partir do trânsito da presente decisão – não por erro dos seus serviços , mas por erro do legislador.”

 

                Ainda se poderia invocar, como obstáculo à aplicação da norma da referida alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que, em rigor, a violação de normas do Direito da União por leis internas não constitui propriamente nem “inconstitucionalidade” nem “ilegalidade”. Contudo, como se referiu supra (nota 14) a desconformidade de uma lei com o Direito da União configura uma situação análoga à de inconstitucionalidade (ou, pode admitir-se agora, de inconstitucionalidade indirecta, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição através da desconformidade com o parâmetro interposto do Direito da União).

Em qualquer caso – e reconduza-se o juízo de desconformidade de uma norma legal interna com o Direito da União a inconstitucionalidade ou a ilegalidade (e não se vê que possa ser outra coisa) –, certo é que não faria sentido que tal situação tivesse um tratamento diferente do que o legislador de 2019 criou para as situações de desconformidade com normas de valor reforçado ou com a Constituição. 

Assim, só a partir do trânsito em julgado de um juízo de desconformidade com o Direito da União – como o que dependerá do trânsito da presente decisão – haverá lugar ao pagamento de juros.

 

 

V.           DECISÃO

Em face do exposto, decide este Tribunal Arbitral Singular:

a)            Julgar procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV constante das Declarações Aduaneiras de Veículo ns.º ...; ...;...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ... e ..., referentes a 2016, e das Declarações Aduaneiras de Veículo ns.º

:...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...;  ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ..., ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ...; ... e ...  referentes a 2017, determinando-se a sua anulação parcial na parte em que não se aplicou a mesma percentagem de mitigação sobre a componente ambiental que se aplicou sobre a componente de cilindrada;

 

b)           Condenar a AT à devolução da quantia indevidamente paga, calculada pela Requerente no montante de €56 317,64 (cinquenta e seis mil trezentos e dezassete euros e sessenta e quatro cêntimos) e confirmada pela AT em sede de revisão oficiosa;

 

c)            Condenar a AT ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data do trânsito da presente decisão até integral pagamento;

 

d)           Condenar a AT nas custas do processo.

 

VI.          Valor do processo

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em €56 317,64 (cinquenta e seis mil trezentos e dezassete euros e sessenta e quatro cêntimos) por ter sido o valor peticionado pelo Requerente e não contestado pela AT.

 

VII.         Custas

Custas a cargo da Requerida no montante de € 2 142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que, ainda que no cumprimento da lei, deu causa ao presente processo.

Notifique-se.

 

Lisboa, 10 de Setembro de 2021

 

                                                                               O Árbitro Singular

                                                                                 Victor Calvete

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.