Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 139/2020-T
Data da decisão: 2021-04-15  IVA  
Valor do pedido: € 371.768,35
Tema: IVA – Liquidações julho a março de 2019 - Artigo 18.º do Código do IVA
Verba 1.11 da Lista I e verba 3.1 da Lista II, ambas das listas anexas ao Código do IVA - Retificação dos valores e taxas objeto de autoliquidações - Pressupostos
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Acordam os árbitros que integram o Tribunal Coletivo, José Poças Falcão (presidente), João Taborda da Gama e Filipa Barros (vogais):

 

I – RELATÓRIO

 

1             A…, S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva ... … .., com sede na  ………, ….-… ……….(doravante abreviadamente «A») e

B… – RESTAURAÇÃO, S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva … … …, com sede na ……, …, ….-… ….(doravante abreviadamente «B»),

conjugada e abreviadamente designadas por «Requerentes», ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária («RJAT»), formulam o presente pedido de pronúncia arbitral contra

Autoridade Tributária e Aduaneira,

tendo por objeto o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ……………., notificado a ambas as Requerentes através do Ofício n.º …., de 2 de Dezembro de 2019, reclamação graciosa essa deduzida contra os atos de autoliquidação de IVA de ambas, relativos aos meses de Julho de 2017 a Março de 2019.

 

2             Os Pedidos

Formulam as Requerentes os seguintes pedidos:

i.             De anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa e, consequentemente, de anulação parcial dos atos de autoliquidação de IVA relativos aos meses de Julho de 2017 a Março de 2019, “dada a sua manifesta ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito, pela diferença entre o produto da taxa normal de 23% sobre o volume de vendas de sumos e néctares de frutos em regime eat in nas lojas sob a insígnia «C» e o mesmo produto sobre esse volume de vendas à taxa de 6%, procedendo-se aos correspondentes reembolsos de importâncias indevidamente cobradas pela AT.

Pedem, subsidiariamente:

ii.            A anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa e, consequentemente, a anulação parcial  dos atos de autoliquidação de IVA relativos aos meses de Julho de 2017 a Março de 2019, dada a sua manifesta ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito, pela diferença entre o produto da taxa normal de 23% sobre o volume de vendas de sumos e néctares de frutos em regime eat in nas lojas sob a insígnia «C» e o mesmo produto sobre esse volume de vendas à taxa de 13%, procedendo-se aos respetivos reembolsos dos montantes indevidamente cobrados pela AT e, em qualquer dos casos,

iii.           Que, se condene a AT no cálculo e liquidação de  juros indemnizatórios em favor das Requerentes desde o momento em que foi pago o IVA em excesso ou, caso assim não se entenda, desde o indeferimento da reclamação graciosa, até ao efetivo reembolso, em virtude de «erro imputável aos serviços» consubstanciado no Ofício-Circulado n.º 30181, de 6 de Junho de 2016, com interpretação absolutamente ilegal sobre a aplicação da verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA aos sumos ou néctares de frutos, e na reiteração da interpretação aí vertida nas informações vinculativas subsequentes nesta matéria e no ato de indeferimento da reclamação graciosa que imediatamente se impugna.

3             Mais requerem as demandantes  que, no contexto que antecede e após a fixação da matéria de facto, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação que deve ser empregue às normas aplicáveis, designadamente ao artigo 18.º do CIVA e à verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA (normas essas que resultam da transposição da Diretiva IVA para o nosso ordenamento jurídico), seja promovido o reenvio prejudicial do presente processo para o TJUE, nos termos previstos no artigo 267.º do TFUE.

4             À luz do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5             Foram as partes oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

6             Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo ficou constituído em 5-8-2020.

 

7             A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu ao requerimento inicial apresentado, defendendo que o pedido da Requerente deve ser julgado improcedente.

 

8             Atenta a circunstância de, no caso, não se verificar qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada.

 

9             As partes apresentaram alegações escritas finais.

 

Saneamento

 

10           O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, em face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

11           As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º,  da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

12           O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Posição das Requerentes

 

13           No essencial, alega a Requerente para fundamentar o pedido:

 

13.1       A “A” e a “B” são duas sociedades-irmãs cujo objeto social consiste, designadamente na «venda e confeção de refeições, de produtos de cafetaria, de panificação, de pastelaria e a venda de bebidas e de produtos alimentares e não alimentares, de tabaco, de revistas, de jornais e de outras publicações».

13.2       As Requerentes têm como CAE principal o 56290 – «Outras atividades de serviço de refeições», dedicando-se ainda ao comércio a retalho dos mais diversos produtos, com forte incursão no sector alimentar, numa perspetiva de comércio de bairro, em estabelecimentos especializados.

13.3       Constituídas em 2009, reunindo mais de 10 anos de experiência na área de restauração, a “A” e a “B” operam sob a insígnia «C», com o selo do Grupo “D”, que se arroga um novo conceito no mercado de produtos de cafetaria, padaria, pastelaria, confeitaria e easy food (refeições ligeiras), com múltiplos pontos de venda espalhados pelo território nacional.

13.4       Nesses espaços únicos e com características diferenciadoras, e com uma expansão (visivelmente) progressiva, em diversos formatos, a vários pontos do país, as Requerentes têm vendido inúmeros géneros alimentícios e prestam serviços de cafetaria (apenas) em regime de eat in.

13.5       O regime de eat in não traduz mais do que a disponibilização de um local próprio, assim como mesas e cadeiras, para a ingestão de produtos de padaria, confeitaria e cafetaria, bem como refeições, sem serviço de mesa.

13.6       Em sede de IVA, ambas as Requerentes são sujeitos passivos enquadrados no regime normal mensal (nos meses de Julho de 2017 a Março de 2019), que efetuam transmissões de bens e prestações de serviços em que liquidam imposto às taxas reduzida, intermédia e normal.

13.7       As Requerentes aperceberam-se de que têm vindo a (auto)liquidar imposto à taxa normal de IVA de 23% sobre os sumos naturais e sumos ou néctares de frutos, seguindo de perto (e em conformidade com) as orientações genéricas emitidas pela AT em matéria exclusivamente de direito – in casu, da doutrina administrativa emanada no Ofício Circulado n.º 30181, de 6 de Junho de 2016; doutrina essa que versa sobre as «verbas 1.8 e 3.1. da Lista II anexa ao Código do IVA», e cujo alcance normativo descreveremos de seguida.

13.8       Estamos a falar, essencialmente, de um conjunto alargado de sumos naturais e sumos ou néctares de frutos que (sem surpresas) são diariamente transacionados pelas Requerentes nos seus espaços para consumo eat in, tais como sumo de laranja natural (cujas laranjas são espremidas no local e sem adição de quaisquer outros ingredientes ou aditivos), limonadas, sumos de frutas diversas, servidos em pacote ou em garrafa e, bem assim, outros néctares de fruta.

13.9       Nestes casos, a AT tem vindo a rejeitar, sem mais, a aplicação da taxa reduzida de imposto prevista na verba 1.11 da Lista I ou, até mesmo, da taxa intermédia contemplada na previsão normativa da verba 3.1 da Lista II, ambas anexas ao Código do IVA, no tocante aos sumos e néctares de frutos transmitidos por quaisquer prestadores de serviços de alimentação e de bebidas, quando servidos em regime eat in, quer em serviço a la carte (com escolha específica de cada elemento), quer em serviço de menu (em que é adquirido um conjunto de produtos, confecionados nos estabelecimentos ou não).

13.10     Para a AT, «quando, em conjunto com os serviços de alimentação e bebidas abrangidos pela verba em questão, forem fornecidas bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias, aplica-se a estes últimos a taxa normal do imposto, por estarem excecionados da verba 3.1. da Lista II».

13.11     Do seu ponto de vista, quando «diluídas» no âmbito de uma prestação de serviços de alimentação e de bebidas, aquelas bebidas não se encontram compreendidas por qualquer uma dessas verbas (taxa reduzida ou intermédia), logo estão sujeitas à taxa normal.

13.12     Na opinião das Requerentes, estas orientações genéricas consubstanciam, porém, interpretações ilegais e restritivas daquelas verbas, seja porque não é verdade que estes bens não se inserem em tais verbas, seja por que é manifesta a interpretação praeter legem em que a AT incorre, com efeitos diretos e imediatos nas operações tributáveis realizadas pelos sujeitos passivos – pois como orientação vinculante para a própria Administração que é, constrange-os a proceder no sentido dessa «solução» hermenêutica, o que afeta, por vício de violação da lei, os atos tributários (rectius, os atos de autoliquidação de IVA) em crise.

13.13     Em termos quantitativos, as autoliquidações de IVA da “A” e da “B” revelam que ao obedecer àquelas instruções constantes do Ofício Circulado n.º 30181, de 6 de Junho de 2016, têm vindo erroneamente a aplicar a taxa normal de imposto (23%) aos variados sumos e néctares de frutos comercializados nos seus espaços, quando deveria ter sido aplicável a taxa reduzida (6%).

13.14     Cingindo-nos aos meses de Julho de 2017 a Março de 2019, as Requerentes (auto)liquidaram indevidamente imposto num montante global de € 371.768,35 no consumo destas bebidas e que correspondem a 17% do preço-base;

13.15     Em jeito de intróito, será necessário que enquadremos legalmente os sumos naturais de fruta e dos sumos ou néctares de frutos para que possamos compreender o alcance da tributação dos mesmos em sede de IVA, sabendo de antemão as evoluções legislativas sentidas nesta matéria.

13.16     Foquemo-nos, em primeiro lugar, na legislação especial relativa aos sumos e néctares de frutos e a determinados produtos similares destinados à alimentação.

13.17     Sendo inquestionavelmente bens de primeira necessidade e estando, por essa razão, catalogados na Lista I anexa ao Código do IVA que determina os bens que hão de beneficiar da taxa reduzida de IVA, o legislador entendeu que seria curial fixar o conceito de sumo, dos seus vários tipos e dos produtos afins, como sejam os néctares de frutos, bem como as características que os definem.

13.18     Olhemos, então, à definição de «sumo de fruta», facultada pelo Decreto Lei n.º 225/2003, de 24 de Setembro, com as alterações promovidas pelo Decreto Lei n.º 145/2013, de 21 de Outubro, que transpõe a Directiva n.º 2012/12/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Abril:

«Sumo de frutos designa o produto fermentescível, mas não fermentado, obtido a partir da parte comestível de uma ou mais espécies de frutos sãos e maduros, frescos ou conservados por refrigeração ou congelação, com a cor, o aroma e o gosto característicos dos sumos dos frutos de que provém.

Podem ser restituídos ao sumo o aroma, a polpa e as células obtidos por processos físicos adequados a partir da mesma espécie de fruto.

Os sumos de citrinos devem ser obtidos a partir do endocarpo dos frutos. Contudo, o sumo de lima pode ser obtido a partir do fruto inteiro.

Se os sumos forem obtidos a partir de frutos com sementes e pele, as partes ou componentes de sementes ou pele não podem ser incorporadas no sumo. Esta disposição não se aplica a casos em que as partes ou componentes de sementes ou pele não possam ser removidas pelas boas práticas de fabrico.

É autorizada a mistura de sumo de frutos com polme de frutos no fabrico de sumo de frutos».

13.19     De igual modo, aquele diploma legal oferece, também, um conceito de «néctar de frutos», definindo o nos seguintes termos:

«Designa o produto fermentescível, mas não fermentado, obtido por adição de água e de açúcares e ou mel aos produtos definidos nos n.os 1, 2 e 3, a polmes de frutos ou a uma mistura destes produtos e que obedeça aos requisitos do anexo IV. A adição de açúcares e ou mel é autorizada em quantidades que não representem mais de 20%, em massa, do produto acabado.

No fabrico de néctares de frutos sem adição de açúcares ou de baixo valor energético, os açúcares poderão ser total ou parcialmente substituídos por edulcorantes, nos termos da legislação em vigor relativa aos edulcorantes».

13.20     Como seria expectável, estas definições (e outras) estão subjugadas às «disposições do direito da União Europeia aplicáveis aos alimentos, nomeadamente, o Regulamento (CE) n.º 178/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios» como prescreve o n.º 2 do artigo 2.º do Decreto Lei n.º 225/2003, de 24 de Setembro (sublinhado nosso).

13.21     Esta legislação frutícola transpõe para a ordem jurídica interna as disposições europeias relativas às definições e características dos sumos de frutos e dos produtos a eles similares destinados à alimentação humana; comporta, ainda, uma lista extensiva de ingredientes, tratamentos e substâncias autorizadas, que podem ser desde «vitaminas e minerais», a «aditivos alimentares», ou «aromas, polpa e células restituídos».

 

Tributação indireta. Articulação entre os impostos especiais de consumo e o IVA

 

13.22     Já num plano fiscal, e ainda antes de olharmos com detalhe ao enquadramento jurídico-tributário dos sumos naturais e néctares, recordemos que também no âmbito do Direito Aduaneiro e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (os designados IEC’s) encontramos algumas aproximações ao conceito de «sumos e néctares de frutos», bem como outros produtos alimentares que, pelo seu claro distanciamento daqueles, têm características analíticas distintas, como sejam os comumente intitulados «refrigerantes».

13.23     O Código dos IEC (CIEC) prevê a sujeição a imposto sobre produtos «genericamente designados por bebidas não alcoólicas» que se subdividem em três categorias, nos termos do n.º 1 do seu artigo 87.º A:

«a)         as bebidas destinadas ao consumo humano, adicionadas de açúcar ou de outros edulcorantes, abrangidas pelo código NC 2202;

b)           as bebidas abrangidas pelos códigos NC 2204, 2205, 2206 e 2208, com um teor alcoólico superior a 0,5% vol. e inferior ou igual a 1,2% vol;

c)            concentrados, sob a forma de xarope ou outra forma líquida, de pó, grânulos ou outras formas sólidas, destinados à preparação de bebidas previstas nas alíneas anteriores, nas instalações do consumidor final ou de retalhista».

13.24     Centremo-nos, por agora, na categoria abordada na alínea a) do n.º 1 do artigo 87.º A do CIEC, que nos remete para o código 2202 da classificação de mercadorias na Nomenclatura Combinada («NC») instituída pelo Regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23 de Julho, relativo à nomenclatura pautal e estatística e à pauta aduaneira comum e respetivas atualizações; esse código NC 2202 diz respeito, então, a: «[á]guas, incluindo as águas minerais e as águas gaseificadas, adicionadas de açúcar ou de outros edulcorantes ou aromatizadas e outras bebidas não alcoólicas, exceto sumos (sucos) de fruta ou de produtos hortícolas, da posição [NC] 2009» (sublinhado nosso).

13.25     De acordo com as instruções de aplicação do regime do imposto especial sobre bebidas não alcoólicas, divulgadas pela AT através do Ofício Circulado n.º 35073, de 24 de Fevereiro de 2017, estão sujeitas àquele imposto as «[b]ebidas tais como refrescos ou refrigerantes, cola, laranjadas ou limonadas, constituídas por água potável comum, com açúcar ou outros edulcorantes, e adicionados, por vezes, de ácido tartárico e de ácido cítrico», as quais podem ser «tornadas gasosas, por meio de dióxido de carbono» e «[a]presentam-se quase sempre em garrafas ou em outros recipientes fechados hermeticamente».

13.26     Esta descrição está em consonância com a Portaria n.º 703/96, de 6 de Dezembro, que define as regras técnicas relativas às respetivas denominações, definições, acondicionamento e rotulagem das bebidas refrigerantes.

13.27     Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º desta Portaria que se entende por bebida refrigerante ou refrigerante «o líquido constituído por água contendo em solução, emulsão ou suspensão qualquer dos ingredientes previstos no número seguinte e eventualmente aromatizado e ou gaseificado com dióxido de carbono».

13.28     Esta definição a contrario pode (e deve quanto a nós) concorrer para o exercício subsuntivo de determinado produto alimentar na previsão normativa da verba 1.11 da Lista I anexa ao CIVA que não inclui, de todo, as bebidas refrigerantes – vide, por exemplo, PIV n.º 11963, por despacho proferido no dia 25 de Maio de 2017 pela Diretora de Serviços do IVA ou PIV n.º 3374, por despacho proferido no dia 10 de Agosto de 2012 pelo SDG do IVA.

13.29     A conceção de refrigerante é, depois, variável consoante se trate de «refrigerante de sumo de frutos», «refrigerantes de polme», «refrigerante de extratos vegetais», «refrigerante aromatizado», «água tónica», «refrigerante de soda» ou «refrigerante adicionado de bebida alcoólica».

13.30     Significa isto que os refrigerantes, mesmo os refrigerantes de sumo de frutos ou os refrigerantes de polme, têm um teor de sumo de fruta muito inferior, sendo diluídos em água e adicionados aromatizantes naturais ou semelhantes, podendo, inclusive, ser-lhes adicionado dióxido de carbono, por forma a serem gaseificados.

13.31     Em contraponto, os sumos naturais, sumos ou néctares (vulgo, sucos) de frutos ou outros produtos hortícolas, enquadrados na NC 2009 e definidos no Decreto Lei n.º 225/2003, de 24 de Setembro, estão isentos daquele imposto especial das bebidas açucaradas e adicionadas de edulcorantes, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º B do CIEC, nos termos da qual «[e]stão isentas do imposto, as seguintes bebidas não alcoólicas (…) sumos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebidas de cereais, amêndoa, caju e avelã».

13.32     No campo de aplicação deste imposto especial, o legislador optou por tributar os refrigerantes quando adicionados de açúcar e outros edulcorantes, prevendo taxas progressivas consoante o teor de açúcar adicionado, ao abrigo do artigo 87.º C do CIEC, isentando expressamente os sumos e néctares de frutos (mesmo quando adicionados de açúcar).

13.33     Em sede de IVA (que é a que aqui releva) é o n.º 3 do artigo 98.º da Directiva IVA  que sanciona a articulação com os impostos especiais, na medida que «[a]o aplicarem as taxas reduzidas previstas no n.º 1 às categorias relativas a bens, os Estados Membros podem utilizar a Nomenclatura Combinada para delimitar com exatidão cada categoria», portanto, na previsão da aplicação de taxa reduzida aos sumos naturais o legislador nacional há-de se ter inspirado na NC 2009.

13.34     Segundo o disposto na verba 1.11 da Lista I anexa ao CIVA e atentas as características organolépticas e analíticas dos géneros alimentícios, beneficia da aplicação da taxa reduzida de imposto, nos termos da alínea a) do n.º 1 ou do n.º 3 do artigo 18.º daquele Código, a transmissão de «[s]umos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebidas de cereais, amêndoa, caju e avelã sem teor alcoólico».

13.35     Confrontando a redação anterior da verba 1.11 da Lista I anexa ao Código do IVA – «[s]umos e néctares de frutos ou de produtos hortícolas» –, com a redação atualmente vigente conferida pela Lei n.º 7 A/2016, de 30 de Março, que aprova o Orçamento do Estado para 2016 («LOE2016»), é com alguma facilidade que se entrevê um esforço legislativo em abarcar novas realidades no domínio dos sumos de frutos e de produtos a estes similares destinados à alimentação humana que, dada a sua composição nutricional e efeitos positivos na saúde dos consumidores , merecem estar sujeitos à taxa reduzida de IVA (6%).

13.36     Por outro lado, a verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA com que se escuda a AT – e que surge ex novo com a LOE2016, com forte impacto no sector da restauração –, tem a seguinte redação:

«Prestações de serviços de alimentação e bebidas, com exclusão das bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias.

13.37     Quando o serviço incorpore elementos sujeitos a taxas distintas para o qual é fixado um preço único, o valor tributável deve ser repartido pelas várias taxas, tendo por base a relação proporcional entre o preço de cada elemento da operação e o preço total que seria aplicado de acordo com a tabela de preços ou proporcionalmente ao valor normal dos serviços que compõem a operação. Não sendo efetuada aquela repartição, é aplicável a taxa mais elevada à totalidade do serviço».

13.38     Nestes termos, são tributados à taxa intermédia de IVA (13%) os «serviços de alimentação e bebidas», com exceção das «bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias».

13.39     E no perímetro desta última verba, para efeitos de repartição do valor das taxas a aplicar, dever-se-á apurar o valor proporcional que cada parcela do «serviço» representa no preço global fixado, tendo em consideração o preço de cada uma dessas parcelas do serviço quando faturadas individualmente. Aqui, atender-se-á à tabela de preços do estabelecimento ou, na sua falta, ao valor normal dos serviços previsto no n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA, segundo o qual corresponde ao preço dos bens comercializados «em condições normais de concorrência».

13.40     Em face deste inovador cenário legislativo – a que se submete a «prestação de serviços de alimentação e de bebidas» –, a AT aproveitou a oportunidade para alargar (ao máximo) o leque das bebidas excluídas da verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA, por forma a tributá-las à taxa normal de imposto.

 

Do entendimento maximalista da receita tributária da AT

13.41     Tendo em vista a «aplicação uniforme» da verba 3.1 da Lista II anexa ao Código do IVA «por todos os operadores económicos», nos dizeres da AT no ato de indeferimento da reclamação graciosa, emitiu o Ofício Circulado n.º 30181, de 6 de Junho de 2016, no qual preconizou: «[a] verba aplica se ao fornecimento de alimentação efetuado no âmbito de um serviço de restauração ou de catering, independentemente de se tratar de refeição principal ou não (entrada, aperitivos, sandes, sobremesas, gelados, etc.), para consumo nas instalações do prestador do serviço, no caso do serviço de restauração ou para o consumo no local onde o serviço é prestado, no caso do catering».

13.42     Por uma questão de simplicidade de exposição, e como temos vindo a explanar, reportar-nos-emos a este «consumo nas instalações» como eat in.

13.43     Quanto ao fornecimento concreto «de bebidas no âmbito do serviço de restauração ou de catering» a AT defende, em síntese, o seguinte (transcrevendo ipsis verbis o Ofício no ponto 54 do ato de indeferimento da reclamação graciosa):

«A taxa intermédia a que se refere a verba 3.1 da Lista II é ainda aplicável ao fornecimento, incluído no serviço de restauração ou de catering, de águas naturais ou produtos de cafetaria em geral (chá, café, café com leite, leite com chocolate ou chocolate quente, entre outros) e das demais bebidas que não sejam expressamente excluídas da verba.

Quando, em conjunto com os serviços de alimentação e bebidas pela verba em questão, forem fornecidas bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias, aplica-se a estes últimos a taxa normal do imposto, por estarem excepcionados da verba 3.1 da Lista II.

Prevendo a verba 3.1 a possibilidade de serem aplicadas diferentes taxas de IVA às várias componentes do serviço, tal circunstância deve ser devidamente reflectida na factura, para um correcto apuramento do imposto a entregar ao Estado».

13.44     Mais acrescentando – para que seja possível alcançar o «preço global único» tão desejável pelos operadores económicos – que:

«Tendo presente que no sector da restauração o fornecimento de alimentação e bebidas é, muitas vezes, efetuado mediante o pagamento de um preço global único (ex. menu, buffet ou em eventos que incluem o serviço de alimentação e bebidas) o qual, face à atual redação da verba 3.1 da Lista II, pode incorporar elementos sujeitos a taxas de IVA distintas, o legislador determinou, no segundo parágrafo da mesma verba, os critérios de repartição do valor tributável pelas diferentes taxas de IVA aplicáveis.

Assim, para efeitos da repartição do valor tributável pelas taxas a aplicar, deve apurar-se o valor proporcional que cada parcela do serviço representa no preço global fixado, tendo em consideração, para o efeito, o preço de cada uma dessas parcelas do serviço quando facturada individualmente, atendendo-se, para isso, à tabela de preços do estabelecimento ou, na falta desta, ao valor normal dos serviços, determinado nos termos do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA.

Quando não seja efetuada a repartição das taxas de IVA por aquele preço único, aplica-se a taxa mais elevada do imposto a todo o valor tributável».

13.45     O enquadramento fiscal destas atividades de restauração e de catering descrito (e das prestações de serviços de alimentação e bebidas decorrentes dessas mesmas atividades) tem conduzido a AT a uma interpretação exacerbadamente restritiva (e excessivamente formalista) da verba 3.1 da Lista II – (quase) em detrimento da verba 1.11 da Lista I, ambas anexas ao CIVA –, na mais diversa doutrina administrativa disseminada e que importará, nesta sede, convocar.

13.46     Não hesitamos, aliás, em afirmar que a AT vai mais além (da letra da lei) quando sustenta que «[a] partir de 1 de julho de 2016, por força da Lei do Orçamento do Estado para 2016, o serviço de alimentação e bebidas ficou sujeito à taxa intermédia de IVA, por aplicação da verba 3.1 da Lista II, anexa ao Código do IVA (CIVA), com exceção das bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos (naturais ou não), néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias, que se mantêm sujeitas à taxa normal do imposto» – vide, por exemplo, o PIV n.º 10730, por despacho proferido no dia 23 de Agosto de 2016 pelo SGD do IVA, por delegação do Diretor Geral da AT (sublinhado nosso).

13.47     E tem vindo a reforçar essa ideia nas sucessivas instruções administrativas, algumas delas inclusivamente citadas no ato de indeferimento (mais concretamente no ponto 64): «estando em causa “sumos naturais” fornecidos aos clientes no âmbito de operações que se qualificam como prestação de serviços, os mesmos não têm enquadramento na verba 3.1. da Lista II, porquanto aí se excecionam os “sumos” sejam eles naturais ou não» (cfr. artigo 91.º) e «que, no âmbito do serviço de restauração, são tributad[o]s à taxa normal do imposto, porque expressamente excluíd[o]s da verba 3.1 da Lista II» – vide PIV n.º 13123, por despacho proferido no dia 22 de Fevereiro de 2018 pela Directora de Serviços do IVA.

13.48     O que vem dito é aplicado «na prática» com o ato de indeferimento da reclamação graciosa que imediatamente se impugna, ultrapassada a distinção entre «transmissão de bens» e «prestação de serviços».

13.49     Atenta a «factualidade descrita pelas Reclamantes, quanto à prestação deste tipo de serviços nos espaços de cafetaria das suas superfícies comerciais para consumo eat in, aplicando os critérios acima referidos, facilmente se conclui que se consideram reunidos os pressupostos para a qualificação dessas operações como prestações de serviços de alimentação e bebidas para efeitos de aplicação da verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA», a AT assevera que, in casu, «as Reclamantes devem aplicar às mesmas [prestações de serviços de alimentação e bebidas] a taxa intermédia de IVA, a menos que estejam em causa alguns dos produtos constantes da exclusão prevista na parte final do primeiro parágrafo [da verba 3.1 da Lista II], onde se incluem expressamente os sumos e néctares de frutos, sem que o legislador tenha estabelecido qualquer excepção para o caso de estarmos perante um sumo natural, 100% fruta, concentrado, etc.» – vide pontos 66 e 67 do ato de indeferimento (sublinhado nosso).

13.50     Esta posição reiterada da AT (que, diga-se em abono da verdade, não encontra arrimo na lei) de que o consumo de quaisquer sumos naturais de fruta e dos sumos ou néctares de frutos mesmo quando estes sejam incluídos nas refeições eat in - quer em serviço a la carte, quer em serviço de menu - deve ser tributado à taxa normal - assumida até então e reduzida a escrito no ponto 74 do ato de indeferimento da reclamação graciosa - é indefensável tanto à luz da interpretação estrita das normas aplicáveis, como à luz dos mais basilares princípios orientadores do IVA

13.51     (Segue-se, no petitório, a fundamentação jurídica)

 

Posição da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

14           Na resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira vem alegar, no essencial e em síntese:

14.1       Não ocorreu qualquer erro nas autoliquidações processadas em conformidade com as faturas emitidas e nunca corrigidas nos termos legais;

14.2       Não foi alegada nem resulta evidenciada alteração das faturas emitidas nos termos do artigo 29º-7, do Código do IVA (“deve ainda ser emitida fatura ou documento equivalente quando o valor tributável de uma operação ou imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão”);

14.3       As faturas têm por base a contabilização das faturas com a taxa de IVA indicada pelas Requerentes);

14.4       Por outro lado, à luz do princípio da repercutibilidade do imposto, também não tem fundamento o pedido na medida em que só poderiam ser anuladas as liquidações se fosse alegado e  ficasse  demonstrado que o imposto não tinha sido incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37º, do CIVA (artigo 97º-3, do CIVA);

14.5       No caso, por se tratar de imposto repercutido a terceiros, não existem quaisquer elementos de que aqueles (terceiros) tivessem sido ressarcidos de qualquer importância indevidamente cobrada;

14.6       Não estando alegado nem provado tal ressarcimento aos clientes das Requerentes e consumidores finais, a restituição de imposto nestas circunstâncias traduzir-se-ia num enriquecimento sem causa que a lei (interna e comunitária) não permitem;

14.7       Não sendo um gasto das Requerentes à luz dos princípios da repercutibilidade e neutralidade e não apresentando as Requerentes notas de crédito que demonstrem a devolução dos montantes alegadamente liquidados a mais, a devolução e correção não são admissíveis;

14.8       Por outro lado ainda, o sujeito passivo de IVA é também quem menciona indevidamente (sublinhado da Requerida) IVA em fatura - Cfr artigo 2º-1/c), do CIVA e, designadamente,  Acórdão do TJUE de 16-5-2013 - Proc C-191/12;

14.9       Final e subsidiariamente pugna a Requerida pela inaplicabilidade da Verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA (cfr 43º e seguintes, da Resposta).

 

Alegações finais

15           Nas  alegações finais, apresentadas por escrito, as partes mantiveram, no essencial, as posições assumidas anteriormente, nos respetivos articulados apresentados e com pronúncia das Requerentes sobre a questão suscitada pela AT na Resposta relativa à falta de pressupostos para a admissibilidade do pedido anulatório formulado a que infra se fará referência mais detalhada.

 

Saneamento

16           Este Tribunal arbitral é competente, o processo é o próprio e as partes legitimas e capazes.

17           Apresenta-se como questão prévia à apreciação do mérito do pedido a de saber se é admissível o pedido anulatório de autoliquidação de IVA sem que se alegue e demonstre a correção, da liquidação nas faturas emitidas, da taxa de IVA de 23% para 6% ou 13%.

18           Esta questão prévia será desenvolvida e apreciada infra.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

MATÉRIA DE FACTO

 Factos provados

19           Com base nos elementos que constam do processo (processo administrativo, factos consensualizados pelas partes e documentos incorporados nos autos e que não foram impugnados), consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

19.1       As Requerentes (“A” e “B”) são duas sociedades comerciais-irmãs cujo objeto social consiste, designadamente na “venda e confeção de refeições, de produtos de cafetaria, de panificação, de pastelaria e venda de bebidas e produtos alimentares e não alimentares, tabaco, revistas, jornais e outras publicações”...

19.2       ... e têm como CAE principal 56290 “Outras atividades de serviço de refeições”, com dedicação ainda ao comércio a retalho dos mais diversos produtos, com forte incursão no Setor Alimentar, numa perspetiva de comércio de bairro, em estabelecimentos especializados;

19.3       Fundadas na interpretação da Requerida pelo ofício-circulado nº 30 181, de 6-6-2016, têm as Requerentes  efetuado autoliquidações de IVA, em que se incluem as que são objeto destes autos, à taxa normal de 23% sobre sumos naturais e sumos ou néctares de frutos, transacionados nos seus espaços para 6/52 em consumo denominado eat in, tais como sumo de laranja natural (laranjas espremidas no local e sem adição de quaisquer outros ingredientes ou aditivos), limonadas, sumos de frutas diversas, servidos em pacote ou garrafas e, bem assim, outros néctares de fruta;

19.4       Os sobreditos sumos naturais e néctares de frutas são comercializados pelas Requerentes de harmonia com a regulamentação específica vigente em Portugal e que estabelece as caraterísticas que definem os vários tipos de produtos identificados enquanto tal;

19.5       O regime de eat in não traduz mais do que a disponibilização de um local próprio, assim como mesas e cadeiras, para a ingestão de produtos de padaria, confeitaria e cafetaria, bem como refeições, sem serviço de mesa;

19.6       Nos exercícios de 2017 a 2019, a diferença entre o IVA liquidado, relativo aos meses de julho de 2017 a março de 2019, e o IVA à taxa de 6% ascende a €371 769,00;

19.7       Nas faturas emitidas e espelhadas na contabilidade da Requerente e que estiveram na base do IVA liquidado, foi cobrado o valor de IVA à taxa de 23%;

19.8       As Requerentes foram notificadas, por ofício nº …., de 2-12-2019, do indeferimento da reclamação graciosa que haviam deduzido contra os atos de autoliquidação de IVA de ambas (as Requerentes), relativos aos meses de julho de 2017 a março de 2019 (Docs 2 e 3, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

A.2. Factos não provados

19           Não ficou demonstrado nem foi alegado:

-              que as Requerentes, relativamente às sobreditas autoliquidações, tivessem procedido à retificação das faturas emitidas e reembolsado os clientes das diferenças entre IVA à taxa de 23% e IVA à taxa de 6% [cfr e., das alegações finais das Requerentes].

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

20           Relembra-se preliminarmente que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

21           Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

22           À luz do exposto, o quadro factual relevante no caso sub juditio é o que se deixou descrito.

23           Para o estabelecer, ponderou o Tribunal, as posições das partes nos respetivos articulados bem como todo o acervo documental incorporado no processo, incluindo a cópia do processo administrativo instrutor junta pela AT.

24           Ponderou ainda o Tribunal que no âmbito do direito fiscal, o ónus probatório não tem a dimensão subjetiva doutros ramos do direito, mas sim objetiva, no sentido de que o que interessa para a decisão do mérito da causa, quer no procedimento administrativo quer no processo judicial, é o que relevar da verdade dos factos alcançados, independentemente da parte que tenha o ónus de tal prova, atenta a predominância do princípio do inquisitório constante dos art.ºs 99.º da LGT e 13.º do CPPT.

25           No caso, era ónus das Requerentes demonstrar que haviam efetuado as retificações das faturas e na contabilidade nos termos que, mais adiante, no enquadramento jurídico e fundamentação de direito, se desenvolverão.

26           Confessadamente as Requerentes não procederam a tais retificações.

27           Assim, tendo em consideração o exposto e as posições assumidas pelas partes, a prova documental e a cópia do  Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

II. FUNDAMENTAÇÃO (cont.)

B. O Direito

28           Como abordagem preliminar para a fundamentação jurídica, assinale-se o que há muito vem sendo o entendimento da Jurisprudência quanto ao dever de apreciação dos argumentos apresentados pelas partes e que se traduz na não obrigatoriedade (sublinhado nosso) de os Tribunais apreciarem todos os argumentos formulados pelas partes (Cfr., inter alia, Ac do Pleno da 2.ª Secção do STA, de 7 Jun 95, rec 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, pgs. 36-40 e Ac STA – 2ª Sec – de 23 Abr 97, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094).

29           O objeto destes autos reconduz-se a sindicar a (i)legalidade dos atos de indeferimento da reclamação graciosa nº ……………, deduzida pelas Requerentes contra os atos de autoliquidação de IVA de ambas Requerentes (sociedades comerciais “irmãs”), relativos aos meses de julho de 2017 a março de 2019, pedindo, a título principal, a anulação parcial desses atos de autoliquidação por alegado erro nos pressupostos de facto e de direito na consideração de que ocorria uma diferença entre o IVA devido relativo a alguns dos produtos transacionados -  e que seria à taxa de 6% - e o efetivamente cobrado e liquidado - e que o foi à taxa de 23%.

30           Concretamente: o volume de vendas de sumos e néctares de frutos em regime “eat in” nas lojas das Requerentes sob a insígnia “C”, deveria ser liquidado à taxa de 6% e não, como foi, à taxa de 23%, alegando, para o efeito, as razões que se enumeraram supra, em síntese do alegado no pedido de pronúncia arbitral e alegações finais.

31           Subsidiariamente, pedem as Requerentes que a diferença entre a taxa liquidada e a devida seja correspondente à diferença entre IVA à taxa de 23% e à taxa de 13%.

32           Em qualquer dos pedidos, principal ou subsidiário, invocam as Requerentes o direito a juros indemnizatórios desde o momento do pagamento do IVA em alegado excesso ou desde o indeferimento da reclamação graciosa, até efetivo reembolso.

33           Pedem ainda as Requerentes o reenvio prejudicial para o TJUE  se, após fixação da matéria de facto,  subsistirem “(...)dúvidas sobre a interpretação que deve ser empregue às normas aplicáveis no caso concreto, designadamente o artigo 18º, do CIVA e à verba 3.1 da Lista II, anexa ao CIVA (...)”  e que resultam da transposição da Diretiva IVA para o nosso ordenamento jurídico.

 

O mérito dos pedidos - questão prévia

34           Os pedidos, principal e subsidiário, formulados pelas Requerentes reconduzem-se à anulação parcial de autoliquidações de IVA com fundamento em que as mesmas se fundaram na faturação de bens à taxa normal de 23% quando alegadamente o deveriam ter sido à taxa de 6% (pedido principal) ou 13% (pedido subsidiário).

35           Pois bem: como melhor se verá infra, as liquidações de IVA só podem ser anuladas pelo Tribunal quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37º, do CIVA – Cfr. artigo 97º-3, do CIVA.

36           O que quer dizer que para apreciação do mérito do pedido se torna essencial o apuramento, como questão prévia, se o pressuposto mencionado se mostra ou não cumprido ou, mais concretamente, se existe na esfera das Requerentes o direito de pedir o reembolso de diferenças de IVA por erro - porque é disso que se trata - entre a taxa alegadamente devida (6% ou 13%) e a que foi liquidada (23%).

37           Só depois de apreciada e decidida esta questão, é que o Tribunal poderá ou não prosseguir para a apreciação do mérito da vexata quaestio objeto  dos autos e que é a de saber se, à luz da hermenêutica jurídica e dos princípios harmonizados do IVA, a inclusão dos sumos e dos néctares de frutos nos serviços de alimentação e de bebidas impede a aplicabilidade da taxa reduzida de imposto a esses produtos quando individualmente considerados, nos termos da verba 1.11 da Lista I anexa ao Código do IVA ou, subsidiariamente, se tais sumos não fazem parte das bebidas expressamente excluídas na verba 3.1, in fine, da Lista II anexa ao Código do IVA.

38           Naturalmente que a questão em causa, não configura a denominada “fundamentação sucessiva ou a posteriori” [invocação, em sede contenciosa, de fundamentação diversa para, no caso, o indeferimento da reclamação graciosa] do ato tributário mas antes se insere no âmbito das causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito e/ou questões prévias, de conhecimento oficioso ou alegadas pelas partes, subjacentes à pretensão das  Requerentes - Cfr artigos 113º-2, do CPPT e 571º, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29º, do RJAT.

39           E o direito de  pronúncia das Requerentes sobre o teor da Resposta da AT (contraditório) relativamente à sobredita questão foi exercido pelas Requerentes em sede de alegações escritas finais, na sequência do despacho proferido em 30-11-2020 - Cfr 80. a 91.,  das alegações.

40           Vejamos o enquadramento legal e jurídico essencial para apreciação desta questão prévia.

41           É consabido que o IVA é um imposto indireto, de matriz comunitária, que atinge tendencialmente todo o ato de consumo através do método subtrativo indireto e assenta no princípio da neutralidade ao operar, pelo citado método, nas diversas fases do processo produtivo, de molde a garantir a efetiva neutralidade no final da cadeia de transações sobre que incide

42           Sendo o IVA incluído nas faturas emitidas aos clientes, a repercussão da importância do respetivo  imposto é adicionada ao valor da fatura pelo sujeito passivo desse imposto e obrigado à emissão de fatura, contendo esta, designadamente, os montantes do imposto e as taxas aplicáveis por cada transmissão de bens ou prestação de serviços  - artigos 2º-1/a), 29º-1/b), 36º-5 e  37º, do CIVA.

43           No caso de, por erro, inexatidão ou qualquer outro motivo, ser aplicada e transcrita na fatura emitida, uma taxa diversa da que seria aplicável ou faturado IVA numa operação dele isenta, por exemplo, deve ser emitido documento retificativo da fatura e, eventualmente, nova fatura.

44           Ou seja: de harmonia com esta disposição, quando o valor tributável de uma operação ou o correspondente imposto sejam alterados por qualquer motivo, incluindo erro ou inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura (nota de crédito ou nota de débito), o qual deve conter os elementos a que se refere a alínea a) do nº 5 do artigo 36.º, do CIVA, bem como a referência à fatura a que respeita e as menções desta que são objeto de alterações.

45           As retificações às faturas relacionadas com alterações do valor tributável ou do imposto correspondente são exclusiva e validamente efetuadas pela forma indicada, ou seja, pelos documentos retificativos (notas de débito ou notas de crédito) elaborados nas condições e com os requisitos expostos.

46           As citadas notas de crédito ou de débito constitutivas ou justificativas das retificações das faturas podem ser  emitidas pelos sujeitos passivos do imposto (IVA) adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços, obedecendo aos requisitos assinalados supra e ainda em resultado de acordo entre os sujeitos passivos intervenientes, fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e adquirentes ou destinatários dos mesmos.

47           Por outro lado, só se considera devida a dedução de IVA em resultado da  retificação, para menos, do valor tributável da operação (porquanto é essa a questão que ora se coloca) e válida a regularização a favor do sujeito passivo, quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto - Cfr artigo 78º-5, do CIVA.

48           Esta norma tem por objetivo evitar que o sujeito passivo fornecedor regularize a seu favor, imposto inicialmente deduzido pelo seu cliente, sem que este (adquirente), proceda, se for o caso, à correção do correspondente valor a favor do Estado.

49           Ou seja: se o fornecedor optar por efetuar a retificação, esta tem que ser operada pelas duas partes intervenientes (fornecedor e adquirente) nas condições descritas e dentro dos prazos estabelecidos - Cfr citado artigo 78º-2, 3 e 4.

50           Naturalmente que, devendo as operações objeto de faturação ser refletidas  na contabilidade  em obediência ao disposto no artigo 44º-1 e 2/a), do CIVA, no caso de ocorrer a retificação das faturas por, designadamente, inexatidão da taxa de IVA, tal retificação deve ser igualmente refletida na mesma contabilidade, obrigatoriamente, se houver lugar a imposto liquidado a menos e facultativamente, no prazo de dois anos,  quando houver, alegadamente, imposto liquidado a mais - Cfr artigo 78º-3, do CIVA.

51           Em princípio, o IVA incidente sobre operações tributáveis que o sujeito passivo efetuou e que foram refletidas na sua contabilidade e nas declarações (autoliquidações) apresentadas, será o que foi liquidado nas faturas emitida em cumprimento das obrigações legais consagradas, designadamente, nos artigos 36º-5/d) e 37º-1, do CIVA.

52           É este, aliás, o entendimento que resulta do artigo 2º-1/c), do CIVA e  do Regime Comum de IVA consagrado na Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006 (vulgo “Diretiva IVA”) quando dispõe expressamente no seu artigo 203º que o “IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura”, sendo que, nos termos do artigo 226º, da citada Diretiva, a fatura inclui obrigatoriamente a taxa do IVA aplicável.

53           Parece assim inequívoco, à luz do exposto, que havendo inclusão de IVA numa fatura, sem o imposto ser realmente devido, ou espelhando a fatura a aplicação ou liquidação de IVA a taxa superior àquela que seria a devida para a operação em causa, a obrigação de entrega ao Estado será no valor igual ao valor faturado a esse título (IVA) pelo sujeito passivo, independentemente de o ter sido de forma indevida.

54           Só assim não será se tiverem sido adotados os procedimentos anteriormente referidos para a válida retificação das faturas emitidas pelo sujeito passivo que, reafirme-se, inclui as pessoas que mencionem indevidamente, nas faturas emitidas,  haver lugar a IVA - Cfr artigo 2º-1/c), do CIVA.

55           O facto de o sujeito passivo seguir a interpretação do quadro normativo pela forma que o fez a Autoridade Tributária e Aduaneira, em Circular, Ofício-Circulado ou ato análogo, é irrelevante atenta a natureza, não vinculativa para os particulares.

56           São regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos. E isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de atuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).

57           Certo que densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos atos a praticar pela administração tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de validade dos atos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos atos da administração tributária deve ser efetuada através do confronto direto com a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs entre a norma e o ato.

58           O que quer dizer que interpretando o contribuinte de forma diversa a norma legal, não está vinculado a seguir a interpretação diversa dada pela AT em ofício-circulado ou ato afim.

59           Nem pode prevalecer-se dessa interpretação da AT como forma de evitar ou particularizar por esse facto as consequências resultantes de, por exemplo, autoliquidações a taxas superiores às que seriam eventualmente devidas.

60           Assim é que, pedida, em reclamação graciosa, recurso hierárquico ou impugnação,  a anulação parcial das autoliquidações decorrentes, por exemplo, da constatação ulterior, pelo sujeito passivo, da aplicação de taxa de IVA inferior àquela que tinha sido e que era a preconizada pela AT em ofício-circulado, o provimento de qualquer dessas formas impugnatórias não é admissível nem expectável sem prova de que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente dos bens ou dos serviços à luz do princípio da repercussão, independentemente das eventuais dificuldades desse procedimento  - cfr artigo 97º-3, do CIVA. Do exposto decorre que, v. g., sendo as faturas emitidas mencionando IVA a 23% quando deveriam mencionar esse mesmo imposto mas à taxa reduzida de 6%, as autoliquidações terão de tomar em conta a taxa efetivamente repercutida nas faturas (23%), sem haver lugar ao direito ao reembolso da diferença pelo sujeito passivo sem este demonstrar a correção, nos termos anteriormente expostos, na esfera do destinatário ou adquirente dos bens ou serviços a quem foram faturados à taxa de 23%.

61           Para que assim seja são cristalinas as razões ou fundamentos: é que, além de prejudicados os princípios da neutralidade e da repercussão do IVA, ocorreria clamoroso enriquecimento sem causa do sujeito passivo ao cobrar por bens ou serviços valores superiores aos que se obrigava a entregar ao Estado a título de IVA, inflacionando, deste modo, o preço efetivo dos bens adquiridos ou serviços prestados.

62           Importa aqui trazer à colação as pertinentes considerações sobre a natureza do IVA, tecidas pelo saudoso Professor António  Carlos  dos Santos a esse propósito no voto que emitiu, como árbitro, no proc. do CAAD nº 170/2016-T, publicado no respetivo site: «O IVA é um imposto sobre o consumo, baseado num modelo europeu, caracterizado por uma forte intensidade harmonizadora, que visa principalmente tributar o consumidor final e não o consumo intermédio. Este facto é inerente à própria lógica de funcionamento do IVA que não pretende ser um imposto sobre lucros, mas sobre a despesa. Por isso, a Diretiva de Consolidação do IVA n.º 2006/112/CE, de 28.11 (DCIVA) obriga a que, na fatura, figure o valor tributável para cada taxa ou isenção, a taxa do IVA aplicável e o montante do IVA a pagar (art. 226, n.ºs 8 a 10). Como obriga à entrega à Administração Tributária (AT) do IVA mencionado na fatura (art. 203º da DCIVA), seja ele devido ou indevido. Por sua vez, o Código do IVA (CIVA) precisa que as pessoas singulares ou coletivas que mencionem indevidamente o IVA em fatura são sujeitos passivos do imposto (2/1/c CIVA). O IVA indevidamente liquidado em fatura é pois de entrega obrigatória. O cálculo subjacente à liquidação de IVA pressupõe assim um valor tributável, uma alíquota aplicável ("normal" ou "reduzida"), bem como, no caso de sujeitos passivos (em sentido amplo, englobando o que a DCIVA designa de devedor de imposto) a dedução do IVA suportado a montante. A DCIVA prevê um direito geral dos sujeitos passivos á regularização da dedução de imposto (art. 184º), sendo o regime desta regularização delineado pelos EM. O que não prevê é um direito geral de regularização do imposto liquidado em excesso, apenas contemplando algumas situações concretas (e só essas) de regularização no seu artigo 90º cujo teor é o seguinte: "Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros". Note-se que a norma diz respeito ao valor tributável e não às taxas de imposto. Facto que se compreende pois o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura (203º DCIVA). Isto é assim porque, no modelo europeu, o IVA - nunca é demais repetir - foi desde sempre concebido como um imposto geral sobre o consumo, apto para ser aplicado até ao estádio do comércio a retalho, inclusive. Este imposto, tal como é caraterizado no n.º 2 do art. 1º da DCIVA, na esteira da Segunda Diretiva do IVA de 1967, é exatamente "proporcional ao preço dos bens e serviços, seja qual for o número de operações ocorridas no processo de produção e de distribuição anterior ao estádio de tributação". O IVA cobrado não depende pois do tamanho da cadeia de operações: o montante a arrecadar pelo Estado corresponde à aplicação da taxa aplicável na última operação (venda a retalho) ao valor dos bens ou serviços em causa (neutralidade). Para que isso seja possível, o IVA, ao contrário dos impostos plurifásicos em cascata, assenta no direito à dedução: “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço".

63           Também o TJUE tem assumido, na sobredita linha, que o IVA está construído de modo a que “a carga final do imposto seja, em definitivo, suportada pelo consumidor” - Cfr Acórdão Banca Popolare di Cremona, C-475/03, de 3-10-2006, em especial nºs 28 e 32 a 35).

64           Concluindo: a anulação parcial de autoliquidações de IVA por erro quanto à taxa aplicável de IVA em faturas emitidas e que refletem essa taxa, ainda que se pudesse demonstrar o erro quanto à mesma, se, previamente, não for alegada e demonstrada a retificação das faturas nos termos expostos supra, o mérito da impugnação das autoliquidações e o direito ao reembolso do valor correspondente à diferença entre essas  taxas,  não poderão ser apreciados.

65           Relativa a erros de faturação quanto ao valor ou taxas de IVA e na linha do que ora se vem defendendo, se pronunciou já a jurisprudência arbitral no âmbito do CAAD - Cfr., v.g., os Acórdãos de 8-11-2015,  proferido no Proc nº 63/2015 e de 25-6-2019, proferido no Proc nº 608/2018-T  - bem como o TCAS - cfr, v. g.,  Acórdãos de 4-7-2000, nos Procs. nº 1967/99 e 1525/98, publicados no sites www.org.caad.pt

66           E, no que respeita à abordagem da questão na perspetiva, que se aludiu supra, do enriquecimento sem causa, também a Jurisprudência do TJUE se pronunciou já, nomeadamente no Acórdão de 16-5-2013, proferido no Processo C-191/12, onde se pode ler: “(...) «Daqui decorre que o direito à repetição do indevido destina-se a resolver as consequências da incompatibilidade do imposto com o direito da União, neutralizando o encargo económico que indevidamente onerou o operador que, afinal, o veio a suportar efetivamente. Todavia por via de excepção essa restituição pode ser recusada quando conduza a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito. A protecção dos direitos garantidos nesta matéria pela ordem jurídica da União não impõe a restituição de impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando se prove que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efectivamente sobre outras pessoas.»

67           Não se afasta desta orientação, a Jurisprudência do TJUE conforme se reconheceu, v. g., no Acórdão do TCAN - Proc 2185/17.8BEPRT, de 17-12-2020, de que a Requerida juntou cópia aos autos em 22-2-2021 e que se encontra publicado no site do Ministério da Justiça (www.dgsi.pt).

68           O sumário deste aresto é o seguinte: “I - De acordo com a jurisprudência do TJUE o direito comunitário não se opõe a que um sistema jurídico nacional recuse a restituição de impostos indevidamente cobrados em condições suscetíveis de implicar um enriquecimento sem causa dos contribuintes (Acórdãos C- 192/95- Comateb, C-309/06 — Marks & Spencer, C-566/07, Stadeco e C- 398/09 -Lady & Kid A/S). II - Em tais casos, a jurisprudência comunitária vem também afirmando que compete aos órgãos jurisdicionais nacionais «apreciar, à luz das circunstâncias de cada caso concreto, se o encargo do imposto foi transferido no todo ou em parte pelo operador para outras pessoas e, se for esse o caso, se o reembolso ao operador constitui enriquecimento em causa» (cf. Acórdão Comateb e Acórdão C-566/07, Stadeco).III - A norma do artigo 78.º, n,º 5 do CIVA, ao condicionar a regularização a favor do sujeito passivo do imposto indevidamente liquidado à prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto, não viola o direito comunitário, já que, pese embora constitua uma limitação ao direito ao reembolso, tal exceção visa precisamente obviar ou prevenir o enriquecimento sem causa do respetivo titular. IV - Se a Recorrente emitiu faturas onde menciona a liquidação de IVA à taxa de 23% e, na p.i., nada mais alega em termos factuais que permita ao juiz uma análise económica das transações comerciais tituladas pelas faturas que tenha em conta outras circunstâncias pertinentes, não podemos senão concluir que as operações tituladas pelas mesmas foram realizadas nos termos ali declarados e, assim, que os seus clientes efetivamente suportaram o IVA naquela percentagem.

 

Subsunção

69           No caso dos autos, as impugnantes vêm pedir a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e a consequente anulação, parcial, de autoliquidações de IVA correspondentes aos períodos compreendidos entre julho de 2017 e março de 2019, considerando que, em alegado cumprimento do entendimento defendido pela AT no ofício-circulado nº 30 181, de 6 de junho de 2016 [em que é preconizada a aplicação da taxa normal de IVA (23%) ao fornecimento ,entre outros, de sumos e néctares de frutos, em conjunto com os correspondentes serviços de alimentação e bebidas, porquanto os mesmos se encontram abrangidos pela exclusão constante da parte final da verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA – vide pontos 18-21 do acto de indeferimento da reclamação graciosa imediatamente impugnado,  junto pela Requerente como documento nº 1] haviam liquidado IVA à taxa normal de 23% sobre sumos e néctares de frutos vendidos nos espaços de cafetaria que exploram e destinados ao denominado “consumo eat in” quando, segundo entendem, estes mesmos bens deveriam ser sujeitos ou tributados à taxa reduzida de IVA de 6%, “por aplicação da verba 1.11 da Lista 1, anexa ao CIVA” ou, se assim se não entender (pedido subsidiário), à taxa intermédia de 13% contemplada na verba 3.1 da Lista 1, anexa ao CIVA, situação que corresponde a liquidação indevida, segundo alegam, de €371.769,00 ou €205.024,00, conforme se entenda ser aplicável as taxas de 6% ou 13%, respetivamente.

70           Enquadra-se a situação descrita no quadro normativo e jurídico que foi anteriormente invocado, ou seja, reclamam as Requerentes ter ocorrido erro na tributação de determinadas operações, sem alegarem e demonstrarem que retificaram as faturas emitidas e comunicaram essas retificações aos destinatários dos bens ou serviços e que tudo foi espelhado na contabilidade.

71           Ou seja: as diferenças  que reclamam não estão incluídas em faturas passadas aos adquirentes dos bens porquanto nestas o que está contido é o imposto à taxa de 23% e não se demonstra nem alega a retificação dessas faturas e/ou a emissão de novas que espelhem o imposto à taxa de 6% ou 13% ou o reembolso das diferenças de taxas àqueles adquirentes (cfr. artigos 29º-1/c) e 7,36º, 78º-1, 97º-3, do CIVA, na redação à data).

72           O que quer dizer que não estão preenchidos, no caso sub juditio, os pressupostos prévios necessários para o pedido de anulação parcial das autoliquidações.

 

Reenvio prejudicial para o TJUE

73           O reenvio prejudicial, previsto no artigo 267º, do TFUE, é um instrumento de cooperação judiciária pelo qual um juiz nacional e o juiz comunitário são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos estados membros.

74           É doutrina oficial do TJUE, a partir do Acórdão Cilfit (Proc. 283/81 de 6 de Outubro de 1982), que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando (i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; (ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou (iii) já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; (iii) o juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente. 

75           No caso, as Requerentes pedem o reenvio alegando que após a fixação da matéria de facto, podem subsistir dúvidas sobre a interpretação que deve ser empregue às normas aplicáveis ao caso concreto, designadamente ao artigo 18.º do CIVA e à verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA (normas essas que resultam da transposição da Diretiva IVA no nosso ordenamento jurídico).

76           Pois bem, resulta com manifesta evidência a ausência de objeto para o sugerido reenvio na medida em que o Tribunal rejeitou ou vai rejeitar, pelas razões expostas supra, a apreciação da questão da revisão das taxas de imposto aplicáveis por não ficar alegada nem demonstrada a necessária e prévia retificação das faturas em que foi repercutido o IVA.

 

III – DECISÃO

 

Em consequência do exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)            Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelas Requerentes;

b)           Manter na ordem jurídica o ato de indeferimento da reclamação graciosa e os atos de autoliquidação de IVA objeto do pedido, relativos aos meses de julho de 2017 a março de 2019;

c)            Indeferir o pedido de reenvio prejudicial formulado;

d)           Julgar improcedente o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios e

e)           Condenar as Requerentes no pagamento das custas.

*

•             Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC e artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €371 768,35.

•             Custas: Fixa-se o montante das custas em €6 120,00 (tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária), ficando o respetivo pagamento a cargo das Requerentes (artigo 22º-4, do RJAT).

 

                  Lisboa e CAAD, 15-4-2021

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

João Taborda da Gama

(Vogal, com declaração de voto)

 

Filipa Barros

(Vogal)

 

 

 

 

Declaração de Voto de João Taborda da Gama

 

Votei o sentido da decisão. Contudo, pese o brilhantismo do acórdão, teria alcançado a mesma solução com base num processo argumentativo e fundamentação diferentes, que passo a expor de modo sucinto e conclusivo.

a)            A taxa de IVA aplicável

Entendo que em sede IVA a qualificação da operação precede a aplicação da taxa. Assim, sendo as operações em causa qualificadas como prestações de serviços (“serviço de alimentação e bebidas”, até nos termos do Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de março de 2011), e sendo as prestações de serviços geralmente sujeitas à taxa normal de 23%, considero que a verba 3.1. da Lista II, ao excecionar da previsão as bebidas alcoólicas, os refrigerantes, os sumos e os néctares, faz renascer, quanto a estes elementos do serviço de alimentação e bebidas, a aplicação da regra geral aplicável às prestações de serviços (ou seja, a aplicação da taxa de 23%). Por outras palavras, não é pelo facto de a verba 3.1. prever uma taxa intermédia para as prestações do serviço de alimentação e bebidas, que a qualificação da operação é alterada quanto às componentes excecionadas, transfigurando-as em transmissões desses bens. Assim, não será de aplicar a taxa prevista para os “Sumos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebidas de cereais, amêndoa, caju e avelã sem teor alcoólico” (verba 1.11. da Lista I),  já que esta taxa se aplica às transmissões de bens.

Pode a técnica legislativa adotada em 2016 não ser a melhor, mas os elementos relativos à occasio legis são absolutamente claros em ter tido essa redação como objetivo minorar a perda de receita fiscal que a promessa política de “baixar o IVA da restauração” iria acarretar se cumprida na sua integralidade. Aliás, a sujeição à taxa normal da parte do preço da refeição relativo às bebidas referidas corresponde a uma interpretação corrente e, ao que se sabe, incontroversa da lei fiscal (pode por exemplo ver-se o Relatório da UTAU da Assembleia da República Relatório UTAO n.º 27/2020 Impacto económico-orçamental da Proposta de Alteração n.º 6C à POE/2021, novembro de 2020, que analisa uma Proposta de Lei do PCP que, precisamente, “pretende eliminar as exclusões inscritas na atual redação da Verba 3.1 da Lista II anexa ao Código do IVA, designadamente as referentes as bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias. Na situação atual, estas bebidas são tributadas à taxa normal” (p. 1)).

Teria, por tudo isto, decido o processo neste momento argumentativo, com base na interpretação e aplicação das taxas de IVA no sentido propugnado pela Administração Tributária.

Queria, contudo, adicionar três notas adicionais, sobre outros três pontos que não precisaria de analisar –  no iter cognoscitivo que teria seguido – mas que pela sua transversalidade, e por não me rever na fundamentação adotada, não posso deixar de apontar.

b)           A regularização

Considero que o processo de regularização previsto no artigo 78.º, n.º 5 do Código do IVA, nomeadamente a obrigação de dar a conhecer ao adquirente a retificação efetuada, apenas se aplica relativamente a adquirentes que, também eles, são sujeitos passivos. O que se pretende assegurar com o artigo 78.º, n.º 5, do Código do IVA é que o montante liquidado pelo prestador e o montante deduzido pelo adquirente estejam articulados. Ou seja, pretende assegurar-se que o IVA suportado e o IVA deduzido ao longo da cadeia de produção se baseiam nos mesmos valores. Ora, por um lado, o IVA suportado com serviços de alimentação e bebidas não é dedutível pelos sujeitos passivos na esmagadora maioria dos casos (artigo 21.º, n.º 1, al. d) do CIVA). Por outro lado, e em qualquer caso, tendo em consideração os factos descritos no presente processo, os adquirentes são essencialmente consumidores finais, que não têm o direito a deduzir o IVA suportado.

E, de um modo mais geral, como resulta do Acórdão º 170/2016-T,  que subscrevi, mesmo “se o sujeito passivo não fizer a rectificação, favorável ou desfavorável aos seus interesses, não há obstáculo, num Estado de Direito, a que seja reposta a legalidade a favor ou contra o erário público, através de decisão administrativa ou jurisdicional”.

Ou seja, em conclusão, não entendo que seja necessário, num caso com estas características, que o sujeito passivo tivesse de ter procedido à regularização para poder discutir a liquidação do IVA.

 

c)            O reembolso

 

Diretamente relacionada com a anulação da liquidação de IVA coloca-se a difícil, mas não nova nem exclusivamente portuguesa,  questão do reembolso do IVA ilegalmente liquidado e repercutido. Trata-se de uma questão muito complexa pois no limite somos obrigados a escolher entre a menos má das duas más soluções possíveis – de um lado, o enriquecimento do Estado com um imposto que não poderia arrecadar; do outro, o enriquecimento do sujeito passivo com um imposto que não poderia liquidar. Contudo, na maior parte das vezes tenderei para esta segunda imperfeita solução. Desde logo, em muitos casos, e este caso seria um desses certamente, assim foi determinado a agir o sujeito passivo pelo Fisco através de orientações genéricas. Acresce ainda que olhar ao enriquecimento de um sujeito passivo que cobrou IVA a uma taxa superior daquela que era devida não é um exercício que possa ser feito com leveza aritmética, pois implica analisar as dinâmicas de formação de preço e o comportamento do mercado daquele produto ou serviço naquele contexto concreto.

 Contudo, seja como for, este problema, por mais complexo que seja, é sempre apenas uma mera decorrência da anulação da liquidação, e não deve ser confundido com o dever de anulação da liquidação ilegal, e não pode nunca ser um motivo de não anulação, ou de não decisão. A coerência do sistema fiscal, a justa distribuição dos encargos tributários e o princípio da justiça fiscal obrigam a que não se transformem as complexidades da execução de uma decisão em denegação da justiça que vai nessa decisão.

 

d)           O valor jurídico das orientações genéricas

 

Finalmente, discordo da posição expressa no Acórdão sobre a natureza e função das orientações genéricas. Com efeito, como tenho vindo a defender, e este caso mais uma vez o demonstra, a consideração das orientações genéricas como atos meramente internos – e não como verdadeiras normas regulamentares – desconsidera a função para a qual elas são produzidas e publicitadas pela Administração e desprotege em absoluto os sujeitos passivos. Naturalmente que numa administração eletrónica e de massas, que gere um sistema baseado na auto liquidação, as orientações genéricas são emitidas e publicadas com o objetivo exclusivo de condicionar a atividade interpretativa e declarativa dos contribuintes – aliás o que acabam por fazer com sucesso quase total; não olhar a isto desprotege em absoluto o sujeito passivo. Para a fundamentação desta posição remeto para o que escrevi em “Tendo surgido dúvidas sobre o valor das circulares e outras orientações genéricas”, in Estudos em memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches / org. Paulo Otero, Fernando Araújo, João Taborda da Gama. - Coimbra : Coimbra Editora, 2011. - vol.III. - p. 157-225.

 

(João Taborda da Gama)

 

Lisboa 15 de abril de 2021