Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 128/2019-T
Data da decisão: 2019-10-25  IUC  
Valor do pedido: € 5.000,01
Tema: IUC
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A... (NIF...), com domicílio postal em Apartado ..., ...-... Lisboa (“REQUERENTE”), veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar, em 23/2/2019, pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos de liquidação de “IUC dos anos de 2013, 2014, 2015, 2017, 2018 e 2019” relativos ao “veículo com a matrícula ..., da categoria C.”

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

2.1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o presente signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 8 de Maio de 2019.

3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente, alega, em síntese, o seguinte:

 

a)            Desde o ano de 2012 a Autoridade Tributária e Aduaneira iniciou sucessivos atos de notificação de A... no sentido de proceder ao pagamento de IUC.

 

b)           A emissão dos documentos para notificação iniciou-se em março de 2014 [no que se refere ao IUC dos anos de 2013 e 2014 sobre o veículo com a matrícula ..., da categoria C] e tem prosseguido relativamente aos anos de [2015,] 2017, 2018 e 2019 relativamente ao IUC do veículo que se identificou supra.

 

c)            Em relação à matéria objeto destes documentos de notificação para pagamento, o cidadão/contribuinte sempre comunicou à Autoridade Tributária e Aduaneira que o veículo em causa se encontrava imobilizado desde o ano de 2005 para reparação profunda, por não estar em condições para poder circular e, logo, não estava em condições de se poder fruir/utilizar o mesmo.

 

d)           Até ao presente, a Autoridade Tributária e Aduaneira ignorou/desconsiderou tal informação e justificação.

 

e)           Entretanto, e para evitar quaisquer dúvidas sobre a veracidade da impossibilidade de circulação e de utilização do referido veículo com a matrícula ..., requereu logo em 2012 –A...– proteção jurídica incluindo a nomeação de patrono oficioso, para intentar – devidamente assessorado – a competente ação judicial a propósito do mesmo veículo que se identificou.

 

f)            Tal ação judicial correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Cartaxo – Instância Local – Secção de Competência Genérica – Juiz.., sob o processo n.º .../13...YXLSB, tendo entrado em juízo em 25.02.2013, com prolação de sentença em 19.05.2015, conforme se retira da certidão da sentença cuja cópia se junta como Doc. 5 [...]. Decorrendo desta mesma certidão que a sentença foi objecto de recurso que transitou em julgado em 03.04.2017 (cf. Doc. 5).

 

g)            Nesta sentença foi confirmado o que o requerente havia invocado perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, ali se tendo dado por assentes, entre outros, os seguintes pontos de facto: a) «No início do ano de 2005, em data que se não pode precisar, aquele veículo foi deixado na oficina de reparação, pintura e bate chapa pertencente ao ora R e ao cuidado deste.» (cf. Sentença, Doc. 5 – Facto provado n.º 2); b) «O veículo de matrícula ... desapareceu da sua oficina, onde se encontrava, em Dezembro de 2013.» (cf. Sentença, Doc. 5 – Facto provado n.º 19).

 

h)           Por conseguinte, através da referida sentença fica comprovado que desde 2005 o requerente não é utilizador, detentor ou fruidor do referido veículo por não se encontrar na sua posse, não podendo fruir da utilização do mesmo. Dada a situação de impossibilidade de utilização do veículo com a matrícula ... desde o ano de 2005 até agora, pois o veículo foi também considerado na mesma sentença desaparecido desde o ano de 2013, não pode A... estar a ser tributado de IUC com características legais bem específicas e legalizadas sobre os anos de 2013, 2014, 2015, 2017, 2018 e 2019.

 

i)             De toda esta matéria, sempre tem vindo o requerente junto da Autoridade Tributária e Aduaneira a dar conhecimento de toda a factualidade existente e judicialmente confirmada e constatada por sentença proferida em 19.05.2015 (cf. Doc. 5).

 

j)             Requer-se assim de forma expressa a constituição arbitral em matéria tributária com vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação de todos os atos de liquidação de IUC e respetivos juros compensatórios relativos aos períodos de tributação do IUC dos anos de 2013, 2014, 2015, 2017, 2018 e 2019 e ao veículo com a matrícula ... .

 

k)            Mais se informa a arbitragem tributária de que relativamente e especificamente ao IUC do ano de 2016 e sobre o mesmo veículo, a propósito do qual requereu a intervenção do Centro de Arbitragem Administrativa, em 13.10.2017 foi proferida douta Decisão Arbitral no processo n.º 166/2017-T, de que se junta cópia como Doc. 6 e que aqui se dá por reproduzida.

 

l)             Verifica-se que só a partir do final do ano de 2012 teve o requerente conhecimento através de notificação para Audição Prévia desta questão tributária, logo pedindo proteção jurídica para junto da autoridade judicial obter clarificação da situação do veículo, referindo-nos à ação judicial interposta em 25.02.2013 no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Cartaxo – Instância Local – Secção de Competência Genérica – Juiz..., sob o processo n.º .../13...YXLSB, com prolação de sentença em 19.05.2015 e entretanto transitada em julgado em 03.04.2017 (cf. Doc. 5).

 

m)          Igualmente, junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, invocando os mesmos argumentos, pediu o cancelamento da matrícula do veículo há muito desaparecido, conforme resulta da cópia do requerimento de 26.10.2017 que se junta como Doc. 11, bem como, do comprovativo do seu envio (impressão de email) que se junta como Doc. 12 e aqui se dão por reproduzidos.

 

n)           Porém, a inércia do Instituto da Mobilidade e dos Transportes quanto à satisfação do requerido, persistindo numa posição de não cancelamento, até por via da intervenção da Comissão de Arbitragem Tributária, leva a permanente acrescer de demanda de responsabilidade pela Autoridade Tributária e Aduaneira a propósito do IUC sobre o veículo com a matrícula ..., há muito desaparecido. Sobre tal matéria junto do CAAD foi efetuada a devida diligência para providenciar o cumprimento do douto Acórdão com trânsito em julgado em 03.04.2017 (cf. Doc. 5 – certidão), tendo entretanto junto do CAAD intentado o processo com o n.º 2/2019-A, conforme o requerimento cuja cópia se junta como Doc. 13 e respetivo comprovativo de aceitação e autuação, cuja cópia se junta como Doc. 14 e aqui se dão por reproduzidos.

3.1. O Requerente termina pedindo que a acção arbitral seja julgada inteiramente provada e procedente e, por essa via, anulados os actos de liquidação de IUC “respeitantes ao veículo com a matrícula ... dos anos de 2013, 2014, 2015, 2017, 2018 e 2019, bem como respetivos apensos desenvolvidos (cf. Doc. 7, ponto 6, Doc. 8, Doc. 9 e Doc. 10).”

 

4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (daqui em diante será abreviadamente designada por “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:

 

a)            O Requerente foi notificado dos atos de liquidação de IUC, referente aos anos de 2013 e 2014, cuja data limite de pagamento ocorreu em 2014-06-17.

 

b)           Por não concordar com essas liquidações, o Requerente apresentou, em 2014-07-23, a reclamação graciosa n.º ...2014..., a qual foi indeferida na sua totalidade em 2014-08-28.

 

c)            Assim, tendo a reclamação graciosa supra sido apresentada em 2014-07-23 e a data de pagamento mais recente relativa às liquidações de IUC de 2013 e 2014 ser de 2014-06-17, se encontra largamente ultrapassado o prazo para a impugnação das liquidações (artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, ex vi artigo 70.º, n.º 1 do mesmo Código).

 

d)           Na situação em apreço, o pedido de constituição do tribunal arbitral apresentado pelo Requerente deu entrada em 2019-02-23, estando há muito ultrapassado o prazo para impugnação das liquidações referentes aos anos de 2013 e 2014, pelo que o pedido arbitral é extemporâneo relativamente a essas liquidações.

 

e)           A extemporaneidade constitui exceção peremptória, nos termos do art. 576.º do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo art. 29.º do RJAT), que importa a absolvição da AT quanto ao pedido referente aos anos de 2013 e 2014, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo Requerente.

 

f)            Relativamente às liquidações de IUC dos anos de 2015 e 2017, o Requerente optou por impugnar diretamente no tribunal arbitral tais liquidações. A data limite de pagamento da liquidação de IUC do ano de 2015 ocorreu em 2015-07-30. E a data limite de pagamento da liquidação de IUC referente ao ano de 2017 ocorreu em 2017-11-10. Também quanto a estas liquidações, o pedido arbitral é extemporâneo, uma vez que se encontra há muito ultrapassado o prazo para impugnação das mesmas, nos termos do disposto no art. 10.º, n.º 1 do RJAT combinado com o art. 102.º, n.º 1 e 2 do CPPT.

 

g)            A extemporaneidade constitui exceção peremptória, nos termos do art. 576.º do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo art. 29.º do RJAT), que importa a absolvição da AT, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo Requerente.

 

h)           O Requerente foi notificado dos atos de liquidação de IUC, referente ao ano de 2018, cuja data limite de pagamento ocorreu em 2018-05-11. Por não concordar com essa liquidação, apresentou, em 2018.05.03, a reclamação graciosa n.º ...2018..., a qual foi indeferida na sua totalidade em 2019-01-28. Tendo o pedido arbitral sido apresentado em 2019-02-23, o mesmo é tempestivo apenas relativamente às liquidações dos anos de 2018 e 2019, uma vez que foi apresentado dentro do prazo do artigo 10.º do RJAT.

 

i)             Face ao exposto, o pedido arbitral é tempestivo para a apreciação das liquidações de IUC dos anos de 2018 e 2019. Pelo que deve o valor do pedido arbitral ser retificado para o valor das liquidações de IUC dos anos de 2018 e 2019.

 

j)             Alega o Requerente que os atos tributários impugnados assentam em erro sobre os seus pressupostos, na medida em que já não era o proprietário do veículo automóvel identificado nas liquidações, no momento em que se venceu a obrigação de liquidação do respetivo IUC, apesar do registo automóvel indicar o Requerente como proprietário daquele.

 

k)            Salvo o devido respeito, entendemos que as alegações do Requerente não podem de todo proceder, porquanto faz uma interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada.

 

l)             Efectivamente, o entendimento propugnado pelo Requerente decorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

 

m)          O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

n)           É imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem.

 

o)           Em suma, o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, sendo certo que a tese propugnada pelo Requerente direcciona o seu objectivo para o alvo errado.

 

p)           Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que os argumentos do Requerente não encontra[m] qualquer apoio na lei, porquanto tal resulta não apenas do aludido n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código.

 

q)           Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos do CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito, derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

r)            Por último, importa ainda demonstrar que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pelo Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui a prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel (a este propósito, note-se, desde logo, que os casos taxativamente tipificados no artigo 3.º do CIUC, tanto no seu n.º 1, como no n.º 2, correspondem exactamente aos casos de registo automóvel obrigatório, nos termos do Código do Registo Automóvel (CRA)).

 

s)            De tudo quanto supra se expôs resulta claro que o ato tributário em crise não enferma de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era o Requerente, na qualidade de proprietário, o sujeito passivo do IUC.

 

t)            Pelo que se conclui que o art. 3.º do CIUC não contempla qualquer presunção, cuja ilisão a afaste da incidência do imposto. Se no registo é o Requerente que consta, então é ele que é o responsável pelo pagamento do IUC, independentemente de utilizar o veículo.

 

u)           Da análise do pedido arbitral, constata-se que o Requerente não juntou qualquer documento que prove que não é o proprietário do veículo, nomeadamente o cancelamento junto do IMT ou do registo automóvel, pelo que continua a constar no registo como proprietário do veículo.

 

v)            O Requerente apenas juntou uma cópia simples da sentença proferida no Processo n.º .../13...YXLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém. Ora, a sentença proferida, caso eventualmente tenha já transitado em julgado, apenas prova que o Requerente, durante um determinado período temporal, não usufruiu do veículo automóvel. [...]. E mesmo que já tenha ocorrido o trânsito em julgado, o facto de o Requerente não ter usufruído naquele período de tempo do veículo em questão, não faz com que o mesmo deixe de ser o seu proprietário, uma vez que se provou que esteve numa oficina para reparação, mas que sempre continuou em seu nome no Registo Automóvel e consequentemente, é o Requerente o responsável pelas obrigações fiscais, nomeadamente pelo pagamento do IUC.

 

w)          Como não providenciou pelo cancelamento da matrícula, é o Requerente que consta do registo automóvel como proprietário do veículo, logo é este o responsável pelo pagamento do IUC.

 

x)            O Requerente não juntou cópia de que solicitou o cancelamento de matrícula, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer.

 

y)            Em suma, o Requerente não logrou provar a pretensa transmissão/desaparecimento do veículo aqui em causa nas datas aqui em discussão.  

 

4.1. A AT conclui pedindo que seja julgada: a. Procedente a excepção da extemporaneidade do pedido arbitral relativamente às liquidações de IUC dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2017; b. O valor do pedido reduzido para o valor das liquidações de IUC dos anos de 2018 e 2019; c. Improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral referente às liquidações de IUC dos anos de 2018 e 2019, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.

 

5. Tendo sido invocada excepção mas tendo o Requerente respondido à mesma após despacho do Tribunal datado de 2/7/2019, e não havendo matéria de facto controvertida, por as questões a decidir serem de direito, o Tribunal Arbitral, através de despacho de 7 de Outubro de 2019, prescindiu da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Foi, também, fixado o dia 25 de Outubro de 2019 para a prolação da decisão arbitral.

 

II. Saneamento

 

6. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

 

7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

8. Como a Requerida invocou, na sua resposta, excepção por extemporaneidade quantos aos pedidos de anulação das liquidações de IUC dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2017 (dado que, quanto a estes, entende que “há muito [se encontra] ultrapassado o prazo para impugnação das mesmas, nos termos do disposto no art. 10.º, n.º 1 do RJAT combinado com o art. 102.º, n.º 1 e 2 do CPPT”), cabe averiguar se a mencionada excepção deve ser considerada procedente, atendendo, ainda, ao que consta dos requerimentos do Requerente apresentados a 15/7/2019 e 1/9/2019, nos quais este se pronunciou sobre a referida excepção.

 

9. No entender da Requerida, a invocada extemporaneidade decorre, nomeadamente, do facto de: i. quanto aos pedidos de anulação das liquidações de IUC dos anos de 2013 e 2014, a reclamação graciosa respectiva ter sido “apresentada em 2014-07-23 e a data de pagamento mais recente relativa às liquidações de IUC de 2013 e 2014 ser de 2014-06-17, [pelo que] se encontra largamente ultrapassado o prazo para a impugnação das liquidações”; e ii) quanto aos pedidos de anulação das liquidações de IUC dos anos 2015 e 2017, “a data limite de pagamento da liquidação de IUC do ano de 2015 [ter ocorrido] em 2015-07-30. E a data limite de pagamento da liquidação de IUC referente ao ano de 2017 [ter ocorrido] em 2017-11-10. Também quanto a estas liquidações, o pedido arbitral é extemporâneo” porque, tendo estas sido directamente impugnadas neste Tribunal arbitral (e tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 23/2/2019), “se encontra há muito ultrapassado o prazo para impugnação das mesmas, nos termos do disposto no art. 10.º, n.º 1 do RJAT combinado com o art. 102.º, n.º 1 e 2 do CPPT.”

 

10. Por seu lado, o ora Requerente, tendo sido notificado para se pronunciar sobre a referida excepção, alegou, em síntese, que:

 

10.1. Quanto à intempestividade do pedido arbitral relativo à liquidação de IUC dos anos de 2013 e 2014: i. “por precaução administrativa – em tempo da notificação para a audição prévia, [o Requerente] intentou e está em juízo no Tribunal Tributário de Lisboa, unidade Orgânica 1, o processo de impugnação judicial com o n.º .../16...BELRS intentado em 21.12.2016, matéria que a Autoridade Tributária e Aduaneira sabe e em que se impugnam as liquidações de IUC relativamente aos anos de 2013 e 2014 de que de forma conjunta em 2014 foi notificado”; ii. “Não pode [...] vir a Autoridade Tributária e Aduaneira deduzir no artigo 4.º e seguintes da douta contestação, exceção de intempestividade do pedido arbitral, na medida em está ainda pendente de decisão judicial, o ato de audição prévia, rectius, o direito a exercer o direito de audição prévia pelo requerente.”; iii. “não pode vir a verificar-se qualquer situação de exceção a propósito de intempestividade de pedido de pronúncia arbitral relativamente às liquidações de IUC dos anos de 2013 e 2014 e respeitantes ao veículo com a matrícula ... .”

 

10.2. Quanto à intempestividade do pedido arbitral relativo à liquidação de IUC do ano de 2015: i. “é necessário que a Autoridade Tributária e Aduaneira não olvide que sobre este imposto existem autos a correrem termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, Unidade Orgânica 2, sob o processo n.º .../17...BESNT, matéria portanto, em juízo e que por isso não pode ignorar.”; ii. “Situação que contraria o que bem aduzido no artigo 13.º da douta contestação, dado estar pendente decisão sobre impugnação desta matéria (IUC 2015) nos autos que se referiram.”

 

10.3. Quanto à intempestividade do pedido arbitral relativo à liquidação de IUC do ano de 2017: i. “Relativamente ao ano de 2017, em 07.03.2019 fez entrega A... junto da Autoridade Tributária e Aduaneira de requerimento informando que iria junto do Centro de Arbitragem Administrativa apresentar esta matéria para ser dirimida, conforme decorre da comunicação cuja cópia se junta como Doc. 20, o que se verifica através do presente processo.”; ii. “Ignora [...] a Autoridade Tributária e Aduaneira na douta contestação toda a correspondência havida com A... entre finais de agosto de 2017 e 07.03.2019 de que tudo se junta cópia (cf. Doc. 7 a Doc. 20, mormente, Doc. 7 e Doc 20).”; iii. “É preciso sempre verificar que a data do trânsito em julgado do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora em 03.04.2017 (cf. RI - Doc. 5), que sem margem para dúvidas verifica a incapacidade de locomoção do veículo com a matrícula ... desde o ano de 2005 e o respetivo desaparecimento – roubo, extravio – do mesmo desde 2013, factualidade a que A... é alheio conforme sentença proferida nos referidos autos do processo n.º .../13...YXLSB e que vem transcrita nestes autos.”

 

11. Vejamos, então.

 

12. Excluindo os pedidos de anulação das liquidações de IUC dos anos de 2018 e 2019 (sobre os quais não foi invocada a excepção), restam, para análise à luz da referida excepção, os pedidos de anulação das liquidações referentes ao IUC dos anos de 2013 e 2014, 2015 e 2017.

 

13. Decorre da leitura dos presentes autos a constatação de que, à data em que foi deduzido o presente pedido de pronúncia arbitral (23/2/2019), já há muito estava ultrapassado o prazo para impugnação das liquidações de IUC dos referidos anos de 2013, 2014, 2015 e 2017, atendendo ao disposto no artigo 10.º, n.º 1, do RJAT, combinado com o artigo 102.º, n.º 1 e 2, do CPPT – facto este que não é contrariado pelo ora Requerente na sua resposta à excepção.

 

14. Com efeito, e como bem assinalou a Requerida (não tendo sido, a respeito destas datas, desmentida pelo Requerente na sua resposta à excepção): i. quanto aos pedidos de anulação das liquidações de IUC dos anos de 2013 e 2014, a reclamação graciosa respectiva foi “apresentada em 2014-07-23 e a data de pagamento mais recente relativa às liquidações de IUC de 2013 e 2014 [foi] de 2014-06-17, [pelo que] se encontra largamente ultrapassado o prazo para a impugnação das liquidações”; e ii) no que se refere aos pedidos de anulação das liquidações de IUC dos anos 2015 e 2017, “a data limite de pagamento da liquidação de IUC do ano de 2015 ocorreu em 2015-07-30. E a data limite de pagamento da liquidação de IUC referente ao ano de 2017 ocorreu em 2017-11-10. Também quanto a estas liquidações, o pedido arbitral é extemporâneo” porque, tendo estas sido directamente impugnadas neste Tribunal arbitral (e tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 23/2/2019), “se encontra há muito ultrapassado o prazo para impugnação das mesmas”.

 

15. Não disputando estas datas, o ora Requerente alega, na sua resposta à excepção, que, para além de “toda a correspondência havida” com a AT entre “agosto de 2017 e 07.03.2019” (quanto ao IUC do ano de 2017), também não se pode ignorar existirem “autos a correrem termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, Unidade Orgânica 2, sob o processo n.º .../17...BESNT, matéria portanto, em juízo e que por isso não pode ignorar.” (quanto ao IUC do ano de 2015), e estar “em juízo no Tribunal Tributário de Lisboa, unidade Orgânica 1, o processo de impugnação judicial com o n.º .../16...BELRS intentado em 21.12.2016, matéria que a Autoridade Tributária e Aduaneira sabe e em que se impugnam as liquidações de IUC relativamente aos anos de 2013 e 2014 de que de forma conjunta em 2014 foi notificado” (quanto ao IUC dos anos de 2013 e 2014).

 

16. Tendo em consideração o supra exposto – e analisados os Docs. apensos à resposta do Requerente e, nomeadamente, o Doc. 1 (que contém a p.i. no processo de impugnação judicial com o n.º .../16...BELRS, intentado em 21/12/2016 e que ainda não terá transitado em julgado, e no qual se impugna “o IUC relativo ao veículo com a matrícula ... e aos anos de 2013 e 2014”) –, retiram-se as seguintes conclusões para cada um dos anos em causa:

 

16.1. Relativamente ao pedido de anulação das liquidações de IUC dos anos de 2013 e 2014, verifica-se que ocorre a extemporaneidade alegada pela Requerida. [Acrescente-se que, neste caso, não se chega a colocar a hipótese de uma eventual excepção de litispendência  porque da leitura do processo de impugnação judicial com o n.º .../16...BELRS pode concluir-se não existir identidade da causa de pedir, uma vez que os fundamentos (“o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”: artigo 498.º, n.º 4, do CPC) para a declaração de ilegalidade nas acções em curso – judicial e arbitral – são diferentes .]

 

16.2. Quanto ao pedido de anulação da liquidação de IUC do ano de 2015, verifica-se que ocorre, também, a extemporaneidade alegada pela Requerida. [Neste caso não há, igualmente, lugar à análise de uma eventual excepção de litispendência porque, apesar de o Requerente ter informado, na sua resposta à excepção, “que sobre este imposto existem autos a correrem termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, Unidade Orgânica 2, sob o processo n.º .../17...BESNT”, não é possível apurar – porque a p.i. dessa acção judicial não consta destes autos – quais os fundamentos invocados nessa impugnação, não existindo, assim, condições para que se possa concluir, e.g., pela existência, ou não, de identidade da causa de pedir (nem para que se possa concluir pela existência, ou não, da referida litispendência).]

16.3. Quanto ao pedido de anulação da liquidação de IUC do ano de 2017, verifica que ocorre, também, a extemporaneidade alegada pela Requerida. Com efeito, e como acima já se mencionou, o ora Requerente não desmentiu ou contrariou a alegação de extemporaneidade, apenas invocou ter havido uma troca de correspondência com a AT desde “agosto de 2017” – facto que, à luz das normas relativas a prazos de impugnação, já acima referidas, não releva.

 

17. Em face do acima exposto, conclui-se que o pedido arbitral é extemporâneo relativamente às liquidações de IUC dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2017 – extemporaneidade que constitui excepção peremptória nos termos do art. 576.º do CPC (ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT), importando, na parte referida, a absolvição da AT.  Por tal razão, o valor do presente pedido terá de ser reduzido, nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT (ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), para o valor impugnado da liquidação de IUC (e juros compensatórios) relativa ao ano de 2018  (o que tem implicações na definição do montante das custas).

 

18. Atendendo aos elementos que constam do PAT n.º .../2019, bem como à informação que consta do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2018..., ambos apensos aos autos, a liquidação de IUC (e juros compensatórios) n.º ..., relativa ao período de 2018 e correspondente ao veículo com a matrícula ..., tem o valor de €53,42. (Assim sendo, o valor das custas deste processo arbitral será de €306,00.)

19. Impõe-se, assim, e em seguida, o conhecimento do mérito do pedido arbitral unicamente quanto à liquidação de IUC do ano de 2018 que incidiu sobre o veículo com a matrícula ...– uma vez que, quanto a esta, o presente pedido arbitral foi apresentado dentro do prazo do artigo 10.º do RJAT (a reclamação graciosa interposta pelo ora Requerente foi indeferida através de despacho de 21/1/2019, o qual foi notificado ao Requerente por ofício de 28/1/2019 – vd. Doc. 21 apenso aos presentes autos –, tendo este, por sua vez, interposto o seu pedido de constituição de tribunal arbitral em 23/2/2019).

 

III. Questões a decidir

 

20. No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: 1) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção; 2) saber se a ilisão da mesma foi feita; 3) saber se, como alega a AT, a interpretação que foi feita pelo ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei.

 

IV. Mérito

 

IV.1. Matéria de facto

 

21. Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

A. Com referência ao mês de Janeiro de 2018, o Requerente constava na base de dados do Instituto dos Registos e Notariado (IRN – Conservatória do Registo Automóvel) como proprietário do veículo automóvel com a matrícula ... .

B. Como até 31/1/2018 o Requerente não procedeu ao pagamento do IUC relativo ao ano de 2018, a AT procedeu, em 14/4/2018, à liquidação oficiosa do imposto em causa.

C. O Requerente foi notificado da liquidação de IUC e juros compensatórios em causa através do Documento n.º 2018..., de 23/4/2018.

D. Discordando da referida liquidação, o Requerente deduziu, em 3/5/2018, reclamação graciosa requerendo a anulação daquela. Esta reclamação foi indeferida por despacho de 21/1/2019 (o qual foi notificado ao Requerente por ofício de 28/1/2019: vd. Doc. 21 apenso aos presentes autos).

E. Tendo em vista demonstrar a impossibilidade de circulação e de utilização/fruição do veículo com a matrícula ..., o ora Requerente interpôs, em 25/2/2013, acção judicial no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Cartaxo – Instância Local – Secção de Competência Genérica – Juiz..., sob o processo n.º .../13...YXLSB.

F. Nos termos da sentença desse processo, prolatada a 19/5/2015 (vd. Doc. 5 apenso aos autos) – sentença que foi objecto de recurso que transitou em julgado em 3/4/2017 – deram-se por assentes (com interesse para os presentes autos) os seguintes pontos de facto: “No início do ano de 2005, em data que se não pode precisar, aquele veículo foi deixado na oficina de reparação, pintura e bate chapa pertencente ao ora R e ao cuidado deste. [facto provado n.º 2]”; “O veículo de matrícula ... desapareceu da sua oficina, onde se encontrava, em Dezembro de 2013. [facto provado n.º 19]”.

G. A liquidação de IUC do ano de 2019, invocada na p.i. do Requerente, não consta das tabelas do PAT n.º .../2019 (apenso aos presentes autos) e, como também confirma o próprio Requerente, no seu Requerimento apresentado a 16/10/2019, “contrariamente ao que se tem aguardado, ainda não requereu/exigiu a Autoridade Tributária e Aduaneira o pagamento de IUC respeitante ao ano de 2019.”

H. O Requerente interpôs o seu pedido de constituição de tribunal arbitral em 23/2/2019.               

 

IV.2. Factos não provados

 

22. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

23. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

24. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

25. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes.

 

 

IV.4. Matéria de direito

 

26.  As questões de direito controvertidas (relativas a saber se o art. 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; e se, como alega a AT, a interpretação que foi feita pelo Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei)  confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.

 

27. O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

                “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

               

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

28. A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

29. Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

30. A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.      

 

31. Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

32. Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

33. Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). A este propósito, a AT alega que “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que os argumentos do Requerente não encontra[m] qualquer apoio na lei”, e “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pelo Requerente [...] é manifestamente errada”.

 

34. Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

35. O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na Decisão Arbitral do processo n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

36. Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

37. Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que a AT alegue que a “opção [...] acolhida pelo legislador [...] foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel”, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi acima dito, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada se apresentada prova em contrário.

 

38. No mesmo sentido aqui defendido, pode ver-se, por exemplo, o Acórdão do TCA Sul de 14/3/2019, proc. 201/14.4BEALM: “Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.04.2018, proferido no processo n.º 0206/17: «Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respectivo acto constitutivo, apenas confere publicidade ao acto registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efectivo titular do direito registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça, em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjectiva de imposto dando prevalência ao acto constitutivo do direito sobre o acto registado.» De facto, o registo definitivo não constitui mais do que uma presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova.”; o Acórdão do TCA Sul de 19/3/2015, proc. 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”; ou, ainda, o Acórdão do TCA Norte de 11/1/2018, proc. 00888/13.5BEPRT: “O art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário mas essa presunção é ilidível por força do art. 73.º da LGT.”

 

39. Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

40. Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

41. A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

42. No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a Decisão Arbitral de 15/10/2013, proferida no processo n.º 14/2013-T, em termos que se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário.” Veja-se, também, o seguinte excerto: “[«acolhe-se a argumentação jurídica aduzida no acórdão desta Secção, proferido no processo n.º 2502/14.2BEPRT de 01.06.2017, ao que sabe ainda inédito, onde consta:»] «O examinado art. 3.º, n.º 1, do C.I.U.C., consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do art. 73.º da L.G.T.. Nesta situação, a ilisão da presunção obedece à regra constante do art. 347.º do C. Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova - a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos (art. 346.º do C. Civil) que torne os factos presumidos duvidosos, ou seja, e pelo contrário, ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais” (Acórdão do TCA Norte de 7/12/2017, proc. 00358/14.4BEVIS).

 

43. Ora, verifica-se, no caso aqui em análise, que a ilisão da referida presunção, mediante apresentação de prova em contrário (vd. art. 73.º da LGT e art. 350.º, n.º 2, do Cód. Civil), foi realizada, uma vez que, como supra se assinalou, no facto provado G, nos termos da sentença proferida em 19/5/2015 no âmbito do processo n.º .../13...YXLSB (vd. Doc. 5 apenso aos autos) – sentença que foi objecto de recurso que transitou em julgado em 3/4/2017 – deram-se por assentes (com interesse para os presentes autos) os seguintes pontos de facto: “No início do ano de 2005, em data que se não pode precisar, aquele veículo foi deixado na oficina de reparação, pintura e bate chapa pertencente ao ora R e ao cuidado deste. [facto provado n.º 2]”; “O veículo de matrícula ... desapareceu da sua oficina, onde se encontrava, em Dezembro de 2013. [facto provado n.º 19]”.

 

44. Daqui se conclui que: i) apesar de continuar a constar no registo automóvel como sendo o proprietário do veículo em causa, o Requerente, atendendo ao (comprovado) desaparecimento desse veículo, deixou de ter o uso, fruição e poder de disposição do mesmo, pelo que, nessa medida, fez cabal demonstração de que, a partir dessa data, já não era efectivo proprietário do mesmo (vd. artigo 1305.º do Código Civil); ii) tendo o (comprovado) desaparecimento desse veículo ocorrido antes da data de vencimento do imposto ora em causa, não pode operar a presunção estabelecida pelo registo.

 

45. No mesmo sentido, e a respeito de um caso muito semelhante, veja-se a Decisão Arbitral n.º 166/2017-T, de 13/11/2017: “[o] princípio [da equivalência] está presente na norma de incidência subjetiva do imposto, consagrada no artigo 3.º do Código, que aponta no sentido de serem tributados os efetivos utilizadores dos veículos, considerando como tal os respetivos proprietários, no pressuposto de que, conforme decorre o artigo 1305.º do Código Civil, deles gozam dos direitos de uso e fruição. [...]. [...] com referência aos tributos cujo elemento definidor da incidência subjetiva é a posse, fruição ou propriedade de bens, constitui fundamento admissível da oposição à execução fiscal a ilegitimidade substantiva do oponente, fundada no facto de este, apesar de figurar como devedor no título executivo, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram (Cf. art. 204.º, n.º 1, al. b), do CPPT). Conforme decorre da doutrina acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo, «trata-se de uma das excepções à regra geral de que não é possível discutir em sede de oposição à execução fiscal a legalidade da liquidação que deu origem à dívida exequenda. Na verdade, nas referidas situações admite-se que seja questionada a legalidade da liquidação quanto à sua incidência subjectiva, mas essa possibilidade excepcional justifica-se pela ‘falta de verificação, pela administração tributária, dos pressupostos fácticos do acto de liquidação, relativamente a tributo deste tipo e na constatação de um erro que lhe é imputável’, pois, ‘para proceder à liquidação destes tributos, não é recolhida qualquer informação do contribuinte através de declaração, nem é feita qualquer indagação sobre quem é o real proprietário, fruidor ou possuidor dos bens referidos, antes se efectuando a liquidação a partir do conhecimento da qualidade de proprietário que conste dos registos da administração tributária ou de outros serviços públicos’ (Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., anotação 5 ao art. 158.º, pág. 103). Ora, uma das situações em que a propriedade de determinados bens é pressuposto da incidência do tributo em causa, é precisamente o IUC [...] (cfr. STA, Ac. de 24.2.2016, Proc. 0677/15. No mesmo sentido, STA, Ac. de 8.7.2015, Proc. 0606/15)» [...]. Segundo a doutrina citada, e acolhida no acórdão referido, está-se perante uma possibilidade excecional de questionar, em sede de oposição à execução fiscal, a própria legalidade da liquidação tributária que, tomando como referência a propriedade, tal como consta do registo, não atribui relevância à posse ou fruição do bem [...], não sendo feita «qualquer indagação sobre quem é o real proprietário, fruidor ou possuidor dos bens». Conclui-se, pois, [...] que, muito embora [o Requerente seja, pelo registo,] o proprietário do veículo no período a que respeita a liquidação impugnada, não foi, nesse período, o seu possuidor ou fruidor, facto de que decorre a ilegalidade da mesma”.

 

46. Em face do exposto, e tendo em conta os elementos trazidos aos autos e (também) acima identificados, considera-se que o Requerente ilidiu a presunção constante do art. 3.º do CIUC – pelo que, consequentemente, deve ser anulado o acto de liquidação de IUC do ano de 2018.

 

V. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, decide-se:

 

- Julgar procedente a excepção por extemporaneidade relativamente às liquidações de IUC (e juros compensatórios) respeitantes aos anos de 2013, 2014, 2015 e 2017.

- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, da liquidação de IUC (e juros compensatórios) do ano de 2018.

 

VI. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 53,42 (cinquenta e três euros e quarenta e dois cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 306,00 (trezentos e seis euros), a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 25 de Outubro de 2019.

 

O Árbitro

 

(Miguel Patrício)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.