Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 114/2021-T
Data da decisão: 2021-09-21  IRS  
Valor do pedido: € 7.932,75
Tema: IRS – Dupla Tributação Internacional– Inutilidade superveniente da lide.
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DECISÃO ARBITRAL

 

António Sérgio de Matos, árbitro designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) profere a seguinte decisão:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., titular do NIF ... e B..., titular do NIF..., casados entre si, residentes na Rua da ... ..., ...-... Senhora da Hora, doravante Requerentes, vieram requerer a constituição do tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alíneas a) e d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pugnando pela declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos tributários de liquidação de IRS n.ºs 2019... e 2021..., referentes ao período de tributação de 2018, e, bem assim, da decisão de indeferimento parcial proferida no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2020... .

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

Os Requerentes pedem a anulação dos referidos actos tributários e decisório, nos termos do art. 163.º do CPA, e a condenação da Requerida (AT) no pagamento de juros indemnizatórios e das custas do processo, tudo com as consequências legais.

 

Em 23-02-2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, por e-mail do mesmo dia, confirmada em 25-02-2021.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, als. a) e b), 6.º, nº 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro a Exma. Senhora Dra. Mafalda Alves, que comunicou a aceitação do encargo, em 10-05-2021. Notificadas dessa designação, em 11-05-2021, as Partes não se opuseram.

 

O Tribunal Arbitral ficou constituído em 31-05-2021.

 

Por requerimento de 16-06-2021, e nos termos do art. 13.º, n.º 1, do RJAT, a Requerida apresentou requerimento a informar que procedeu à revogação do acto nos autos sindicado, conforme despacho de revogação exarado, em 11-06-2021, por parte da Subdirectora-Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, acompanhado-o o sobredito Despacho de Revogação.

 

Desse Despacho de Revogação colhe-se, além do mais, o seguinte:

(...)

“1.O contribuinte atrás indicado, residente fiscal em Portugal, entregou declaração de rendimento referente ao IRS de 2018 sem anexo J, em 30/06/2019.

2. Mais tarde, em 27/12/2019, o sujeito passivo apresentou declaração de substituição de IRS de 2018 acrescentando um anexo J com rendimentos de trabalho no montante € 184.667,81 e imposto pago no estrangeiro no valor de € 53.268,12 (campo 401), não tendo sido liquidada a referida declaração.

3. Em 2019-12-27, no mesmo dia, veio o sujeito passivo deduzir reclamação graciosa ao abrigo dos arts. 68º e ss. do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) em conexão com o art. 140º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), contra a liquidação de IRS nº 2019... .

4. Em 11/11/2020, por despacho do Chefe de Divisão da Direção de Finanças do Porto a reclamação graciosa foi deferida parcialmente.

5. Tal deferimento parcial fundou-se, resumidamente, por um lado na aceitação do rendimento auferido no estrangeiro e respetivo imposto pago e, por outro lado, do imposto indicado como suportado no estrangeiro no montante de € 53.268,12 apenas foi considerado na liquidação o montante de € 45.335,47 correspondente ao imposto pago nos EUA (cf. documentos comprovativos provenientes das autoridades fiscais dos EUA).

6. Não se conformando com aquele ato tributário, o contribuinte deduziu a presente impugnação junto do Tribunal Arbitral.

7. Ora, analisados os argumentos e as provas apresentadas, conclui-se o seguinte:

8. O sujeito passivo A... vem alegar que a diferença do imposto pago nos EUA aceite no processo de reclamação graciosa para o indicado na declaração de substituição de IRS de 2018 diz respeito ao imposto estadual pago nos EUA.

9. Mais, o sujeito passivo na presente impugnação não contesta que o imposto estadual dos EUA não está contemplado na convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e os EUA.

10. No entanto, considera que ainda que a CDT celebrada entre Portugal e os EUA não inclua o imposto estadual, por via do disposto no n.º 1 do art. 81º do CIRS deverá o estado português aceitar o imposto estadual americano.

(...)

82. No caso concreto, decorre do estabelecido da própria convenção, no seu protocolo, uma norma excepcional que de forma expressa esclarece que a Convenção entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América para Evitar a Dupla Tributação não restringe de modo algum as deduções e créditos concedidos de acordo com a legislação interna dos Estados Contratantes.

83. Deste modo, conforme acima exposto, o sujeito passivo tem direito à dedução do imposto estadual por via do art. 1º da CDT celebrada ente Portugal e os EUA e o disposto no n.º 1 a) i) do protocolo, por remissão para a legislação interna (art. 81 n.º 1 do CIRS).

Conclusão

Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que deve ser deferido o pedido, anulando-se o ato impugnado referente ao IRS do ano 2018.”

 

Notificados deste Despacho de Revogação, os Requerentes vieram declarar, por requerimento 22-06-2021 e para os efeitos do art. 13.º, n.º 2 do RJAT, que não mantinham interesse no prosseguimento do processo arbitral, facto do qual deram conhecimento ao Diretor de Serviços de Consultoria Jurídica  e  Contencioso da AT, por e-mail de 21-06-2021.

 

Por despacho de 07-07-2021, do Exmo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, foi designado árbitro o subscritor, por substituição da Exma.  Senhora Dra. Mafalda Alves, a qual havia, entretanto, renunciado ao cargo.

 

Tendo aceitado a nomeação no prazo regulamentarmente previsto, em 27-08-2021, proferiu-se despacho no sentido de se notificarem as partes para, no prazo de 10 dias (arts. 23.º, n.º 2, do CPPT e 149.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), se pronunciarem sobre a eventual inutilidade superveniente da lide, tendo tais notificações ocorrido em 30-08-2021.

 

Em 08-09-2021, vieram os Requerentes informar que não se opõem à extinção da instância e requerer a condenação da Requerida no pagamento das custas, com a devolução das taxas arbitrais oportunamente pagas.

 

Devidamente notificada a Requerida não se pronunciou.

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, als. a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir da notificação da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa, o que ocorreu em 23-11-2020, por remissão para o artigo 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT.

 

III.          APRECIAÇÃO

 

O acto tributário sindicado, que constitui o objeto do pedido de pronúncia arbitral no presente processo, foi anulado por despacho de 11-06-2021, sendo que o PPA foi apresentado em 19-03-2021 e automaticamente comunicado à AT, em 22-02-2021, tendo esta dele sido notificada, em 25-02-2021.

 

Como emerge do douto Despacho de Revogação, que aqui se dá por reproduzido, a matéria de facto que sustenta o pedido está integralmente aceite pela Requerida, o que a torna incontroversa, havendo apenas uma discrepância de Direito quando ao caminho a trilhar para se alcançar o mesmo objectivo, ou seja, a satisfação da pretensão formulada. Tal dissidência jurídica ter-se-á mostrado irrelevante para os Requerentes, os quais, logo na sua primeira intervenção processual pós revogação, declararam não manter interesse no prosseguimento do processo arbitral. Disposição de vontade que mantêm ao declararem que nada opõem à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. 

 

Enquanto tal, resta somente notar que não é convocável o regime do artigo 13.º do RJAT, contrariamente ao que invoca a Requerida, no sobredito requerimento em que informa a Revogação do acto sindicado. Dispõe este preceito, no que à presente questão interessa, o seguinte:

 

“Artigo 13.º

Efeitos do pedido de constituição de tribunal arbitral

1 - Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.

2 - Quando o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do número anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último ato se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.

3 - Findo o prazo previsto no n.º 1, a administração tributária fica impossibilitada de  praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos.

[…]”

 

O referido acto de “revogação” não foi emitido, nem notificado aos Requerentes, dentro do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, i.e., nos 30 dias a contar do conhecimento do pedido. Não estamos, portanto, no âmbito de um procedimento arbitral, mas já numa fase processual.

 

O artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, determina que a instância se extingue com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

 

A impossibilidade da lide ocorre quer em caso de morte ou extinção de uma das partes, quer por desaparecimento do objeto do processo ou extinção de um dos interesses em conflito. Assim, a inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tenha qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante pretende fazer valer no processo, ou ainda porque o fim visado com a acção foi atingido por outro meio.

 

A pretensão formulada pelos Requerentes na ação arbitral, de ilegalidade e anulação dos mencionados actos tributários de liquidação de IRS, bem assim da decisão proferida na reclamação graciosa, ficou prejudicada pela decisão administrativa de “revogação” daqueles (artigo 79.º, n.º 1, da LGT), que produziu os seus efeitos já na pendência da instância arbitral. Estamos, desta forma, perante uma vicissitude superveniente que eliminou o objeto da pretensão impugnatória deduzida pelos Requerentes - a liquidação de IRS.

 

Com a anulação administrativa praticada pela AT, os efeitos jurídicos dos atos tributários são destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o disposto no artigo 171.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como referem as Decisões Arbitrais de 04-11-2013, no P. n.º 31/2013-T, de 13-10-2020, no P. n.º 147/2020-T, e de 21-07-2021, no P. n.º 162/2021-T, todas do CAAD, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”. Em consequência, deve extinguir-se a instância processual, por se encontrar desprovida de objeto, nos termos do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do citado artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Poderia suscitar-se a dúvida sobre a tempestividade da anulação administrativa, atendendo a que já havia decorrido o prazo de 30 dias, a contar do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, estabelecido no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT para a AT proceder à “revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo”,  estipulando o n.º 3 desta norma que, findo este prazo, “a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos”.

 

Como outrora se apreciou e decidiu, designadamente no P. n.º 147/2020-T, o preceito em apreço deve ser interpretado no sentido de que, uma vez transcorrido o mencionado prazo de 30 dias, a AT fica impedida de praticar um novo ato dispositivo que regule a relação jurídico-tributária, relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, excepto com fundamento em factos novos. Porém, esta restrição não ocorre em caso de simples anulação administrativa do acto impugnado, desacompanhada de nova regulação da situação jurídica.

 

Sobre a aplicação do regime do CPA à “revogação” de atos administrativos em matéria tributária preconiza o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 15 de março de 2017, no processo n.º 449/14, que:

 

“A possibilidade legal de revogação dos atos administrativos em matéria tributária está prevista no art. 79º da LGT (a revogação é um ato que faz cessar ou elimina os efeitos de um ato anterior, com fundamento na sua inconveniência ou invalidade, estando o respetivo regime previsto nos arts. 138° a 146° do CPA).

Todavia, não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para tal revogação, é incontroverso que hão-de acolher-se as regras constantes dos arts. 136º e ss. do CPA, que diretamente regulam a revogação dos atos administrativos [sendo que o CPA constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário – arts. 2º, al. c), da LGT e 2º, al. d), do CPPT (Cfr., por todos, o ac. desta Secção do STA, de 15/5/2013, proc. nº 0566/12; bem como Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª ed., 2012, anotação 1 ao art. 79º, p. 724 e Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 350, nota 7.)]. […]”

 

No mesmo no sentido, da aplicabilidade do regime da invalidade administrativa aos atos em matéria tributária, se pronunciara já o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 17 de dezembro de 2014, relativo ao processo n.º 454/14.

 

Por outro lado, o artigo 168.º, n.º 3, do CPA determina que a anulação de atos que tenham sido objeto de impugnação jurisdicional, como é o caso, pode ter lugar até ao encerramento da discussão, fase que, no caso concreto, nem sequer se tinha iniciado, estando a decorrer a fase (anterior) dos articulados. É, assim, de concluir pela tempestividade da anulação administrativa efetuada por despacho de 11 de junho de 2021 que, ao dar satisfação integral à pretensão anulatória incidente sobre os actos tributários em crise, retira à lide arbitral o seu objeto.

 

IV.          DECISÃO

 

Pelo exposto, julga-se extinta a instância processual, por impossibilidade superveniente da lide, em conformidade com o disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT e condena-se a Requerida nas custas do processo, com as legais consequências.

 

V.           VALOR DA CAUSA

 

Fixa-se ao processo o valor de € 7.932,75, correspondente ao da importância da liquidação de IRS cuja anulação se pretende, nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n, º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”). 

 

VI.          CUSTAS

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, 527.º e 536.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, fixa-se o montante das custas em €612,00, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, uma vez que deu causa à acção (ao ter efetuado a anulação administrativa após o decurso do prazo de trinta dias a contar do conhecimento do pedido constituição deste Tribunal Arbitral).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de Setembro 2021

 

O árbitro,                                                                            

A. Sérgio de Matos