Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 112/2021-T
Data da decisão: 2021-11-02  IRS  
Valor do pedido: € 8.717,14
Tema: IRS – Declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos – Mais-Valias - nº 2 do artigo 43º do CIRS e no artigo 63º do TFUE.
Inutilidade superveniente da lide
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SUMÁRIO:

I – Nos termos da alínea e) do artigo 277.º do CPC, aplicável ex vi a alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

II – A Autoridade Requerida satisfez, de modo voluntário, a pretensão que os Requerentes formularam quanto à anulação da liquidação.

III - O evento que torna inútil a apreciação do mérito da causa verificou-se depois da constituição do Tribunal Arbitral.

IV - A anulação que os Requerentes visavam com o processo arbitral encontra-se atingida, pelo que, não oferece dúvida que a Decisão Arbitral que normalmente seria proferida, conhecendo do mérito da pretensão deduzida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação. Termos em que se julga verificada a inutilidade superveniente da lide.

 

O Árbitro Paulino Brilhante Santos, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

I-             RELATÓRIO

1.            Em 22 de Fevereiro de 2021, A..., com o NIF ... e B..., com o NIF ... (doravante abreviadamente identificados por “Requerentes”), requereram a constituição do Tribunal Arbitral Singular em matéria tributária, nos termos do disposto da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com os artigos 1.º alínea a), 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011 

2.            No pedido de constituição do Tribunal Arbitral Singular, os Requerentes pretendem que o referido Tribunal determine a anulação do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) nº 2020..., referente ao ano de 2019, no montante de € 10.720,50 (dez mil setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos) e a consequente restituição aos Requerentes do valor de imposto pago em excesso acrescido dos respectivos juros indemnizatórios. 

3.            O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Singular foi aceite em 23 de Fevereiro de 2021 pelo Exmo. Senhor presidente do CAAD, tendo as partes sido notificadas em 25 de Fevereiro de 2021.

4.            Os Requerentes não procederam à nomeação de Árbitro pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, o aqui signatário foi designado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Singular, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

5.            As partes foram devidamente notificadas dessa designação em 05 de Maio de 2021, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do Árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

6.            O Tribunal Arbitral Singular ficou, assim, constituído em 25 de Maio de 2021, tendo sido proferido despacho arbitral em 17 de Junho de 2021 em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, notificado à Autoridade Requerida para, querendo, apresentar a sua Resposta.

7.            No dia 06 de Julho de 2021, a Autoridade Requerida apresentou a sua Resposta.

8.            Importa ter em conta que os Requerentes sustentaram, em síntese, o seu pedido da seguinte forma:

8.1          Os Requerentes são cidadãos portugueses residentes na Suíça;

8.2          No ano de 2019, alienaram onerosamente um imóvel situado em Portugal tendo auferido rendimentos provenientes de mais-valias, rendimentos esses declarados no anexo G da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS do ano de 2019;

8.3          Posteriormente, foram os Requerentes notificados da demonstração de liquidação de IRS nº 2020..., no montante de € 10.720,50 (dez mil setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos);

8.4          Os Requerentes procederam ao pagamento voluntário da totalidade do valor apurado pela Autoridade Requerida;

8.5          Não obstante, em 01 de Outubro de 2020 os Requerentes apresentaram Reclamação Graciosa peticionando a anulação do acto tributário em causa e a restituição aos Requerentes do valor de imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, em virtude de ter sido considerada a totalidade da mais-valia realizada e não metade;

8.6          Os Requerentes não lograram obter a procedência do pedido, tendo a Autoridade Tributária concluído pela manutenção da liquidação indeferindo o pedido;

8.7          Alegam os Requerentes no seu Pedido de Pronúncia Arbitral que a inclusão pela Autoridade Requerida no rendimento coletável da totalidade das mais-valias resultantes da alienação do direito real sobre o imóvel, enferma de erro de direito, uma vez que apenas deveria ter sido considerado 50% do respetivo valor, por aplicação do  previsto no  n.º  2 do  artigo 43.º do Código do IRS, consubstanciando assim uma violação do  disposto  no  artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante apenas designado por TFUE) (correspondente ao artigo 56° do Tratado que  Institui a Comunidade  Europeia) em virtude do seu efeito discriminatório;

8.8          O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em 1994, estabeleceu a livre circulação de capitais como liberdade consagrada no Tratado, proibindo assim o artigo 63.º do TFUE qualquer restrição à circulação de capitais entre os Estados-Membros, bem como entre Estados-Membros e países terceiros;

8.9          Alegam assim os Requerentes que sendo residentes na Suíça, e tendo feito uma operação relativa à liquidação de um investimento imobiliário, estão abrangidos pelo princípio da liberdade de circulação de capitais, previsto no artigo 63° do TFUE;

8.10       Referem os Requerentes que nos termos do artigo 43°, n.º 2 do CIRS, as mais-valias realizadas por residentes em resultado da alienação de bens imóveis sitos em Portugal são apenas consideradas em 50% do seu valor, ao invés para os não residentes, o CIRS prevê que a tributação dessas mesmas mais valias incide sobre a totalidade desse valor;

8.11       Assim, relativamente à venda de um mesmo imóvel situado em Portugal, no caso da realização de mais valias, os não residentes estão sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que aqueles;

8.12       Contudo, referem ainda os Requerentes que conforme já se pronunciou o Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão de 11 de Outubro de 2007, Hollman (G443/06, EU: C.2007:600), o facto do artigo 43°, n.º 2 do CIRS prever que só as mais valias realizadas por residentes são consideradas em 50% do seu valor para efeitos de determinação do imposto, constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo artigo 63°do TFUE;

8.13       E considerou o TJUE, no Acórdão Hollmann e no Acórdão Gielen, bem como o Supremo Tribunal Administrativo e o CAAD, que é discriminatório e proibido, limitar a incidência do imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal e excluir dessa limitação as mais-valias realizadas por um residente noutro Estado Membro ou países terceiros, violando assim a liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63° do TFUE;

8.14       Consideram assim os Requerentes que deve o acto de liquidação in casu, ser anulado, uma vez que a aplicação do artigo 43° nº 2 do CIRS é contrário ao direito comunitário, conforme consagrado no artigo 63.º do TFUE, o qual tem de prevalecer sobre o preceito nacional com ele desconforme;

8.15       Concluindo que a liquidação impugnada, na parte que considera como base de tributação das mais-valias realizadas pelos Requerentes mais de 50% do seu valor, carece de fundamento legal, o que determina a ilegalidade da liquidação ora impugnada, e como procedente o pedido de pronúncia arbitral.

9.            Na sua Resposta, a Autoridade Requerida informou que, por despacho de 24/06/2021 da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária, a liquidação objecto do pedido foi revogada, entendendo a Autoridade Requerida que se afigura existir inutilidade superveniente da lide, com as devidas consequências legais.

10.          Os Requerentes em 27 de Julho de 2021, notificados da Resposta da Autoridade Requerida, declararam que, tendo em conta que Administração Tributária procedeu à revogação do acto e se pronunciou favoravelmente aos juros indemnizatórios, aceitam a revogação do acto.

 

II-           SANEADOR

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

12.          As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

13.          Não se verificam nulidades e questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que cumpre decidir.

 

 

III-          MATÉRIA DE FACTO

14.          Factos dados como provados:

14.1       Os Requerentes no ano de 2019, alienaram onerosamente um imóvel situado em Portugal tendo auferido rendimentos provenientes de mais-valias, rendimentos esses declarados no anexo G da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS do ano de 2019 (conforme documento n.º 1 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral);

14.2       Posteriormente, foram os Requerentes notificados da demonstração de liquidação de IRS nº 2020..., no montante de € 10.720,50 (dez mil setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos) (conforme demonstração de liquidação de IRS junta com o Pedido de Pronúncia Arbitral);

14.3       Os Requerentes procederam ao pagamento voluntário da totalidade do valor apurado pela Autoridade Requerida (conforme documento n.º 2 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral);

14.4       Em 01 de Outubro de 2020 os Requerentes apresentaram Reclamação Graciosa peticionando a anulação do acto tributário em causa e a restituição aos Requerentes do valor de imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios (conforme documento n.º 3 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral);

14.5       Os Requerentes não lograram obter a procedência do pedido, tendo a Autoridade Tributária concluído pela manutenção da liquidação indeferindo o pedido (conforme documento n.º 4 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral);

14.6       Em 22 de Fevereiro de 2021, os Requerentes requereram a constituição do Tribunal Arbitral Singular requerendo a anulação do acto de liquidação de IRS nº 2020..., referente ao ano de 2019, no montante de € 10.720,50 (dez mil setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos) e a consequente restituição aos Requerentes do valor de imposto pago em excesso acrescido dos respectivos juros indemnizatórios;

14.7       Na sua Resposta, a Autoridade Requerida informou que, por despacho de 24/06/2021 da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária, a liquidação objecto do pedido foi revogada, entendendo a Autoridade Requerida que se afigura existir inutilidade superveniente da lide, com as devidas consequências legais.

14.8       Os Requerentes em 27 de Julho de 2021, notificados da Resposta da Autoridade Requerida, declararam que, tendo em conta que a Administração Tributária procedeu à revogação do acto e se pronunciou favoravelmente aos juros indemnizatórios, aceitam a revogação do acto.

 

15.          Factos dados como não provados:

15.1       Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

IV-          DO DIREITO

16.          Ficou demonstrado nos presentes Autos Arbitrais que em 22 de Fevereiro de 2021, os Requerentes requereram a constituição do Tribunal Arbitral Singular requerendo a anulação do acto de liquidação de IRS nº 2020 ... e a consequente restituição aos Requerentes do valor de imposto pago em excesso acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.

17.          Na sua Resposta, a Autoridade Requerida informou que, por despacho de 24/06/2021 da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária, a liquidação objecto do pedido foi revogada, entendendo a Autoridade Requerida que se afigura existir inutilidade superveniente da lide, com as devidas consequências legais.

18.          Os Requerentes em 27 de Julho de 2021, notificados da Resposta da Autoridade Requerida, declararam que, tendo em conta que Administração Tributária procedeu à revogação do acto e se pronunciou favoravelmente aos juros indemnizatórios, aceitam a revogação do acto.

19.          Deste modo, a revogação do acto impugnado foi efetuada na pendência da presente acção, perdendo, assim, o Pedido de Pronúncia Arbitral o seu objecto principal, inexistindo, por consequência qualquer utilidade na pronúncia solicitada.

20.          Ora,  a inutilidade superveniente da lide é, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT, uma causa de extinção da instância, a qual ocorre quando, «por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.» - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0875/14, de 30.07.2014, o qual sumariamente, explica que: «I – A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.»

21.          Aduz, em complemento a esta questão, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 07433/14, de 10.04.2014, que: «1. Entre as causas de extinção da instância do processo declarativo, as quais são aplicáveis à execução supletivamente, conforme dispõe o artº.551, nº.1, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, vamos encontrar a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (cfr.artº.277, al.e), do C.P.Civil). 2. Esta causa de extinção da instância contém dois requisitos que necessitam estar verificados para a sua aplicação. São eles, a inutilidade da lide, e que essa inutilidade decorra de facto posterior ao início da instância, para poder dizer-se que é superveniente, a qual dá lugar à mesma extinção da instância sem apreciação do mérito da causa. 3. Também neste sentido segue a doutrina e a jurisprudência, ao referirem que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide se dá quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo ou, por outro lado, porque encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a causa deixa de interessar - além por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outros meios. 4. Só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis da mesma pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua que o seu prosseguimento não poderá trazer quaisquer consequências vantajosas para o autor/recorrente.»

22.          Ora, o evento que torna inútil a apreciação do mérito da causa verificou-se depois da constituição do presente Tribunal Arbitral Singular.

23.          A anulação que os Requerentes visavam com o processo arbitral encontra-se atingida, pelo que, não oferece dúvida que a Decisão Arbitral que normalmente seria proferida, conhecendo do mérito da pretensão deduzida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação.

24.          Termos em que se julga verificada a inutilidade superveniente da lide em virtude da revogação do acto tributário por parte da Autoridade Requerida.

 

V-           DECISÃO

25.          Em face do exposto, o Tribunal Arbitral Singular decide:

a)            Por se verificarem os pressupostos legais e por ser manifesta a concordância de ambas as Partes, determino a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, alínea e) do RJAT.

26.          Fixa-se o valor da acção em € 10.720,50 (dez mil setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

27.          Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que foi a Autoridade Recorrida que deu causa à extinção deste processo arbitral por inutilidade superveniente da lide com efeitos análogos ao da procedência total do pedido dos Requerentes, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

Lisboa, 02 de Novembro de 2021

 

O Árbitro                      

Paulino Brilhante Santos