Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 11/2019-T
Data da decisão: 2019-11-18  IVA  
Valor do pedido: € 3.091.870,19
Tema: IVA – Locação financeira – Método pro rata.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., com o número de identificação de pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto tributário consubstanciado na declaração periódica de IVA respeitantes a Dezembro de 2014, e, bem assim, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida, requerendo ainda a condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma instituição de crédito que realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção do artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA, como é o caso da concessão de créditos, e operações que conferem o direito à dedução, como seja a locação financeira mobiliária.

 

No âmbito da sua actividade, a Requerente celebra contratos de aquisição de viaturas com entidades terceiras e contratos de mútuo com os seus clientes, convencionando a reserva de propriedade até à liquidação integral do crédito, pelo que a aquisição de bens e serviços necessários para o efeito da locação financeira  consubstanciam serviços de utilização mista.

 

No entanto, a Administração Tributária desconsiderou, no cálculo de percentagem de dedução relativa ao ano de 2014, tanto os valores relativos à transmissão de viaturas adquiridas no âmbito da concessão de crédito com reserva de propriedade, como os valores respeitantes às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira

 

Entende a Autoridade Tributária que a compra de viaturas e a sua alienação a clientes com reserva propriedade corresponde a uma operação de financiamento pela qual a instituição bancária aufere como contrapartida o pagamento de juros, sendo que o IVA incorrido com a aquisição é recuperado no momento da alienação, pelo que a inclusão do montante do crédito concedido na percentagem de dedução de IVA determinaria um aumento artificial do coeficiente de imputação

 

Do mesmo modo, no entender da Administração, a locação financeira traduz-se em substância na concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída pelos juros, correspondendo a amortização do capital ao reembolso da quantia em dívida que não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução para efeito de IVA.

 

A Requerente, baseando-se no acórdão Volkswagen Financial Services do TJUE, sustenta que os custos gerais efectuados em vista à disponibilização de veículos, enquanto operações tributáveis, são parte dos elementos constitutivos do preço dessas operações e originam um direito à dedução.

 

E no que se refere à locação financeira, as rendas dos contratos são integramente sujeitas a IVA de locação financeira, quer na parte correspondente à amortização financeira ou do capital, quer na parte correspondente aos encargos financeiros como são os juros.

 

Nestes termos, o acto tributário de autoliquidação, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ao assentarem na possibilidade de alteração dos componentes do cálculo pro rata violam o disposto no artigo 23.º do Código do IVA e o princípio da neutralidade fiscal.

 

Por outro lado, o erro de enquadramento das operações tributáveis para efeito do direito à dedução de IVA, quando origine o pagamento de imposto em excesso, que é susceptível de ser corrigido no prazo de 4 anos nos termos do artigo 98.º, n.º 4, do Código do IVA, pelo que a Requerente entende que se encontra ainda em prazo para proceder à dedução do IVA relativamente ao montante de imposto pago em excesso.

 

Caso não seja claro o alcance das normas da Directiva IVA na aplicação à situação do caso, a Requerente solicita o reenvio prejudicial para se determinar se o valor da transmissão de viaturas no âmbito da concessão de crédito com reserva de propriedade e o valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira entram na percentagem de dedução aplicado ao IVA e qual o prazo para dedução do imposto em caso de erro de enquadramento das operações tributáveis.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, afirma que a inclusão de montante de IVA suportado na transmissão de viaturas relacionadas com a actividade de concessão de crédito no cômputo do coeficiente de imputação específico obtido pela aplicação do método da afetação real iria aumentar injustificadamente a percentagem de dedução, contendendo com o princípio da neutralidade do imposto. Daí resultando que quanto maior fosse o crédito concedido, maior seria a dedução de IVA que resultaria da aplicação do coeficiente de imputação específico. E, desse modo, não se mostra possível nem adequado o método pro rata definido no artigo 23.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código do IVA, havendo de aplicar-se o disposto no n.º 3 desse artigo 23.º do CIVA em conjugação com o entendimento constante do Oficio-Circulado n.º 30103.

 

 Por outro lado, a locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto cuja contraprestação se concretiza nas rendas auferidas pela entidade locadora, que se compõem de juros e amortização financeira ou do capital. E em relação a esses serviços de utilização mista, o critério de dedução à luz do disposto no nº 2 do artigo 23.º do Código do IVA apenas poderá reflectir o montante dos proveitos provenientes da sua actividade tributada (juros) sob pena de se subverter o princípio da neutralidade do imposto.

 

Acresce que o acórdão do TJUE, no caso Banco Mais, veio a considerar, no que respeita às operações de locação financeira, que o facto de se ter utilizado como critério a parte do volume de negócios gerada pelas operações que conferiam direito à dedução, sem excluir desse volume de negócios a parte das rendas recebidas que compensavam o custo de aquisição dos veículos, tinha tido por efeito falsear o cálculo do pro rata de dedução.

Vindo assim a concluir o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva (a que corresponde o actual artigo 173.º, n.º 2, da Directiva 2006/112 CE) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir, no numerador e denominador a fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

 

 Conclui pela improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e remetido o processo para alegações.

 

Em alegações, a Requerente pronunciou-se sobre os resultados probatórios decorrentes da produção de prova testemunhal e quanto à matéria de direito manteve a sua anterior posição. A Autoridade Tributária não contra-alegou

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 18 de Março de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não invocadas excepções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

B)           A Requerente é sujeito passivo misto para efeitos de IVA na medida em que na sua actividade realiza operações de locação financeira mobiliária, que são tributáveis e conferem o direito de dedução do imposto, e operações de financiamento e concessão de crédito, que são isentas do imposto, que não permitem a dedução de IVA. 

C)           No dia 10 de fevereiro de 2015, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Dezembro de 2014;

D)           Na declaração periódica, a Requerente exclui do numerador e do denominador da fracção representativa do cálculo pro rata os valores relativos à transmissão de viaturas adquiridas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, bem como os montantes respeitantes às amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira, seguindo a posição externada pela Autoridade Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009;

E)            A Requerente aplicou assim uma percentagem de pro rata de 7%, por efeito do critério imposto pela Autoridade Tributária, quando a percentagem de dedução deveria corresponder a 20%;

F)            Consequentemente, o montante do imposto pago em excesso foi de € 3.091.870,19;

G)           Em 2 de Janeiro de 2017, a Requerente deduziu reclamação graciosa requerendo a anulação parcial da autoliquidação de IVA referente a 2014 de que resulta a aplicação de uma percentagem de 7% de IVA incorrido em recursos de utilização mista, calculada de acordo com  as instruções do ofício circulado n.º 301/08, quando de acordo com os artigos 23.º, n.ºs 1 e 4, do Código do IVA e 174.º da Directiva IVA, a percentagem de dedução devia corresponder a 20%;

H)           A Reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Director do Serviço Central de 20 de Setembro de 2018, praticado com delegação de poderes, e notificado no dia 25 seguinte;   

I)             Na informação que serve de base ao despacho de indeferimento de reclamação graciosa considera-se, em síntese, o seguinte:

Desconsideração do valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade

- Quando o A... adquire os veículos a uma entidade terceira, caso estes sejam novos, é-lhe liquidado IVA, o qual o banco recupera na íntegra (no caso de veículos usados, em princípio, não há lugar à liquidação do IVA pelo revendedor), por via do recurso ao método da imputação direta previsto no art.º 20º do CIVA, na medida, em que essa aquisição se destina a uma atividade tributada (a sua alienação ao cliente do crédito).

- Posteriormente ao vendê-lo ao cliente, o A... liquida o IVA pela totalidade do valor da alienação (mais uma vez sendo a viatura nova, caso contrário sendo usada será aplicado o regime da margem – Regime da Margem ou Regime Especial de Tributação dos bens em Segunda Mão, aprovado pelo Decreto-lei n.º 199/98, de 18 de Outubro), nos termos do disposto na alínea h) do n,º 2 do artigo 16.º do CIVA.

- Razão pela qual, não se pode afirmar que esse montante (que corresponde ao crédito concedido), deva ser incluído no cômputo do coeficiente de imputação específico obtido pela aplicação do método de afetação real, à semelhança do que sucede com a amortização financeira, como veremos adiante. Caso contrário, iria aumentar-se injustificadamente a percentagem de dedução.

- Aliás, seguindo o entendimento da Reclamante, estar-se-ia a criar situação de manifesta desigualdade de tratamento em sede de IVA.

Ou seja, a inclusão do valor destas operações no cálculo da percentagem e dedução proporcionaria uma indesejável distorção nas deduções relativas ao conjunto ao conjunto de transações que são objeto de atividade normal do Banco (que contribuem para a obtenção do seu resultado / lucro), na medida em que possibilitaria ao A... um aumento artificial do seu coeficiente de imputação específico, que se revela como um favorecimento injustificado do A..., originando distorções significativas na tributação.

- Em reforço desse entendimento deve ainda realçar-se que a admitir-se o entendimento defendido pela Reclamante, daí resultaria que quanto maior fosse o crédito concedido (operação esta sujeita a IVA, mas dele isenta por força do disposto na alínea 21) do artigo 9º do CIVA), maior seria a dedução de IVA que resultaria da aplicação da aplicação do coeficiente de imputação específico, o que não só não faria qualquer sentido, como, mais uma vez iria contribuir para a ocorrência de distorções significativas na tributação em sede deste imposto.

- Daí que se deva ser aplicado ao disposto no n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, conjugado como entendimento constante do Ofício-Circulado n.º 30103, de 2008.04.23.

- Fica assim, inequivocamente demonstrado que este entendimento, que passa pela aplicação d coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o direito comunitário e as normas de direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º, da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do CIVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.

 

Desconsideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista

 - A componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução uma vez que não constitui rendimento da actividade do sujeito passivo, ao invés do que sucede com as demais variáveis que integram a fórmula, sendo que a sua consideração provocaria distorções significativas na tributação, também desvirtuaria o próprio método pro rata e todos os sistemas de dedução de IVA, ao reconhecer como dedutíveis custos que não contribuíram para a realização das operações tributadas;

 - o Ofício Circulado n.º 30108, emitido ao abrigo da alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, consigna que os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD;

  - segundo o entendimento do TJUE, a Sexta Directiva não se opõe a que os Estados membros apliquem um método ou critério diferente do volume de negócios, se este método for mais preciso, e, no caso concreto, o Tribunal entendeu que o método adoptado pela Administração Tributária é, em princípio, mais preciso do que o constante da Directiva, dado que considerou apenas a parte das rendas pagas que servem para compensar a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador; 

L)            A Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu o Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, com o seguinte teor:

Assunto: IVA - Direito à dedução Regras para a determinação do direito à dedução pelas instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD 

Para conhecimento dos Serviços e de outros interessados, e tendo em vista divulgar a correcta interpretação a dar ao artigo 23º do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a actividade de Leasing ou de ALD, comunica-se que, por meu despacho de 2009.01.30, proferido na informação nº ..., de 19 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, foi determinado o seguinte:

1.            O ofício circulado nº 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do SubdirectorGeral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23º do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista. 

2.            De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (nº 3 artº 23º). 

3.            No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o n.º 2 do artigo 23.º, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante. 

4.            Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação. 

5.            No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução. 

6.            Face à anterior redacção do artigo 23º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas. No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do nº 4 do artigo 23º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um pro rata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real. 

7.            Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista. 

8.            Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

9.            Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.

M)          A operação de aquisição de viaturas no âmbito da concessão de crédito com reserva de propriedade é efectuada através dos balcões do Banco e requer a intervenção da Direcção de Financiamento Automóvel, envolvendo a utilização de custos gerais de funcionamento do Banco.

 

 Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta e ainda com base na produção de prova testemunhal em audiência.

 

A testemunha inquirida referiu que a aquisição de viaturas aos stands automóveis pelo Banco e a concessão de crédito aos clientes para a sua aquisição constituem actividades distintas, implicando, por parte da instituição bancária, o contacto com os fornecedores dos veículos e a análise da documentação em vista à concessão de financiamento e à comunicação de entrega da viatura ao cliente. Acrescentou que existem 400 agências a que o cliente poderá dirigir-se para adquirir a viatura através de concessão de crédito, além de uma direcção de financiamento automóvel, com delegações no Porto, Golegã, Lisboa e Faro, além de um call center e bases de dados para simulação, registo da compra e venda das viaturas. A actividade de aquisição de veículos envolve a utilização de custos gerais, como seja, água, gás, eletricidade, sistema informático, telefones, fotocopiadoras e papel, que têm um peso relevante na atividade do banco. Não sendo fácil a afetação direta dos custos às diferentes atividades, sendo o exemplo paradigmático a situação os balcões.

 

                Matéria de direito

 

5. A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que realiza operações de financiamento e concessão de crédito, que se encontram isentas de IVA e não permitem o direito à dedução de imposto, e operações de locação financeira, que estão sujeitas e não isentas de IVA e conferem direito à dedução, sendo assim caracterizada para esse efeito como um sujeito passivo misto.

 

Conforme alega, no caso das operações de locação financeira, a Requerente celebra, primeiramente, com uma terceira entidade, um contrato de compra e venda do veículo pretendido pelo cliente, e, seguidamente, um contrato de mútuo com a cláusula de reserva de propriedade do veículo para garantir o pagamento integral do crédito. A operação de aquisição do veículo é tributada em IVA, por referência ao valor inicial da transação, e no âmbito dessa actividade a Requerente incorre em gastos gerais do funcionamento relativamente aos quais pode exercer o direito à dedução. Por outro lado, a contraprestação da locação financeira concretiza-se nas rendas que o locatário se obriga a pagar pela cedência dos bens locados e que integram uma parte correspondente a juros e outra a amortização financeira ou do capital.

 

A Administração Tributária entende que a aquisição de viaturas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade reconduz-se essencialmente a uma operação de financiamento e o IVA incorrido na transacção é já deduzido integralmente na alienação do veículo, pelo que a inclusão do valor da transmissão dos veículos no cálculo da percentagem de dedução, em aplicação do método pro rata, provocaria uma distorção significativa nas deduções relativas ao conjunto de transações que constituem actividade normal da instituição bancária.

 

Por outro lado, a desconsideração do valor das amortizações financeiras no cálculo da percentagem de dedução do IVA incorrido nos custos de utilização mista encontra-se justificada pelo facto de o valor integral da renda, nos contratos de locação financeira, incluir a amortização financeira, que se destina a assegurar o reembolso do capital, e os juros, que integram propriamente a remuneração da operação de crédito, pelo que só esta última componente, correspondente ao rendimento da actividade do sujeito passivo, é que poderá ser incluída para o cálculo da dedução de IVA.

 

Neste condicionalismo, no entender da Administração Tributária, justifica-se, em relação a qualquer dessas situações, o recurso a um coeficiente de imputação específico, como o previsto no ofício circulado n.º 30.103, em aplicação do disposto no artigo 23.º, n.º 3, do Código do IVA.

 

  A questão que vem colocada é, pois, a de saber se, na aplicação do método pro rata de dedução de imposto suportado nos bens e serviços de utilização mista, na actividade de locação financeira, devem ser considerados no numerador e no denominador da fracção de cálculo o valor da transmissão das viaturas, bem como o valor total da renda e não apenas a parte correspondente aos juros que constitui o proveito ou rendimento do locador.

 

6. O direito à dedução do imposto, disciplinado nos artigos 167.º a 192.º da Directiva IVA e, no direito interno, nos artigos 19.º a 25.º do Código do IVA, consiste essencialmente no direito de um sujeito passivo deduzir ao imposto incidente sobre uma certa operação tributável o imposto em que tenha incorrido na aquisição de bens ou serviços que se destinem à realização dessa operação.

Segundo a regra geral constante do artigo 168.º da Directiva, o IVA incorrido nas aquisições feitas por um sujeito passivo é dedutível na integralidade sempre que os bens ou serviços sejam utilizados “para os fins das suas operações tributadas”. Esse corresponde a um método de dedução de imputação directa, havendo de estabelecer-se para esse efeito um nexo directo entre uma dada operação activa e uma dada operação passiva.

Não sendo possível estabelecer esse nexo directo, como sucede quando as despesas com aquisições de bens ou serviços respeitam simultaneamente a operações tributadas e operações isentas de imposto – caso em que estaremos perante custos mistos – o direito à dedução encontra-se limitado nos termos do artigo 173.º da Directiva.

Esse preceito consagra em primeira linha o método pro rata, pelo qual relativamente a bens e serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações e, por conseguinte, apenas em relação a operações que originam o direito à dedução.

Entende-se, neste contexto, que o método pro rata assenta na presunção de que os custos mistos são utilizados nas operações que conferem direito à dedução na razão directa do valor que essas operações representam face ao volume total de negócios da empresa. É essa a regra de cálculo que se encontra vertida no artigo 174.º da Directiva: “o  pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes – (a) no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.o e 169.o; (b) no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

A presunção baseada na percentagem do valor das operações com direito a dedução em relação ao volume total de negócios é, todavia, afastada pelo critério da afectação real consignado na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva, que permite que os Estados membros autorizem ou imponham que a dedução do IVA seja efectuada com base, não no volume de negócios, mas na efectiva utilização dos bens ou serviços.

Haverá assim de concluir-se que a Directiva IVA contempla três distintos métodos de cálculo da dedução. O método regra de imputação directa, que é aplicável aos custos directos, ou seja, aos custos associados a operações que conferem direito à dedução, o método pro rata relativamente aos custos mistos, que estão indistintamente associados a operações que conferem ou não conferem o direito de dedução, e, a título de excepção, o método de afectação real.

Não pode deixar de reconhecer-se, por outro lado, que a Directiva, no transcrito artigo 173.º, n.º 2, alínea c), confere aos Estados membros alguma margem de liberdade de conformação quanto à definição do critério de afectação real.

No direito interno, relativamente ao método de dedução aplicável a bens de utilização mista, releva o artigo 23.° do Código do IVA, que é do seguinte teor:

 

«1.      Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetue transmissões de bens e prestações de serviços, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que deem lugar a dedução.

2.      Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, sem prejuízo de a Direção Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação.

3.      A administração fiscal pode obrigar o contribuinte a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a)      Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;

b)      Quando a aplicação do processo referido no n.° 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4.      A percentagem de dedução específica referida no n.° 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19.° e n.° 1 do artigo 20.° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo, incluindo as operações isentas ou fora do âmbito do imposto, designadamente as subvenções não tributadas que não sejam subsídios de equipamento.

 [...]».

A segunda das questões que se encontra em debate foi analisada pelo TJUE em reenvio prejudicial suscitado, em caso similar, pelo Supremo Tribunal de Justiça em que se concluiu que  o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva (a que corresponde o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado membro obrigue um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos (acórdão de 10 de Julho de 2014, no Processo n.º C-183/13 - Banco Mais).

 

O acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Lda (acórdão de 18 de Outubro de 2018, Processo n.º C-153/17) veio entretanto considerar que não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao acórdão de 10 de julho de 2014, que o artigo 173.o, n.o 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de modo geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o sector automóvel um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega (§ 56). Acrescentando que sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não pode considerar-se que tais modalidades reflictam objectivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios (§ 57).

 

Vindo a concluir - com a reserva de que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar se o método de cálculo pro rata tem em conta a afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais para efeitos das operações que conferem direito à dedução – nos seguintes termos:

 

Os artigos 168.o e 173.o, n.o 2, alínea c), da Directiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

 

7. Revertendo à legislação nacional, parece não haver dúvidas que o artigo 23.º, n.º 1, alínea b), consagra o método pro rata para a dedução do IVA para sujeitos passivos mistos, estabelecendo no n.º 4 o cálculo da percentagem de dedução. Por outro lado, nos termos do n.º 2, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, o que corresponde à aplicação de um método de dedução alternativo baseado na afectação real em função da efectiva utilização dos bens. Para esta última hipótese, esse n.º 2 prevê igualmente que a Administração possa impor condições especiais ao método de afectação real e fazer cessar o procedimento quando se verifiquem distorções significativas na tributação. E nos termos da alínea b) do n.º 3, a Administração pode também obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o método de afectação real quando a aplicação do método pro rata possa conduzir a distorções significativas na tributação.

Por outro lado, com base na jurisprudência do TJUE, não pode deixar de reconhecer-se que as disposições conjugadas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º correspondem, em substância, à regra de determinação do direito de dedução a que se refere o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da sexta Directiva (artigo 173.º, n.º 2, da Directiva 2006/112/CE), contemplando a possibilidade de, por iniciativa do sujeito passivo ou por impulso da Administração, vir a ser adoptado o método de afectação real para a dedução do imposto relativamente a bens de utilização mista. E é também ponto assente que o n.º 2 permite que a Administração, através do controlo dos critérios utilizados pelo sujeito passivo na aplicação do método de afectação real, possa impor condições especiais, que, na prática, poderão traduzir-se na aplicação de um critério de pro rata mitigado ou um critério de afectação real ad hoc que permita precisar melhor o grau de utilização dos bens de uso misto de uma empresa.

Nesse mesmo sentido se pronunciou o STA, no acórdão de  3 de junho de 2015 (Processo n.º 970/23), onde se refere que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA - artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da sexta Directiva -, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços».”

O coeficiente específico que permite calcular a percentagem de dedução apenas com base no montante anual de juros veio a ser introduzido pelo Ofício Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, pelo qual, a Administração Tributária, tendo concluído, relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a “distorções significativas na tributação” determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afectação real.

Segundo os pontos 8 e 9 do Ofício Circulado, a afectação real poderá fazer-se das duas seguintes formas: (a) se for possível, faz-se a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades; (b) se não for possível aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.

 

O Ofício Circulado não faz expressa menção à situação em que esteja em causa, no cálculo da percentagem de dedução do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, o valor da transmissão das viaturas com reserva de propriedade, mas a Autoridade Tributária, na apreciação do caso concreto, entendeu ser igualmente aplicável o entendimento expresso nessa orientação genérica, por considerar que, também nesse caso, a aplicação do método pro rata em sentido estrito conduziria a vantagens injustificadas implicando distorções significativas na tributação.

 

8. Como se deixou entrever, a disposição do artigo 23.º, n.º 3, do Código do IVA, ao abrigo da qual veio a ser emitido o Ofício Circulado n.º 30103, permite à Administração Tributária afastar o método pro rata, em relação a bens ou serviços de utilização mista, quando a aplicação desse critério de imputação possa conduzir a distorções significativas na tributação, caso em que poderá impor o método da afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

 

Relativamente aos sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, o Ofício Circulado prevê a utilização de um coeficiente de imputação específico em que deve ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos a essa actividade, com exclusão da fórmula de cálculo da percentagem de dedução que resulta do n.º 4 do artigo 23.º

 

O acórdão Banco Mais, a que se fez alusão, veio admitir que os Estados membros possam obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas correspondente aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. Para justificar essa solução, o TJUE considerou decisivo que os custos mistos se encontrem preponderantemente relacionados com o financiamento e a gestão dos contratos de locação financeira e não com a aquisição e disponibilização de veículos, deixando a apreciação dessa questão factual ao órgão jurisdicional nacional.

 

                Sobre a questão de saber se as diferentes operações relativas a prestações de locação financeira, como seja a concessão de financiamento e a disponibilização de veículos, devem ser tratadas como operações distintas tributáveis separadamente ou como uma única prestação económica indissociável, assume especial relevo o também citado acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd.

 

Nesse caso, do ponto de vista do cálculo do pro rata para a dedução do IVA no caso de bens e serviços de utilização mista, o Tribunal de Justiça considerou relevante o facto de os custos gerais em causa terem uma relação directa e imediata com a totalidade das actividades da empresa, e não apenas com algumas delas, vindo a concluir que os custos gerais quando tenham sido realmente efectuados, pelo menos em parte, em vista a aquisição e disponibilização de veículos enquanto operações tributáveis, integram os elementos constitutivos do preço dessas operações, havendo lugar ao direito à dedução do IVA.

 

Isso significa, como deixou bem claro o TJUE, que não se pode deduzir do entendimento expresso no acórdão Banco Mais que o artigo 173.o, n.o 2, alínea c), da Directiva IVA permite aos Estados membros, de maneira geral, aplicarem a todas as operações de locação financeira um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando da sua entrega.

 

8. À luz do critério de repartição do ónus da prova que resulta do disposto no artigo 74.º da LGT, “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Na situação em análise, pretendendo a Administração Tributária recorrer a um método de imputação específico com a invocação de que o método regra, no caso concreto, é susceptível de provocar distorções significativas na tributação, cabe-lhe efectuar a prova da existência do risco de distorção. Pretendendo o sujeito passivo incluir a componente amortização na percentagem de dedução pro rata, incumbe-lhe demonstrar que os custos gerais também são consumidos, pelo menos em parte significativa, na realização das operações de locação financeira. Do mesmo modo que lhe cabe fazer a prova, para esse mesmo efeito, de que os custos gerais aproveitam à actividade de aquisição de veículos com reserva de propriedade.

 

No caso em presença, a Administração Tributária justifica a desconsideração do valor da transmissão dos veículos e do valor das amortizações financeiras nos contratos de locação financeira, para efeito do cálculo da percentagem de dedução dos custos gerais, com base numa mesma ordem de considerações.

 

No tocante ao valor da transmissão das viaturas, entende que as operações de aquisição de bens e ulterior alienação aos clientes corresponde essencialmente a uma  concessão de crédito em vista ao financiamento da aquisição dos bens, tendo como contrapartida o pagamento de juros e outros encargos associados ao crédito, constituindo a cláusula de reserva de propriedade uma garantia do valor do crédito concedido.

 

Por outro lado, a banco deduz integralmente o IVA incorrido a montante na aquisição dos veículos na operação passiva de alienação aos clientes, por via do mecanismo de imputação directa previsto no artigo 20.º do Código do IVA, pelo que o valor da transmissão, correspondendo ao crédito concedido, não deve ser incluído no cômputo do coeficiente de imputação resultante do método de afectação real, sob pena de aumentar injustificadamente a percentagem de dedução e gerar uma situação de desigualdade de tratamento em sede de IVA. Assim se concluindo que a inclusão do valor dessas operações no cálculo da percentagem de dedução proporciona uma distorção significativa da tributação relativamente ao conjunto de transações que são objecto de actividade normal do banco, produzindo um aumento artificial do seu coeficiente de imputação específico.

 

No que se refere às amortizações financeiras, a Autoridade Tributária defende, em idênticos termos, que a locação financeira, constituindo uma prestação de serviços sujeita a imposto, consubstancia uma modalidade de crédito, cuja contrapartida é constituída pelos juros e outros encargos que se incluem no valor total da renda. Sendo a renda composta pelo capital ou amortização financeira, que corresponde ao reembolso do crédito concedido, e os juros e outros encargos, que representam a remuneração do locador, a  componente de capital deve ser excluída do cálculo da percentagem de dedução uma vez que não constitui rendimento da actividade do sujeito passivo.

 

Assim sendo, só o diferencial correspondente aos juros é que se encontra conexo com os custos gerais utilizados indistintamente nas operações tributadas e isentas de imposto, uma vez que através do método de imputação directa o IVA é integralmente deduzido na parte relativa ao capital no momento da alienação dos veículos aos clientes. De outro modo, havia lugar a um aumento artificial da percentagem de dedução relativa a bens de utilização mista com o consequente efeito de distorção na tributação.

 

9. Na aproximação à solução do caso, importa responder, face à prova produzida, à questão de saber se a inclusão do valor da transmissão dos veículos e da amortização financeira no cálculo de percentagem do pro rata provoca uma distorção significativa na tributação que justifique o recurso ao método por afectação real, nos termos do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, do Código do IVA.

 

E, nesse plano de análise, importa fazer notar que o que está em causa é a aplicação de um método de dedução circunscrito aos custos gerais que são utilizados em operações tributadas e operações isentas de imposto, sendo irrelevante, desse ponto de vista, que na operação tributada o sujeito passivo tenha já tido possibilidade de exercer o direito de dedução do IVA.

 

A circunstância de haver lugar à dedução do imposto incorrido na aquisição dos veículos não justifica por si só a distorção na tributação, quando os custos gerais utilizados em operações tributáveis e não tributáveis entrem na dedução pelo método pro rata, visto que estamos perante métodos de dedução com diferentes campos aplicativos. Num caso, opera a imputação directa, a que se refere o artigo 20.º do Código e, noutro caso, o método de dedução relativa a bens de utilização mista, constante do artigo 23.º. E não se afigura que o sistema de dedução de IVA aplicável nesta última hipótese fique desvirtuado se se reconhecerem como dedutíveis custos que sejam tidos como afectos indistintamente a operações tributadas e a operações isentas.

 

O que interessa considerar, neste contexto, é se o contrato de locação financeira de automóveis poderá ser tido essencialmente como um contrato de concessão de crédito ou é composto por prestações distintas que se traduzam na disponibilização de um veículo e no financiamento da aquisição, a ponto de se poder entender que os custos gerais que tenham sido realizados possam ser imputáveis em certa medida à actividade de aquisição e disponibilização de veículos.

 

Na situação do caso, a prova produzida em audiência aponta consistentemente no sentido de que a aquisição de viaturas aos stands pelo banco e a concessão de crédito aos clientes para a disponibilização da viatura correspondem a actividades distintas. Como foi referido, o cliente negoceia com o stand a aquisição da viatura e dirige-se à agência bancária, informando as condições da transacção, podendo ser utilizados dois procedimentos distintos com diferente regime de custos consoante o grau de urgência na aquisição do veículo. O banco examina a documentação e encaminha o expediente para a direcção de financiamento automóvel, que contrata com o fornecedor a aquisição da viatura por parte do banco e o autoriza a entregá-la viatura ao cliente.  Existem cerca de 400 balcões do A... a que os clientes se podem dirigir para obter o financiamento, além de quatro delegações da direcção de financiamento automóvel, com sede no Porto, Golegã, Lisboa e Faro, bem como um call center e bases de dados para simulação, registo da compra e venda das viaturas, cujo o funcionamento implica custos  gerais de serviços. Os custos imputáveis aos procedimentos de negociação da aquisição da viatura aos stands e a sua venda e disponibilização ao cliente têm um peso relevante nos custos gerais do banco, não sendo fácil a afectação directa dos custos às diferentes atividades de concessão de crédito e disponibilização de viaturas.

 

Deste modo, um balcão poderá estar a realizar simultaneamente a actividade de preparação da aquisição, transmissão e disponibilização do veículo a um cliente e a actividade de preparação da concessão de crédito, não sendo possível determinar, com objectividade, o grau de utilização dos recursos em cada uma dessas actividades, e não sendo possível também recorrer, nesse condicionalismo, a um método de afectação real assente em critérios objectivos.

 

 Havendo de concluir-se, face à prova produzida, que os custos gerais se reportam a bens e serviços utilizados para efectuar tanto operações que conferem direito à dedução como operações que não conferem direito à dedução, deve ser estabelecido um pro rata de dedução, em conformidade com as disposições relevantes da Directiva IVA, na linha do entendimento expresso no acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd. E, nesse sentido, é de entender que os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço da disponibilização dos veículos, não podendo ser aplicado um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é susceptível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

 

Por outro lado, essa proposição mostra-se ser válida, quer para o valor da transmissão das viaturas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, quer para o valor das amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira.

 

Por todo o exposto, o pedido arbitral mostra-se ser procedente.

 

Juros indemnizatórios

 

10. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de autoliquidação de IVA da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

Reenvio prejudicial

 

11. A Requerente solicita o reenvio prejudicial para o TJUE, a título subsidiário, caso subsistam dúvidas quanto à interpretação da Directiva do IVA quanto à consideração do valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade e do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira para efeito do cálculo da percentagem de dedução do IVA incorrido em custos de utilização mista.

 

Tendo o tribunal adoptado solução consonante com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, e não subsistindo dúvidas interpretativas sobre a questão essencial que é colocada no processo, entende-se não se justificar o requerido reenvio.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide

 

a)            Julgar procedente o pedido arbitral e, consequentemente, anular a liquidação de IVA efectuada na declaração periódica referente a Dezembro de 2014, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ela deduzida;

b)           Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do montante de € 3.091.870,19 acrescido de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido até ao respectivo reembolso.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 3.091.870,19, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 39.474,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 18 de Novembro de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

(revendo anterior posição quanto à compatibilidade do ofício circulado com o disposto no artigo 23.º, n.º 3, do Código do IVA)

 

O Árbitro vogal

Jónatas Machado

 

O Árbitro vogal

João Taborda da Gama