Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 604/2014-T
Data da decisão: 2015-04-06  IUC  
Valor do pedido: € 2.839,34
Tema: IUC – liquidação do imposto único de circulação
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

A - PARTES

 

A, SA, com sede no …, Setúbal, com o número de pessoa colectiva … e a B, SA com sede no …, Setúbal, com o número de pessoa colectiva …, designadas por “Requerentes”, impugnantes no procedimento tributário acima e à margem referenciado, veem, invocando o disposto nos artigos 2.º, nº 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.

 

B - PEDIDO

 

1 - O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 05/08/2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na mesma data.

2 - Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 6.º e na alínea a) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, o Conselho Deontológico designou, em 19/09/2014, como árbitro singular António Correia Valente, que comunicou a aceitação do encargo.

3 - Em 19-09-2014 foram as Partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no art.º 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, não tendo, as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.

4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 06/10/2014.

5 - No quadro do despacho proferido pelo Tribunal Arbitral em 08-01-2015, exarado no SGP, e tendo em conta, quer a circunstância do objecto do litígio respeitar fundamentalmente a matéria de direito, quer a circunstância das excepções a apreciar e a decidir suscitadas pela AT terem sido objecto de resposta escrita pela Requerente e constando do processo os documentos pertinentes, estando junto aos autos o processo administrativo, a reunião prevista no artigo 18.º do RJA, tendo em conta o disposto no art.º 16.º, alínea c) do mesmo diploma, considerou-se dispensada.

6 - As ora Requerentes pretendem que o presente Tribunal Arbitral:

a) - Declare a ilegalidade de todas as liquidações de IUC e da consequente anulação, quer dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), quer dos referentes aos correspondentes juros compensatórios, respeitantes aos anos de 2013 e 2014, relativamente aos sete veículos identificados nos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;

b) - Condene a AT ao reembolso da quantia de € 2.839,34, correspondente ao montante total pago a título de IUC e de juros compensatórios referentes aos anos e veículos atrás referenciados;

c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios pelo pagamento do IUC e dos juros compensatórios indevidamente liquidados e pagos.

d) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento do montante gasto a título de honorários pelo patrocínio judiciário, que é estimado no valor de € 1.000,00

 

C - CAUSA DE PEDIR

 

7 - As Requerentes, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirmam, em resumo, o seguinte:

 

8 - Que foram confrontadas com a existência de dívidas de IUC inseridas no sistema informático pela AT, as quais pressupunham uma liquidação prévia do referido imposto e eram impeditivas da obtenção de certidão de situação fiscal regularizada.

9 - Que promoveram o pagamento das referidas dívidas, tendo obtido para o efeito no Portal das Finanças as respectivas guias de pagamento com a indicação do correspondente IUC.

10 - Que, quando as catorze liquidações de IUC, identificadas nos autos, foram efectuadas, reportadas aos anos de 2013 e 2014, já haviam transmitido a propriedade dos sete veículos identificados, a que as mesmas dizem respeito.

11 - Que, a venda dos sete mencionados veículos ocorreu em datas anteriores àquelas em que as referenciadas liquidações de IUC foram efectuadas, não sendo, pois, nos anos a que respeitam tais liquidações sujeitos passivos desse imposto.

12 - Que o art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção e que todos os elementos atinentes à sua interpretação apontam no sentido de que tal presunção foi ilidida.

13 - Que o princípio da equivalência estabelecido no art.º 1.º do CIUC é um princípio estruturante e unificador do IUC, o que resulta bem vincado no Anexo II à Proposta de Lei nº 118/X, que deu origem à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho, que aprovou o CISV e o CIUC.

14 - Que a transmissão da propriedade automóvel dá-se por mero efeito do contrato de compra e venda do veículo, não ficando dependente de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal.

15 - Que o registo não tem valor constitutivo do direito de propriedade dos veículos, mas apenas declarativo, estabelecendo o diploma que regula o registo automóvel a natureza presuntiva do direito de propriedade automóvel.

16 - Que embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, conforme dispõe o art.º 5.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, é certo que, nos termos do n.º 4 do art.º 5.º do referido Código, terceiros para feitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

17 - Que, face à noção legal de terceiro, a Requerida não preenche os requisitos legais inscritos nesse conceito, não podendo, assim, desconsiderar a documentada transmissão da propriedade dos veículos identificados nos autos.

18 - Que as vendas dos veículos em questão estão suportadas em seis Notas de Débito e numa Nota/Aviso de Lançamento contendo informação relativa aos compradores.

19 - Que até à apresentação do pedido de pronúncia arbitral já suportaram despesas a título de honorários cobrados pelo seu mandatário, que correspondem à quantia de € 1.000,00, relativamente à qual devem ser reembolsadas.

 

D - RESPOSTA DA REQUERIDA

20 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta em 11-11-2014 e a cópia do Processo Administrativo Tributário (PA) na mesma data, tendo, então, feito apelo às Decisões Arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 113/2014-T; 114/2014-T; 170/2014-T; 178/2014-T; 179/2014-T e 183/2014-T que menciona no art.º 63.º da sua Resposta, as quis se pronunciam sobre matérias relacionadas com as excepções que suscita.

21 - Na referida Resposta, a AT apresenta a sua defesa suscitando, desde logo, diversas excepções, que se concretizam na:

- Cumulação ilegal de pedidos;

- Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente ao pedido de reembolso dos honorários pagos ao advogado;

- Intempestiva apresentação do pedido de pronúncia arbitral;

- Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral.

22 - As referidas excepções sustentam e traduzem a defesa da Requerida nos termos seguintes:

 

POR EXCEPÇÃO DILATÓRIA

 

23 - A Requerida entende que a cumulação de pedidos, face ao disposto no n.º 1 do art.º 3.º do RJAT, só é admissível se a procedência dos pedidos depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, o que no caso dos autos não se verifica, dado não se encontrar preenchido o requisito da coincidência quanto às circunstâncias de facto.

24 - Acrescenta que na cumulação de pedidos corporizada no pedido de pronúncia arbitral, subjacente ao presente processo, estamos perante situações fácticas díspares consubstanciadas em veículos diferentes, com datas e valores de venda diferentes e com proprietários totalmente díspares, pelo que a cumulação de pedidos efectuada pelas Requerentes é ilegal.

25 - No que respeita à incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente ao pedido de reembolso dos honorários pagos ao advogado, a Requerida entende que a compensação pelos custos despendidos pelas Requerentes com o seu causídico, no quadro do presente processo, não se inscreve no disposto no art.º 2.º do RJAT, não sendo, por isso, da competência dos tribunais arbitrais.

26 - A propósito do mencionado pedido, a AT, em defesa do seu entendimento, faz referência a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul que aponta no sentido de que o reembolso das quantias pagas a mandatários judiciais, a título de honorários, assume a natureza de indemnização fundada na responsabilidade civil extracontratual do Estado.

27 - Sobre a apresentação do pedido de pronúncia arbitral entende a Requerida que o mesmo foi, em parte, intempestivamente apresentado, dado que, em seu entender, sete das liquidações referenciadas no aludido pedido têm datas limite de pagamento que, reportando-se, quatro delas a 31-01-2013 e as restantes a 28-02-2013, a 01-08-2013 e a 28-02-2014, evidenciam que a sua impugnação não observou o prazo de 90 dias, legalmente previsto para o efeito, contado a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação tributária.

 

POR EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA

 

28 - A Requerida entende que o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo decorre de um erro em que as Requerentes parcialmente laboraram, na medida em que reagem contra “meras notas de cobrança” como se fossem liquidações oficiosas. (Cfr. art.ºs 27.º, 28.º, 29.º e 40.º da Resposta)

29 - As “meras notas de cobrança”, atrás referidas, são as que respeitam aos veículos automóveis com as matrículas …; …; …; … e … e que estão, respectivamente, integradas nos Documentos n.ºs 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 identificados nos autos.

30 - Acrescenta que os actos impugnados para serem liquidações oficiosas teriam de ter sido gerados pela Requerida e por ela enviados às Requerentes, o que não se verificou no caso vertente.

31 - Considera, igualmente, que as referidas notas de cobrança foram geradas e extraídas pelas próprias Requerentes no Portal das Finanças através da internet, o que significa que foram as aludidas Requerentes que, sem terem sido notificadas para o efeito, procederam à emissão das mencionadas notas de cobrança.

32 - Entende, a concluir, que o Tribunal Arbitral Singular constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto de litígio relativamente aos Documentos n.ºs 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 atrás mencionados, face à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela Requerida.

33 - Por fim, entende, ainda, que mesmo na hipótese de se considerar não estarmos perante notas de cobrança mas sim perante autoliquidações geradas pelas próprias Requerentes no portal das Finanças, o pedido de pronúncia arbitral não pode proceder, dado que a reacção contra tais autoliquidações depende de prévia e necessária Reclamação Graciosa, em conformidade com o disposto no artigo 131.º/1 do CPPT, o que não se verificou, acrescentando que, à cautela e sem conceder, mesmo se assim não se entender, os actos impugnados não enfermam de quaisquer ilegalidades, alegando, em síntese e no essencial, o seguinte:

 

POR IMPUGNAÇÃO

 

34 - As alegações das Requerentes não podem de todo proceder, porquanto fazem uma interpretação e aplicação das normas legais, aplicáveis ao caso, notoriamente errada, na medida em que incorre não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, seguindo ainda uma “interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço”. (Cfr. art.ºs 90.º e 91.º da Resposta)

35 - O legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente, que os mesmos são os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, notando que,

36 - O referido legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.º 97.º da Resposta)

37 - A redacção do art.º 3.º do CIUC não permite manifestamente invocar, como fazem as Requerentes, que o mesmo consagra uma presunção, na medida em que o estabelecido no referido artigo corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos do IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel, acrescentando ser neste sentido que aponta,

38 - O “entendimento já adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais”, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. art.ºs 108.º e 110.º da Resposta)

39 - Sobre o elemento sistemático de interpretação, considera que a solução propugnada pelas Requerentes é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Cfr. n.º 119.º da Resposta)

40 - Sobre a ignorância da “ratio” do regime, a AT considera que, a interpretação propugnada pelas Requerentes é manifestamente errada, na medida em que o visado pelo legislador fiscal foi a criação de um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel.

41 - Acrescenta que o novo regime de tributação do CIUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública, passando o Imposto Único de Circulação a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos. (Cfr. n.ºs 149 e 150 da Resposta)

42 - Neste sentido, refere ser este o entendimento inscrito, nomeadamente, na recomendação n.º 6-B/2012, de 22/06/2012, do Senhor Provedor de Justiça dirigida ao Secretário de Estado das Obras Públicas, dos Transportes e das Comunicações.

43 - A interpretação veiculada pelas Requerentes é, também, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português de que, quer as Requerentes, quer a Requerida fazem parte. (Cfr. n.ºs 158 da Resposta)

44 - Refere, também, que as Requerentes não lograram produzir prova documental que seja susceptível de fundamentar a pretensa transmissão da propriedade dos veículos em causa, dado que as notas de débito e os avisos de lançamento apresentados não são aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático, como é a compara e venda.

45 - Acrescenta, ainda, a Requerida que, sendo os actos tributários em crise válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, não ocorreu qualquer erro imputável aos serviços.

46 - Por fim, face a toda a argumentação que aduziu, considera que o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida.

E - QUESTÕES DECIDENDAS

 

47 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.

48 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, é necessário apreciar e decidir:

a) As excepções dilatórias referentes à cumulação ilegal de pedidos; à Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente ao pedido de reembolso dos honorários pagos ao advogado e à intempestiva apresentação do pedido de pronúncia arbitral (1);

b) A excepção peremptória de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, relativamente à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral;

c) O estabelecimento, ou não, de uma presunção na norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º n.º 1 do CIUC;

d) O valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto;

e) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, o sujeito passivo do IUC, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, é o anterior proprietário ou o novo proprietário;

f) Se às Requerentes assiste o direito a juros indemnizatórios.

 

F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

49 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

50 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

51 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.

52 - Tendo em conta o processo administrativo tributário, cuja cópia foi, oportunamente, apresentada pela AT, e a prova documental junto aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa nos seguintes termos.

 

G - DAS DEDUZIDAS EXCEPÇÕES

 

53 - Tendo em conta disposto no n.º 1 do artigo 608.º do CPC e no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aqui aplicáveis, respectivamente, por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT, deverão, as referidas excepções ser conhecidas em primeiro lugar,

 

DAS EXCEPÇÕES DILATÓRIAS

 

QUANTO À CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

 

54 - A Requerida entende que a cumulação de pedidos, face ao disposto no n.º 1 do art.º 3.º do RJAT, só é admissível se a sua procedência depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

55 - Acrescenta que o pedido formulado pelas Requerentes não satisfaz os aludidos requisitos, na medida em que estamos perante situações fácticas díspares consubstanciadas em veículos diferentes, com datas e valores de venda diferentes e com proprietários totalmente díspares, pelo que a cumulação de pedidos em questão é ilegal.

56 - O referido entendimento, não atende ao que de essencial caracteriza as circunstâncias de facto, para efeitos da cumulação de pedidos, tal como previstas no art.º 3.º, n.º 1 d RJAT, dado que não as entende como reportando-se à identidade dos factos, na medida da sua relevância para efeitos da decisão.

57 - Na verdade, para efeitos da cumulação de pedidos em causa nos autos, a identidade fáctica relevante não reside, designadamente, nas datas em que os veículos foram vendidos, nem nos diferentes valores das respectivas vendas, nem nas pessoas adquirentes de tais veículos, enquanto elementos de natureza contingente que integram as mencionadas circunstâncias de facto, mas sim, como atrás se referiu, naquilo que nos factos tem relevância essencial para efeitos da correspondente decisão, o que, no caso, se reconduz à transferência da propriedade dos veículos das Requerentes para as entidades que os adquiriram e às datas em que tal aconteceu, tendo designadamente em vista conhecer se a mesma ocorreu em momentos anteriores aos da exigibilidade do imposto em causa.

58 - Neste quadro, não pode deixar de entender-se que a cumulação de pedidos em questão tem enquadramento legal, improcedendo, assim, a excepção deduzida pela Requerida.

 

QUANTO À INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL EM RAZÃO DA MATÉRIA PARA O REEMBOLSO DOS HONORÁRIOS PAGOS AO ADVOGADO

 

59 - Quanto ao pedido de reembolso da quantia de € 1.000,00, a título de honorários pagos ao advogado pelas Requerentes, a Requerida entende que tal pedido não se inscreve no disposto no art.º 2.º do RJAT, não sendo, por isso, da competência dos tribunais arbitrais e, na verdade, assim é. Com efeito,

60 - O âmbito da competência dos tribunais arbitrais tributários, face ao disposto no n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, compreende: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais, o que evidencia a ausência de competências dos tribunais tributários para apreciação de pedidos de reembolso de quantias pagas pelas Requerentes ao seu advogado.

 

61 - O que a lei manifestamente privilegiou, relativamente às competências dos tribunais arbitrais em matéria tributária, foi o julgamento de causas que nos tribunais administrativos e fiscais revestem a forma processual de impugnação judicial, em conformidade com o disposto na alínea a) do art.º 101.º da LGT e nas alíneas a) a f) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT, cabendo notar que, mesmo neste domínio, há limitações, como resulta, designadamente, do disposto no n.º 2 da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.

 

62 - Assim, o pedido deduzido pelas Requerentes de reembolso da quantia paga a título de honorários não se inscreve no quadro das pretensões arbitráveis, dele não podendo conhecer este tribunal.

 

63 - O pedido de reembolso da quantia de € 1.000,00, formulado pelas Requerentes visa a reparação dos danos sofridos, em resultado da apresentação do pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo.

64 - Trata-se de um pedido que, pretendendo responsabilizar o Estado pelos custos decorrentes da prática dos actos tributários tidos como ilegais pelas Requerentes, só pode inscrever-se na responsabilidade civil extracontratual do Estado, disciplinada, como decorre do estabelecido na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, não por normas de direito tributário, mas por normas de direito civil e administrativo, e que tendo, embora, como remota origem os actos de liquidação impugnados, não corresponde a um conflito emergente de uma relação tributária tout court, sendo, de resto um custo, manifestamente, posterior aos aludidos actos tributários.

 

65 - Nestas circunstâncias, conclui-se pela procedência da excepção suscitada pela Requerida, não sendo, pois, este Tribunal Arbitral competente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de reembolso da quantia de € 1.000,00 paga pelas Requerentes como honorários pelos trabalhos prestados pelo seu advogado, no quadro do presente processo.

 

QUANTO À INTEMPESTIVA APRESENTAÇÃO DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

 

66 - Sobre a apresentação do pedido de pronúncia arbitral entende a Requerida que o mesmo foi, em parte, intempestivamente apresentado, dado que, em sete das liquidações mencionadas no referido pedido, quais sejam as que estão corporizadas nos Documentos n.ºs 4, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 identificados nos autos, constam, em seu entender, datas limite de pagamento que levam a considerar a não observância do prazo de 90 dias legalmente previsto para o efeito, contado a partir do termo do prazo para pagamento constante naqueles documentos.

 

67 - Neste quadro, importa saber qual o facto a partir do qual se deve contar o prazo de 90 dias para apresentar o pedido de pronúncia arbitral na parte respeitante aos veículos …; …; … e … referenciados, respectivamente, nos Documentos n.ºs 4, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, identificados nos autos.

Vejamos,

68 - Dos aludidos Documentos constam duas datas: uma, referente à data em que os mesmos foram emitidos; outra, assinalando as datas limite de pagamento.

69 - Os citados Documentos n.ºs 4, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 têm, assim, respectivamente, as datas de 16-07-2014/01-08-2013; 06-05-2014/28-02-2013; 06-05-2014/28-02-2014; 06-05-2014/31-01-2013; 06-05-2014/31-01-2014; 06-05-2014/31-01-2013 e 06-05-2014/31-01-2014.

70 - O Processo Administrativo junto aos autos é, nomeadamente, integrado pelo documento/informação elaborada pelo Serviço de Finanças de Setúbal 1, onde está expressamente exarado que, entre as datas das referenciadas liquidações, efectuadas pela internet, a mais antiga delas, coincidente, aliás, com a data do pagamento do correspondente imposto, é reportada ao dia 06-05-2014 e a mais recente a 16-07-2014.

71 - Relativamente à contagem dos prazos para efeitos da tempestiva apresentação no CAAD do pedido de pronúncia arbitral, importa ter em conta que a AT, dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, pode proceder à notificação do contribuinte, pelo que, se relativamente aos documentos em causa se considerarem as datas limite aí exaradas para pagamento do imposto, como sendo as datas relevantes para efeitos de impugnação e não as datas em que os mesmos foram emitidos pelo sistema informático da AT, estar-se-á a precludir o direito do lesado à reclamação, à impugnação judicial ou ao recurso.

 

72 - A não ser assim e sendo que, por um lado, as Requerentes só tiveram conhecimento do conteúdo das liquidações em causa nas datas em que os referidos Documentos foram emitidos e que, por outro, as Notificações podem sempre ser efectuadas dentro do prazo de caducidade, o sujeito passivo ficaria, em definitivo, inibido de defender os atrás referidos direitos dentro do prazo de 90 dias, legalmente estabelecido para o efeito, se o mesmo fosse contado a partir da data limite de pagamento que consta nos Documentos criados pelo sistema informático e não da data em que esses Documentos são emitidos.

Note-se, aliás, que o referido direito de impugnação, para além de estar inscrito no artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição, tem consagração legal no art.º 96.º do CPPT, cujo n.º 1, como ensina Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª Edição, Áreas Editora, SA, Lisboa, 2011, p. 28, consagra uma opção pela doutrina subjectivista, para a qual a função primacial do contencioso tributário é “[…] a garantia da tutela judicial dos direitos ou interesses legítimos, sendo o objecto do processo judicial a relação jurídica tributária […]”. O mencionado direito de impugnação tem a sua concretização consagrada nos art.ºs 9.º, n.º 1 e 95.º, n.º 1, ambos da LGT, cabendo notar os ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 824, quando a propósito do referido direito referem que o “[…] relevo dado ao direito de impugnação […] dos actos lesivos explica-se tão só pelo facto de se estar num domínio em que a actividade da Administração é uma actividade essencialmente agressiva dos direitos e interesses legalmente protegidos e não uma actividade de prestação e em que essa agressão é levada a cabo, por via de regra, através de actos de conteúdo positivo desfavorável para o contribuinte (liquidação de tributos) ou de conteúdo negativo igualmente desfavorável (não reconhecimento de benefícios fiscais)”.

 

73 - Não tendo as Requerentes sido notificadas nos termos formais previstos para as Liquidações Oficiosas, a contagem do prazo de 90 dias para a apresentação do pedido de pronúncia arbitral terá por base as datas em que tais documentos (Notas de Liquidação/Demonstração de Liquidação) foram emitidos no Portal da Finanças. (Cfr. art.º 102.º, n.º 1, alínea f) do CPPT).

 

74 - Nestas circunstâncias, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 02-08-2014, conclui-se pela improcedência da excepção suscitada pela Requerida, relativamente à intempestividade parcial do pedido de pronúncia arbitral, respeitante às liquidações referidas no anterior ponto n.º 66.

 

DA EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA

 

75 - A Requerida, como já atrás se referiu, fundamenta a mencionada excepção no que considera ser um erro em que as Requerentes parcialmente incorrem, ao confundir notas de cobrança com liquidações oficiosas, entendendo que,

 

76 - Os documentos n.ºs 2, 3. 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 identificados nos autos não podem ser tidos como corporizadores de liquidações oficiosas, dado que não foram geradas nem enviadas pela Requerida às Requerentes.

 

77 - Tais documentos, não tendo sido emitidos pela entidade Requerida, mais não são do que meras notas de cobrança que as Requerentes emitiram e extraíram voluntariamente do Portal das Finanças, através da internet.

 

78 - Assim, a AT considera que o “objecto do presente pedido de pronúncia arbitral não se escora sobre actos de “liquidação oficiosa” emitidos pela Requerida, mas sim sobre notas de cobrança que as Requerentes geraram e extraíram de forma totalmente voluntária do Portal das Finanças e sob os quais procedeu ao pagamento”, daqui concluindo que não constituindo a nota de cobrança um acto tributário verifica-se, no caso vertente, uma situação de falta de objecto, que corporiza uma excepção peremptória e dá lugar, nessa medida, à absolvição da Requerida do pedido.

 

79 - Acrescenta ainda que, mesmo que assim não se julgue, e se entenda estarmos perante autoliquidações geradas pelas próprias Requerentes no Portal das Finanças, o “presente pedido de pronúncia arbitral não poderá proceder”, posto que, embora as autoliquidações configurem actos tributários, a reacção das Requerentes contra tais autoliquidações depende de prévia e necessária dedução de Reclamação Graciosa, conforme estatui o artigo 131.º/1 do CPPT, o que não se verificou no caso do presente processo.

 

80 - As Requerentes, por seu lado, notificadas da resposta da AT, pronunciam-se sobre a mencionada excepção, referindo que “As notas de cobrança de onde as requerentes extraíram as referências para proceder ao pagamento de imposto que as impedia de obter certidões negativas de dívida, pressupõem justamente a existência de liquidação de imposto […]”.

 

81 - Consideram ainda que as notas de cobrança, que foram juntas ao pedido de pronúncia arbitral, revelam liquidações de IUC, identificadas também pela informação elaborada pelo Serviço de Finanças de Setúbal 1, junta aos autos, acrescentado que, antes da primeiríssima intervenção das Requerentes, a propósito do IUC referenciado nos autos, para que o sistema informático da AT lhes fornecesse as notas de cobrança para poderem pagar as dívidas constantes desse mesmo sistema, já existiam registadas no referido sistema as dívidas de IUC, respeitantes às liquidações identificadas no processo.

 

82 - Acrescentam que antes de qualquer intervenção do contribuinte, a propósito do ICU em causa nos autos, já existiam registadas no sistema informático da AT as dívidas de IUC respeitantes às liquidações em questão no processo.

 

83 - As Requerentes terminam as suas considerações referindo que não existe, no caso dos autos, qualquer possibilidade de autoliquidação de IUC, porquanto todo o conteúdo das liquidações de IUC é pré-determinado pelo sistema informático da AT sem interferência do contribuinte.

 

Vejamos,

 

84 - Os documentos juntos ao processo, e nos quais as Requerentes se fundaram para proceder ao pagamento do IUC referente aos veículos identificados nos atrás mencionados documentos n.ºs 2, 3. 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 identificados nos autos, para além de estarem devidamente identificados por via de numeração própria da AT e terem exarada a data da sua emissão, contém a identificação fiscal e a morada das Requerentes, mencionam a quantia/valor certo do IUC a pagar e têm, quer a indispensável referência para pagamento, a fim de que o mesmo possa ser concretizado, quer a indicação das várias modalidades possíveis de pagamento, bem como a data limite pare esse efeito.

 

85 - O valor a pagar, respeitando, embora, à importância resultante do somatório do IUC devido e dos correspondentes juros compensatórios está, todavia, devidamente ventilado nos mencionados documentos, dado que aí se procede à demonstração das respectivas liquidações, seja, pois, a título de IUC, onde, designadamente, se refere a matrícula do veículo, o ano e mês de matrícula, bem como a sua cilindrada, seja relativamente aos referidos juros.

 

86 - Aqui chegados, importará lembrar que as liquidações são actos da administração que conjugando um complexo de elementos, que, no caso, correspondem aos que atrás se deixam referidos, determinam o quantum de imposto em dívida.

Por outro lado,

87 - Certo é que as Requerentes retiraram da sua página, no Portal das Finanças, os documentos designáveis por Notas de Liquidação/Demonstração de Liquidação, que estão junto aos autos, e procedeu ao pagamento dos montantes nelas inscritos, o que não pode deixar de significar que as correspondentes e subjacentes liquidações tributárias já tinham sido “geradas” (efectuadas) com base em programação informática, dado que a sua automaticidade resulta, necessariamente, de um programa informático com claros e precisos objectivos, previamente delineados pelo programador, o mesmo é dizer, pela Administração Tributária.

88 - No caso dos autos, as Requerentes tiveram conhecimento dos actos tributários, em conformidade com a sua revelação na “sua página” no Portal das Finanças, tendo procedido ao pagamento das quantias de imposto liquidado, actos que, embora praticados no Sistema Informático, vinculam a Administração Tributária.

89 - Nestas circunstâncias, estamos, inequivocamente, perante liquidações de IUC efectuadas pela AT, levadas à esfera de cognoscibilidade da Requerente por via da sua colocação na “página” que “lhe está reservada” no Portal das Finanças, constituindo actos lesivos que, face ao previsto e estatuído no n.º 2 do art.º 9.º e no n.º 1 do art.º 95.º, ambos da LGT, podem ser impugnados pelos interessados.

 

90 - Face ao exposto, o tribunal não pode acompanhar o entendimento da Requerida quanto à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral, concluindo, pois, no sentido de que estamos perante a existência de actos de liquidação de IUC susceptíveis de impugnação, não procedendo, assim, a excepção peremptória invocada pela AT.

91 - Assim sendo, afastado fica, também, o entendimento de que estamos perante uma situação de autoliquidação, posto que a autoliquidação é a que, de todo, é feita pelos particulares, por contraposição à liquidação que é feita pela Administração Tributária, só podendo falar-se de autoliquidação quando é o próprio contribuinte a fazer as contas/os cálculos do imposto a pagar, ou seja, quando é o sujeito passivo a aplicar a taxa do imposto à matéria colectável, o que, em absoluto, não acontece no caso dos autos (Cfr. designadamente, José Casalta Nabais, in Direito Fiscal - (Reimpressão) Almedina, Coimbra - Março - 2002, p. 252; Vitor Faveiro, in Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, 1.º vol., Coimbra Editora - 1984, pp 409/410 e Pedro Soares Martinez, in Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 295/296.

92 - A este propósito, cabe notar, à semelhança do que é feito no Acórdão do STA, de 31-05-2006, Proc. JSTA00063227, disponível em www.dgsi.pt., que o “último grito” relativamente ao conceito de autoliquidação está consagrado no art.º 120.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária espanhola, aprovada pela Ley 58/2003, de 17 de Dezembro, quando dispõe que “as autoliquidações são declarações nas quais os obrigados tributários, além de comunicarem à Administração os dados necessários para a liquidação do tributo e outros de conteúdo informativo, fazem por si mesmos as operações de qualificação e quantificação necessárias para determinar e pagar a importância da dívida tributária ou, se for o caso, determinar a quantidade que haja a devolver ou a compensar”.

93 - Nestas circunstâncias estamos perante actos de liquidação de IUC, que se integram no elenco das pretensões sujeitas a apreciação pelo tribunal arbitral, tal como decorre do consagrado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, pelo que o Tribunal Arbitral Singular constituído é materialmente competente para conhecer do pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

H - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

94 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

95 - As Requerentes procederam à venda dos sete veículos identificados no processo, como consta nas seis Notas de Débito e no Aviso de Lançamento apresentados como prova das mencionadas vendas, onde, designadamente, estão referenciadas as datas de venda de cada um dos veículos, bem como os seus adquirentes.

96 - A venda dos referidos veículos, face às mencionadas Notas de Débito e ao Aviso de Lançamento apresentados, ocorreu em data anterior ao facto gerador do imposto e ao momento da sua exigibilidade.

97 - As Requerentes procederam ao pagamento do IUC, referente aos veículos …; …; … e …, referenciados nos Documentos n.ºs 4, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 identificados nos autos, com base nas Demonstrações de Liquidação/Notas de Liquidação disponíveis na sua “página” no Portal das Finanças.

 

98 - A Requerida entende que os Documentos que suportaram o pagamento do IUC referente aos veículos …, …; … e …, atrás mencionados, são “meras notas de cobrança” geradas e extraídas pelas próprias Requerentes do Portal das Finanças, através da internet.

99 - As Requerentes entendem que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção, e que todos os elementos atinentes à sua interpretação apontam no sentido de que tal presunção é ilidível.

100 - A Requerida considera que a redacção do art.º 3.º, n.º 1 do CIUC não permite entender que o mesmo consagra uma presunção, na medida em que a opção acolhida pelo legislador foi a de estabelecer, expressa e intencionalmente, que os sujeitos passivos do IUC são os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem registados.

FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

101 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

 

102 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.

 

I - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

103 - A matéria de facto está fixada, importando agora, não havendo mais excepções a conhecer e a decidir, e fixada que está a competência do tribunal arbitral, entrar na questão de fundo em causa nos presentes autos, que se reconduz à apreciação dos actos de liquidação de IUC, referentes aos períodos de tributação dos anos de 2012 e 2013, respeitantes aos veículos, em número de sete, identificados nos autos, que a Requerente considera feridos de ilegalidade, o que vem impugnado pela AT. Cabe, assim, proceder agora à subsunção jurídica dos factos subjacentes e determinar o Direito aplicável, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 48.

104 - A questão que, face ao exposto, sobra como essencial, relativamente à qual existem, aliás, entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.

105 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para as Requerentes, aquela norma consagra uma presunção legal ilidível, enquanto para a Requerida a interpretação que as Requerentes fazem do disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC é notoriamente errada, na medida em que resulta de uma “enviesada leitura da letra da lei”, não atende ao “elemento sistemático” de interpretação, violando a “unidade do regime consagrado em todo o CIUC” e “ignora a ratio do regime” consagrado no referido artigo, traduzindo também uma desconformidade com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário. (Cfr. art.º 34 da Resposta).

 

J - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO Nº 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC

 

106 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.

107 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.

108 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.

109 - A actividade interpretativa é, pois, incontornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas em causa.

110 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

111 - A finalidade da interpretação, diz-nos também o referido autor, ibidem, pp. 134/135, é “[…] determinar o sentido objectivo da lei […]”. A lei, sendo a expressão da vontade do Estado, é uma “[…] vontade que persiste de modo autónomo, destacada do complexo dos pensamentos e das tendências que animaram as pessoas que contribuíram para a sua emanação”. Daí que a actividade do interprete deva ser a de “[…] buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.

112 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.

 

DO ELEMENTO LITERAL

 

113 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente para a que visa saber se o artigo 3.º, nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.

114 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, nº 1 do CIUC.

115 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)

116 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.

117 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.

118 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.

119 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que se verifica no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma enviesada leitura da letra da lei, como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.

120 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.

O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).

 

121 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.

122 - Assim sendo, vejamos, então o elemento racional (ou teleológico).

 

DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)

 

123 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.

124 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito do art.º 1.º do CIUC.

125 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual Imposto Único de Circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio que, de algum modo, tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da nossa Constituição, tem também consagração no plano do direito comunitário, seja ao nível do direito originário, o que se verifica desde 07 de Fevereiro de 1992, altura em que foi assinado, em Maastrich, o Tratado da União Europeia, em cujo art.º 130.º-R, n.º 2, o aludido princípio passou a constar como suporte da política Comunitária no domínio ambiental, seja ao nível do direito derivado.

126 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus “proprietários - económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.

127 - Neste sentido, cabe, aliás, notar que o imposto único de circulação tem notórias afinidades com os impostos ambientais, na medida em que os mesmos visam, em especial, a prossecução de finalidades extrafiscais, as quais, no caso, se consubstanciam na tributação de externalidades negativas/danos ambientais.

128 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um fim que se pretende legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de assinalável fulgor que, constante e continuadamente, não pode deixar de iluminar o caminho do intérprete.

129 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.

130 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.

131 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2.ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

132 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.

133 - Caberá, ainda, considerar o elemento sistemático de interpretação.

 

DO ELEMENTO SISTEMÁTICO

 

134 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.

135 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema do IUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.

136 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no 1.º artigo do Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.

137 - O elemento sistemático de interpretação e a interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito do CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.

138 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.

Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.

Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento de uma presunção na mencionada norma corresponderá à única interpretação que se coaduna com o princípio da equivalência, atrás mencionado.

 

139 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.

140 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados.

141 - Com efeito, se o proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado, vier indicar e provar quem era o proprietário dos veículos em causa, nada justifica, em nosso entendimento, que o anterior proprietário seja responsabilizado pelo pagamento do IUC que for devido.

142 - Acresce, ser esta interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC a que, a nosso ver, melhor se ajusta aos princípios a que a AT deve subordinar a sua actividade, nomeadamente ao princípio do inquisitório, em ordem à descoberta da verdade material.

143 - A propósito do referido princípio do inquisitório, cabe aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.

O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.

144 - A verdade material, no presente caso, consubstancia-se na circunstância dos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral terem sido vendidos pela Requerente em momento anterior ao da exigibilidade do imposto, ou seja, à data a partir da qual o credor tributário podia fazer valer, perante o devedor, o seu direito ao pagamento do imposto, era, face ao processo administrativo, do conhecimento da AT.

145 - Não se diga, como faz a AT, que o estabelecimento de uma presunção no art.º 3.º do CIUC e as consequências daí resultantes ofenderiam o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que conduziriam, nomeadamente, ao “entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida”. (Cfr. art.º 158 da Resposta)

A eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significará produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.

146 - Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.

Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados em razão dos meios disponíveis, ou melhor, com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância dos princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita com prejuízo dos direitos dos cidadãos.

 

L - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO

 

147 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

148 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)

Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.

149 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.

Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.

150 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, nº 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)

151 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.

152 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, (diversas vezes alterado, a última das quais por via da Lei n.º 39/2008, de 11/08), que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)

153 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)

154 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, o qual, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, e alterado pela última vez, por via do Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)

155 - A conjugação do disposto nos artigos atrás referidos, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular, a favor de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.

156 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.

157 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

158 - Note-se, porém, que se é certo que a não existência de registo tem a relevância que atrás se deixa mencionada, não é menos certo que a sua inexistência impede a plena eficácia do contrato de compra e venda. A este propósito, cabe notar o disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.º 5.º do Código do Registo Predial, aplicáveis ao registo da propriedade automóvel por força do estabelecido no art.º 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

159 - Dispõe o n.º 1 do art.º 5.º do referido Código do Registo Predial, que “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, estabelecendo, por seu lado, o n.º 4 do mesmo artigo que “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

160 - Nestas circunstâncias, fácil será concluir que a AT, dado que não adquiriu, do mesmo vendedor, direitos sobre o veículo, incompatíveis com os direitos do comprador, não preenche o conceito de terceiros para efeitos do registo, tal como legalmente fixado.

161 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e nos termos do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que o veículo continua a ser propriedade da pessoa que o vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo, porém, certo que tal presunção é ilidível, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afaste a referida presunção, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.

M - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS

 

162 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas ou outros documentos equivalentes relativos à venda dos veículos.

163 - Como meio de prova de que procederam à venda dos sete veículos identificados no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, as Requerentes juntaram para os veículos automóveis com as matrículas …; ...; …; …; … e … cópias de seis Notas de Débito e para o veículo com a matrícula … uma Nota/Aviso de Lançamento.

164 - Sobre os referidos Documentos apresentados pelas Requerentes, como prova de venda dos veículos em questão, a AT considera que os mesmos não são aptos a provar a compra e venda dos veículos, dado não comprovarem um contrato sinalagmático. (Cfr. art.º 168.º da Resposta), mas, salvo o devido respeito, não tem total razão.

 

Vejamos,

 

165 - As Notas de Débito não são, à luz das normas actualmente em vigor, reconhecidas para suportar a transmissão de bens. Com efeito, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 29.º, do n.º 5 do art.º 36.º e do n.º 2 do art.º 40.º, todos do CIVA, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, resulta claro que apenas a factura, a factura-recibo e a factura simplificada corporizam documentos reconhecidos para efeitos da transmissão de bens ou da prestação de serviços.

 

166 - Importa, assim, saber se tais Documentos foram emitidos após a data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, ou se foram emitidos antes da mencionada data. No primeiro caso, as Notas de Débito só poderão ser legalmente emitidas enquanto documentos destinados à rectificação de facturas; no segundo caso, as Notas de Débito, caso contenha todos os elementos de informação que devem constar nas facturas, terão um valor equivalente a essas mesmas facturas. É o que, por um lado, resulta do disposto nos artigos 29.º n.º 7 e 36.º n.º 6 do CIVA, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 197/2012 de 24 de Agosto e, por outro, do estabelecido no n.º 5 do art.º 36.º do CIVA na redacção em vigor anteriormente à entrada em vigor do aludido Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto.

167 - A emissão das Notas de Débito juntas aos autos, para efeitos de prova da transmissão dos veículos com as matrículas …; …; …; …; … e … reportam-se a datas que se situam entre 26-08-1994 e 01-07-2005, anteriores, consequentemente, à da entrada em vigor do atrás referido Decreto-Lei, podendo, nessas circunstâncias, ser emitidas facturas ou documentos equivalentes, no quadro das transmissões de bens não correntes, ou das prestações de serviços, desde que observados os requisitos legalmente previstos, os quais, para além da data e numeração, deveriam, fundamentalmente, corporizar-se nos seguintes elementos: nomes dos fornecedores e dos adquirentes dos bens; quantidade e denominação usual dos bens; preço e outros elementos incluídos no valor tributável, bem como as taxas do IVA aplicáveis e o montante do imposto devido.

 

168 - A propósito das Notas de Débito deve, aliás, referir-se que, por norma, as mesmas são emitidas quando as mercadorias vendidas, no caso veículos automóveis, não estão relacionadas com a actividade principal das empresas à luz do seu objecto social, o que, a título de mero exemplo, se verificará quando uma empresa, cuja actividade social seja o desenvolvimento de Software vende uma viatura que tem no imobilizado, ou, como no caso dos autos, quando as Requerentes, cuja actividade principal não respeita, notória e manifestamente, à venda de veículos automóveis, procedem à venda de viaturas em idênticas circunstâncias.

 

169 - A Nota/Aviso de Lançamento apresentada, para efeitos de prova da transmissão do veículo, respeita ao automóvel com a matrícula …. Trata- se de um Documento meramente interno elaborado pelas próprias empresas e com relevância a esse nível. Com efeito,

170 - As Notas/Avisos de Lançamento são meros documentos internos produzidos pelas próprias empresas, como no caso acontece, relativamente às quais importa ter em conta a sua finalidade no seio das empresas, qual seja a de estabelecerem a transmissão de informações internas entre os diversos serviços que as integram, designadamente entre os serviços a quem compete ventilar os custos de um determinado bem produzido ou entre os serviços comerciais e os serviços de contabilidade, para os quais tais Notas/Avisos de Lançamento são emitidos.

 

171 - Nestas circunstâncias, a Nota/Aviso de Lançamento em causa, apresentada pelas Requerentes, como prova da transmissão do veículo com a matrícula …, não poderá ser tida como Documento equivalente à factura, não podendo, pois, ser tida como capaz de provar a venda do referido veículo, não tendo, assim, força probatória bastante para, com certeza e segurança, demonstrar a realidade da aludida transmissão.

 

172 - No caso dos autos, verifica-se que as Notas de Débito apresentadas revelam a inscrição dos elementos atrás mencionados, enquanto requisitos essências das facturas.

 

173 - Os documentos em questão, apresentados pelas Requerentes, enquanto meios destinados a fazer prova da transacção dos veículos em causa estão substancialmente ajustados à normas legais então em vigor, e gozam, por outro lado, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art.º 75.º da LGT,

 

174 - A presunção de veracidade que é conferida aos factos inscritos nos aludidos Documentos permite entender que a transmissão dos veículos aos seus adquirentes deve ser tida como verdadeira, cabendo à AT, face ao disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que tais vendas, na realidade, não ocorreram, não bastando afirmar, como faz, que, que os referidos Documentos não são aptos a provar a compra e venda dos veículos, dado não comprovarem um contrato sinalagmático.

175 - A presunção estabelecida no atrás referido art.º 75.º, n.º 1 da LGT, quando estatui que os referidos documentos gozam da presunção de veracidade, implica, com efeito, que se não for demonstrada pela AT a ausência de correspondência entre o teor de tais Documentos e a realidade, como não foi, o seu conteúdo deva considerar-se verdadeiro.

176 - Os Documentos/Notas de Débito apresentados pela Requerente, enquanto meios destinados a fazer prova das transacções dos veículos em causa, gozando, assim, da mencionada presunção de veracidade, afiguram-se com idoneidade bastante, em ordem à demonstração das referidas transacções, constituindo, a nosso ver, um meio de prova adequado e capaz de ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.

177 - Nada permite, com efeito, considerar que os elementos inscritos nos referidos Documentos são desconformes com a realidade que contratualmente ocorreu, o que significa que as Notas de Débito em causa não se afiguram como corporizadoras de qualquer contrato simulado, bem pelo contrário, tudo indica que reflectem e provam os factos nelas mencionados, ou seja, a efectiva venda dos veículos às pessoas nelas indicadas como sendo os seus adquirentes.

178 - Assim, face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade dos seis veículos em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da exigibilidade do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise, não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.

179 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, seis, dos sete veículos referenciados nos autos, quais sejam os de matrículas …; …; …; …; … e … foram vendidos em datas anteriores ao momento em que a Administração podia exigir a prestação tributária, não se pode deixar de considerar que, aquando da exigibilidade do imposto, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.

180 - A AT, quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar que o art.º 3.º do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos tributários, por violação de lei.

N - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

181 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)

182 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” (sublinhado nosso)

183 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, a título do imposto pago, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

184 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 2.816,53, que corresponde ao valor do pedido após a dedução do valor do IUC e dos Juros Compensatórios pagos relativamente ao veículo de matrícula …, que serão contados desde a data do pagamento do imposto e dos correspondentes juros compensatórios, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

O - CUSTAS ARBITRAIS

 

185 - A este propósito, mais concretamente sobre a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais, que a AT considera serem devidas pela Requerente, “nos termos do art.º 527.º/1 do Novo Código de Processo Civil ex vi do art.º 29.º/1-e) do RJAT”, cabe apenas notar que, face ao estatuído no n.º 2 do referido art.º 527.º do CPC, dá causa “[…] às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”, sendo, isso mesmo, que se aplicará no caso dos autos.

 

CONCLUSÃO

 

186 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados no entendimento de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.

187 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou as Requerentes proprietárias dos veículos referenciados no presente processo, considerando-as, como tal, sujeitos passivos do imposto, quando tal propriedade, relativamente aos seis veículos que atrás se deixaram mencionados, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.

 

III - DECISÃO

 

188 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

- Julgar parcialmente procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC, respeitantes a todos os veículos identificados nos autos, à excepção do veículo com a matrícula …, referentes aos anos de 2013 e 2014;

- Anular, consequentemente, quer os actos de liquidação de IUC, quer os actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associado, referentes aos anos de 2013 e 2014, respeitantes aos veículos, tal como atrás se deixam mencionados;

- Condenar a AT ao reembolso da quantia de € 2.816,53, referente ao IUC liquidado e pago em 2014, respeitante aos anos de 2013 e 2014, e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o seu pagamento, até ao integral reembolso da referida quantia;

- Condenar a Requerente e a Requerida em custas, na proporção do respectivo decaimento, que se fixam em 1% para a Requerente e 99% para a Requerida.

 

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 2.839,34.

 

CUSTAS

De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 612,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 06 de Abril de 2015

O Árbitro

António Correia Valente

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)