Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 669/2014-T
Data da decisão: 2015-06-01   
Valor do pedido: € 4.464,49
Tema: IUC – Incidência subjetiva; prova da transmissão
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

A…, Lda, contribuinte n.º …, com sede na Rua …, n.º …, …, …-… …, doravante designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade de quatro atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) dos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 e juros compensatórios, relativos à viatura com a matrícula ….-…-…, efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09-09-2014.

 

  1. Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º. n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 22-10-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 13-11-2014.

 

  1. No dia 17-03-2015 foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

  1. As partes apresentaram alegações escritas.

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

           

11.1 A Requerente foi notificada pela Autoridade Tributária e Aduaneira para pagamento do IUC referente à viatura pesada de mercadorias da marca DAF, modelo 1093, com a matrícula …-…-….

 

11.2 O imposto liquidado diz respeito aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, conforme demonstrações de liquidação n.ºs 2009 …, 2010.., 2011 … e 2012....

 

11.3 Ora, a Requerente vendeu a viatura em causa em 24-10-2007 à empresa francesa B…, com sede em …, França.

 

11.4 Para comprovar esta venda, a Requerente junta cópia da fatura n.º 5250 e dos extratos contabilísticos da operação.

 

11.5 Independentemente do registo automóvel, a partir daquela data, a Requerente deixou de ser proprietária da viatura.

 

11.6 Em sede de IUC, a presunção de que o sujeito passivo do IUC é a entidade a favor de quem a fatura se encontra regista é ilidível, através de prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, conforme jurisprudência deste Centro de Arbitragem nos processos n.ºs 26/2013-T e 73/2013-T.

 

11.7 A Requerente procedeu ao pagamento, em sede de processo executivo, no valor total de IUC e juros compensatórios de € 3.476,99.

 

11.8 Pagou também coimas pelo atraso no pagamento, no valor global de € 987,50.

 

11.9 Com a declaração de ilegalidade das liquidações ora impugnadas, deve ser devolvido à Requerente o imposto e juros compensatórios, bem com anulada a coima aplicada, tudo no valor total de € 4.464,49.

 

 

Resposta da Requerida

 

12.1 Na Resposta, a título prévio, a Requerida alega que, relativamente ao pedido de anulação das coimas suportadas, esta matéria extravasa o âmbito de competência do tribunal arbitral, conforme resulta do disposto no artigo 2.º n.º 1 do RJAT.

 

12.2 Deve, portanto, o tribunal considerar-se incompetente para esta parte do pedido.

 

12.3 Quanto ao valor do registo automóvel na determinação do sujeito passivo de IUC, a AT entende que as alegações da Requerente: a) constituem uma leitura enviesada da letra da lei; b) não atendem ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC e, mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal; e, por fim, c) decorrem ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

 

12.4 O legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

12.5 O legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

 

12.6 Assim, é imperativo concluir que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico

 

12.7 Em conformidade, este entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.0BEPNF. (Cfr. art.º 33.º da Resposta).

 

12.8 Sobre o elemento sistemático de interpretação, a Requerente alega que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal, tal como resulta não só do n.º 1 do artigo 3.º como do disposto no artigo 6.º n.º 1 quando refere “tal como atestado pela matrícula ou registo”.

 

12.9 Assim, a não atualização do registo será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não do Estado Português.

 

12.10 Mesmo que admitindo que do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade do proprietário, nos termos estabelecidos no CIUC, o legislador quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontram registados.

 

12.11 Atentos ao elemento teleológico, incluindo os trabalhos parlamentares, alega a Requerida que, com a reforma de tributação automóvel resultante do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de Janeiro, ficou claro que o IUC passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias.

 

12.12 No ponto IV da resposta, a Requerida acrescenta ainda que, sem prejuízo do exposto, se aceite como válida a ilisão da presunção – o que apenas se admite para efeitos de raciocínio – sempre se dirá que a fatura de venda e respetivo registo contabilístico não é prova suficiente para abalar a presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC.

 

12.13 As faturas são documentos internos, de natureza contabilística e comercial, insuscetíveis, por si só, de fazerem prova de compra e venda do veículo.

 

12.14 A requerente deveria juntar outros documentos que permitissem corroborar a venda, nomeadamente o contrato de compra e venda, declaração do comprador ou prova da efetiva realização do pagamento.

 

12.15 Por fim, quanto das custas arbitrais, não tendo a Requerente cuidado da atualização do registo automóvel, pelo que serão da sua responsabilidade as custas processuais do presente processo já que a sua omissão deu azo à emissão das liquidações ao titular do direito de propriedade.

 

12.16 Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais, em linha com o decidido em questão similar no âmbito do Processo n.º 26/2013-T deste Centro de Arbitragem.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

1-A Requerente foi notificada dos atos de liquidação do IUC, de 2009 a 2012, n.ºs 2009 …, 2010 …, 2011 … e 2012 … referentes à viatura com a matrícula …-…-…;

 

 

2-Através de contrato de compra e venda verbal, a viatura foi transmitida à sociedade B…, com sede em …, França, em 24/10/2007;

 

3-A Requerente emitiu a respetiva fatura de venda e contabilizou a operação na contabilidade da empresa.

 

4-A Requerente procedeu ao pagamento integral das referidas liquidações de imposto e juros compensatórios no valor de € 3.476,99.

 

5-Pagou também coimas no valor global de € 987,50.

 

Não há factos não provados com relevo para a apreciação do mérito da causa.

 

B. DO DIREITO

 

B1 Da exceção de incompetência do tribunal arbitral

 

A Requerente, no seu pedido de pronúncia arbitral, para além da anulação dos atos de liquidação relativos ao IUC e consequente pedido de restituição do imposto e juros compensatórios no valor de € 3.476,99, requereu também a anulação das coimas aplicadas e pagas no valor global de € 987.50.

 

Nos termos do n.º do art.º 2.º do RJAT, a competência dos referidos tribunais arbitrais compreende: a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de atos de determinação da matéria tributável, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; e, por fim, c) A apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projeto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior.

 

Tal enquadramento é reiterado pela Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março que no seu artigo 2.º concretiza o âmbito da vinculação, resultando claro que compete aos tribunais arbitrais o julgamento dos pedidos que, âmbito dos tribunais administrativos e fiscais, sigam a forma processual da impugnação judicial (alínea a) do art.º 101.º da LGT e alíneas a) a f) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT), com as limitações previstas nas alíneas a) a d) do mesmo artigo.

 

Assim, o pedido deduzido pela Requerente de anulação das coimas e restituição das quantias não se inscreve no âmbito da competência deste tribunal.

 

Neste sentido, também se pronunciou o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, integrado no Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, Março, 2013, p. 105 quando refere que ficam “(…) de fora da competência destes tribunais arbitrais a apreciação de litígios gerados em processos de execução fiscal ou em processos contraordenacionais tributários”.

 

Deste modo, conclui-se pela procedência da exceção suscitada pela Requerida, não podendo, pois, este Tribunal Arbitral conhecer, ratione materiae, da invalidade da decisão relativa à aplicação da coima e restituição da respetiva quantia paga.

 

 

B2 Do mérito

 

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, a questão central é saber se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto (artigo 3.º n.º 1, do CIUC) o proprietário do veículo não for o que consta do registo, será apesar disso este que será sempre considerado o sujeito passivo do IUC, não sendo por consequência considerada presunção ilidível a titularidade revelada pelo registo ou, dito doutro modo, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.

 

Caso se admita a presunção, caberá aferir, de seguida, se a Requerente fez prova da transmissão da propriedade do veículo em data anterior àquela a que as liquidações dizem respeito.

 

 

1. Da interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo

 

Quanto à primeira questão, a matéria foi já abundantemente tratada na Jurisprudência Arbitral Tributária. Veja-se, a título de exemplo, as diversas decisões do CAAD publicadas em www.caad.org.pt, nomeadamente as proferidas nos processos nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013, 294/2013 e 216/2014. No presente acórdão seguiremos o entendimento e conclusões daquelas decisões.

 

Pela síntese e clareza de pensamento, aderimos, sem reservas, ao enquadramento feito na decisão arbitral no âmbito do Processo n.º 216/2014-T, que citamos e para a qual remetemos:

“O sentido geral e unânime de tal Jurisprudência é o de considerar que o artigo 3º-1, do CIUC, consagra presunção ilidível da titularidade da propriedade as menções ou inscrições constantes na Conservatória do Registo Automóvel e/ou da base de dados do IMTT à data do facto tributário.

Ou seja: liquidado o IUC em função das inscrições do registo ou de harmonia com os elementos que constam nas bases de dados do IMTT, pode o sujeito passivo exonerar-se do pagamento demonstrando a não correspondência entre a realidade e aquelas inscrições e elementos de que se socorreu a Autoridade Tributária para proceder às liquidações.

Não se antolham razões para inverter o alterar o sentido essencial desta Jurisprudência.

Vejamos então, de novo e mais de perto a questão:

Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):

Artigo 3º

Incidência Subjetiva

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.

Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[1] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja  aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

~ no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;

 ~  também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;

   ~ e, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A, da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz Francisco Ferrara que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere Batista Machado “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. Francesco Ferrara, Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. Baptista Machado, Loc. Cit., p. 181; Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.

O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos Batista Machado que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam P. de Lima e A. Varela,  em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere ainda Batista Machado: “(…) este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (Obra e loc. cit. p. 189/190).

Logo a seguir este insigne Mestre chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica ainda Batista Machado que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” . este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por P. de Lima E A. Varela, nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico” , Baptista Machado considera este o fator interpretativo mais importante: “ (…)a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

No que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (Batista Machado, loc.cit., p. 183).

 “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Joseph Kohler, citado por Manuel de Andrade, in Ensaio, p. 27).

Descendo ao caso dos autos e ao enquadramento legal e jurídico que lhe subjaz:

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

            Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

            O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

            Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

            Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[5].

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.

Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

(…)

Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

Em síntese conclusiva:

Para liquidação de IUC, a Autoridade Tributária e Aduaneira só pode prevalecer-se da realidade registal ou constante da base de dados do IMTT, se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade do veículo.

O registo automóvel, na economia do CIUC, representa assim mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto.”

Caberá agora aferir se a Requerente fez prova da transmissão da propriedade do veículo.

 

 

2. Da prova da transmissão das viaturas automóveis

 

 

Face ao exposto, concluímos que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção ilidível, nos termos do artigo 73.º da LGT, de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário. In casu, a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção do artigo 3º, n.º 1 do CIUC (e até do Registo Automóvel) que não era proprietária do veículo em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

 

Para provar que ocorreu a transmissão da propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresentou cópia da respetiva fatura e registo contabilístico.

 

Nas suas alegações, a Requerida alega que as faturas, enquanto documentos particulares e unilaterais, não constituem prova bastante para ilidir a presunção.

 

Discordamos deste entendimento.

 

Não pode deixar de ser assinalado, desde logo, que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é contrato verbal, não sujeito, por conseguinte, a forma específica. Deste enquadramento resulta, inevitavelmente, uma especial importância do documento fiscal não só para efeitos tributários mas também para efeitos civis ou outros.

 

No caso, a Requerente apresentou fatura, emitida nos termos legais, comprovativa da operação de venda.

 

As faturas constituem, para efeitos fiscais, os documentos legalmente exigidos para comprovar as operações de vendas e prestações de serviços, conforme resulta expressamente dos vários códigos fiscais (veja-se o disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IRC, al. b) do n.º 1 do artigo 29.º e artigo 36.º do Código do IVA e artigo 115.º do Código do IRS).

 

Estranho seria, portanto, que uma fatura constituísse, na ótica do transmitente (ora Requerente), prova suficiente para apurar uma eventual mais-valia ou menos-valia da venda de uma viatura (conforme registo contabilístico apresentado), tributada em sede de IRC mas, em sentido contrário, não constitua prova suficiente para comprovar a mesma transmissão, agora para efeitos de IUC.

 

Claro está que tal não obsta a que a AT demonstre que se trata de um documento falso por não existir qualquer transmissão (com todas as consequências fiscais e penais).

 

In casu, não há qualquer prova ou sequer indícios que ponham em causa a presunção de boa fé do contribuinte e dos documentos apresentados, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

 

Em conclusão, estão reunidos os pressupostos necessários para a procedência do pedido de anulação das liquidações n.ºs 2009 …, 2010 …, 2011 … e 2012 …, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos.

 

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D. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)     Julgar procedente a exceção de incompetência do tribunal, em razão da matéria, para conhecer do pedido de anulação das coimas aplicadas;

b)     Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IUC n.ºs 2009 …, 2010 …, 2011 … e 2012 …, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos;

c)     Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à Requerente dos valores de IUC e juros compensatórios pagos indevidamente;

d)     Condenar a Requerida e a Requerente ao pagamento das custas do processo no valor total de € 612.00, na proporção de €482,79 e €137,21, respetivamente.

 

E. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 4.464,49, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

F. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

A responsabilidade pelas custas no que concerne à declaração de ilegalidade das liquidações de IUC é da parte vencida porque, ao contrário do alegado, a AT poderia, em sede de resposta à reclamação graciosa ou nos 30 dias seguintes ao do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, ter procedido à revogação dos atos de liquidação identificados (artigo 13.º n.º 1 do RJAT), tanto mais que a Requerente juntou, com apresentação daqueles pedidos, cópia da fatura comprovativa da transmissão da propriedade da viatura.

 

Notifique-se.

 

Lisboa,

1 de Junho de 2015

 

O Árbitro

 

(Amândio Silva)



[1] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido, veja-se, entre muitos outro autores, Freitas Pereira, M.H., Fiscalidade, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009.