Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 415/2014-T
Data da decisão: 2015-02-02  IUC  
Valor do pedido: € 54.741,18
Tema: IUC – incidência subjectiva; presunções legais
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DECISÃO ARBITRAL

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 415/2014– T

Tema:IUC – incidência subjectiva; presunções legais

 

I - RELATÓRIO

1.      Pedido

“A” – Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos Unipessoal, Lda., pessoa colectiva n.º …, com sede em …, Edifício …, …,  …-… Oeiras,  doravante designada por Requerente, apresentou, em 04-04-2014, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

-          Anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º … (documento n.º 2 junto à petição inicial e que se dá aqui por reproduzido), relativa a liquidações de Imposto Único de Circulação referentes aos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;

-          Anulação da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º… (documento n.º 3 junto à petição inicial e que se dá aqui por reproduzido), relativa a liquidações de Imposto Único de Circulação referentes aos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;

-          Anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º…(documento n.º 4 junto à petição inicial e que se dá aqui por reproduzido), relativa a liquidações de Imposto Único de Circulação referentes aos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;

-          Anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º… (documento n.º 5 junto à petição inicial e que se dá aqui por reproduzido), relativa a liquidações de Imposto Único de Circulação referentes aos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;

-          Condenação da Requerida à restituição dos montantes de imposto e juros compensatórios pagos relativos às liquidações reclamadas e ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43º da Lei Geral Tributária (LGT) e 61º do Código do Procedimento e Processo tributário (CPPT).

A Requerente alega, no essencial, o seguinte:

-          A norma de incidência do artigo 3º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC) que define a propriedade de um veículo como facto gerador de IUC, baseia-se no registo de propriedade automóvel para aferir a propriedade dos veículos;

-          No entanto, a presunção de titularidade do direito de propriedade que resulta do Registo Automóvel é uma presunção ilidível, por força do artigo 350º, n.º 2 do Código Civil (CCiv), o que significa que a Requerente pode afastar a presunção provando que não era a proprietárias dos veículos à data dos factos tributários;

-          Também o artigo 3º do CIUC contém uma presunção de propriedade, baseada no registo, e também essa presunção é ilidível, por força do artigo 73º da LGT;

-          A Requerente alegou e provou, nas reclamações graciosas deduzidas, que as viaturas sobre as quais incidiu o IUC liquidado não eram, à data dos factos tributários que deram origem às liquidações impugnadas, propriedade da Requerente;

-          A Requerente demonstrou que não era proprietária das viaturas à data dos factos tributários, provando, através de facturas por si emitidas, que tinha procedido à alienação de todas as viaturas em causa;

-          Uma vez provada a realização de contratos de compra e venda e uma vez que o contrato de compra e venda tem natureza real, operando-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato, a Requerente deixou do mesmo modo provado que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários;

-          Tendo provado que não era proprietária das viaturas à data dos factos tributários, a Requerente ilidiu a presunção resultante do Registo Automóvel;

-          Não sendo proprietária das viaturas à data dos factos tributários, a Requerente não pode ficar sujeita ao imposto nas datas respectivas.

 

2.      Resposta da Requerida

Em resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:

-          O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;

-          O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;

-          A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;

-          Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados] as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;

-          A consideração do elemento sistemático da interpretação, tendo em conta a estreita dependência que o Código do IUC estabelece com o sistema de Registo Automóvel, sustenta igualmente a conclusão de que o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração as pessoas em nome das quais os correspondentes direitos e encontrem registados; 

-          A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídicas, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.

-          A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova - facturas relativas a vendas dos veículos - não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.

Por proposta e mediante a concordância de ambas as partes, o Tribunal deliberou prescindir da realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT.

 

3.      Alegações

A Requerente apresentou alegações escritas, em que, para além de reiterar a argumentação anteriormente expendida na petição inicial, veio ainda alegar que, não tendo a Requerida AT – Administração Tributária e Aduaneira posto em causa a validade das facturas apresentadas como prova para efeitos de IVA e de IRC, também não poderá pôr em causa a sua validade como meio de provar a venda dos veículos.

A Requerida apresentou igualmente alegações escritas, em que reiterou toda a argumentação articulada na resposta, tendo ainda, além disso, suscitado a questão da incompetência do Tribunal relativamente à matéria contra-ordenacional.

 

II – SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 07-08-2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.

A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.

Não foram identificadas nulidades no processo.

Não existem excepções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

Embora a Requerente peça apenas ao Tribunal que declare a ilegalidade das decisões de indeferimento (total nuns casos e parcial noutros) das reclamações deduzidas contra as liquidações de IUC que lhe foram notificadas na qualidade de proprietária dos veículos sobre os quais o mesmo imposto incide, e não a ilegalidade das liquidações em si mesmas, o fundamento da alegação de ilegalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas é a ilegalidade das liquidações reclamadas. Pelo que não pode o Tribunal apreciar a legalidade das decisões de indeferimento das reclamações sem, ao mesmo tempo, apreciar a legalidade das liquidações reclamadas. E a conclusão a que o Tribunal chegar sobre a legalidade das decisões de indeferimento das ditas reclamações não poderá, pelos mesmos motivos, deixar de se reflectir no juízo de legalidade sobre as liquidações reclamadas.

Assim, são as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

-          Competência do Tribunal quanto à matéria contra-ordenacional;

-          A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;

-          A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efectiva ilisão no caso dos autos.

 

IV – FUNDAMENTAÇÃO

1.      Questão da competência do tribunal quanto à matéria contra-ordenacional

No seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede ao Tribunal que aprecie e decida sobre a legalidade dos actos de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas contra liquidações de IUC, pedindo que, em consequência da declaração da ilegalidade de tais actos, a Requerida seja condenada à restituição dos montantes de imposto pagos, dos juros que acresceram a tais montantes e das coimas notificadas à Requerente com a notificação das liquidações.

Se quanto à apreciação da legalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas contra as liquidações de IUC nenhuma dúvida se levanta referente à competência do Tribunal, o mesmo não se aplica quanto à restituição das coimas.

A competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro é definida pelo art.º 2.º deste mesmo diploma, que dispõe:

1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)      A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)      A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

 

Na competência dos tribunais arbitrais não se compreende, portanto, matéria contra-ordenacional tributária, pelo que está vedado ao Tribunal pronunciar-se sobre a legalidade dos actos de aplicação de coimas.

 

2.      Sobre o mérito da causa

2.1  Factos provados considerados relevantes

1º: A Requerente foi notificada das liquidações de IUC identificadas a páginas 6 a 21 da petição inicial e cujas cópias se encontram juntas ao processo administrativo e aí identificadas como documentos números 2 a 160 e que aqui se dão por reproduzidas; 

2º As liquidações de IUC referiam-se a veículos cuja propriedade se encontrava registada em nome da Requerente à data dos factos tributários;

3º A Requerente procedeu ao pagamento do imposto e dos juros compensatórios liquidados, e ainda das coimas aplicadas no montante total de € 54 979,58;

4º A Requerente deduziu reclamação graciosa contra as referidas liquidações de imposto;

5º As reclamações graciosas foram indeferidas (uma delas parcialmente, como já atrás referido) e o indeferimento notificado à Requerente em 9-4-2014;

6º: A Requerente emitiu facturas relativas à venda de todos os veículos a que dizem respeitos as liquidações de IUC impugnadas.

Os factos considerados provados foram-no com base na prova documental junta pela Requerente e por aquela que constitui o processo administrativo junto pela Requerida.

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

2.2  Fundamentação de direito

a.      Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo

Sobre esta questão, nos exactos termos em que aqui se apresenta, pronunciou-se anteriormente o laudo arbitral proferido no processo n.º 63/2014-T, ao qual inteiramente se adere e que, por esse motivo, se passa a citar:

“Dispõe o artigo 3º do CIUC:

Artigo 3.º

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)

Mas o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que se dediquem à actividade comercial de venda de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).

O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).

O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o Registo Automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.

Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.

A AT- Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respectivos proprietários, para efeitos de liquidação do imposto.

Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.

Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data dos factos tributários, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.

Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária adoptou o único procedimento que podia adoptar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.

Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”

A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.

A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?

 Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?

A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.

A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do Registo Automóvel.

Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.

Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. 

A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).

Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.

A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.

Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas

O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.

Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.

Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?

E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?

A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.

Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.

É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no Registo Automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo Registo Automóvel.

Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).

E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

Conclui-se assim, acompanhando a decisão citada, que o art.º 3º, n.º 1 do CIUC contém uma presunção em matéria de incidência tributária, relativa à qualidade de proprietário de um veículo.

 

b.      Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

Como se referiu anteriormente, a conclusão de que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção sobre quem é proprietário para efeitos de incidência do imposto significa que a norma tributária não estabelece um conceito de proprietário desligado do direito civil. Para o Código do IUC é proprietário do veículo quem o for à luz do direito civil.

Pretendendo afastar essa presunção, a Requerente terá de provar que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários.

Ora, estando a propriedade de veículos automóveis sujeita a registo obrigatório, o Registo Automóvel constitui presunção de que o titular do direito de propriedade é a entidade a favor de quem o mesmo direito se encontra registado. Esta presunção encontra-se expressamente estabelecida no artigo 7º do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel.[1]

Se é certo que a presunção do art.º 3º, n.º 1 do CIUC é estabelecida tendo em vista os fins da tributação, já a presunção estabelecida pela lei registal tem em vista a segurança jurídica em geral, não existindo nenhum fundamento para julgar que essa presunção não se aplica no âmbito de relações jurídicas tributárias.

Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.

Aproveitando a presunção de veracidade do registo à Requerida, é à Requerente que compete ilidir essa mesma presunção.

No que toca à ilisão da presunção do Registo Automóvel, existe jurisprudência firmada no sentido de que é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).

A Requerente pretende ilidir a presunção resultando do Registo Automóvel provando que realizou contratos de compra e venda através dos quais alienou os veículos em causa apresentando facturas por si emitidas.

A jurisprudência dos tribunais cíveis, contudo, é unânime em considerar que as facturas emitidas pelo vendedor, sendo documentos particulares e unilaterais, não provam a compra e venda. 

Num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-2-2010, (Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8) afirma-se, referindo-se às facturas apresentadas como meio de prova quanto a um contrato de compra e venda: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas facturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega”.

Noutro acórdão do mesmo Tribunal de 26-11-2009 (Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respectivo subscritor”.

E ainda num terceiro acórdão do mesmo Tribunal de 5-6-2008 (Proc. 1586/2008-8), o Tribunal sentencia que “a exigência de um pagamento por factura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade facturada.”

Se as facturas não provam a compra e venda para efeitos cíveis, não se vê por que se há de considerar que o fazem para efeitos tributários. Em face do exposto, é forçoso concluir, como na decisão arbitral citada, que a Requerente não logrou provar a alienação dos veículos.

Os registos contabilísticos que a Requerente protestou juntar, caso fosse considerado necessário, são igualmente documentos unilaterais e internos. Não acrescentariam, por conseguinte, qualquer valor probatório às facturas, tratando-se de provar a existência de um contrato bilateral.

Ora, sendo unanimemente aceite e até do senso comum que a factura ou qualquer documento particular e unilateral não é suficiente para provar a celebração de um contrato de compra e venda, a isto acresce que a ilisão da presunção da verdade registral é particularmente exigente.

Sobre o assunto, diz Mouteira Guerreiro (Mouteira Guerreiro, J. A., Noções de Direito Registral, 2ª ed. Coimbra ed.1994, p. 70): “A proteção conferida pelo registo traduz-se no nosso sistema, numa presunção elidível. Mas, não o podemos esquecer, trata-se de uma presunção legal. (…) O que o registo revela não pode ser impugnado, mesmo em juízo, sem que simultaneamente se peça o cancelamento”.

O mesmo autor (Ibidem, p. 71) acrescenta: “Decorre do princípio da presunção de verdade ou da exactidão a regra prevista no art.º 8º do Crp. Se o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito “nos precisos termos em que o registo o define”, não faria sentido atacar judicialmente essa verdade publicitada, sem simultaneamente atacar o próprio registo. Por isso, quem pretender contestar a veracidade dos factos tabularmente consignados terá igualmente de pedir o cancelamento do registo. Se o não fizer, a acção não prosseguirá após os articulados, porque haveria o risco de chegar a uma efectiva contradição: por um lado, ter uma sentença declarando juridicamente irrelevantes ou inverídicos certos factos e, pelo outro, existir um registo a fazer presumir erga omnes a veracidade e validade desses mesmos factos”.

O entendimento exposto encontra-se sancionado pela jurisprudência dos tribunais superiores. Vejam-se os acórdãos anteriormente citados, nos quais se afirma que, para afastar a presunção de propriedade que decorre do Registo Automóvel, é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mas tal não bastando, sendo ainda necessário pedir-se, simultaneamente o respetivo cancelamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).

Mais uma vez, se é assim no campo das relações de direito civil, não se vê por que razão outra deveria ser a solução no caso das relações tributárias.

 

c.       Quanto ao facto de a veracidade das facturas não ter sido contestada pela Administração Tributária para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas de Imposto sobre o Valor Acrescentado

Não está em causa, nem a Administração Tributária contesta a veracidade das facturas, enquanto declarações unilaterais do emitente. Está em causa a força probatória das facturas, documentos particulares e unilaterais, para, por si só, provarem um contrato de compra e venda e para ilidir a presunção de veracidade do conteúdo do Registo Automóvel.

Ora, nem o IVA nem o IRC tributam a transferência de propriedade. Tanto um como outro tributam factos que se bastam com a declaração unilateral por parte dos sujeitos passivos.

O IRC tributa lucros, os quais resultam da diferença entre proveitos e gastos. Quanto aos proveitos, estes são tributados numa base de acréscimo, o que significa que tributa situações contratuais que são dinâmicas e não estão necessariamente encerradas no momento da tributação. É essa a natureza do lucro segundo o conceito de rendimento-acréscimo. Por essa razão, o mesmo IRC permite que se façam provisões, ajustamentos por imparidade e dedução de prejuízos fiscais, todos eles mecanismos que permitem recuperar imposto pago sobre lucros reconhecidos numa base de acréscimo que não se concretizaram. Também no caso do IVA existem mecanismos de regularização quando foram emitidas facturas e liquidado imposto sobre situações contratuais que sofram uma alteração. Nomeadamente, o artigo 78º do CIVA prevê “a dedução do imposto quando ocorra anulação da operação ou redução o valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos”.

É abusivo, portanto, pretender retirar da aceitação das facturas para efeitos de IRC e de IVA a validade dessas mesmas facturas para provar a transferência de propriedade, para efeitos de um imposto cujo facto tributário é constituído pela propriedade, quando, para mais, esta propriedade está sujeita a registo.

De todo o exposto resulta que a Requerente não ilide a presunção que sobre si recai quanto à titularidade da propriedade dos veículos sobre os quais incidem as liquidações de IUC impugnadas, e que, por conseguinte, as liquidações impugnadas não enfermam de qualquer ilegalidade.

Improcede portanto, a pretensão da Requerente quanto à ilegalidade das liquidações impugnadas com base em erro nos pressupostos de Direito, por falta dos pressupostos da incidência subjetiva do Imposto quanto à Requerente.

 

V. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral.

 

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em € 54 741,18.

 

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €

2 142.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 2 de Fevereiro de 2014

 

 

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)

 

 

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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

 



[1] DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.