Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 436/2014-T
Data da decisão: 2015-02-20  IUC  
Valor do pedido: € 56.526,05
Tema: IUC – incidência subjetiva
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Processo nº 436/2014 – T

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

A – RELATÓRIO

 

1.    A…– , LDA., pessoa colectiva n.º …, com sede no …, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos art. 2º, n.º 1, a) e 10º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no DL 10/2011, de 20 Janeiro, doravante designado “RJAT” e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, face ao indeferimento das reclamações graciosas que apresentou, em que se discute a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, juros compensatórios e respectivas coimas, bem como o reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT”).

 

2.    Admitido o pedido de constituição do tribunal arbitral singular, e não tendo a requerente optado pela designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro.

 

       As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, tendo, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral ficado constituído em 22-08-2014.

 

3.    Notificada, a AT veio apresentar resposta em que não suscitou qualquer excepção.

 

4.    Foi dispensada, com a anuência das partes, a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.

 

* * *

 

5.    Pretende a requerente que seja declarada a ilegalidade e inerente anulação dos actos de liquidação do Imposto Único de Circulação referentes aos anos de 2009 a 2013, objecto das reclamações graciosas que apresentou, e que foram indeferidas, com a consequente restituição do imposto pago, juros compensatórios e respectivas coimas, acrescido de juros indemnizatórios, alegando em síntese:

 

       a)  É uma sociedade comercial, cuja actividade principal consiste na compra, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis.

       b)  No exercício da sua actividade, oferece aos clientes diversas soluções, no âmbito do aluguer de longa duração e da venda de veículos automóveis.

       c)  Foi notificada das notas de liquidação de IUC objecto dos autos, tendo pago o respectivo imposto.

       d) Apresentou reclamações graciosas relativamente a tais liquidações.

       e)  As referidas liquidações, referentes aos anos de 2009 a 2013, respeitam a veículos que foram objecto de venda a terceiros (clientes da requerente) em momento anterior ao período da tributação.

       f)  Está igualmente em causa o imposto único de circulação, dos mesmos anos, referente a veículos que foram dados como perda total e em relação aos quais já foram canceladas as respectivas matrículas, em momento anterior ao período da tributação.

       g)  Para evitar futuras execuções fiscais e os custos inerentes à prestação de garantias para a suspensão dos referidos processos, optou por liquidar o imposto, juros compensatórios e respectivas coimas, tendo pago o montante total de 56.526,05€.

       h)  Apesar do facto gerador de tributação ser a propriedade do veículo, a presunção registral é elidível.

       i)   O direito de propriedade sobre veículos automóveis está sujeito a registo obrigatório e, nos termos do art. 29º do Registo Automóvel, são aplicáveis ao registo de automóveis, com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao registo predial, na medida indispensável ao suprimento de lacunas da regulamentação própria (e compatível com a natureza de veículos automóveis).

       j)   Nos termos do art. 7º do CRP, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

       k)  As presunções absolutas (iuris etde iure) são aquelas que não admitem prova em contrário, isto é não podem ser ilididas. Ora, a presunção legal só pode ser considerada ilidível quando a lei assim o determinar.

       l)   O registo de propriedade do veículo automóvel é obrigatório e visa apenas “dar publicidade” à situação jurídica de bens. Não existe, aliás, qualquer norma no ordenamento jurídico português sobre o carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel.

       m) Os veículos automóveis constante dos IUC supra identificados estão efectivamente inscritos em nome da ora requerente, na sequência da aquisição dos mesmos; o registo constituiu uma presunção de que existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos definidos no registo. Estamos perante uma presunção iuris tantum.

       n)  Para ilidir esta presunção é necessário ou fazer prova da nulidade do registo ou demonstrar a invalidade do negócio, ou ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem.

       o)  Foi exactamente esta demonstração – de que a titularidade do veículo pertence a um terceiro- que a reclamante fez, ao juntar facturas de venda das viaturas e dos respectivos salvados, todas elas datadas de meses anteriores à obrigação fiscal exigida.

       p)  Os adquirentes dos veículos não haviam oportunamente efectuado os respectivos registos dos veículos na Conservatória do Registo Automóvel, pelo que nesta base de dados continuava a requerente a figurar como proprietária dos mesmos.

       q)  Nos termos do disposto no art. 73º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário; são proibidas as presunções inilidíveis.

       r)  Não pode a legislação fiscal e, nomeadamente, o CIUC, ignorar qual o papel do registo automóvel e contrariar o entendimento dominante da jurisprudência sobre a natureza do registo. Não pode ser ignorado que o registo automóvel, embora obrigatório, não tem natureza constitutiva, sendo antes de natureza declarativa ou publicitária.

       s)  Acresce ainda que a expressão “considerando-se como tais” constante do teor do n.º 1 do art. 3º do CIUC, configura uma presunção legal e a mesma é ilidível.

       t)  Nos termos do disposto no art. 64º do CPPT, as presunções de incidência tributária podem ser elididas por via de reclamação graciosa dos actos tributários (no caso os actos de liquidação) que nelas se baseiam, o que a requerente fez, com a apresentação das reclamações graciosas supra identificadas, onde juntou as cópias de todas as facturas de venda dos veículos e dos salvados.

       u)  À data da exigibilidade do imposto, a requerente já não era proprietária dos veículos acima identificados, por já ter operado as respectivas transmissões.

 

 

6.    Por seu turno a requerida veio em resposta alegar, em síntese:

 

       a)  O entendimento propugnado pela requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

       b)  O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.

       c)  Realça que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados.”.

       d) O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.

       e)  O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados. porquanto é esta interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

       f)  Trata-se de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

       g)  Em suma, o artigo3º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, sendo certo que a tese peregrina propugnada pela requerente direcciona o seu objectivo para o alvo errado.

       h)  É inegável que o Código de Registo Predial se aplica subsidiariamente ao Regulamento do Registo Automóvel; porém, o Código de Registo Predial não é legislação subsidiária do CIUC.

       i)   Portanto, a presunção da propriedade automóvel decorre única, directa e exclusivamente do próprio regime registral automóvel e não da legislação fiscal sobre automóveis que constitui um aspecto colateral àquele regime.

       j)   Logo, a ilisão da presunção da propriedade automóvel necessariamente terá de ser dirigida ao, ou melhor dizendo, contra o que consta do próprio registo automóvel, e não contra o mero efeito fiscal que decorre da informação registral automóvel como, no fundo, acaba por querer fazer a Requerente.

       k)  Da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objecto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por mais período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto.

       l)   A não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito activo deste Imposto.

       m) Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontrem registados.

       n)  À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel.

       o)  A interpretação veiculada pela requerente mostra-se contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.

       p)  Além de ser ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português.

       q)  Uma factura não é apta a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não releva por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente.

       r)  As facturas, vendas a dinheiro e extractos contabilísticos, não possuem valor probatório bastante com vista a ilidir a presunção legal constante do registo, pelo que decaem os argumentos invocados pela requerente.

       s)  Sustenta que os actos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços.

       t)  O IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado, não sendo a transmissão de veículos automóveis susceptível de ser ser controlada pela requerida.

       u)  Daí decorre que não foi a requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria requerente que, aliás, só agora subministrou prova documental relativa à pretensa transmissão da propriedade, o que não ocorreu em sede do prévio procedimento administrativo, pelo que deve a requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais.

       v)  Mais defende não estarem reunidos os pressupostos legais que conferem o direito peticionado a juros indemnizatórios.

 

* * *

 

7.    O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

       As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

       O pedido de cumulação de pedidos é legal.

 

       O processo não enferma de nulidades.

 

 

B. DECISÃO

 

1. MATÉRIA DE FACTO

 

1.1. FACTOS PROVADOS

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)    É requerente é uma sociedade comercial, cuja actividade principal consiste na compra, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis.

b)    No exercício da sua actividade, oferece aos clientes diversas soluções, no âmbito do aluguer de longa duração e da venda de veículos automóveis

c)    Foi notificada das notas de liquidação de IUC objecto dos autos, tendo pago o respectivo imposto.

d)    Na sequência de vendas que efectuou, emitiu as respectivas facturas.

e)    A requerente reclamou graciosamente das liquidações objecto do presente processo, de cujo indeferimento foi notificada, respectivamente em 14-04-2014, 15-04-2014 e 16-04-2014.

h)    A requerente apresentou, em 20-06-2104, o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

1.2  Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo pela requerente, cuja autenticidade não foi posta em causa pela requerida.

 

1.3  FACTOS NÃO PROVADOS

      

       Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.

 

1.4  O DIREITO

 

A questão de fundo a apreciar reside na interpretação a dar ao n.º 1 do art. 3º do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão (como sustenta a requerente) ou, pelo contrário, uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário.

 

Dispõe o n.º 1 do art. 3º do CIUC: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”.

 

Com base na redacção deste preceito, sustenta a requerida - AT - que a base de incidência pessoal, que este define, não comporta hoje qualquer presunção legal, uma vez que aquele transmite de forma expressa e intencional o pensamento do legislador tributário, no sentido de se considerar, de modo irrefutável, como sujeitos passivos do IUC as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontrem registados.

 

Aduz em abono da sua tese, razões hermenêuticas de interpretação da lei, com apelo não só à sua literalidade, como aos elementos sistemático e teleológico.

 

Invocação plena de sentido, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 11º da LGT, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. É que, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação a tal artigo, “… sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir”.

 

É, pois, dentro deste quadro de interpretação da lei fiscal, no caso o art. 3º, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a requerente e a AT.

 

Para a AT é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel, de modo a que será considerado como tal, de modo irreversível, aquele em nome de quem este está registado.

 

O registo de propriedade de veículos é, face ao disposto no art. 5º, n.º 1, a) e n.º 2 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, obrigatório, pelo que, qualquer direito de propriedade que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.

 

Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do referido DL 54/75), da “… presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

 

Temos, por isso, que a inscrição de registo de propriedade do veículo é, também ela, uma presunção de que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.

 

Quer dizer, o registo de propriedade automóvel não constitui qualquer condição de validade dos contratos a ele sujeitos, à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel); o registo tem uma função meramente declarativa.

 

Acontece que o art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, impõe que “os factos sujeitos a registos só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”. Do que parece resultar que tal bastaria para que a AT invocasse a ausência de registo para fazer funcionar de imediato o art. 3º, n.º 1 do CIUC, exigindo o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.

 

Sucede que o n.º 4 do art. 5º do Código do Registo Predial restringe tal entendimento, ao determinar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Donde resulta que, por essa via, nunca a AT estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.

 

Posto isto em termos gerais, há que apurar se, pese embora o que vem de referir-se, o n.º 1 do art. 3º do CIUC contém, ou não, uma presunção legal.

 

Tudo está, em suma, em determinar se a expressão “considerando-se”, ali utilizada, tem a natureza de presunção legal.

 

Como ponto de partida, a resposta parece-nos ser negativa.

 

Parece ofensivo à unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, em oposição aos n.º 2 e 3 do art. 11º da LGT - que um indivíduo venha a considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e tenha de o ser necessariamente para efeitos tributários.

 

Ao que acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, insíto ao ditame constitucional da capacidade contributiva.

 

Seja como for, parece evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão “considerando-se”, adoptada no n.º 1 do art. 3º do CIUC contempla uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade da expressão, nem o ordenamento tributário.

 

A este propósito, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pag. 651: “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, como sucede, por exemplo, nos n.º 1 a 5 do art. 6º, na alínea a) do n.º 3 do art. 10º, no art. 19º e 40º, n.º 1, do CIRS. No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real …”, enumerando-se depois um conjunto de exemplos.

 

Entendemos que é precisamente esse o caso que o art. 3º, n.º 1 do CIUC contempla: uma presunção implícita. Presunção, aliás, que sempre existiu no domínio do imposto de circulação automóvel, pese embora anteriormente definido de forma explícita.

 

Por outro lado, em cumprimento dos princípios - com consagração no nosso ordenamento comunitário - do poluidor-pagador e da equivalência, o CIUC importa preocupações de ordem ambiental e energética, pretendendo que os custos decorrentes dos danos ambientais provocados pela utilização dos veículos automóveis sejam suportados pelos reais proprietários (e não pelos presumidos proprietários).

 

É, pois, forçoso concluir que o art. 3º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção de incidência subjectiva.

 

Ora, o n.º 2 do art. 350º do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei.

 

E, no que respeita à ilisão das presunções, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18 de Maio) - para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral - defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): “… as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure er de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado”.

 

Por seu turno, no âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária, como a que o n.º 1 do art. 3º do CIUC consagra, são juris tantum e, como tal, ilidíveis.

 

Dos elementos probatórios trazidos aos autos pela requerente, resultará que a requerente não era a proprietária dos veículos a que a respeitam as liquidações objecto do presente pedido arbitral, nas datas limite dos respectivos pagamentos.

 

Neste ponto, a requerida põe em causa que facturas titulando contratos de compra e venda sejam aptas a comprovar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos.

 

Não questiona, todavia, a veracidade dos documentos juntos. Sendo certo que em matéria tributária vigora a presunção de verdade dos elementos constantes da contabilidade do contribuinte, como é o caso das facturas.

 

Temos por isso como assente, não ter sido colocado em causa que os negócios que as facturas juntas pela requerente tenham sido concretizados, sendo certo que o contrato de compra e venda é consensual, não se lhe exigindo qualquer forma especial.

 

Provada a transmissão de propriedade e uma vez que a AT não tem legitimidade para opôr a ausência de registo, por não ser para tais efeitos tida como terceiro, impõe-se a anulação das liquidações de IUC objecto do presente pedido arbitral.

 

A requerente formula, também, o pedido de anulação das coimas fixadas.

 

Não é da competência do tribunal arbitral, nem sequer estaria abrangido no processo de impugnação judicial, a apreciação de tal pedido.

 

Atendendo a que tal formulação é vaga, não tendo sequer sido incluído no valor do pedido o valor das eventuais coimas, abstemo-nos de nos pronunciar sobre tal pedido (que, diga-se, improcederia em qualquer circunstância pelas razões aduzidas).

 

juros indemnizatórios

 

Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

 

O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no art. 24º, n.º 5 do RJAT.

 

No caso em apreço, parece-nos ocorrer, de facto, erro imputável à AT nas liquidações em crise.

 

Com efeito, a requerente já havia apresentado, em sede reclamação graciosa, documentação suficiente para a ilisão de presunção que sobre ela recaía (discordando-se da requerida quando, no art.113º da resposta que apresentou alega que “não foi a requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria requerente que, aliás, só agora subministrou prova documental relativa à pretensa transmissão da propriedade, o que não ocorreu em sede do prévio procedimento administrativo”).

 

Apesar de assim ser e de a AT se dever nortear, como acima se referiu, pelo princípio do inquisitório, ignorou todos os elementos que tinha ao seu dispor e que deveriam ter obstado à concretização das liquidações impugnadas.

 

Pelo que assiste à requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios.

 

***

 

3. DECISÃO

 

Face ao exposto, decide-se:

                                             a)  julgar procedente, por vício de violação de lei, o pedido de anulação dos actos tributários objecto do pedido arbitral correspondentes às liquidações de IUC referentes aos anos de 2009 a 2013, bem como o pedido de pagamento de juros indemnizatórios,

                                             c)  condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à requerente o montante de imposto pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios;

                                             c)  condenar a Administração Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.

 

 

 

VALOR DO PROCESSO: De acordo com o disposto nos art. 306º, n.º 2 do Código de Processo Civil, art. 97º-A, n.º 1, a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e art. 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 56.526,05 € (cinquenta e seis mil quinhentos e vinte seis euros e cinco cêntimos).

 

 

 

CUSTAS:                            Nos termos do disposto no art. 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 2.142,00€ (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 20-02-2015

 

 

 

                                                                                            O árbitro

                                                                                                  

                                                                               António Alberto Franco