Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 624/2014-T
Data da decisão: 2015-03-02  IUC  
Valor do pedido: € 1.561,34
Tema: IUC – incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

 

Processo n.º 624/2014-T

 

            I – Relatório

 

1.1.A…, NIF …, residente na Rua …, concelho de Guimarães (doravante apenas designado por «requerente»), tendo sido notificado dos actos de liquidação de IUC referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011, no valor global de €1561,34 (€1401,00 + juros), apresentou, em 21/8/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, al. a), do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “declaração da ilegalidade, e consequente anulação, dos actos tributários de liquidação do IUC” acima referidos.

 

            1.2. Em 18/11/2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 5/1/2015, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido do requerente.

 

            1.4. Por despacho de 6/2/2015, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c) e e), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 2/3/2015 para a prolação da decisão arbitral.

           

            1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

            2.1. Vem o requerente alegar, na sua petição, que: a) “[o veículo em causa] deixou de ser, efectivamente, propriedade do Reclamante desde, pelo menos, 28.09.2008, data a partir da qual deixou de ter a respectiva posse e direcção efectiva, após a sua venda”; b) “[tendo o veículo em causa deixado de ser sua propriedade desde 28.09.2008, não lhe pode ser imputado qualquer IUC alegadamente ainda devido pelo veículo em causa, sob pena de tal entendimento padecer de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 9.º, al. b), 12.º, n.º 1, 13.º, 22.º e 62.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa”; c) “o requerente não é sujeito passivo do IUC dos anos de 2009, 2010 e 2011 porque não estão satisfeitos os requisitos de incidência subjectiva do imposto previstos no artigo 3.º do CIUC, conjugado com os artigos 4.º e 6.º do referido Código”; d) “[o] artigo 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma presunção legal «juris tantum», que, por força do disposto no artigo 73.º da LGT e no artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, é ilidível. Ou seja, o sujeito passivo do IUC é o proprietário do veículo, o seu efectivo detentor e possuidor, mesmo que não figure no registo automóvel o registo dessa qualidade de proprietário, desde que seja apresentada prova bastante para ilidir a presunção decorrente do registo automóvel”; e) “[apesar de], no caso concreto, [...] o Requerente haver adquirido o veículo em causa em 14.08.2008, com o respectivo Certificado de Matrícula, a seu favor, emitido em 2008-08-18 – em pagamento de valores (salários) que lhe eram devidos pelo seu anterior proprietário – vendeu-o à empresa «B…, Lda.» [...], tendo esta, por sua vez, vendido, em 29.09.2008, a favor do cidadão boliviano C… [...], para tal emitindo a respectiva factura n.º …, de 29.09.2008”; f) “os documentos juntos na Reclamação Graciosa das liquidações de IUC em causa titulam um contrato de compra e venda, devendo ser considerados documentos bastantes para provar a propriedade e a posse do veículo … nos períodos de tributação em causa (Dezembro de 2009, 2010 e 2011) [por] terceiro”.  

 

            2.2. Conclui o ora requerente que deve ser julgado procedente o “presente pedido de anulação dos actos tributários abrangidos pelo presente processo” e, “em consequência, [...] deverá ordenar-se à AT a anulação daqueles actos tributários de liquidação de IUC, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto e insuficiente fundamentação, tudo sob pena da supra invocada inconstitucionalidade e com custas a cargo da Requerida.”  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que “o entendimento propugnado pelo Requerente [de]corre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC”; b) “é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu [, no art. 3.º, n.º 1, do CIUC,] expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem”; c) “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; d) que, “se o Requerente pretende reagir contra a presunção de propriedade que lhe é atribuída, então forçosamente terá de reagir pelos meios próprios previstos no Regulamento do Registo Automóvel e nas leis registais subsidiariamente aplicáveis e contra o próprio teor do registo automóvel, pois que seguramente não é pela impugnação das liquidações de IUC que se ilide a informação registal”; e) que, “mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC [...], o legislador tributário quis intencionalmente e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontrem registados”; f) que “é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel”; g) que “a interpretação veiculada pelo Requerente se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade”; h) que os documentos juntos pelo Requerente não constituem “prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC”; i) que “deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral”; j) que “os actos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços.”

 

            2.4. A AT conclui, em síntese, que “deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.”

 

            2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) O ora requerente pretende a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, dos actos tributários de liquidação do IUC referente ao veículo da categoria C e de matrícula …, e aos anos de 2009, 2010 e 2011, nomeadamente: a liquidação oficiosa do IUC referente ao ano de 2009, no valor de €461,00, acrescido de juros compensatórios, no montante de €71,39; a liquidação oficiosa do IUC referente ao ano de 2010, no valor de €465,00, acrescido de juros compensatórios, no montante de €53,40; e a liquidação oficiosa do IUC referente ao ano de 2011, no valor de €475,00, acrescido de juros compensatórios, no montante de €35,55.

 

            ii) Apesar da matrícula do veículo aqui em causa se encontrar ainda inscrita em nome do requerente, no IRN, à data relativa à tributação dos anos de 2009 a 2011, este fez prova suficiente de que, à data do imposto daqueles anos, já não era o proprietário daquele veículo, como se pode observar pelos Documentos que foram juntos aos presentes autos sob os n.os 3 a 5, 10 e 11.

 

            iii) Atendendo aos documentos acima mencionados, o requerente adquiriu o veículo em causa em 14/8/2008 e, subsequentemente, o respectivo certificado de matrícula foi emitido a seu favor em 18/8/2008 (vd. Doc. n.º 10).

 

iv) Em 28/9/2008, o ora requerente vendeu o referido veículo à empresa “B…, Lda.”, com sede na Rua , Barcelos, conforme declaração de venda – Documento Único Automóvel (vd. Doc. n.º 3). Esta empresa, por sua vez, vendeu o referido veículo, em 29/9/2008, ao cidadão boliviano C… (vd. Doc. n.º 11), como se prova por fotocópias da respectiva factura n. …, de 29/9/2008, e do documento alfandegário do despacho do veículo para a Colômbia, via Vigo, a 18/11/2008 (vd. Docs. n.os 4 e 5).

 

            v) A reclamação graciosa apresentada pelo requerente (respeitante ao IUC de 2008) foi totalmente indeferida por despacho de 5/8/2013 (vd. Doc. n.º 12). Nesse despacho conclui-se, nomeadamente, que o veículo “esteve registado em nome do reclamante [aqui requerente], no período entre 14/8/2008 e 26/9/2012” (a última data refere-se ao momento do cancelamento da matrícula a pedido do requerente: vd. Doc. n.º 6).

 

            vi) O requerente foi notificado das liquidações ora em causa em 22/10/2013 (vd. Doc. n.º 14). Em face das mesmas, deduziu reclamação graciosa em 14/2/2014 (vd. Doc. n.º 15), a qual foi indeferida, na sua totalidade, por despacho de 17/6/2014, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos que estiveram na base da decisão de indeferimento quanto ao IUC de 2008 (vd. Doc. n.º 16). Este indeferimento foi notificado ao requerente, através de ofício de 17/6/2014, em 20/6/2014 (vd. fl. 25 do processo administrativo apenso aos autos).

 

            vii) Inconformado com as liquidações supra referidas, o ora requerente apresentou, em 21/8/2014, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral. 

 

            2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            III – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se, como concluiu a AT, “o entendimento propugnado pelo Requerente [de]corre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre, ainda, de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC”; 2) saber se, como alegou a AT, “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; 3) saber se – admitindo que a presunção existe – o requerente conseguiu fazer a ilisão da mesma; 4) saber se, como também alegou a AT, “a interpretação veiculada pelo Requerente se mostra contrária à Constituição”. 

 

            Vejamos, então.

 

            1) a 3) As três primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita a ilisão da mesma.  

 

            a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

           

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera – ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido – a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do texto, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

            b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente “ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC”.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA relativa ao proc. n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se invoque o art. 6.º do CIUC, como o faz a AT, para alegar “que só as situações jurídicas objecto de registo [...] geram o nascimento da obrigação de imposto”, é necessário ter presente que tal registo gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada mediante prova em contrário (prova de que o registo já não traduz, no momento da obrigação de imposto, a verdade material que lhe teria dado origem).

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA relativa ao proc. n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de “prova bastante”) foi realizada. Com efeito, apesar do que a AT alegou nos pontos 79.º a 94.º da sua resposta, o Tribunal não vê razão para questionar os documentos que foram apresentados pelo requerente, dado que os mesmos são claramente demonstrativos de que este não era, nas datas do imposto, o proprietário do veículo acima identificado (vd. pontos i), ii) e iv) da matéria de facto provada).

 

            Por outro lado, e como bem notou, a este respeito, a DA relativa ao proc. n.º 27/2013-T, datada de 10/9/2013, “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam [as vendas], [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”

 

            4) Conclui-se, em face do que foi supra exposto [em 1) a 3)], não existir “interpretação [...] contrária à Constituição”, ao contrário do que é alegado pela requerida nos pontos 72.º a 78.º da sua resposta.

 

           

***

 

            IV – Decisão

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados.

 

           

Fixa-se o valor do processo em €1561,34 (mil quinhentos e sessenta e um euros e trinta e quatro cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 2 de Março de 2015.

 

 

O Árbitro

 

 

     

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.