Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 235/2014-T
Data da decisão: 2015-03-18  IUC  
Valor do pedido: € 205,06
Tema: IUC – Incidência subjectiva; locação financeira
Versão em PDF

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

Banco A…, SA, contribuinte n.º …, com sede na Rua ,,,, n.º …, LISBOA, doravante designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade das liquidações de seis actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), identificados na Tabela Anexa, a qual se dá por integralmente reproduzida como Anexo A e que faz parte integrante do presente Pedido, efectuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, relativamente aos três veículos automóveis identificados no Anexo A, e relativos aos anos de 2010 a 2012, no valor global de € 205,06, bem como o pagamento de juros indemnizatórios sobre os valores pagos.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 10-03-2014.

 

  1. Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º. n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 23-04-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 12-05-2014.

 

  1. Por despacho de 07-09-2014, o tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como das alegações finais.

 

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

           

11.1 Todos estes actos de liquidação adicional de imposto assentam nos mesmos factos e, bem assim, nos mesmos fundamentos de direito,

 

11.2 Todos pressupõem o mesmo entendimento jurídico-tributário: o de que, na pendência dos respectivos contratos de locação financeira, a ora Requerente, entidade locadora dos veículos em questão é responsável pelo pagamento de IUC, em vez do correspondente locatário.

 

11.3 Considerando esta identidade de factos tributários, de fundamentos de facto e de direito e, bem assim, do tribunal competente para a decisão, e atendendo ainda ao elevado número de viaturas e ao volume de documentação necessária para comprovar os factos infra alegados, optou a Requerente por, ao abrigo dos artigos 3.º do RJAT e 104.º do Código do Procedimento e Processo Tributário, agregar as liquidações adicionais cuja legalidade se contesta num único pedido de pronúncia arbitral,

 

11.4 Requerendo ao Tribunal Arbitral que, ao abrigo dos citados preceitos e tendo em consideração o princípio da económica processual, emita, no âmbito do presente processo arbitral, um juízo de legalidade acerca dos 6 actos de liquidação aqui em apreço, à semelhança do que já ocorreu nos processos arbitrais n.ºs 26/2013-T e 27/2013-T, cujas decisões já transitaram em julgado.

 

11.5 A título prévio, alega a Requerente a sua legitimidade processual para apresentar o pedido de pronúncia arbitral por transferência da unidade de negócios da B…, SA, sucursal em Portugal, para a ora Requerente, conforme documentos comprovativos que junta.

 

11.6 Uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração – entre outros – de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.

 

11.7 Estes contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: a Requerente, depois de contactada pelo cliente – que nesta fase já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.(e inclusive o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe seja indicado pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao cliente que assume a qualidade de locatário.

 

11.8 Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade da Requerente – mediante remuneração a entregar à Requerente sob a forma de rendas; podendo vir a adquirir o veículo, no termo do contrato, mediante o pagamento de um valor residual.

 

11.9 Um ponto chave deste tipo de contratos reside no facto de, em circunstância alguma, o gozo do automóvel adquirido pertencer à Requerente: o veículo sobre o qual recai o contrato permanece a tempo, durante a vigência do contrato, no gozo exclusivo do cliente/locatário.

 

11.10 Os veículos automóveis identificados na listagem junta como Anexo A foram dados em locação financeira, pela Requerente, aos clientes ali também identificados na coluna L), cfr. os contratos de locação financeira que se juntam como documentos n.ºs 4 a 6.

 

11.11 Locação essa que se encontrava em vigor no ano e mês em que se venceu a obrigação de pagar o IUC associado ao respectivo veículo.

 

11.12 A propriedade jurídica pertencia à Requerente mas o respectivo usufruto e utilização era exclusivamente do locatário.

 

11.13 A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os actos de liquidação identificados na tabela junta como Anexo A.

 

11.14 Ou seja, veio a Autoridade Tributária e Aduaneira exigir o pagamento dos IUC, mesmo sabendo que, sobre estes veículos automóveis, incidiam contratos de locação financeira, conforme registo junto da Conservatória de Registo Predial.

 

11.15 Pelo que é por demais evidente que a Requerente não podia ser responsável pelo pagamento do IUC que, não obstante, pagou, motivo pelo qual solicita o respectivo reembolso.

 

11.16 Com efeito, a responsabilidade pelo pagamento do IUC não cabe à Requerente porque, na vigência do contrato de locação, o mesmo deve ser considerado encargo de quem efectivamente utiliza o veículo, conforme argumentos de Direito que desenvolve.

 

Resposta da Requerida

 

12.1 Na Resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira entende que existe uma responsabilidade exclusiva de um dos sujeitos passivos, que em regra será o proprietário, por força do n.º 1, salvo nos caos em que tenha sido celebrado (e registado) contrato de locação financeira, venda com reserva de propriedade ou aluguer de longa duração do veículo em que, por força do n.º 2, o sujeito passivo de IUC passa a ser um dos sujeitos neste indicados, e só este.

 

12.2 Quanto ao valor do registo automóvel na determinação do sujeito passivo de IUC, a AT entende que as alegações da Requerente: a) constituem uma leitura enviesada da letra da lei; b) não atendem ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC e, mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal; e, por fim, c) decorrem ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

 

12.3 O legislador tributário ao estabelecer no art.º 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí mencionadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

12.4 O legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

 

12.5 Assim, é imperativo concluir que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico

 

12.6 Em conformidade, este entendimento já foi adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº ….OBEPNF. (Cfr. art.ºs 32.º e 33º da Resposta).

 

12.7 Sobre o elemento sistemático de interpretação, a Requerida alega que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal, tal como resulta não só do n.º 1 do artigo 31.º como do disposto no artigo 6.º n.º 1 quando refere “tal como atestado pela matrícula ou registo”.

 

12.8 Por fim, atentos à “ratio”, não pode deixar de se concluir que o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais (os veículos) se encontram registados.

 

12.9 Acrescenta ainda que a argumentação veiculada pela Requerente representa uma violação dos princípios da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.

 

12.10 Alega ainda que, caso se aceite a tese da Requerente, o artigo 3.º do CIUC deve atender-se também ao disposto no artigo 19.º que estabelece que “para efeitos do artigo 3.º do presente Código (…) ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigados a fornecer à Direção-geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados.”

 

12.11 No caso, a Requerente não fez prova de ter comunicado à AT a identificação dos utilizadores dos veículos locados, pelo que serão da sua responsabilidade as custas processuais do presente processo já que a sua omissão deu azo à emissão das liquidações ao titular do direito de propriedade.

 

12.12 No mesmo sentido, não serão devidos juros indemnizatórios, porque, ainda que se entenda que o imposto não é devido, não há erro imputável ao serviço porque a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

 

12.13 Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais, em linha com o decidido em questão similar no âmbito do Processo n.º 72/2013-T deste Centro de Arbitragem.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

1-Os atos de liquidação objecto do presente pedido arbitral foram dirigidos à sociedade Banco A…, SA, com o n.º…, que, por transferência da unidade de negócio da B…,SA – Sucursal em Portugal (anteriormente designada C…,SA – Sucursal em Portugal), NIF …, assumiu a titularidade dos contratos anteriormente celebrados por esta sucursal (cfr. Anexos B e C juntos ao presente pedido arbitral).

 

2-Assim sendo, a Requerente assumiu a posição de locadora de todos os contratos de leasing que se encontravam em vigor na esfera jurídica da B…,SA – Sucursal em Portugal, nomeadamente os contratos que respeitavam aos veículos identificados no Anexo A, cujo IUC é objecto de pronúncia arbitral.

 

3-Os veículos automóveis identificados na listagem junta como Anexo A foram dados em locação financeira, pela Requerente, aos clientes ali também identificados na coluna L), cfr. os contratos de locação financeira juntos ao pedido arbitral como documentos n.ºs 4 a 6.

4-      Estes contratos de locação estavam em vigor no ano e mês em que se venceu a obrigação de pagar o IUC associado ao respectivo veículo.

 

5-      A requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC relativos aos actos de liquidação identificados no Anexo A do pedido arbitral.

 

6-A Requerente procedeu ao pagamento integral das referidas liquidações de imposto ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 151-A/2013 – Regime Excepcional de Regularização de Dívidas Tributárias e à Segurança Social, ficando dispensada do pagamento dos respectivos juros compensatórios.

 

A.2. Motivação

 

Os factos acima mencionados resultam provados pelos documentos e declarações das partes (não contestados ou impugnados), não se tendo provado outros factos considerados relevantes para a decisão objecto do presente processo.

 

Não há factos não provados com relevo para a apreciação do mérito da causa.

 

B. DO DIREITO

 

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, a questão central é saber se, na vigência de um contrato de locação financeira quem assume a qualidade de sujeito passivo de IUC é o proprietário do veículo (entidade locadora) ou o locatário.

 

Esta matéria foi já abundantemente tratada na Jurisprudência Arbitral Tributária. Veja-se, a título de exemplo, as diversas decisões do CAAD publicadas em www.caad.org.pt, nomeadamente as proferidas nos processos nºs 14/2013, 228/2014, 222/2014, 230/2014 e 230/2014. No presente acórdão seguiremos o entendimento e conclusões daquelas decisões.

 

Pela síntese e clareza de pensamento, aderimos, sem reservas, ao enquadramento feito na decisão arbitral no âmbito do Processo n.º 230/2014-T, que citamos e para a qual remetemos:

“O sentido geral e unânime de tal Jurisprudência é o de considerar que o artigo 3º-1, do CIUC, consagra presunção ilidível da titularidade da propriedade as menções ou inscrições constantes na Conservatória do Registo Automóvel e/ou da base de dados do IMTT à data do facto tributário.

Ou seja: liquidado o IUC em função das inscrições do registo ou de harmonia com os elementos que constam nas bases de dados do IMTT, pode o sujeito passivo exonerar-se do pagamento demonstrando a não correspondência entre a realidade e aquelas inscrições e elementos de que se socorreu a Autoridade Tributária para proceder às liquidações.

Não se antolham razões para inverter o alterar o sentido essencial desta Jurisprudência.

Vejamos então, de novo e mais de perto a questão:

Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):

Artigo 3º

Incidência Subjetiva

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.

Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[1] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja  aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

~ no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;

 ~  também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;

   ~ e, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A, da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz Francisco Ferrara que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere Batista Machado “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. Francesco Ferrara, Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. Baptista Machado, Loc. Cit., p. 181; Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.

O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos Batista Machado que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam P. de Lima e A. Varela,  em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere ainda Batista Machado: “(…) este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (Obra e loc. cit. p. 189/190).

Logo a seguir este insigne Mestre chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica ainda Batista Machado que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” . este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por P. de Lima E A. Varela, nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico” , Baptista Machado considera este o fator interpretativo mais importante: “ (…)a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

No que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (Batista Machado, loc.cit., p. 183).

 “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Joseph Kohler, citado por Manuel de Andrade, in Ensaio, p. 27).

Descendo ao caso dos autos e ao enquadramento legal e jurídico que lhe subjaz:

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

            Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

            O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

            Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

            Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[5].

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

(…)

B – A locação financeira e o sujeito passivo do IUC.

Como se viu, a lei dispõe que serão sujeitos passivos os proprietários dos veículos [art 1º-1, do CIUC], equiparando a proprietário o locatário financeiro, o adquirente com reserva de propriedade e outros titulares de direitos de opção.

Voltando à interpretação da lei e ao que se deixou explanado, reconhecendo, designadamente que o IUC é um imposto ambiental e viário [cfr artigo 1º, do CIUC, para além de outras normas deste compêndio donde ressalta igual conclusão, como v. g., o artigo 7º (referência ao nível de emissão de carbono) e os arts 9º e ss (tratando das taxas, há referência constante ao nível de emissão de carbono)].

Pode, por isso, concluir-se que a referência do imposto, a capacidade contributiva está assente no veículo e, consequentemente, em quem o utiliza.

E se assim é, não faz sentido tributar o locador financeiro – proprietário formal do veículo ou, um “quase proprietário” mas não o seu proprietário, digamos, económico – e deixar fora dessa tributação quem verdadeiramente age como proprietário, utilizando o veículo como propriedade sua, ou seja, o locatário financeiro. É este que utiliza ou usufrui do veículo e de todas as comodidades ( e incomodidades…) que este proporciona.

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador (locatário financeiro, por exemplo) do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam, como se viu, sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

 

Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos “reais proprietários” e utilizadores dos veículos, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem.

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores-locatários financeiros dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.”

Acrescentamos ainda que este entendimento é confirmado pela previsão do artigo 19.º do CIUC que determina que ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados. Isto é, a entidade locadora dever informar a AT da celebração, in casu, dos contratos de locação financeira para que esta possa proceder à liquidação do imposto ao locatário.

Em conclusão, se na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira que tem como objecto um veiculo automóvel, o sujeito passivo do imposto não é o locador mas, nos termos do nº 2 do artigo 3º do CIUC, o locatário, por ser este que tem o gozo do veículo, independentemente do registo do direito de propriedade permanecer em nome do locador.

 

Em conclusão, estão reunidos os pressupostos necessários para a procedência do pedido de anulação das liquidações, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos.

 

C. Juros indemnizatórios

 

A Impugnante procedeu ao pagamento integral das referidas liquidações de IUC, pelo que pede o reembolso desses montantes indevidos, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos do art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

No que concerne aos juros indemnizatórios, não logrou a Requerente comprovar ter feito a comunicação a que se refere o artigo 19.º do CIUC, pelo que a AT, com os elementos e informação que dispunha, procedeu à liquidação do imposto, nos termos legalmente previstos, ou seja, tributando a Requerente com base nos elementos que conhecia, nomeadamente a titularidade da propriedade constante do Registo Automóvel.

 

Consequentemente, a Requerente não tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT.

 

*

D. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IUC;

b)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à Requerente dos valores pagos;

c)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas do processo, no montante de € 306,00.

 

E. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 205,06, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

F. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

A responsabilidade pelas custas é da parte vencida porque, ao contrário do alegado, a AT poderia, nos 30 dias seguintes ao do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, ter procedido à revogação dos actos de liquidação identificados (artigo 13.º n.º 1 do RJAT), tanto mais que a Requerente junta, com apresentação do pedido, cópia dos contratos de locação financeira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa,

18 de Março de 2015

 

O Árbitro

 

 

(Amândio Silva)

 



[1] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido, veja-se, entre muitos outro autores, Freitas Pereira, M.H., Fiscalidade, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009.