Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 473/2015-T
Data da decisão: 2015-12-17  IRC  
Valor do pedido: € 1.960.955,07
Tema: IRC – Derrama Municipal e estadual
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Os Árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (designado pelos outros Árbitros), Dr. Ricardo da Palma Borges e Prof.ª Doutora Ana Maria Rodrigues, designados, respectivamente, pela Requerente e pela Requerida, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 09-10-2015, acordam no seguinte:

 

 

1. Relatório

 

A…, SGPS, S.A. pessoa colectiva n.º…, actualmente com sede na rua…, n.º…, …, …, …, …-… Viseu, (doravante designada como “A…” ou “Requerente”), sociedade dominante do “Grupo Fiscal B…”, veio, nos termos as disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT) requerer constituição de tribunal arbitral colectivo com designação de árbitro pela parte e pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade parcial das autoliquidações de IRC (e derramas municipal e estadual consequentes) do Grupo Fiscal B… dos exercícios de 2012 e 2013, no que respeita aos montantes de € 640.922,55 (2012) e € 1.320.032,52 (2013), respectivamente, num total de € 1.960.955,07, com a sua consequente anulação parcial, bem como a declaração de ilegalidade e anulação da decisão da reclamação graciosa que indeferiu os pedidos de anulação que a Requerente apresentou.

A Requerente pede ainda o reembolso daquelas quantias, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde 01-09-2013 e desde 01-09-2014, respectivamente.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT).

A Requerente designou Árbitro o Dr. Ricardo da Palma Borges, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 07-08-2015.

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro a Prof.ª Doutora Ana Maria Rodrigues.

Os Árbitros designados pelas Partes acordaram em designar o Cons. Jorge Lopes de Sousa como árbitro presidente, que aceitou a designação.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 24-09-2015.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 09-10-2015.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 12-11-2015, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas.

As Partes apresentaram alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

 

 

a)     A Requerente é a sociedade dominante do Grupo Fiscal B…, sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS);

b)    O Grupo Fiscal B… que integrava com efeitos desde 01-01-2013, a C…, S.A., pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua …, n.º…, …, …, …, …, Viseu, com o capital social de € 34.450.000 (doravante designada por “C”), sociedade que incorporou por fusão, com efeitos reportados a 01-01-2013, a D…, SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º…, doravante designada por “D”, sociedade esta que integrava também, até à sua extinção por fusão, o Grupo Fiscal B…;

c)    A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal B…, procedeu à autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) e derramas municipal e estadual consequentes relativamente aos exercícios de 2012 e 2013 mediante apresentação das respectivas declarações Modelo 22 (Documentos n.ºs 2 e 3, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

d)    Posteriormente, a Requerente apresentou declarações de substituição daquelas declarações (Documentos n.ºs 4 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

e)    No decurso do segundo trimestre de 2007, a Grupo Fiscal B… adquiriu 3.574.575 acções representativas do capital social da “E…, SGPS, S.A.” (adiante E…), à data denominada “F…, SGPS, S.A.”, sociedade cotada na Bolsa de Valores de Lisboa (Euronext Lisbon), tendo o custo de aquisição ascendido a € 38.703.397;

f)     No período de 2008, a D…, e a sucessora C…, em consequência da sua extinção por fusão em 2013, possuía um total de 3.423.560 acções da E… no seu activo, tendo o custo total de aquisição ascendido ao montante de € 35.393.792;

g)   A aquisição das acções referidas conferem à Requerente, bem como à D…, uma participação representativa de menos de 5% do capital social da E…, sendo que quer a Requerente quer a C…/D…, isoladamente ou em conjunto, e mais latamente o Grupo Fiscal B…, não detêm directa ou indirectamente participação na E… igual ou superior a 5%;

h)   Até 31 de Dezembro de 2009, as participações sociais em causa encontravam-se mensuradas nas demonstrações financeiras das duas sociedades ao custo de aquisição, nos termos dos princípios contabilísticos definidos no Plano Oficial de Contas (POC);

I)       Na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a partir de 01-01-2010, a Requerente e a D… passaram a mensurar, nas suas demonstrações financeiras, as participações sociais detidas no capital da E… de acordo com a Norma Contabilística e de Relato Financeiro 27 (NCRF 27);

G)    Em virtude da adopção pela primeira vez das novas regras contabilísticas, a Requerente e a D… apuraram variações patrimoniais negativas associadas à mensuração das participações detidas na E… de acordo com o justo valor, nos montantes de, respectivamente, € 23.196.890 e € 20.542.389, que representam a diferença, em 31.12.2009, entre o custo de aquisição das participações e o seu justo valor nesta data;

H)     No dia 29-12--2010, a Requerente efectuou um Pedido de Informação Vinculativa no sentido de confirmar o entendimento da AT sobre o enquadramento fiscal daquela variação patrimonial, nomeadamente no que respeita à limitação da dedução a 50% constante do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC;

I)       Em resposta ao Pedido, informou a Direcção de Serviços de IRC que “No caso de ser apurada uma perda por redução do justo valor, o artigo 45º, nº 3 do CIRC, estabelece que “outras perdas relativas a partes de capital concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”, concluindo que “Sendo as reduções de justo valor destas partes de capital qualificadas como perdas deverão ser consideradas, nos termos do referido artigo 45º, nº 3, do CIRC, em 50% do seu valor”;

J)      A Requerente e a D…, seguindo o entendimento da AT, consideraram, para efeitos fiscais, nas autoliquidações de IRC de 2012 e de 2013, em apenas 50%, as variações patrimoniais negativas respeitantes às participações na E…, decorrentes da transição para o novo referencial contabilístico em matéria de reconhecimento do justo valor (de forma diferida por cinco períodos de tributação);

K)    No que respeita à valorização ocorrida em 2012 e em 2013 com a participação financeira na E…, a Requerente e a D… consideraram-na em 100% nas autoliquidações destes exercícios;

L)     Em 30-01-2014, a Requerente pediu uma nova informação vinculativa, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira confirmou que era esse o enquadramento adequado, nos termos do documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se concluiu que:

      18. Quando estão em causa rendimentos associados a ganhos de valor de ativos valorizados ao justo valor e cuja variação de valor deva ser reconhecida em resultados, como acontece no caso em concreto, esses ganhos concorrem para a formação do lucro tributável na sua totalidade, antes e após a entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16.01».

19. Relativamente às perdas resultantes da mensuração pelo justo valor dos instrumentos de capitalpróprios previstos na alínea a) do n.º 9 do art.º18.º do CIRC, que foram apuradas até 2013, concorriam em, apenas, 50 % para efeitos de determinação do lucro tributável. A partir de 2014, com a entrada em vigor da Lei da Reforma do IRC, estas perdas passam a ser fiscalmente dedutíveis em 100%.

 

M)         Em 19-03-2015, a Requerente apresentou reclamação graciosa das autoliquidações relativas aos anos de 2013 e 2014 (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

N)     A reclamação graciosa referida na alínea anterior foi indeferida por despacho de 28-05-2015, proferido pelo Senhor Director de Finanças de …, que manifestou concordância com a informação que consta do documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

15. Estabelece a alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC (na redação em vigor à data dos factos) que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, sendo instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social, estes ajustamentos, tanto ao nível fiscal como ao nível contabilístico, são considerados ganhos por aumentos ou perdas por redução do justo valor.

16. Já segundo o disposto no número 3 do artigo 45.º do CIRC (também, na redação em vigor à data dos factos) as "(...) outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor", pelo que considerando-se as reduções de justo valor como partes de capital estas perdas sempre serão consideradas em 50% do seu valor.

17. Isto porque temos que a ratio subjacente ao n.º 3 do artigo 45.º do CIRC é a de introduzir um maior equilíbrio no tratamento quer dos rendimentos relativos a partes de capital quer das perdas. Sendo que, dada a formulação abrangente deste preceito, ao usar a expressão "outras perdas (...) relativas a partes de capital", se incluem necessariamente aqui as perdas resultantes de ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, como os previstos na alínea a), do n.º 9, do artigo 18º do CIRC.

18. Ora, este entendimento é largamente difundido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como por exemplo, nas informações vinculativas solicitadas pela ora reclamante (PIV …/2010 e PIV …/2014, ambas da Direção de Serviços de IRC).

19. A reclamante na sua contestação a este entendimento alega "que tanto os ganhos, como os gastos, associados às variações de justo valor ocorridas no período de detenção das participações sociais, devem concorrer para a formação do lucro tributável em 100% do seu valor", não se aplicando o número 3 do artigo 45.º do CIRC.

20. Para aferir dos argumentos expostos pelo Grupo B… cumpre fazer uma resenha através das alterações que levaram a este entendimento.

21. Ora, com a aprovação, a nível contabilístico, do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), em 31 de dezembro de 2009, deu-se a mudança do Plano Oficial de Contas para o Sistema de Normalização Contabilística. Esta mudança implicou uma alteração de modelo, de um modelo com ênfase jurídica para um modelo que assenta numa abordagem económica, sendo que os critérios de reconhecimento, mensuração, apresentação e divulgação são significativamente diferentes.

22. Estabeleceu-se, ainda, que sempre que o SNC seja omisso, se deverá recorrer, supletivamente, às Normas Internacionais de Contabilidade adotadas ao abrigo do Regulamento n.º 1606/2002 e às IAS/IFRS emitidas pelo IASB e respetivas Interpretações.

23. Esta mudança originou uma alteração ao CIRC e legislação complementar de forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável às IAS. Sucedendo que, continuaram a existir diferenças entre os critérios contabilísticos definidos no SNC e os critérios fiscais estabelecidos no CIRC. Assim, o resultado líquido apurado contabilisticamente continuou a ser o ponto de partida para determinação do lucro tributável, sendo esse resultado contabilístico ajustado para se chegar ao lucro tributável em função de diferenças - para mais ou para menos - entre os critérios contabilísticos fiscais e de variações patrimoniais positivas ou negativas que, nos termos do CIRC, devam contribuir para a determinação do resultado fiscal.

24. Esta estreita ligação entre a contabilidade e a fiscalidade levou a que sempre que não existam regras fiscais próprias se acolhe o tratamento contabilístico decorrente do SNC.

25. Deste modo, contabilisticamente, o Grupo B…, utilizou o disposto na NCRF 27, que determinada que os ganhos ou perdas na variação do justo valor sejam levados diretamente aos resultados. Aliás, de acordo com a IAS 39, um ganho ou perda resultante de um ativo financeiro classificado pelo justo valor através dos resultados deve ser incluído no resultado líquido do período.

26. Esta NCRF 27 acolhe o modelo do justo valor (sendo por isso, fiscalmente aceites os respetivos ganhos) relativamente aos instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados nos casos em que a determinação do justo valor seja fiável.

27. Já no domínio da aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, ao nível fiscal, com a adaptação do CIRC ao SNC, o legislador fiscal acolheu o modelo do justo valor no reconhecimento dos rendimentos e gastos do período, embora tal reconhecimento se cinja a casos excecionais, na medida em que, para efeitos fiscais, continua a vigorar, como regra, o princípio da realização. Princípio, este, em que o resultado só é apurado, em regra, com a transferência da propriedade do bem, por contraposição aos casos em que relevam os ganhos ou perdas meramente potenciais, (v.g., os ajustamentos de justo valor reflectidos em resultados) e que estão contemplados no n.º 9 do artigo 18.º do CIRC.

28. Assim sendo, os rendimentos e gastos são considerados fiscalmente no período em que os elementos ou direitos que lhe deram origem sejam alienados, exercidos ou liquidados, aceitando-se os ajustamentos de justo valor. Contudo, este entendimento vigora apenas em determinados casos, como o caso concreto da reclamante, ou seja, em instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados.

29. É entendimento da Autoridade Tributária e da doutrina que relativamente aos instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, se exige em relação aos instrumentos de capital próprio (v.g. ações), por razões de fiabilidade na determinação do valor, que tenham um preço formado num mercado regulamentado e a participação seja igual ou inferior a 5% do respetivo capital social (alínea a), do n.º 9, do artigo 18.º, alínea f) do n.º 1 do artigo 20.º e alínea i) do n.º 1 do artigo 23.º). Fora destas condições, os ganhos ou perdas só são considerados fiscalmente quando realizados (artigo 46.º do CIRC, na redação em vigor à altura dos factos). Sendo entendimento consensual que as variações negativas de justo valor respeitantes a partes de capital são dedutíveis apenas em 50%, em face da redação abrangente do n.º 3 do artigo 45.º do CIRC, redação em vigor no período de 2013, pelo que não se vislumbra razão nos argumentos da reclamante.

30. A reclamante fundamenta, também, a sua pretensão numa decisão proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) no âmbito do processo n.º 108/2013-T, em que não se acolhe a interpretação da Autoridade Tributária e Aduaneira.

31. No entanto, cabe referir que a jurisprudência do CAAD não constitui uma fonte imediata de Direito Fiscal e que, ainda que o número 4 do artigo 68.º-A da LGT determine que a AT deve rever as suas orientações genéricas atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores, não se observa que uma única decisão possa determinar uma mudança do entendimento, que foi tomado com base nos normativos legais em vigor e com a organização sistemática do CIRC.

32. Consideramos, pois, que a liquidação objeto de reclamação não enferma de qualquer vício que possa comprometer a sua validade, não existindo quaisquer elementos que contrariem o seu resultado, não se aceitando, consequentemente, a pretensão da reclamante no sentido de pretender que os gastos associados às variações de justo valor ocorridas no período de detenção das participações sociais, devam concorrer para a formação do lucro tributável em 100% do seu valor.

V. Conclusão

Em face do exposto, propõe-se o INDEFERIMENTO da presente reclamação graciosa, de acordo com os fundamentos da presente informação.

 

O)   A autoliquidação de IRC e derramas estadual e municipal, bem como as tributações autónomas relativas aos anos de 2012 e 2013 encontram-se pagas, pois a Requerente em ambos os anos teve valores a recuperar, referidos nos campos 368 dos quadros 10 das declarações modelo 22;

P)     Em 24-97-2015, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

A decisão da matéria de facto baeia-se nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia quanto aos factos.

 

 

            3. Matéria de direito

 

O Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, alterou o CIRC, procedendo à adaptação das regras de determinação do lucro tributável às normas internacionais de contabilidade tal como adoptadas pela União Europeia, bem como aos normativos contabilísticos nacionais que visam adaptar a contabilidade a essas normas.

Relativamente aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, o n.º 9 do artigo 18.º do mesmo Código, dispõe que:

9 – Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou

b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.

 

No artigo 5.º daquele Decreto-Lei, estabeleceu-se um regime transitório, nestes termos, no que aqui interessa:

 

Regime transitório

1 - Os efeitos nos capitais próprios decorrentes da adopção, pela primeira vez, das normas internacionais de contabilidade adoptadas nos termos do artigo 3.º do Regulamento n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho, que sejam considerados fiscalmente relevantes nos termos do Código do IRC e respectiva legislação complementar, resultantes do reconhecimento ou do não reconhecimento de activos ou passivos, ou de alterações na respectiva mensuração, concorrem, em partes iguais, para a formação do lucro tributável do primeiro período de tributação em que se apliquem aquelas normas e dos quatro períodos de tributação seguintes.

 

É aceite pelas Partes as participações financeiras em questão deviam ser contabilizadas de acordo com o critério do justo valor e que os ajustamentos foram reconhecidos através de resultados.

As correcções efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira basearam-se na interpretação que fez do regime do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção vigente em 2012-2013, que entendeu ser aplicável aos ajustamentos decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados.

Fica, desta forma, devidamente delimitada a questão a resolver nos autos, que é, então, a de saber se a perda contabilística resultante da aplicação retrospectiva do método do justo valor, devidamente contabilizada e reconhecida em resultados, deverá ser atendida na totalidade, ou apenas em 50%, em cada um dos quatro períodos de tributação subsequentes ao primeiro em que foram aplicadas aquelas normas contabilísticas.

 

            3.1.      Quadro normativo

 

O artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, estabelece o seguinte:

           

3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.

 

            A norma geral sobre a determinação do lucro tributável de IRC é o artigo 17.º do CIRC que estabelece que

1 – O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

           

Relativamente aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, o n.º 9 do artigo 18.º do mesmo Código, dispõe que:

9 – Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou

b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.

 

O artigo 20.º, n.º 1, do CIRC concretiza o conceito de rendimentos estabelecendo, no que aqui interessa, o seguinte:

 “Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:

 (...)

f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

h) Mais-valias realizadas;”.

           

O artigo 23.º, n.º 1, do CIRC define o conceito de «gastos», estabelecendo o seguinte:

 

1 – Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(...)

i)                   Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

l) Menos-valias realizadas;”.

 

Relativamente às variações patrimoniais positivas, o artigo 21.º, n.º 1, do CIRC dispõe que:

“Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

 (...)

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;

 

No que concerne às variações patrimoniais negativas, o artigo 24.º, n.º 1, do CIRC refere que:

Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

(...)

b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;”.

 

No que diz respeito às mais e menos-valias, dispõe o artigo 46.º, n.º 1, do mesmo Código, que:

1 – Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:

 (...)

b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º”

           

           

3.2. Análise da questão

 

Na análise desta questão seguir-se-á de perto a fundamentação do acórdão arbitral de 25-11-2013, proferido no processo n.º 108/2013-T (depois seguida no acórdão de 09-06-2015, proferido no processo n.º 58/2015-T), que merece a concordância dos signatários.

O referido artigo 45.º, n.º 3, do CIRC decorre da renumeração do anterior artigo 42.º, n.º 3, efectuada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009.

            Este n.º 3 do artigo 42.º em causa, por sua vez, foi introduzido pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, com a seguinte redacção:

 

       “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”.

           

De acordo com o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de Estado de 2003 (p. 33), a intervenção legislativa na área em causa (IRC) guiou-se por “duas prioridades, a saber, o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável”, enquadrando-se a alteração que aqui interessa no âmbito do “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (p. 51).

            A redacção actual da norma em análise resultou já da alteração implementada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que nos termos do correspondente Relatório do Ministério das Finanças (p.31), a medida em causa se enquadrou no âmbito do “COMBATE À EVASÃO E FRAUDE FISCAIS E OUTRAS MEDIDAS DIRECCIONADAS À CONSOLIDAÇÃO ORÇAMENTAL”.

            Já o n.º 9 do artigo 18.º do CIRC aplicável obtém directamente a sua justificação no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, que o introduziu no referido Código, onde se pode ler:

“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados. (...)

No mesmo sentido, identificam-se como activos abrangidos pelo regime das mais-valias e menos-valias fiscais os activos fixos tangíveis, os activos intangíveis, as propriedades de investimento, os instrumentos financeiros, com excepção daqueles em que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável no período de tributação.”.

           

Estas intenções expressas têm correspondência naquela norma do n.º 9 do artigo 18.º, bem como na introdução, pelo mesmo diploma legal, das alíneas f) e i) do número 1 dos artigos 20.º e 24.º do CIRC, bem como da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º.

            Dentro do conjunto de alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, cumpre ainda salientar que onde até aí se falava de proveitos e ganhos (artigo 20.º), passou-se a falar de rendimentos, e onde antes se falava de custos ou perdas (artigo 23.º), passou-se a falar de gastos.

            Previamente à adopção do justo valor, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, que estabelecia que não concorriam para a formação do lucro tributável «as mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação legalmente autorizadas». Apenas no momento da realização da mais ou menos-valia é que assumia relevância fiscal a variação patrimonial verificada.

            Este enquadramento fiscal, que se reconduzia uma tributação única (que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros), dependente de uma actuação voluntária do sujeito passivo (na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo assim o quisesse) e em que a valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária propiciavam um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia optar por desencadear a relevância tributária no momento e termos em que lhe tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis, que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, que precede o actual artigo 45.º, n.º 3, do mesmo.

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

Já relativamente a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5 % do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

Em consonância com esta intenção legislativa, o artigo 18.º, n.º 9, do CIRC veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados.”, o que consubstancia um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a excepção a este regime, «quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social;”.

Ou seja, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “concorrem para a formação do lucro tributável” “desde que”:

a)                            Sejam reconhecidos “através de resultados”;

b)                           Se tratem “de instrumentos do capital próprio”;

c)                            “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e

d)                           “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”.

 

Cumpridas estas condições:

a)                             consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), do CIRC]; e

b)                             consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC].

 

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única, aquando da transacção daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC] do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º, n.º 9, do CIRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias [artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do CIRC].

            Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada.

Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

Não obstante estas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, renumerado para artigo 45.º, n.º 3, manteve a respectiva vigência, com a sua redacção inalterada.

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às variações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC.

Numa primeira análise, baseada exclusivamente no teor literal do n.º 3 do artigo 45.º é sugerida uma resposta afirmativa a esta questão, em face da abrangência de previsão desta norma.

Mas, uma interpretação atenta e coordenada dos normativos relevantes para a análise da questão, que se indicaram, conduz a uma conclusão diferente.

Na verdade, o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC refere que:

A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

 

A análise do texto normativo revela com clareza que o legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, em função da presunção de boa técnica legislativa, por distintas, a saber:

a)                            “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;

b)                            “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;

c)                            “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

 

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das elencadas situações.

A situação aludida sob a alínea a) supra, será manifestamente inaplicável, não só porque não houve qualquer realização operada mediante transmissão onerosa, mas também porque o artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do CIRC exclui as situações descritas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do conceito de mais-valias realizadas.

Deste modo, restam as possibilidades de integração da situação dos autos em alguma das situações elencadas nas alíneas b) e c) supra.

A aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada se se atentar que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas”, serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo artigo 159/2009, de 13 de Dezembro.

 Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respectivamente, que:

– “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

– “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.

 

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redacção actual do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

a)      Custos;

b)      Perdas;

c)      Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

 

A previsão do artigo 42.º, n.º 3 (predecessor do actual 45.º, n.º 3), dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redacções anteriores ao Decreto-Lei n.º 159/2009.

Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes.

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” utilizada no actual artigo 45.º, n.º 3, do CIRC não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigos 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregado a mesma distinção.

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respectivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável.

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h) Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei n.º 158/2009 de 12 de Julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC se reportará a:

a)                            diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

b)                            outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

c)                            outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

Sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC, e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

            Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

            A própria Autoridade Tributária e Aduaneira parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22”[1], a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”.

Sucede que o artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorrecta a sua inscrição no campo em causa.

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009 de 13 de Dezembro, pretendesse abranger as situações elencadas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, no âmbito do artigo 45.º, n.º 3, do mesmo, teria:

-                          incluído os “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC ( [2] ); ou

-                          referido tais situações como “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” e não como “gastos”.

 

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objectividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

Esta circunstância não é, face à redacção do CIRC posterior ao Decreto-Lei 159/2009, susceptível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redacção dos artigos 20.º, n.º 1, alíneas f) e h), 23.º, n.º 1, alíneas i) e l), e, em especial 46.º, n.º 1, alínea b), face aos quais se evidencia de uma forma clara a intenção do legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais-valias e menos-valias.

            Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º, n.º 3, e 46.º do CIRC, apenas faz sentido na perspectiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização.

            É que, estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transacção, haverá sempre um factor voluntário em relação àquela.

            Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º, n.º 3, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma actuação susceptível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objectivamente, a condicionar as actuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

            Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objectivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

            Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo.

            Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico.

            É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepção das situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC ao regime do princípio da realização. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º, n.º 9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito do passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal, ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa ou, até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário Público. É a excepção da alínea a), ao retirar as situações aí previstas do âmbito do princípio da realização, que justifica o novo regime de relevância para o lucro tributável, que foi instituído.

            Evidência de tudo o que vem de se dizer, apresenta-se no quadro elaborado de seguida, o qual demonstra a irrazoabilidade da aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3, às situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a):

 

Ano

Valor Investimento Financeiro

Variação Patrimonial

Aplicação do artigo 45.º/3 do CIRC

0

Valor de aquisição (V.A.)

0

0

1

V.A.+ 40

+ 40

+40

2

V.A.+ 20

-20

-10

3

V.A

-20

-10

4

V.A.-40

-40

-20

5

V.A.

+40

+40

6

V.A. -20

-20

-10

 

            A não aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC aos gastos, e concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, leva a uma coerência da tributação qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de venda.

            Já se se aplicasse a norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, como pretende a Autoridade Tributária e Aduaneira, a partir do momento em que se verifique uma alteração patrimonial negativa, haverá uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objectiva e independente da actuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se ao fim do segundo ano o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização), teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pago imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efectiva de -20, que, ao abrigo do princípio da realização consagrado no CIRC, seria atendível, ainda que em apenas 50% do respectivo valor (-10)!

            Parece claro que tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável, que, por imperativo do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, tem de fazer assentar a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

            É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º, n.º 3, leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) pela opção pelo critério do justo valor poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas relevarão fiscalmente independentemente da sua efectiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objectivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes.

Ou seja, como se havia adiantado já, não se verificam as razões de combate à fraude e evasão fiscal, nem as razões de consolidação orçamental, que demonstradamente estiveram na génese da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

Assim, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”. ( [3] ). “O método teleológico tem-se vindo a deslocar cada vez mais para um primeiro plano em relação à interpretação literal. Segundo o princípio de há longa data conhecido: cessante ratione legis, cessat lex ipsa, deve importar mais o fim e a razão de ser que o respectivo sentido literal. A ratio deve impor-se, não apenas dentro dos limites de um teor literal muitas vezes equívoco, mas ainda rompendo as amarras desse teor literal ou restringindo uma fórmula legal com alcance demasiado amplo”. ( [4] )

Deste modo, e em suma, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código Civil, segundo as quais “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (n.º 3), entende-se ser de interpretar o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º.

Nestes termos, com evidente suporte textual no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, é de entender que «os efeitos nos capitais próprios decorrentes da adopção, pela primeira vez, das normas internacionais de contabilidade» «resultantes do reconhecimento ou do não reconhecimento de activos ou passivos, ou de alterações na respectiva mensuração, concorrem, em partes iguais, para a formação do lucro tributável do primeiro período de tributação em que se apliquem aquelas normas e dos quatro períodos de tributação seguintes», sem reservas ou limitações, não se aplicando, nestes casos, o artigo 45.º, n.º 3, do referido Código, na medida em que estes efeitos negativos não estão abrangidos pela sua previsão.

Consequentemente, as correcções efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira que estão subjacentes às liquidações impugnadas enfermam de vício de violação de lei, por errada interpretação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, pelo que se justifica declaração da sua ilegalidade.

 

 

     4. Reembolso das quantias pagas indevidamente e juros indemnizatórios

 

 A Requerente pede a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar-lhe as quantias ilegalmente autoliquidadas e a pagar-lhe juros indemnizatórios, contados desde 01-09-2013, quanto à autoliquidação de 2012, e desde 01-09-2014, quanto à autoliquidação de 2013.

 

4.1. Admissibilidade do reconhecimento do direito e condenação a pagar juros indemnizatórios nos processos arbitrais

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Por outro lado, sendo os juros indemnizatórios calculados com base na quantia a reembolsar e tendo como limite final a data do processamento da respectiva nota de crédito (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT), está ínsita na possibilidade de condenação em juros indemnizatórios a condenação ao reembolso da quantia que serve de base ao seu cálculo.

 

4.2. Direito a juros indemnizatórios nos casos de autoliquidação

 

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 – São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

4 – A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5 – No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

 

No caso dos autos há pagamento de imposto indevido quanto às partes das autoliquidações em que o pedido de pronúncia arbitral procede.

Das várias situações em que são devidos juros indemnizatórios indicadas no artigo 43.º da LGT, haverá lugar aos mesmos se se entender que ocorreu erro imputável aos serviços.

No caso em apreço, os impostos indevidamente pagos foram autoliquidados, pelo que a Autoridade Tributária e Aduaneira não teve qualquer intervenção na prática do acto em que se baseou o pagamento, sendo à própria Requerente que é imputável a sua prática.

Por isso, quanto aos actos de autoliquidação, não ocorreu erro imputável aos serviços, não havendo, consequentemente direito a juros indemnizatórios derivado da sua prática.

No entanto, o mesmo não sucede com a decisão da reclamação graciosa, pois deveria ter sido acolhida a pretensão da Requerente, quanto à ilegalidade da autoliquidação e o não acolhimento das pretensões é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Este caso de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a acção que a reporia deve ser equiparada à acção. ( [5] )

No caso em apreço, a reclamação graciosa foi apresentada em 19-03-2015, pelo que o prazo para decisão terminou em 19-07-2015 (artigo 57.º, n.º 1, da LGT).

Pelo que se referiu, deverá entender-se que, a partir do momento em que se completou o prazo de decisão da reclamação graciosa, começam a contar-se juros indemnizatórios.

Nestes termos, procede o pedido de reembolso das quantias indevidamente pagas, no total de € 1.960.955,07, sendo € 640.922,55 relativos ao ano de 2012 e € 1.320.032,52 relativos ao ano de 2013.  

Quanto aos juros indemnizatórios procede parcialmente o pedido, devendo os juros indemnizatórios ser calculados sobre que quantia de 1.960.955,07, desde 20-07-2015 até integral reembolso das quantias indevidamente pagas.

Os juros indemnizatórios são calculados com base na taxa legal supletiva e pagos nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 35.º, n.º 10 da LGT, do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou outra ou outras que alterem a taxa legal).

 

 

5. Decisão

 

   De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em

 

a)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial das autoliquidações de IRC do grupo fiscal B…, referentes aos exercícios de 2012 e de 2013, no que respeita aos montantes de € 640.922,55 (2012) e € 1.320.032,52 (2013), respectivamente, num total de € 1.960.955,07, que resultaram da ilegal aplicação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC;

b)     Anular as autoliquidações referidas, nessas partes;

c)      Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do despacho de 28-05-2015, do Senhor Director de Finanças de …, que indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela Requerente relativamente àquelas autoliquidações;

d)     Anular o referido despacho de indeferimento;

e)       Julgar procedente o pedido de reembolso das quantias indevidamente pagas no montante total de € 1.960.955,07 e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuá-lo;

f)        Julgar parcialmente procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los calculados sobre a quantia de € 1.960.955,07, desde 20-07-2015 até integral reembolso das quantias indevidamente pagas, à taxa lega supletiva.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.960.955,07.

 

Lisboa, 17 de Dezembro de 2015

 

Os Árbitros

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

(Ricardo da Palma Borges)

 

 

(Ana Maria Rodrigues)

 

 



[2] Em rigor, tal seria incoerente, na medida em que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a) refere-se a “instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados”, e o artigo 24.º se refere, como se viu a “variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício”.

[3] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, página 186.

[4] KARL ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, página 120.

( [5] )ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, página 528:

«A omissão, como pura atitude negativa, não pode gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado; mas entende-se que a omis­são é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano».