Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 443/2017-T
Data da decisão: 2018-03-05  IRC  
Valor do pedido: € 65.387,19
Tema: IRC - Dedução de Custos – Artigo 23.º do Código do IRC.
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Processo n.º 388/2017 -T

DECISÃO ARBITRAL

 

 

  1. RELATÓRIO

 

  1. Em 25 de julho de 2017 a sociedade A…, LDA., contribuinte n.º…, com sede na Rua …, …, n.º…, …, …-… Vila Nova de Gaia (“Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral com intervenção do tribunal arbitral coletivo, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).

 

  1. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida”).

 

  1. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente solicitou ao tribunal arbitral a declaração de ilegalidade das liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.os 2013 … e 2013 …, relativas aos exercícios de 2011 e 2012, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios.

Em consequência, a Requerente peticionou a anulação parcial dos atos tributários (IRC e juros compensatórios) relativos ao exercício de 2011 e, bem assim, a anulação total dos atos tributários (IRC e juros compensatórios) relativos ao exercício de 2012, refutando as correções à matéria coletável de IRC (correções ao CMVMC), nos montantes de EUR 77.645,68 e EUR 107.579,20, resultantes da respetiva ação de inspeção tributária.

A Requerente peticionou também a anulação das decisões de indeferimento dos recursos hierárquicos por si interpostos, apresentados na sequência da prolação das decisões de indeferimento das reclamações graciosas relativas às liquidações acima identificadas.

As referidas correções assentaram na desconsideração com custo fiscal dos valores das faturas emitidas pela sociedade B…, LDA., pessoa coletiva n.º…, relativos à venda de pele para calçado à Requerente, por, na perspetiva da Entidade Requerida, não titularem operações reais.

Discorda a Requerente desta posição, defendendo que nos exercícios em referência adquiriu efetivamente peles para calçado à B…, LDA., sua fornecedora, sendo por isso dedutíveis para efeitos fiscais, na aceção do artigo 23.º do Código do IRC, os custos em que incorreu com tais aquisições.

Mais refere que os indícios recolhidos pela Entidade Requerida respeitam apenas à atividade da sociedade B…, LDA. e de empresas associadas, sendo que todos os indícios recolhidos junto da Requerente apontam para a veracidade e regularidade das operações refletidas nas faturas desconsideradas como custo.

Na perspetiva da Requerente, a Requerida na recolha dos indícios (alegadamente, fortes e suficientes) de que determinadas faturas não correspondem a transações reais não pode bastar-se com elementos indiciários recolhidos unicamente na atividade do alegado emitente das faturas e proceder a uma extrapolação desses indícios para fundamentar a desconsideração de todas as faturas desse emitente que constem dos registos contabilísticos do contribuinte alvo da inspeção. Para a Requerente, a partir do momento em que no relatório da inspeção tributária é reconhecido existirem indícios de que a sociedade B…, LDA. vendia algumas peles, os indícios de falsidade só poderão ser considerados fortes e suficientes se puderem ser corroborados por observações factuais efetuadas pela análise e inspeção da atividade da empresa-cliente, que invoca ter realizado transações reais e pugna pela consideração como verdadeiras das faturas emitidas pela entidade-suspeita. Deste modo, para a Requerente, a Requerida não logrou satisfazer o ónus probatório a que estava vinculada.

A Requerida sustenta a legalidade das liquidações impugnadas dado ter sido apurado no âmbito das ações de inspeção e inquérito efetuadas à sociedade B…, LDA. que esta, não sendo produtora de peles, também nunca adquiriu mercadorias, quer no mercado nacional, quer no mercado externo, pelo que não poderia promover a sua venda, nem as faturas por si emitidas podiam titular verdadeiras transações comerciais. Para a Requerida, a estrutura empresarial da sociedade B…, LDA., quer no que toca a instalações, quer a nível de funcionários, não era suscetível de comportar o exercício de uma atividade económica.

Invoca ainda a Requerida que os fluxos financeiros entre as entidades intervenientes nas transações realizadas pela sociedade B…, LDA. eram sempre efetuados em numerário, apesar das elevadas quantias que envolviam, o mesmo sucedendo na situação da Requerente – cheques levantados ao balcão.

Em suporte da não dedução como custo dos valores titulados pelas faturas emitidas pela sociedade B…, LDA. e que foram contabilizadas pela Requerente, a Requerida invoca a existência de incongruências e inconsistências na contabilidade da Requerente.

Para a Requerida, da conjugação dos artigos 342.°, n.º 1, do Código Civil, 74.º, n.º 1, e 75.º da Lei Geral Tributária resulta impender sobre a Administração Tributária o ónus da prova da verificação dos indícios ou pressupostos da tributação e ao contribuinte a demonstração da existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito. Tal significa que a presunção cessa quando a escrita ou contabilidade, embora organizada de acordo com a lei, enferme de erros, inexatidões, ou haja indícios fundados de que não reflete a matéria tributável efetiva, cabendo nesta previsão o caso de a contabilidade conter indícios de que aqueles gastos não se verificaram, por não titularem verdadeiras transações.

A Requerida entende não ser necessário efetuar prova direta da simulação ou da fraude, sendo suficiente um juízo de adequação entre os factos e valorações em que a Administração Tributária formalmente suporta a sua atuação e o resultado desse juízo no sentido de se lhe afigurar ter sido declarado indevidamente um custo para efeitos fiscais. Por outras palavras, cabendo à Administração Tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua atuação, compete-lhe, no caso de liquidação adicional de IRC, o ónus de provar que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação. Feita essa prova, compete à Requerente o ónus da prova dos factos que alega como fundamento do seu direito à dedução dos custos na aceção do artigo 23.º do Código do IRC.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite a 25 de julho de 2017 pelo Presidente do CAAD, tendo em seguida sido promovida a notificação da Requerida.

 

  1. Subsequentemente, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os Signatários foram designados pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente tribunal arbitral coletivo, tendo as respetivas nomeações sido aceites nos termos legalmente previstos.

 

  1. A 12 de setembro de 2017, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O tribunal arbitral foi constituído a 27 de setembro de 2017, em conformidade com o artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

  1. Em 27 de outubro de 2017, a Requerida apresentou a sua resposta, tendo anteriormente junto o processo administrativo.

 

  1. A 11 de dezembro de 2017 teve lugar a reunião do artigo 18.º do RJAT e a inquirição de testemunhas, tendo igualmente sido apresentadas alegações orais pelas partes.

 

  1. SANEAMENTO

O tribunal arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

Não se verificam nulidades, nem foram invocadas exceções, pelo que não há obstáculos à apreciação do mérito da causa, impondo-se decidir.

 

  1. OBJETO DA PRONÚNCIA ARBITRAL

O thema decidendum objeto de pronúncia arbitral consiste em apurar se as operações de venda de peles para calçado refletidas nas faturas emitidas pela sociedade B…, LDA., contabilizadas pela Requerente e cujos montante contribuíram, negativamente, para o cômputo do seu lucro tributável em IRC, correspondem a transações comerciais verdadeiras e, por conseguinte, se os respetivos valores assumem a natureza de custo dedutível para efeitos fiscais na esfera da Requerente, na aceção do artigo 23.º do Código do IRC.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes fatos:

  1. A Requerente é um sujeito passivo que se dedica à atividade de fabrico de calçado (CAE 015201), estando enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável em sede de IRC (cfr. páginas 1 e 2 do relatório da inspeção tributária);

 

b. Por referência aos exercícios de 2011 e 2012, a contabilidade da Requerente reflete as faturas que infra se discriminam, respeitantes a fornecimentos de pele para calçado atribuídos à sociedade B…, LDA.:

  • Exercício de 2011
  1. Fatura n.º 2011212, de 1 de julho de 2011, no montante de EUR 14.743,54;
  2. Fatura n.º 2011257, de 1 de agosto de 2011, no montante de EUR 12.662,23;
  3. Fatura n.º 2011287, de 2 de setembro de 2011, no montante de EUR 12.418,39;
  4. Fatura n.º 2011358, de 14 de outubro de 2011, no montante de EUR 12.534,42;
  5. Fatura n.º 2011427, de 23 de novembro de 2011, no montante de EUR 12.469,32;
  6. Fatura n.º 2011483, de 21 de dezembro de 2011, no montante de EUR 12.817,78.

Total: EUR 77.645,68

 

  • Exercício de 2012
  1. Fatura n.º 2012010, de 11 de janeiro de 2012, no montante de EUR 12.387,55;
  2. Fatura n.º 2012060, de 14 de fevereiro de 2012, no montante de EUR 7.797,76;
  3. Fatura n.º 2012079, de 24 de fevereiro de 2012, no montante de EUR 11.611,82;
  4. Fatura n.º 2012103, de 13 de março de 2012, no montante de EUR 17.992,86;
  5. Fatura n.º 2012120, de 26 de março de 2012, no montante de EUR 11.371,77;
  6. Fatura n.º 2012132, de 3 de abril de 2012, no montante de EUR 14.578,97;
  7. Fatura n.º 2012173, de 8 de maio de 2012, no montante de EUR 7.288,81;
  8. Fatura n.º 2012209, de 6 de junho de 2012, no montante de EUR 4.541,88;
  9. Fatura n.º 2012267, de 17 de julho de 2012, no montante de EUR 11.749,04;
  10. Fatura n.º 2012286, de 30 de julho de 2012, no montante de EUR 8.258,74;

Total: 107.579,20 (cfr. páginas 7 e 93 do relatório da inspeção tributária);

 

  1. A fatura n.º 2011483, de 21 de dezembro de 2011, no montante de 12.817,78, refere expressamente ter a respetiva mercadoria sido entregue nas instalações da Requerente no dia 21 de dezembro de 2011, pelas 10.00, mediante transporte através da viatura …-…-… (cfr. página 93 do relatório da inspeção tributária e artigo 86.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. A referida fatura foi registada na contabilidade da Requerente no mês de dezembro de 2011 e a mercadoria registada em existências em janeiro de 2012 (cfr. página 93 do relatório da inspeção tributária e artigo 86.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. As instalações da Requerente estiveram encerradas para férias entre 19 e 31 de dezembro de 2011 (cfr. documento n.º 2 junto à reclamação graciosa);

 

  1. As fichas de armazém da Requerente que documentam a entrada das peles em armazém e a respetiva saída são de preenchimento manual (cfr. documento n.º 7 junto à reclamação graciosa; documentos n.os 1 a 3 juntos ao pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Por referência às faturas da sociedade B…, LDA., a Requerente apenas tem em seu poder as fichas de armazém relativas à anilina preta e castanha (cfr. página 94 do relatório da inspeção tributária e artigos 122.º a 124.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. A ficha de armazém que reflete a entrada e a posterior saída de 5.121,25 pés de pele para a C… não atesta a realidade, uma vez que tais pés de pele não saíram do armazém da Requerente com destino à C… (cfr. artigos 130.º a 133.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. A ficha de armazém que regista a entrada de 4.180,00 pés de pele dissente da respetiva factura – fatura n.º 2012060, de 14 de fevereiro de 2012, no montante de EUR 7.797,76 –, a qual faz menção a 4.516,25 pés de pele (cfr. artigo 157.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Por referência ao ano de 2011, a Requerente não tem em seu poder quaisquer guias de transporte (cfr. página 95 do relatório da inspeção tributária e artigo 165.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Em 2011, a Requerente adquiriu 176.150 pés de pele preta (cfr. documento n.º 12 junto à reclamação graciosa);

 

  1. Em 2012, a Requerente adquiriu 186.799 pés de pele preta (cfr. documento n.º 3 junto à reclamação graciosa);

 

  1. Entre agosto e dezembro de 2012, as aquisições de pele preta pela Requerente ascenderam a 41.676 pés (cfr. documento n.º 3 junto à reclamação graciosa);

 

  1. Entre agosto e dezembro de 2012, a Requerente emitiu faturas referentes a cerca de 16.028 pares de sapatos de pele preta (cfr. documento n.º 4 junto à reclamação graciosa);

 

  1. No ano de 2012, a Requerente vendeu 3.503 pares de sapatos de pele preta, correspondentes a 17.089,72 pés, fabricados pelas empresas D…, E… e C… (cfr. documentos n.os 8, 9 e 10 juntos à reclamação graciosa);

 

  1. No ano de 2011, foram produzidos e vendidos pela Requerente 2.413 pares de sapatos de pele castanha (cfr. documento n.º 11 junto à reclamação graciosa);

 

  1. Entre agosto e dezembro de 2012, a Requerente adquiriu 10.271 pés de pele castanha (cfr. documento n.º 5 junto à reclamação graciosa);

 

  1. Entre agosto e dezembro de 2012, a Requerente emitiu faturas referentes a 1.533 pares de sapatos de pele castanha (cfr. documento n.º 6 junto à reclamação graciosa);

 

  1. Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2012…, de 8 de outubro de 2012, a Requerente foi alvo de ação de inspeção tributária aos exercícios de 2011 e 2012, em matéria de IRC e Imposto sobre o Valor Acrescentado (cfr. páginas 1 e 2 do relatório da inspeção tributária e artigo 86.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Esta ação de inspeção teve lugar na sequência de uma outra ação de inspeção levada a cabo contra a sociedade B…, LDA., pessoa coletiva n.º…, empresa fornecedora de peles para calçado, na qual a Requerida entendeu existirem fortes indícios de que as faturas emitidas por esta sociedade não corresponderiam a operações económicas reais (cfr. página 2 do relatório da inspeção tributária);

 

  1. Do relatório da inspeção tributária resultam as seguintes conclusões sobre a atividade da sociedade B…, LDA.:

«Da observação efetuada às instalações utilizadas pela B…, Lda., e posteriormente pela F…, Lda., não se constatou a movimentação que empresas que supostamente vendem mais de onze milhões de euros de mercadoria pressuporia, como sejam entrada e saída de clientes, fornecedores e viaturas, presença assídua de gerentes e empregados. Pelo contrário, a porta e portões das instalações da B…, Lda. e F…, Lda. estão permanentemente fechados e no seu interior encontra-se uma funcionária, e mesmo esta com carácter pouco frequente.

As ações inspetivas levadas a cabo aos três fornecedores da B…, Lda. concluiu que não tinham capacidade para o comércio de pele, ou seja, as faturas emitidas por estas entidades e contabilizadas pela B…, Lda., como sendo dos seus fornecedores, eram farsas, ou seja, a B…, Lda., não suporta a aquisição de um único pé de pele através da uma única fatura verdadeira, isto é, todas as faturas representativas de aquisições são encenadas, são falsas.

Concluiu-se igualmente que a B…, Lda. nunca adquiriu pele a quem quer que seja, nem a empresas insolventes nem a empresas estrangeiras, nem em Portugal, Espanha, Itália ou Tunísia, pois não identifica um único fornecedor verdadeiro, quaisquer instalações/armazéns ou local de carregamento de pele, contactos, correspondência, pagamentos credíveis, o quer que seja, que demonstre a efetiva aquisição de pele e que a dimensão do negócio o faz admitir.

Quanto aos funcionários que constam na folha de ordenados da empresa, concluiu-se que somente G… é presença assídua nas suas instalações, sendo que os restantes nunca ali terão exercido qualquer função, serviam para fingir que a empresa dispunha de muitos trabalhadores.

Quanto as vendas da B…, Lda. e da F…, Lda., apurou-se que:

  • Emitiram faturas onde mencionavam carregamentos em dias que os técnicos da Autoridade Tributária estavam presentes e constataram a inexistência dos mesmos carregamentos;
  • Durante cerca de sete meses a B…, Lda. terá movimentado mais um milhão de pés de pele, no valor de 1,7 milhões de euros, a partir de uma casa particular de uma pessoa que nenhuma relação tem com a empresa;
  • A B…, Lda. refere como meio de transporte das peles, entre o seu armazém e as instalações dos seus clientes, uma viatura que não circulou sequer um sétimo do que teria de fazer para cobrir os quilómetros necessários para tantos pés de pele entregues e os que circulou não o fez ao serviço da B…, Lda.;
  • Por outro lado, essa mesma viatura é mencionada nas faturas de venda da F…, Lda., tendo-se constado que praticamente não tinha circulado no período em que as faturas alegam ter sido utilizada como meio de transporte de pele;
  • Emitiram faturas em dias em que H… estava ausente no estrangeiro, ou seja, quando não disporiam de ninguém para manusear e transportar as supostas peles para os clientes;
  • Quanto aos pagamentos dos clientes, verifica-se os cheques destes são, na sua maioria, levantados ao balcão ou, quando depositados ou aqueles pagamentos efetuados por transferência bancária, são de imediato levantados da conta, perdendo-se o rasto ao dinheiro;
  • Em suma, estando na presença de uma empresa em cujas instalações não se regista qualquer atividade de comércio de pele, que não dispunha de funcionários para manuseamento e transporte de pele, que nunca adquiriu um único pé de pele para venda e que nunca vendeu um só pé de pele, ter-se-á que concluir que foi montada toda uma encenação para ludibriar, para enganar, para defraudar, para enriquecer ilicitamente. No fundo a empresa não passa de um embuste, de uma farsa» (cfr. páginas 16 e 17 do relatório da inspeção tributária);

 

  1. Paralelamente, do mesmo relatório resultam as seguintes conclusões sobre a atividade da Requerente:

«Não consta em inventário final de 2011 qualquer matéria-prima da descrita nas faturas B…, apesar da fatura n.º 2011483 ser datada de 21.12.2011 e, de acordo com os elementos constantes da mesma, o local de carga foi nas instalações do fornecedor e o local de descarga na morada do cliente pelas 10.00h do dia 21.12.2011 e o transporte através da viatura …-…-… (a matéria-prima referida nessa fatura encontra-se com registo de entrada em existências em janeiro de 2012, apesar de em termos contabilísticos o seu custo ter sido registado na contabilidade em dezembro de 2011 […].)

No inventário final de 2012, os pés de peles em existências que se encontram referidos como tendo sido adquiridos à B…, Lda. não têm qualquer expressão no mesmo, o qual se cifra em cerca de 2 milhões de euros (trata-se da indicação de 116 pés de anilina castanha e 292,75 pés de anilina preta num valor total de €715,31).

Foram solicitadas cópia, frente e verso, autenticada pela instituição bancária, de alguns dos meios de pagamento utilizados nessas transações. Os cheques utilizados apresentam no verso os elementos identificativos (tal como já se esperava) da B…, Lda.

Não deixa de ser estranho, a propósito da fatura n.º 2012302, datada de 21.08.2012, no valor de € 17.996,14, emitida pela “B…” com as indicações de local de carga: n/ instalações, local de descarga: morada do cliente, na data de 21.08.2012 e a matrícula da viatura indicada …-…-… (inicialmente registada pela empresa com o n.º … em 31.08.2012 e posteriormente desconsiderada da contabilidade e que relativamente à qual o sócio-gerente afirmou ter consumido na produção a pele nela indicada), a troca de correspondência entre a “B…” e a “A…, Lda., nomeadamente o ofício de 17 de setembro de 2012 […]. Não se compreende, então, que documento acompanhou a matéria-prima […].

Para um controlo mais próximo das existências, ao nível das matérias-primas, e conforme nos informaram, para que não surjam falhas para a produção, são elaboradas manualmente fichas de armazém com registos de entradas e saídas das peles, apesar de a empresa possuir um sistema informático com capacidade para essa gestão […].

Para as faturas da B…, Lda., e à data da visita, foi-nos referido que apenas existem, a esta data, as fichas manuais relativas a Anilina Castanha e Anilina Preta, tendo as restantes já sido eliminadas por já não conterem saldo […].

Solicitada a ficha de armazém relativa à pele de Anilina Preta (matéria-prima mais significativa em termos dessas aquisições, representando 52% da pele B…), foi-nos apresentada a ficha de armazém Pele Anilina Preta B… e para a qual temos a referir o seguinte:

  • Em 25/11/2011 está indicada a saída para a C… de 5000 pés da pele Anilina Preta B…, quando a conta corrente deste fornecedor subcontratado, a quem é debitada a matéria-prima para fornecimento do produto acabado, C…, Lda., (com sede no Distrito de Braga) não tem qualquer movimento contabilístico em 2011.
  • A fatura n.º Ml/12/001, da matéria-prima debitada à C… (única fatura para esta entidade, desde janeiro de 2011 a dezembro de 2012) para confecionar sapatos só tem data de 25.02.2012, sendo que o tipo de matéria-prima debitada a esse subcontratado não corresponde à da ficha de armazém apresentada (Pele Anilina Preta B…), pois indica qualidade de pele, e cores diferentes, da que pretendem justificar saídas.
  • A Nota de Crédito n.º MI/…/… de 05.04.2012, emitida pela A… Lda. à C…, relativa à devolução dos excedentes da pele, do produto acabado subcontratado, não refere a devolução de qualquer pé de pele anilina preta.
  • A fatura da B… com o n.º 2011483 datada de 21.12.2011, relativa a 3.122,50 pés de pele Anilina Camel e 4.213, 50 pés de pele Anilina Preta, está lançada na contabilidade em dezembro de 2011 na subconta de Compras, 3121113- Compras de mat. primas, T.nac ded, tx normal. De acordo com a ficha de armazém Anilina Preta B… apresentada, o valor dessa matéria-prima não foi tido em conta no inventário final das existências de 2011, uma vez que a mesma traduz existência nula, para essa referência de pele e, tendo em conta que, o inventário final de matérias-primas é elaborado com base na informação dessas fichas manuais. Ou seja, a matéria-prima não foi debitada à C… em 2011, tão pouco consta do Inventário.
  • Na ficha de matéria-prima manual analisada, essa pele só tem entrada, em armazém, em janeiro de 2012.
  • Em 18/01/2012 é indicado como entregue à D…, Lda., de …, outro fornecedor subcontratado, a quantidade de 9.300,00 pés de pele Anilina Preta B… . No entanto, as faturas n.os MI/12/003 e Ml/12/005, em 25.02.2012 e 24.03.2012, respetivamente, a debitar a matéria-prima, refere camurças quase na totalidade (diferente de anilina), e outra pele também diferente de anilina, em reduzidas quantidades, bem como referentes a cores variadas. As faturas atrás referidas traduzem as únicas transações registadas na contabilidade com este cliente da matéria-prima.
  • A confirmar que o tipo de pele que foi enviada para este confecionador de calçado não foi anilina preta, está a sua Nota de devolução n.º 2012… em 10.04.2012, a que corresponde a Nota de Crédito Ml/…/… emitida pela A…, Lda., (devolvendo variadas cores e pele de tipo bem diferente de anilina), em que não é referida a devolução de qualquer pé de pele anilina preta.
  • A ficha manual regista a entrada da quantidade de 4.180,00 pés relativos à fatura 2012060 quando a mesma fatura refere 4.516,25 pés de pele (a ficha informatizada correspondente regista exatamente a quantidade indicada nessa fatura).

Solicitadas as guias de transporte relativas ao ano de 2011, informaram-nos que as mesmas já foram destruídas, pelo que não existe a possibilidade de comprovar outras situações além das que se encontram subjacentes aos documentos emitidos pela empresa e que integram a sua contabilidade, nomeadamente as que se encontram registadas na ficha de armazém apresentada.

A ficha de armazém relativa à Anilina Castanha B… traduz que a mesma foi consumida internamente pela A… e, parte, entregue em 30.11.2011 ao confecionador I…, Lda. As ordens de produção interna da empresa, de acordo com a informação de responsável dessa área de trabalho, já não existem, uma vez que, depois dos sapatos entregues aos clientes, as eliminam […]. A empresa subcontratada I…, Lda. trabalha a feitio, debitando apenas o trabalho executado de confeção do sapato, pelo que não faz qualquer discriminação de cores dos sapatos, nem qualquer referência à matéria-prima trabalhada. Deste modo, pouco mais é possível analisar desta ficha manual relativa ao registo da anilina castanha com proveniência nas faturas da B…, Lda. (de assinalar a inexistência de qualquer outra ficha de armazém manual para peles adquiridas à B…, Lda.) […].

Solicitada a ficha informatizada do artigo M0… que corresponde à pele Cow preta, onde foram registadas as entradas relativas às faturas da B… bem como as restantes entradas de pele cow preta e asa respetivas saídas para produção interna e externa, temos a referir o seguinte após a análise da mesma:

  1. Nessa ficha M… as ordens de produção ao longo do ano 2011 indicam um consumo de 26.927,05 pés de pele. As compras a fornecedores, vários, são de 15.446,66 pés de pele e a existência no início do ano, desta pele, era de 21.075,63. Ora, estas quantidades eram suficientes para a produção, sendo desnecessárias as quantidades indicadas nas faturas da B… registadas na ficha em 2011 (faturas n.os 2011257 e 2011427, num total de 12.254,50 pés de anilina preta).
  2. No ano 2012, as compras a fornecedores, vários, são de 46.426,77 pés de cow preta e as ordens de produção indicam um consumo de 34.056,78, pelo que aquelas compras estão adequadas às mesmas. Ressalta assim que a quantidade de 50.757,00 pés de cow preta registada relativa às faturas da B… é totalmente dispensável à produção contabilizada (a empresa registou neste ano de 2012 a quantidade de 50.757,00 pés de pele cow preta, incluindo-se na mesma 8.153,25 da fatura n.º 2012302, de agosto de 2012, que a A…, Lda. acabou por não registar na contabilidade).
  3. No ano de 2012, verifica-se a indicação das seguintes saídas como doc. 1: em abril, 10.400,25; em maio, 12.401,00, e em setembro, 16.975,25. Estes movimentos negativos na ficha M0153701 não correspondem a documentos relativos a ordens de produção e de acordo com a pessoa que procede a esta função administrativa correspondem a acertos de stock, pretendendo adequar o que se encontra na ficha informatizada com a existência real no armazém. Ora, é visível uma semelhança de quantidades entre as regularizações acima referidas e as faturas da B… […].
  4. Esta situação de regularização está bem patente na ficha informatizada M… referente a pele Jamaica Gold, ano 2012 […].
  5. Também na ficha informatizada M… – Desert Expresso registam a entrada de 457 pés de pele em 30.07.2012, doc. 404, e de 2.563,75 da fatura n.º 2012286 de 30.07.2012 da B…, doc. 405. As ordens de produção registadas indicam um consumo de 295,92 e o saldo de existências indicado de 2.724,83 evidenciam que era perfeitamente dispensável a quantidade da fatura B… .

Conclusão: tendo em conta a análise dos elementos disponíveis na A…, Lda. não nos foi possível comprovar a utilização na produção das matérias-primas que são indicadas nas faturas emitidas pela B…, Lda. Pelo contrário, os elementos analisados permitem concluir que aquelas matérias-primas não eram necessárias à produção» (cfr. páginas 93 a 97 do relatório da inspeção tributária));

  1. Por entenderem que as faturas elencadas no ponto b. supra «têm subjacente “operações simuladas”», os Serviços da Inspeção Tributária desconsideram os valores nelas refletidos, nos montantes de EUR 77.645,68 e EUR 107.579,20, como custos dedutíveis para efeitos fiscais na aceção do artigo 23.º do Código do IRC, tendo, em conformidade, corrigido a matéria coletável de IRC da Requerente dos exercícios de 2011 e 2012 (cfr. página 99 do relatório da inspeção tributária);

 

  1. Mediante solicitação dos Serviços de Inspeção Tributária, a Requerente disponibilizou cópias de cheques, titulando pagamentos, em cujos versos constavam os elementos identificativos da sociedade B…, LDA. (cfr. página 94 do relatório da inspeção tributária e artigo 112.º do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Na sequência da ação de inspeção, a Requerente foi notificada das liquidações adicionais de IRC n.os 2013…, de 17 de dezembro de 2013, relativa ao exercício de 2011, no montante de EUR 36.288,35, e 2013…, de 17 de dezembro de 2013, no montante de EUR 29.098,94, relativa ao exercício de 2012, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios (cfr. documento n.º 1 junto à reclamação graciosa);

 

  1. A Requerente apresentou reclamações graciosas e interpôs recursos hierárquicos em que contestou a legalidade das liquidações adicionais de imposto e juros compensatórios impugnadas e, por via disso, das correções à matéria coletável de IRC (correções ao CMVMC), nos montantes de EUR 77.645,68 e EUR 107.579,20, resultantes da ação de inspeção tributária (cfr. processo administrativo);

 

  1. Quer as reclamações graciosas quer os recursos hierárquicos foram indeferidos, tendo a Administração Tributária aderido aos fundamentos constantes do relatório final da inspeção tributária (cfr. processo administrativo);

 

  1. A 25 de julho de 2017, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral destinada à anulação dos atos tributários supra e, bem assim, das decisões de indeferimento das reclamações graciosas e dos recursos hierárquicos, com fundamento em erro de qualificação do fato tributário e violação de lei por erro nos pressupostos de fato e de direito.

 

  1. Factos não provados

Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes do pedido de pronúncia arbitral e da resposta, todos objetos de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra elencada.

 

C) Fundamentação da decisão da matéria de facto

Os factos foram dados como provados com base no relatório da inspeção tributária, nos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, nos documentos que constam do processo administrativo e nos depoimentos das testemunhas inquiridas. A este propósito, é de notar que as testemunhas indicadas pela Requerente demonstraram terem apenas conhecimento parcial dos factos, pelo que não lograram estabelecer correspondência entre registos no armazém e registos contabilísticos, sendo aqueles exclusivamente controlados pelo sócio gerente da Requerente.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

Vem colocada a este tribunal arbitral a apreciação da legalidade das liquidações de IRC do exercício de 2011 e do exercício de 2012, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios, as quais se relacionam diretamente com a dedução, em sede de IRC, dos custos suportados nas aquisições de peles para calçado pela Requerente, durante os exercícios de 2011 e 2012, à B…, LDA (cfr. faturas referidas em b) dos Fatos Provados).

Como acima referido, o thema decidendum objeto de pronúncia arbitral consiste em apurar se as operações de venda de peles para calçado refletidas nas faturas emitidas pela sociedade B…, LDA., contabilizadas pela Requerente e cujos montante contribuíram, negativamente, para o cômputo do seu lucro tributável em IRC, correspondem a transações comerciais verdadeiras e, por conseguinte, se os respetivos valores assumem a natureza de custo dedutível para efeitos fiscais na esfera da Requerente, na aceção do artigo 23.º do Código do IRC.

A Requerida entende que as faturas contabilizadas pela Requerente, nos exercícios em causa – 2011 e 2012 – não consubstanciam transações reais, ou seja, consubstanciam operações simuladas, pelo que, não aceita o custo em sede de IRC. Discorda a Requerente desta posição, defendendo que nos exercícios em referência adquiriu efetivamente peles para calçado à sociedade B…, LDA., sua fornecedora, sendo por isso dedutíveis para efeitos fiscais, na aceção do artigo 23.º do Código do IRC, os custos em que incorreu com tais aquisições. Mais refere que os indícios recolhidos pela Entidade Requerida respeitam apenas à atividade da sociedade B…, LDA. e de empresas associadas, sendo que todos os indícios recolhidos junto da Requerente apontam para a veracidade e regularidade das operações refletidas nas faturas desconsideradas como custo.

O direito à dedução dos gastos e perdas em sede de IRC, consagrado no artigo 23.º do Código do IRC (CIRC), é um pilar na determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos. É isso mesmo que estipula o n.º 1 do referido artigo 23.º do CIRC, quando diz que são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (na redação anterior: consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente [...]). Ou seja, o referido artigo 23.º do CIRC, coloca o direito à dedução quando os gastos e perdas são efetivamente incorridas ou suportadas pelo sujeito passivo e sejam documentalmente comprovadas.

Tal direito à dedução em sede de IRC deve ser conjugado com a presunção legal de que as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei são verdadeiras e de boa-fé. Assim, devemos ter em conta, para além do já referido artigo 23.º do CIRC, o n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT). Neste artigo da LGT lê-se: presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estes estiverem organizados de acordo com a legislação comercial e fiscal.

Como referem Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade in Contencioso Tributário, 2017, Almedina, estabelece-se, assim, uma presunção de veracidade das declarações do contribuinte apresentadas nos termos da lei, bem como dos dados que constarem da sua contabilidade e escrita, se estiverem de acordo com a legislação comercial e fiscal. Elisabete Louro Martins considera que esta presunção legal de verdade e boa-fé constitui um corolário do principio da participação do sujeito passivo na determinação do rendimento tributável [...].

A citada Autora Elisabete Louro Martins, prevê como consequências desta presunção a dispensa do sujeito passivo do ónus da prova de que as informações declaradas e comprovadas nos documentos de suporte, referentes à qualificação e quantificação dos factos tributários, correspondem à realidade, ou seja, designadamente em sede de IRS e IRC, que o rendimento declarado corresponde ao rendimento real efetivamente obtido. Ao sujeito passivo bastará então, apresentar as declarações, a contabilidade ou a escrita, demonstrar que cumpriu o dever de colaboração e que a sua documentação está completa o organizada nos termos da lei.

Nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (LGT), o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Ou seja, à administração tributária e ao contribuinte recai o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito, partindo, sempre, de que se presumem verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estes estiverem organizados de acordo com a legislação comercial e fiscal.

A este propósito, importa referir, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), proferido em 16 de Novembro de 2016, no processo n.º 0600/15, II - Para que a AT proceda à correção do lucro tributável por desconsideração dos custos suportados por faturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efetivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratório, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240.º do CC) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende. III - Basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito de deduzir os custos ao lucro tributável) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efetivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução. No mesmo sentido, Acórdão do STA, proferido em 19 de Outubro de 2016, no processo n.º 0511/15, Acórdão do STA, proferido em 16 de Março de 2016, no processo n.º 0400/15.

É necessário, por isso, determinar se, no caso sub judice, a Requerida demonstrou e provou a factualidade que a levou a não considerar as faturas, ou seja, cumpre determinar se alegou e provou fatos que abalaram a presunção de veracidade das operações constantes da escrita da Requerida e dos respectivos documentos de suporte.

O que importa  é saber se a Requerida alegou e provou fatos que abalem a presunção de veracidade das operações entre a Requerente e o seu fornecedor, no caso, B…, LDA., não estando, por isso, em causa, as operações dos fornecedores da Requerente com outras entidades.

As liquidações IRC do exercício de 2011 e do exercício de 2012, objeto da presente pronúncia arbitral fundamentam-se, essencialmente, em fatos apurados no âmbito de uma inspeção, efetuada à sociedade B…, LDA.. A Requerida transportou para o relatório de inspeção à Requerente os fundamentos e conclusões da referida inspeção à B…, LDA. para fundamentar o seu direito à liquidação em relação à Requerente.

Como a própria Requerida refere na sua resposta (cfr. artigo 6.º da resposta), esta ação inspetiva decorreu na sequência de outra ação inspetiva a um fornecedor de peles para calçado B… Unipessoal, Lda.. Nesta, foram encontrados fortes indícios de faturação falsa da atividade alegadamente desenvolvida, uma vez que se concluiu que não havia operações económicas efetivas e que se tratava apenas de movimentação contabilística, para aproveitamento de dedução de IVA, fundamentalmente. Mais refere a Requerida (cfr. artigo 16.º da resposta), comprovou-se, no âmbito da ação de inspeção à empresa B… que a A…, LDA., não poderia ter comprado pelas à B… porque esta não exerce, nem nunca exerceu qualquer atividade de comércio de pele, porque não comprou um único pé de pele, pelo que também não estaria em condições de vender pelo.

Nos termos do n.º 1 do artigo 76.º da LGT, as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei. O n.º 2 do artigo 115.º do CPPT completa dizendo que as informações oficiais só têm força probatória quando devidamente fundamentadas, de acordo com critérios objetivos.

A este propósito importa referir o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), proferido em 17 de Abril de 2002, no processo n.º 026635, que, apesar de versar sobre IVA, interessa destacar parte da sua fundamentação, quando a mesmo refere que não importa só que a administração se diga convencida, mas também que diga porque é que se deixou convencer e que este resultado possa ser objetivamente apreciado e controlado pelo tribunal à luz dos critérios adequados. E sendo assim, para emitir o seu juízo sobre se se deve ter por materialmente fundamentada a consideração da administração, o tribunal não se pode ater apenas à existência de uma fundamentação formal e aos elementos nela externados, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido, mas terá formar o seu próprio seu juízo probatório sobre a correspondência à realidade fático-jurídica dos elementos em que a administração disse apoiar a sua consideração e aferir, então, sobre eles se esta deve ter-se por correta. À administração caberá, assim, o ónus de provar, também em tribunal, os pressupostos de facto suficientes, dentre os afirmados na fundamentação do ato, para que o tribunal possa ajuizar sobre se o juízo administrativo se deve ter por, objetiva e materialmente, fundamentado. Nesta perspectiva, o tribunal a quo não poderia entrar em conta com os factos invocados pela administração em fundamentação do ato, como sejam as vicissitudes da escrita e da atividade do emitente das faturas cujo imposto se deduziu que ele não deu como provadas.

No relatório de inspeção à Requerente está espelhado o caminho de raciocínio e valoração seguido pela Requerida e as diligências que esta efetuou (cfr. ponto t), u) e v) dos Factos Provados). Ou seja, a Requerida utilizou o relatório da inspecção à B… para, através de uma transcrição de fundamentos e conclusões, sem documentação e prova adicional relevantes, extrair factos para suporte da conclusão segundo a qual as operações entre a Requerente e aquela empresa foram ficcionadas.

Face ao conjunto da prova produzida, a convicção do tribunal é, pelo contrário, no sentido de que a Requerente fez aquisições de peles à B…, LDA., não havendo motivo para negar a coincidência entre tais aquisições e as tituladas pelas faturas de que dispõe na sua contabilidade. O tribunal convenceu-se, também, de que os consumos da Requerente no fabrico de calçado, quer por si quer através de outrem a quem contratou esse fabrico, excedem as quantidades constantes das ditas faturas.

É certo, por outro lado, que sobraram ao tribunal algumas dúvidas não dissipadas sobre datas de entrega das matérias-primas faturadas, seu transporte, entradas e saídas de amazem, etc., mas tais dúvidas resultam (como patenteou a prova testemunhal) de um deficiente controlo dos movimentos de armazem e conjugação com a faturação, de alguma displicência no preenchimento e conferência de documentos, ou, até, na ausência deles (documentos de transporte). Porém, se tudo isso revela uma má organização da Requerente, com reflexos no controle de entradas e saídas de matérias-primas e de produtos acabados, não põe em causa o que aqui releva: as aquisições efetuadas pela Requerente à B…, LDA, que a Requerida considerou inexistentes, mas que constam de faturas e que este tribunal entende corresponderem à realidade.

Na verdade, a Requerida não fez prova de factos capazes de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita da Requerente e dos respectivos documentos de suporte.

Pelos documentos juntos em com a Reclamação Graciosa e Recurso Hierárquico, i.e., documentos apresentados em sede graciosa e que integram o processo administrativo, e pelos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e, ainda pela prova testemunhal apresentada, a Requerente demonstrou a veracidade das operações entre ela e o seu fornecedor empresa B…, LDA..

 

  1. DECISÃO

 

Termos em que se julga procedente o pedido da Requerente, anulando-se os atos de liquidação de IRC e juros compensatórios  impugnados, bem como as decisões que  indeferiram as respetivas reclamações graciosas e recursos hierárquicos.

Fixa-se o valor do processo em € 65.387,19, nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

Custas, no montante de € 2.448,00, nos termos da Tabela I Anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, dado que o pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto no artigo 22º nº 4 do RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 5 de março de 2018

 

Os árbitros

 

(José Baeta de Queiroz)

 

 

(Jaime Carvalho Esteves)

 

 

(Alexandre Andrade)