Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 562/2014-T
Data da decisão: 2015-03-16  Selo  
Valor do pedido: € 131.971,70
Tema: IS - Verba 28.1 da TGIS; Terreno para construção
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Decisão Arbitral

 

 

1. Relatório

 

            A... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, NIPC …, legalmente representado pela B... – …, Sociedade Gestora de Fundo de Investimento Imobiliário, S.A., com sede na Rua …, Lisboa, pessoa colectiva nº..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do correspondente Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, para apreciação da legalidade da liquidação de Imposto do Selo, verba 28.1 da TGIS, com nº 2014..., no montante de € 131.971,70, referente ao ano de 2013, com data limite de pagamento (da primeira prestação) em 30/04/2014 e relativa a um prédio urbano inscrito na correspondente matriz predial sob o art. ..., sito no Concelho de ..., freguesia da União de ... .

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 29-07-2014, aceite pelo Senhor Presidente do CAAD a 30 desse mesmo mês e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira no dia um do subsequente mês de Agosto.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Prof. Doutor Miguel Patrício e Dr. Jaime Carvalho Esteves para formarem o Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 01-10-2014.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta.

 

Por despacho de 10 de Fevereiro do ano em curso foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como as alegações das partes.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Objecto do litígio

 

A questão dos autos corresponde à aplicação da nova tributação em Imposto do Selo (IS) incidente sobre prédios urbanos com afectação habitacional e VPT igual ou superior a um milhão de euros, introduzida em 2012 para reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de emergência financeira.

 

Como é bem sabido, esta tributação tem suscitado fortes dúvidas e elevada contestação. Isto não apenas para casos pontuais da sua aplicação (e.g., propriedade vertical, terrenos para construção ou sua aplicação ao ano de 2012), como também em termos gerais, pela sua eventual inconstitucionalidade (ver Luís Menezes Leitão, Sobre a Tributação em Imposto de Selo dos Imóveis de Luxo (verba 28.1 TGIS), in Arbitragem Tributária nº1, pág.s 44 e ss).

 

Ora, a Requerente vem, precisamente, contestar a aplicação da dita tributação decorrente da aplicação a nova verba 28.1 da TGIS aos prédios urbanos correspondentes a terrenos para construção, pedindo a anulação do dito acto de liquidação do Imposto do Selo.

 

A liquidação foi efectuada ao abrigo do disposto da verba 28.1 da Tabela anexa ao Código do Imposto do Selo, sendo que a Requerente entende não se verificarem os pressupostos legais exigidos para aplicação do tributo previsto na citada verba, relativamente ao prédio em causa.

A Requerente defende, em suma, que o prédio é um terreno para construção, não estando por isso abrangido pela verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, vigente em 2013, que estabelece «Por prédio com afectação habitacional – 1 %».

 

Mais detalhadamente, a Requerente entende que a aplicabilidade da verba em causa exige, de entre outros requisitos, que o imóvel em causa tenha “afectação habitacional”, o que entende não se verificar na factualidade em causa. Com efeito, considera que dos n.º 1 e 2 do art. 6.º do CIMI (ex vi do art. 67.º, n.º 2, do CIS) decorre que os terrenos para construção, como o prédio em causa nos autos, “são uma espécie de prédios urbanos distinta dos prédios habitacionais”. Acrescenta ainda que a expressão “afectação habitacional” é utilizada no art. 41.º do CIMI para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário de prédios edificados, por entender não haver nos terrenos para construção uma afectação para habitação, comércio ou serviços, sem prejuízo da possibilidade aberta pelo art. 45.º do CIMI de, eventualmente, incluir a utilização futura do edifício a construir no valor da correspondente área de implantação.

 

Acrescenta ainda que o terreno adjacente à implantação prevista não tem, nem terá, afectação habitacional, não obstante ter contribuído positivamente para que o valor patrimonial tributário do prédio em causa (um terreno para construção, pois que “o edificado nem sequer existe”) ultrapassasse o valor de um milhão de euros, que como é sabido nos termos da verba em causa é requisito mínimo de tributação.

 

Adicionalmente, a Requerente entende ainda que a tributação de terrenos para construção no caso de empresas que tenham por objecto a construção de edifícios para venda ou para revenda e em que, por isso, os terrenos correspondam a matéria prima ou a mercadorias, “viola a natureza da tributação”, consubstanciando uma violação do princípio da capacidade contributiva (a detenção dos activos não exterioriza riqueza) e também do princípio constitucional da igualdade (outras matérias primas ou mercadorias não ocasionam similar tributação).

 

Finalmente a Requerente alega ter pago a primeira prestação, e que pagará em tempo as outras duas prestações, peticionando por isso o seu reembolso e os juros indemnizatórios que se mostrarem devidos (art. 43.º da LGT).

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira contestou reconhecendo a factualidade invocada, mas refutando pontualmente os vícios assacados ao acto, concluindo que a liquidação em crise consubstancia uma correcta interpretação e aplicação do direito aos factos, não padecendo de vício de violação de lei, seja da CRP ou do CIS, devendo, em consequência, julgar-se improcedente a pretensão aduzida e absolver-se a Entidade Requerida do pedido.

 

Para o efeito a Requerida, em síntese, invoca o art. 45.º, n.º 2, do CIMI (aplicável ex vi do art. 67.º, n.º 2, do CIS), do qual decorre que na avaliação dos terrenos para construção seja aplicável do coeficiente de afectação previsto no art. 41.º do CIMI.

 

Adicionalmente a AT entende inexistir qualquer inconstitucionalidade na norma em causa pois que o art. 13.º da CRP impede apenas discriminações arbitrárias, irrazoáveis, que não tenham justificação e fundamento material bastante. O que entende não se verificar na previsão normativa da norma aplicada e na interpretação que dela foi feita.

 

 

3. Matéria de facto

           

3.1. Factos provados

 

a)                  No ano de 2013 a Requerente era proprietária do prédio que deu lugar à liquidação de Imposto do Selo relativa ao ano de 2013, com o número 2104...., no montante de € 131.971,70 e relativa a um prédio urbano inscrito na correspondente matriz sob o art. ... e sito na União das Freguesias de ..., concelho de ...;

b)                 A primeira prestação foi paga no prazo legal pela Requerente;

c)                  O prédio correspondia a um terreno para construção, sendo a construção prevista parcialmente destinada a habitação;

d)                 A liquidação fundamenta-se na verba 28.1 da TGIS;

e)                  Em 29-07-2014 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

3.2. Factos não provados

 

Inexistem factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

3.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nas alegações das partes e nos documentos oferecidos, cuja correspondência à realidade não é controvertida.

 

 

4. Matéria de direito

 

A questão objecto da presente acção é a de saber se os terrenos para construção, nos quais esteja autorizada a edificação de prédio destinado (mesmo que parcialmente) a habitação que deva ser considerado na avaliação do seu valor patrimonial tributário, se inserem ou não no âmbito de incidência do n.º 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na sua redacção inicial, introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro.

 

4.1. Regime da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro

 

A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, efectuou várias alterações ao Código do Imposto do Selo e aditou à TGIS a verba 28, com a seguinte redacção:

 

            28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1 %;

28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5 %.

 

Utilizou-se na referida verba 28.1 e nas subalíneas i) e ii) da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, um conceito que não é utilizado em qualquer outra legislação tributária, nestes precisos termos, que é o de “prédio com afectação habitacional”.

Designadamente no CIMI, que em várias normas do CIS introduzidas por aquela Lei é indicado como diploma de aplicação subsidiária relativamente ao tributo previstos na referida verba n.º 28 [artigos 2.º, n.º 4, 3.º, n.º 3, alínea u), 5.º, alínea u), 23.º, n.º 7, e 46.º e 67.º do CIS], não é utilizado um conceito com aquela designação.

A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, alterou aquela verba n.º 28.1, dando-lhe a seguinte redacção:

 

28.1 - Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI – 1 %.

 

4.2. Conceitos de prédios utilizados no CIMI

 

No IMI, enumeram-se as espécies de prédios nos seus artigos 3.º a 6.º nos seguintes termos:

 

Artigo 2.º

 

Conceito de prédio

 

1Para efeitos do presente Código, prédio é toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fracção de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial.

2Os edifícios ou construções, ainda que móveis por natureza, são havidos como tendo carácter de permanência quando afectos a fins não transitórios.

3Presume-se o carácter de permanência quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano.

4Para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio.

 

Artigo 3.º

 

Prédios rústicos

 

1São prédios rústicos os terrenos situados fora de um aglomerado urbano que não sejam de classificar como terrenos para construção, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º, desde que:

a) Estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas, tais como são considerados para efeitos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS);

b) Não tendo a afectação indicada na alínea anterior, não se encontrem construídos ou disponham apenas de edifícios ou construções de carácter acessório, sem autonomia económica e de reduzido valor.

2São também prédios rústicos os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano, desde que, por força de disposição legalmente aprovada, não possam ter utilização geradora de quaisquer rendimentos ou possam ter utilização geradora de rendimentos agrícolas e estejam a ter, de facto, esta afectação.

3São ainda prédios rústicos:

a) Os edifícios e construções directamente afectos à produção de rendimentos agrícolas, quando situados nos terrenos referidos nos números anteriores;

b) As águas e plantações nas situações a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º

4Para efeitos do presente Código, consideram-se aglomerados urbanos, além dos situados dentro de perímetros legalmente fixados, os núcleos com um mínimo de 10 fogos servidos por arruamentos de utilização pública, sendo o seu perímetro delimitado por pontos distanciados 50 m do eixo dos arruamentos, no sentido transversal, e 20 m da última edificação, no sentido dos arruamentos.

 

Artigo 4.º

 

Prédios urbanos

 

Prédios urbanos são todos aqueles que não devam ser classificados como rústicos, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

 

 

Artigo 5.º

 

Prédios mistos

 

1Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.

2Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.

 

Artigo 6.º

 

Espécies de prédios urbanos

 

1Os prédios urbanos dividem-se em:

a) Habitacionais;

b) Comerciais, industriais ou para serviços;

c) Terrenos para construção;

d) Outros.

2Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.

3Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos. (Redacção da Lei n.º 64-A/08, de 31-12)

4Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da excepção do n.º 3.

 

 

4.3. Normas sobre interpretação das leis

 

O artigo 11.º da Lei Geral Tributária estabelece as regras essenciais da interpretação das leis tributárias nos seguintes termos:

 

Artigo 11.º

 

Interpretação

 

            1. Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

            2. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.

            3. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

            4. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.

 

Os princípios gerais da interpretação das leis, para que remete o n.º 1 do artigo 11.º da LGT, são estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil, que estabelece o seguinte:

 

Artigo 9.º

 

Interpretação da lei

 

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

 

4.4. Hipóteses de interpretação do conceito de «prédio com afectação habitacional»

 

Das normas do CIMI acima transcritas, decorre que o conceito de «prédio com afectação habitacional» não é utilizado na classificação dos prédios. Nem este conceito se encontra, com esta terminologia, em qualquer outro diploma. Assim, dada a falta de correspondência terminológica exacta entre o conceito de «prédio com afectação habitacional» e qualquer outro utilizado noutros diplomas, podem aventar-se várias hipóteses interpretativas.

 

Como é já jurisprudência consolidada[1] o ponto de partida da interpretação daquela expressão «prédios com afectação habitacional» será o texto da lei, para se reconstituir com base nele o «pensamento legislativo», tal como impõe o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT.

 

4.5. Conceito de «prédio com afectação habitacional» como reportando-se aos prédios habitacionais

 

O conceito mais próximo do teor literal da expressão utilizada («prédio com afectação habitacional») é manifestamente o de «prédios habitacionais», definido no n.º 2 do artigo 6.º do CIMI como abrangendo «os edifícios ou construções» licenciados para fins habitacionais ou, na falta de licença, que tenham como destino normal fins habitacionais.

A entender-se que a expressão «prédio com afectação habitacional» coincide com o de «prédios habitacionais», é manifesto que as liquidações enfermarão de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pois todos os prédios relativamente aos quais foi liquidado o Imposto do Selo ao abrigo da referida verba n.º 28.1 são terrenos para construção, sem qualquer edifício ou construção, exigidos por aquele n.º 2 do artigo 6.º para se preencher aquele conceito de «prédios habitacionais».

Por isso, a adoptar-se a interpretação de que «prédio com afectação habitacional» significa «prédio habitacional», as liquidações cuja declaração de ilegalidade é pedida serão ilegais, por não haver em qualquer dos terrenos qualquer edifício ou construção.

No entanto, a não coincidência dos termos da expressão utilizada na verba n.º 28.1 da TGIS com a que se extrai do n.º 2 do artigo 6.º do CIMI aponta no sentido de não se ter pretendido utilizar o mesmo conceito.

 

4.6. Conceito de «prédio com afectação habitacional» como conceito distinto de «prédios habitacionais»

 

A palavra «afectação», neste contexto de utilização de um prédio, tem o significado de «acção de destinar alguma coisa a determinado uso». ( [2] )

«Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a ou sugerir mais fortemente um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento». ( [3] )

 

Ora, a relevância do texto da lei é especialmente acentuada em matéria de interpretação de normas de incidência do Imposto do Selo, que se reconduzem a uma amálgama, sob uma denominação comum, de um conjunto incongruente de tributos de naturezas completamente distintas (sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o património, sobre actos, etc.), que não deixa margem apreciável para aplicação do critério interpretativo primordial, que é a unidade do sistema jurídico, o qual reclama a coerência global deste.

Além disso, a reconhecida falta de coerência do Imposto do Selo é ainda particularmente exuberante no caso desta verba n.º 28.1, incluída à margem do Orçamento do Estado para 2013, num quadro de generalizado agravamento fiscal, ditado por urgentes e imperiosas razões orçamentais, pela pressão dos credores institucionais internacionais (representados pela «troika») e também em decorrência da fiscalização do Tribunal Constitucional às sucessivas normas destinadas a alargar a receita e a reduzir a despesa públicas.

Assim, ainda que na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª ( [4] ), na qual se baseou a Lei n.º 55-A/2012, se faça referência à preocupação do Governo de «reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efectiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento» e ao seu empenho «em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho», é manifesto que o alcance da verba n.º 28.1, ao tributar de modo acrescido apenas certos prédios com afectação habitacional e não também os prédios que não tenham tal afectação, não logra atingir aquele desiderato de equitativo alargamento das bases tributáveis.

 

Neste contexto, não existindo elementos interpretativos seguros que permitam detectar coerência legislativa na solução adoptada na referida verba n.º 28.1 ou o acerto ou desacerto da solução adoptada (relevante para efeitos interpretativos à face do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), o teor do texto legal tem de ser o elemento primacial da interpretação, em conformidade com a presunção, imposta pelo mesmo n.º 3 do artigo 9.º, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

À face daqueles significados das palavras «afectação» e «afectar», que são «dar destino» ou «aplicar», a fórmula utilizada naquela verba n.º 28.1 da TGIS, abrange, manifestamente, os prédios que a que já foi dado destino para habitação, os prédios que já estão aplicados a fins habitacionais, pelo que importa indagar se abrangerá também os prédios que, apesar de não estarem ainda aplicados a fins habitacionais, estão a estes destinados, designadamente em alvará de loteamento.

Para tal, haverá que esclarecer quando é que se pode entender que um prédio está afectado a fim habitacional, designadamente se é quando lhe é fixado esse destino num alvará de loteamento ou acto de licenciamento ou semelhante, ou apenas quando a efectiva atribuição desse destino é concretizada.

Desde logo, o confronto da verba n.º 28.1 da TGIS com n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, que define o conceito de prédios habitacionais, aponta no sentido de ser necessária uma afectação efectiva.

Na verdade, um edifício ou construção licenciado para habitação ou, mesmo sem licença, mas que tenha como destino normal a habitação, é, à face do n.º 2 daquele artigo 6.º um prédio habitacional, pois nele se dá tal classificação aos «edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins».

Por isso, no pressuposto de que o legislador da Lei n.º 55-A/2012 soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil que se presuma), se pretendesse reportar-se a esses prédios já licenciados para habitação ou que tenham a habitação como destino normal, decerto teria utilizado o conceito de «prédios habitacionais», que expressaria perfeita e claramente o seu pensamento, à face da definição dada por aquele n.º 2 do artigo 6.º do CIMI.

Consequentemente, deve presumir-se que o uso de uma expressão diferente tem em vista uma realidade distinta, pelo que, em boa hermenêutica, «prédio com afectação habitacional», não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação ou destinado a esse fim (isto é, não bastará que seja um «prédio habitacional»), tendo de ser um prédio que tenha já efectiva afectação a esse fim.

Que é este o sentido da expressão «afectação», no mesmo contexto de classificação de prédios que faz o CIMI, confirma-se pelo artigo 3.º em que, relativamente aos prédios rústicos, se faz referência aos que «estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas», que evidencia que a afectação é concreta, efectiva. Na verdade, como se vê pela parte final deste texto, um prédio pode ter como destino uma determinada utilização e estar ou não afecto a ela, o que evidencia que a afectação é, a nível da ligação de um prédio a determinada utilização, algo mais intenso que o mero destino e que pode ou não ocorrer, a jusante deste e não a montante. ( [5] )

De resto, o texto da lei ao adoptar a fórmula «prédio com afectação habitacional», em vez de «prédios urbanos de afectação habitacional», que aparece na referida «Exposição de Motivos», aponta fortemente no sentido de que se exige que a afectação habitacional já esteja concretizada, pois só assim o prédio estará com essa afectação.

 

No caso em apreço, está-se perante uma realidade ainda mais longínqua em relação à afectação habitacional que é a de nem sequer existir nenhum edifício ou construção e, por isso, não se poder considerar existente uma afectação que pressupõe a sua existência.

Mais, nem sequer se extrai do texto normativo qual o grau de afectação (habitacional) relevante para efeitos de incidência da nova verba: todo o prédio, apenas parte dele e, na segunda possibilidade, haverá um mínimo necessário para tornar relevante para efeitos tributários essa “afectação” meramente parcial, ou será ela relevante por mínima que seja?

 

Acresce ainda que a intenção legislativa de confinar o âmbito de incidência aos “prédios urbanoshabitacionais” com exclusão dos terrenos para construção, foi expressamente referida pelo Governo ao apresentar no Plenário da Assembleia da República a Proposta de Lei 96-XII ao dizer, pela voz do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais:

 

«Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8%, em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional, o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e em 2013». ( [6] )

 

A referência expressa a «casas» como alvo da incidência do novo tributo não deixa margem para dúvidas sobre a intenção legislativa.

Por outro lado não se encontra na discussão da referida proposta de Lei qualquer referência a «terrenos para construção».

No que concerne ao artigo 45.º do CIMI, invocado pela Requerida por aí se encontrar o fundamento da “afectação”, não tem qualquer relação com a classificação de prédios, apenas indicando os factores a ponderar na avaliação de terrenos para construção. O que se pondera aí, ao fazer referência ao «edifício a construir» é a ponderação do destino do terreno, que, como se viu, é algo que, no contexto do CIMI, não implica afectação e ocorre antes desta.

 

Por outro lado, acresce ainda que a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro veio confirmar, ao menos indirectamente, a interpretação de que a verba em causa na sua redacção inicial não abrangia os terrenos para construção.

Na verdade, se a primitiva redacção daquela verba n.º 28.1, ao falar de «prédio com afectação habitacional» já pretendesse abranger os edifícios e construções que constituíam «prédios habitacionais» (nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do CIMI), e ainda os terrenos para construção para que estivesse autorizada ou prevista habitação, seria natural que se atribuísse à nova redacção natureza interpretativa, à semelhança do que a mesma Lei n.º 83-C/2013 faz noutras disposições [artigo 177.º, n.º 7, relativamente às alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 17.º-A do Código do IRS, e artigo 185.º, n.º 1, relativamente ao artigo 3.º-A do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado] e é usual fazer-se nas leis orçamentais, quando se pretende que as novas redacções se apliquem às situações potencialmente abrangidas pelas anteriores redacções.

Por isso, o facto de não se ter atribuída natureza interpretativa à nova redacção aponta no sentido de que se ter pretendido alterar o âmbito de incidência da referida verba n.º 28.1 da TGIS e não mantê-lo, esclarecendo-o.

 

Pelo exposto, a liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida pela Requerente enferma de vício de erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado em violação da verba n.º 28.1 da TGIS, o que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo).

 

Fica assim prejudicada, por desnecessária, a análise da eventual inconstitucionalidade da norma ou da interpretação que dela foi feita.

 

 

4.8. Juros indemnizatórios

 

A Requerente efectuou o pagamento da 1.ª prestação do imposto, pelo que procedendo o presente pedido de anulação do acto tributário, deve a AT ser condenada a reembolsá-la, pelo imposto pago indevidamente, acrescido ainda de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento.

 

Com efeito, no caso dos autos, como tem sido igualmente jurisprudência pacífica, não se vê como não imputar à AT o erro pela interpretação que ela própria criou. É pois evidente serem devidos juros indemnizatórios nos termos referidos.

 

Mostrando-se efectivamente paga uma ou mais prestações subsequentes, deverão as mesmas serem reembolsadas, acrescidas de juros indemnizatórios, nos mesmos termos.

 

 

 

5. Dispositivo

 

 

De harmonia com o exposto, decide-se julgar procedente o pedido e, em consequência, anular o acto de liquidação acima identificado, com fundamento em vício de violação de lei, mais se declarando o direito a juros indemnizatórios calculados sobre a quantia, ou quantias, desembolsadas e desde a data do respectivo desembolso, até ao processamento da correspondente nota de crédito em que se incluam.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, nºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 131.971,70.

 

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, integralmente a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, regendo-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, com versos em branco e revisto pelos árbitros signatários.

 

Lisboa, 16-03-2015

 

Os Árbitros

 

 

 

(José Poças Falcão)

 

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

 

 

 

(Jaime Carvalho Esteves)



[1] Segue-se, alias, de muito perto, o texto do acórdão proferido no Processo n.º 442/2014-T no qual foram árbitros os Dr.s Jorge Manuel Lopes de Sousa, Luís Máximo dos Santos e Jaime Carvalho Esteves.

( [2] )          Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, I volume, página 102.

                O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define «afectação», num contexto próximo a este, como «acto que dá destino a um bem público».

                O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de JOSÉ PEDRO MACHADO, indica como «destinar» e «aplicar» entre os significados de «afectar».

( [3] )          BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 182.

( [4] )          A Proposta de Lei n.º 99/XII/2.ª está disponível em

http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=37245

( [5] )          Outras normas do CIMI, deixam perceber que o termo «afectação» é utilizado para referenciar situações já existentes e não meramente futuras, mesmo que previsíveis, como o «destino».

É o caso do artigo 9.º do CIMI, que, depois de estabelecer que «o imposto é devido a partir» «do 4.º ano seguinte, inclusive, àquele em que um terreno para construção tenha passado a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda» ou «do 3.º ano seguinte, inclusive, àquele em que um prédio tenha passado a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a sua venda» [alíneas d) e e) do n.º 1], determina que «para efeitos do disposto nas alíneas d) e e) do n.º 1, devem os sujeitos passivos comunicar ao serviço de finanças da área da situação dos prédios, no prazo de 60 dias contados da verificação do facto determinante da sua aplicação, a afectação dos prédios àqueles fins». A «afectação dos prédios àqueles fins», no contexto deste artigo 9.º, reconduz-se à atribuição concreta aos prédios do fim «para venda», materializado pela sua inventariação, não bastando que tenham sido construídos ou adquiridos tendo em vista a sua venda.

 

( [6] )          Página 32 do Diário da Assembleia da República, n.º 9 da 2.ª Sessão Legislativa da XII Legislatura, relativo à Reunião Plenária de 10-10-2012, disponível em

http://app.parlamento.pt/darpages/dardoc.aspx?doc=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a5355786c5a79394551564a4a4c305242556b6c42636e463161585a764c7a497577716f6c4d6a42545a584e7a77364e764a5449775447566e61584e7359585270646d4576524546534c556b744d4441354c6e426b5a673d3d&nome=DAR-I-009.pdf