Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 254/2013-T
Data da decisão: 2014-04-24  IRC  
Valor do pedido: € 205.866,26
Tema: Exceção da inimpugnabilidade da liquidação decorrente de correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre imóveis. Cessão de créditos entre entidades relacionadas e o regime dos preços de transferência.
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Processo n.º 254/2013-T

 

Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Jaime Carvalho Esteves e Prof.ª Doutora Luísa Anacoreta, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-01-2014, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A…, NIPC …, apresentou, em 11-11-2013, um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

A Requerente pretende pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º 2013 …, de 31-05-2013, no montante de € 207.746,77, de que resultou, após compensação, o valor a pagar de € 205.866,26 (documento n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 12-11-2013.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Dr. Jaime Carvalho Esteves e a Prof. Doutora Luísa Anacoreta, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 27-12-2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 15-01-2014.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, suscitando uma excepção, relativa à inimpugnabilidade da liquidação decorrente de correcções ao valor de transmissão de direitos reais sobre imóveis.

No dia 17-03-2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que a Requerente respondeu à excepção.

Em 02-04-2014, procedeu-se a produção de prova através da prestação de depoimento de parte e inquirição das testemunhas.

Na mesma reunião de 02-04-2014 as Partes proferiram alegações orais.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Excepção da inimpugnabilidade parcial do acto impugnado

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira invocou na sua resposta a excepção da inimpugnabilidade da liquidação decorrente de correcções ao valor de transmissão de direitos reais sobre imóveis, por não ter sido utilizado previamente o procedimento próprio previsto no artigo 139.º, n.º 7, do CIRC.

O artigo 139.º, n.ºs 1 e 3, do CIRC prevê um procedimento próprio para prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.

Esse procedimento é instaurado mediante requerimento dirigido ao director de finanças competente e apresentado em Janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.

No n.º 7 do mesmo artigo estabelece-se que «a impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa».

Está-se, aqui perante uma excepção ao princípio da impugnação unitária, enunciada no artigo 54.º do CPPT.

No caso em apreço, a Requerente a Requerente veio impugnar o acto de liquidação de IRC juros compensatórios por discordar de duas correcções efectuadas pela Inspecção Tributária, designadamente as «Correcções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis» e as «Correcções ao valor de transmissão de créditos á sociedade B… SA».

A Requerente não utilizou o procedimento previsto no citado artigo 139.º, que é subsidiariamente aplicável aos processos arbitrais, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

Assim, o acto impugnado não é directamente impugnável, na parte em que tem por fundamento a correcção ao valor da transmissão de direitos reais sobre imóveis, pelo que, na parte respectiva, o processo não pode prosseguir para apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral [artigo 89.º, n.º 1, alínea c), do CPTA, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea C), do RJAT].

Nestes termos, julga-se procedente a excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira quanto à parte do acto de liquidação de IRC e juros compensatórios que tem por fundamento a correcção ao valor da transmissão de direitos reais sobre imóveis, pelo que se absolve a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância, na parte respectiva.

 

3. Matéria de facto

 

3.1. Factos provados

 

  1. Na sequência da Ordem de Serviço n.º OI2012…, foi efectuada uma Inspecção Tributária à Requerente, relativamente aos exercícios de 2009 (total) e 2010 apenas quanto a IRC);
  2. A Requerente encontrava-se colectada para o exercício da actividade principal de "Promoção Imobiliária – Desenvolvimento Projectos Edifícios", CAE41100, e da actividade secundária de "Compra e Venda de Bens Imobiliários", CAE 68100;
  3. A Requerente iniciou a sua actividade, no dia 23-12-1993;
  4. Nos anos de 2009 e 2010 a Requerente era tributada de acordo com as regras do regime geral de determinação do lucro tributável, possuindo contabilidade organizada;
  5. No dia 26-01-2009, através de escritura pública de "cessão de créditos e dação em cumprimento", a sociedade Requerente adquiriu ao C… – Banco … SA, com o número de identificação fiscal …, um conjunto de créditos que esta última sociedade possuía sobre a sociedade D… – Construções e Obras Públicas SA, com o número de identificação fiscal …;
  6. Os créditos referidos na alínea anterior foram adquiridos pelo valor de €1.329.200,00 e totalizavam o valor global de €1.608.029,788, neste valor se incluindo o de responsabilidades potenciais por garantias prestadas;
  7. Em consequência da aquisição dos créditos a Requerente realizou o seguinte lançamento contabilístico:

 

Conta 2680202 – outros devedores e credores – devedores e credores diversos – C…

Conta 2681904 – outros devedores e credores – devedores e credores diversos – D…

Conta 6888 – custos e perdas financeiros – outros custos e perdas – outros não especificados

  1.  Em resultado da contabilização do valor de € 1.243.737,01 na conta corrente da sociedade D… – Construções e Obras Públicas SA, e uma vez que antes deste lançamento contabilístico esta conta corrente tinha um saldo credor de €66.500,00, a mesma ficou com um saldo devedor de €1.177.237,01, correspondendo portanto este saldo ao valor em dívida à sociedade Requerente pela sociedade D… — Construções e Obras Públicas SA como corolário da aquisição dos mencionados créditos ao C… — Banco … SA pela Requerente;
  2.  No dia 10-02-2009, a Requerente vendeu os mesmos créditos à sociedade B… SA, com o número de identificação fiscal …, pelo preço global de €189.405,009;
  3. Face a esta discrepância de valores de compra e venda dos créditos, a Requerente afectou negativamente os seus resultados no exercício económico de 2009 pelo valor de €987.832,01;
  4.  Ao tempo em que estas transacções foram realizadas a Requerente tinha o seu capital social detido em 100,00% pela sociedade actualmente denominada E… Lda., com o número de identificação fiscal …;
  5.  A sociedade E… Lda. era detida a 100% pela sociedade F… SGPS SA, com o número de identificação fiscal …;
  6.  No exercício económico de 2009, a sociedade B… SA tinha o seu capital social detido em 100% pela sociedade F… SGPS SA;
  7.  Esquematizando, a sociedades detinham entre si as seguintes participações:

 

 

 

 

 

 

 
 

 

 

 


                                                                                      100%                           

 

100%

 

 

 
 

 

 

 

 


100%

 

 

 
 

A

 

 

 

 


  •  Posteriormente, mediante contrato de cessão de quotas realizado em 26-12-2009, a sociedade F… SGPS SA, adquiriu à sociedade E… Lda., 49,75% do capital social da Requerente, pelo que esta última sociedade ficou com o seu capital social detido em 50,25% pela sociedade E… Lda., e os restantes 49,75% do capital social detidos pela sociedade F… SGPS AS;
  • Por sua vez, a sociedade E… Lda. continuou a ser detida a 100% pela sociedade F… SGPS SA;
  • Esquematizando a estrutura de participações sociais destas sociedades era a seguinte:

 

 

 

 
 

 

 


                                                                                      100%                           

 

            100%

 

 

 
 

E

 

      49,75%

 

 
 

 

 


         50,25%

 

 

 
 

A

 

 

 

 

 

 

 

 


  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que, em face das relações da Requerente com a B… SA, a transmissão do crédito daquela para esta, realizada em 10-02-2009, deveria ser apreciada à face do regime do artigo 58.º do CIRC (redacção vigente em 2009) e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro;
  2. Na análise da transmissão a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, nos termos do Relatório da Inspecção cuja cópia que constitui o documento n.º 2, junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido, o seguinte, além do mais:

Os métodos que o sujeito passivo pode usar para atingir este desiderato são os explanados no número 3 do mesmo artigo 58.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, nomeadamente o do preço comparável de mercado que, em resultado do exposto nos artigos 4.º a 6.º da Portaria número 1446-C/2001, se revela o de utilização mais adequada ao caso agora em análise pois proporciona uma muito fiável estimativa dos valores praticados e aceites na transação em causa em situação de plena concorrência, portanto entre entidades independentes. Recorde-se que os mesmos créditos foram em datas muito aproximadas objeto de uma transação entre entidades independentes (aquisição pela A… Lda ao C… — Banco … SA) e entre entidades com relações especiais (alienação pela A… Lda. à B… SA).

Uma vez que os créditos são os mesmos, as datas de transação são também extremamente aproximadas, o sujeito passivo que os adquiriu (a uma entidade independente, logo sem qualquer relação especial) foi o que, após apenas dez dias úteis, os vendeu (desta vez a uma entidade com a qual possui relações especiais nos termos do artigo 58.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas), conclui-se que esta venda dos créditos à sociedade B… SA não foi regida pelos princípios da plena concorrência e que não foram nesta transação praticados termos ou condições idênticos aos contratados, aceites e praticados entre entidades independentes para a mesma operação.

Assim, com base no artigo 58.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e na Portaria número 1446-C/2001 é necessário realizar uma correção para efeitos da determinação do lucro tributável do exercício económico de 2009 da sociedade A… Lda.

O sujeito passivo A… Lda. adquiriu no dia 26 de janeiro de 2009, através de escritura pública de "cessão de créditos e dação em cumprimento", pelo preço de €1.329.200,00, ao sujeito passivo C…— Banco … SA, um conjunto de créditos que esta sociedade possuía sobre o sujeito passivo D… — Construções e Obras Públicas SA.

Esta operação foi realizada de acordo com a livre vontade dos intervenientes, duas entidades sem relações especiais entre si.

No dia 10 de fevereiro de 2009 a sociedade A… Lda. vendeu os mesmos créditos à sociedade B… SA pelo preço global de €189.405,00, operação esta realizada entre entidades com relações especiais entre si.

Nos termos do artigo 58.º é efetuada uma correção ao lucro tributável do exercício económico de 2009 da sociedade A… Lda. no montante de:

 

  1. Na sequência de notificação para o exercício de audição da Requerente sobre o Relatório da Inspecção Tributária, a Requerente disse o seguinte, sobre esta correcção, em suma:

"a) O negócio em causa é que a A… permutou como C…, embora formalmente o negócio tenha assumido outra forma jurídica, um terreno por um crédito. O negócio da permuta foi realizado por valores superiores aos valores reais, ou seja; tanto o crédito como o terreno valiam substancialmente menos. Estes valores altos foram feitos por conveniência do Banco.

b) Ambos os bens alvos de troca têm valores reais facilmente verificáveis: o imóvel através do VPT/fórmula CIMI e o crédito transacionado através do plano de insolvência judicialmente aprovado.

c) Ao desconsiderar sistematicamente metade do negócio, a metade do terreno, a administração fiscal está a aceitar o lucro exagerado com a venda do terreno e aqui, com esta correção, a desconsiderar o custo com a venda do crédito."

 

  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu manter a correcção referida, pelas seguintes razões:

 

a) O sujeito passivo afirma que o negócio realizado foi uma permuta e que os valores declarados foram superiores aos reais por conveniência do Banco. Verifica-se contudo que o negócio não foi uma permuta mas sim uma cessão de créditos e dação em cumprimento tal como vem mencionado na escritura pública de cessão de créditos e dação em cumprimento celebrada no dia 26 de janeiro de 2009 no Cartório Notarial da cidade do …, sito à Rua do …, número …, ….º andar, perante o notário G… (Livro 32-A, folhas 78 a 83), documento que oficializa a transação".

Em relação aos valores praticados foram os livremente contratados, aceites e praticados entre duas entidades independentes e são os constantes na mencionada escritura pública de cessão de créditos e dação em cumprimento celebrada no dia 26 de janeiro de 2009, devendo-se recordar o teor da cláusula F).

'A sociedade A… Lda. conhece bem o referido processo judicial, a fase em que se encontra, conhece bem os créditos do C…, sua proveniência e garantias e ... pretende adquirir esse crédito ao banco’.

b) Não existiu uma permuta, mas sim uma cessão de créditos e dação em cumprimento, e os valores adotados foram os livremente contratados, aceites e praticados entre duas entidades independentes e são os constantes na mencionada escritura pública de cessão de créditos e dação em cumprimento celebrada no dia 26 de janeiro de 2009.

c) O sujeito passivo assume aqui que existiu efetivamente uma venda do terreno (através de uma dação em pagamento) e não uma permuta. O valor da venda do terreno foi o mencionado pela sociedade A… Lda. na escritura pública de cessão de créditos e dação em cumprimento celebrada no dia 26 de janeiro de 2009,

Em relação ao que o sujeito passivo refere ser urna desconsideração do custo com a venda do crédito, mas que na realidade é uma correção ao valor de venda do crédito pela sociedade A… Lda. à sociedade B… SA, tal decorre da simples aplicação da legislação fiscal vigente (ver ponto III.A.1.3 do presente relatório de inspeção tributária).

 

  1. Por despacho de 03-06-2013, proferido por delegação do Senhor Director de Finanças do …, foi fixada à Requerente o lucro tributável corrigido de € 1.030.598,44 e, considerados os prejuízos, a matéria colectável de €704.970,77, sendo no cálculo considerada a correcção de €1.139.795, baseada na correcção efectuada relativamente à referida transmissão do crédito entre a Requerente e a B… SA;
  2. Com base na referida fixação da matéria colectável foi elaborada, em 31-05-2013, a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º 2013 …, no montante de € 207.746,77, de que resultou, após compensação, o valor a pagar de € 205.866,26 (documento n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. A Requerente adquiriu o crédito ao C… — Banco … SA, por este ser o maior credor da D… – Construções e Obras Públicas SA, que estava em processo de insolvência, e ter interesse em viabilizar esta empresa, a fim de ultimar uma obra que com esta tinha contratado (depoimento de parte e depoimento da testemunha H…);
  4. O crédito do C… — Banco … SA sobre a D… – Construções e Obras Públicas SA tinha o valor de € 1.243.737,01 (para além de garantias de boa execução da obra);
  5. A Requerente (assim como a sociedade mãe do grupo em que a Requerente se integrava) pretendia que o valor do referido crédito que adquiriu fosse convertido, pela B… SA, em capital da D… – Construções e Obras Públicas SA, no âmbito de acordo a celebrar no processo de insolvência (depoimento de parte e depoimento da testemunha G…);
  6.  Ao imóvel vendido pela Requerente ao C… — Banco … SA estava atribuído na contabilidade da Requerente o valor de € 140.000 (depoimento de parte e depoimento da testemunha I…);
  7.  O terreno vendido pela Requerente ao C… — Banco … SA, quando foi feita a transmissão, não tinha capacidade construtiva, à face do plano urbanístico então vigente, estando uma parte do terreno incluída na Reserva Agrícola Nacional e outra parte na Rede Natura 2000, sendo o seu valor patrimonial tributário de cerca de € 50.000, não considerando capacidades construtivas (depoimento da testemunha J…);
  8.  No processo de insolvência da D… – Construções e Obras Públicas SA, foi apresentado, em 13-02-2009, um Plano de Insolvência em que se previa o pagamento aos credores comuns de 15% do valor dos créditos, com perdão total dos juros, em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas a iniciar em 31-01-2011;
  9. Na liquidação referida foi indicada a data de 12-08-2013, como termo do prazo de pagamento voluntário;
  10. Além da correcção relativa ao regime de preços de transferência, no montante de € 1.139.795,00, a Autoridade Tributária e Aduaneira, com base nos mesmos factos, efectuou também correcção à matéria da Requerente no montante de € 135.225,00, ao abrigo do artigo 58.º-A do CIRC na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho;
  11. Em 11-11-2013, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

3.2. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

                Nos pontos em que não é indicado qualquer documento, os factos provados baseiam-se no Relatório da Inspecção Tributária e nos documentos extraídos do processo de insolvência da D… – Construções e Obras Públicas SA.

                No que concerne à prova por depoimento de parte e testemunhas, a convicção do Tribunal Arbitral baseou-se na isenção que aparentaram e com conhecimento do terreno e seu valor real.

                Designadamente, mostrou-se muito relevante e convincente o depoimento da testemunha J…, por ter trabalhado para a Requerente como promotor imobiliário até ser por esta despedido, por ser perito avaliador da CMVM e ter perfeito conhecimento da situação do terreno e inviabilidade de construção.

                Toda a prova produzida na audiência foi no sentido de o valor do terreno transmitido pela Requerente ao C… — Banco … SA ser muito inferior ao valor que lhe foi atribuído.

               

                4. Matéria de direito

 

                4.1. Regime dos preços de transferência

 

A decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira de correcção da matéria tributável da Requerente, no ponto que aqui interessa, baseou-se no regime de «preços de transferência», previsto, ao tempo em que ocorreram os factos, no artigo 58.º do CIRC (a que corresponde o artigo 63.º, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho), e na Portaria n.º 1446-C-/2001, de 21 de Dezembro. 

                Estabelece-se no referido artigo 58.º, na parte que pode relevar para apreciação do caso dos autos, o seguinte:

 

Artigo 58.º

Preços de transferência

 

1 – Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

2 – O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes das empresas envolvidas, as funções por elas desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.

3 – Os métodos utilizados devem ser:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;

b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.

4 – Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respectivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;

e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos temos em que esta é definida nos diplomas que estatuem a obrigação de elaborar demonstrações financeiras consolidadas;

g) Entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, directa ou indirectamente estabelecidas ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respectiva actividade, nomeadamente quando ocorre entre si qualquer das seguintes situações:

1) O exercício da actividade de uma depende substancialmente da cedência de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de know-how detidos pela outra;

2) O aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de venda dos produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da outra;

3) Uma parte substancial da actividade de uma só pode realizar-se com a outra ou depende de decisões desta;

4) O direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico equivalente, relativos a bens ou serviços transaccionados, prestados ou adquiridos por uma encontra-se, por imposição constante de acto jurídico, na titularidade da outra;

5) Pelos termos e condições do seu relacionamento comercial ou jurídico, uma pode condicionar as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.

h) Uma entidade residente ou não residente com estabelecimento estável situado em território português e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada por portaria do Ministro de Estado e das Finanças.

 

5 – Para efeitos do cálculo do nível percentual de participação indirecta no capital ou nos direitos de voto a que se refere o número anterior, nas situações em que não há regras especiais definidas, são aplicáveis os critérios previstos no n.º 2 do artigo 483.º do Código das Sociedades Comerciais.

(...)

13 – A aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das Finanças.

 

                Na mesma linha, o artigo 1.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, estabelece que «nas operações efectuadas entre um sujeito passivo do IRS ou do IRC e qualquer outra entidade, sujeita ou não a estes impostos, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos e condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis».

Como se vê pelo n.º 1 do artigo 58.º, visa-se com este regime dos preços de transferência que as transmissões e operações entre entidades que mantenham relações especiais, nos termos definidos no n.º 4, sejam objecto de tributação sem influência destas relações, que podem levar as entidades relacionadas a manipularem os preços das transmissões e operações financeiras que realizam entre si, de forma a obterem vantagens fiscais.

Por outro lado, como se vê pelo n.º 2, visa-se com este regime dos preços de transferência que a tributação se faça com base nos valores que seriam acordados «em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais».

No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu aplicar, para determinar o preço da transmissão pela Requerente para a B… SA do crédito que aquela detinha sobre D… – Construções e Obras Públicas SA, o método do preço comparável de mercado, entendendo como comparável adequado o preço fixado no contrato de aquisição desse crédito pela Requerente ao C…  — Banco … SA.

A aplicação deste método «requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes» (artigo 6.º, n.º 1, da Portaria n.º 1446-C/2001).

O ónus da prova dos requisitos de aplicação deste regime de preços de transferência recai sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque» (artigo 74.º, n.º 1, da LGT).

 

4.2. Aplicação ao caso em apreço

 

No caso em apreço, são evidentes as relações especiais entre a Requerente e a B… SA, à face do disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 58.º do CIRC, pois o capital de ambas era totalmente detido, directa ou indirectamente pela sociedade F… SGPS SA, como resulta das alíneas k), l) e m), da matéria de facto fixada.

Mas, resulta manifestamente da prova produzida que o preço nominal acordado para a transmissão do crédito ao C… — Banco … SA não foi um preço normal de mercado, pois esse preço não tem qualquer correspondência com o valor do terreno dado em pagamento pela Requerente, que era, pelo menos, mais de 10 vezes inferior ao valor declarado como sendo o de transmissão do crédito.

Por isso, não se pode entender que o valor real de aquisição do crédito sobre o C… — Banco … SA fosse o valor que foi fixado no contrato de transmissão do crédito, nem que esse fosse o valor que seria acordado entre duas entidades independentes numa situação normal de mercado.

Por outro lado, nem se pode aventar que o crédito do C — Banco … SA tivesse um valor aproximado ao preço que foi fixado no contrato, pelo facto de permitir obter maioria na assembleia de credores no processo de insolvência da D… – Construções e Obras Públicas SA, pois é um facto que o valor recebido pelo C… — Banco … SA não foi o valor declarado, que não foi pago em dinheiro, mas sim o valor de um terreno que é pelo menos dez vezes inferior ao preço indicado no contrato como sendo o da transmissão do crédito.

Isto é, mesmo considerando a externalidade positiva que a aquisição do crédito proporcionava à Requerente a nível da assembleia de credores, o valor que pagou já considerando essa vantagem e que se pode presumir corresponder ao preço que seria normalmente acordado entre pessoa independentes é o valor do terreno, que é pelo menos dez vezes inferior ao valor fixado no contrato.

Consequentemente, o preço fixado no contrato de transmissão do crédito não pode ser considerado o que normalmente seria acordado entre entidades independentes, pois entre entidades independentes, em condições normais de mercado, num contrato bilateral, seria normalmente acordado um preço de transmissão do crédito aproximado ao valor da contraprestação recebida, que é o que, em última análise, se visa determinar com base na aplicação do regime de preços de transferência, no âmbito de um imposto que deve incidir fundamentalmente sobre o rendimento real das empresas (artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Por isso, tem de se concluir, no mínimo, que não se provaram os requisitos da aplicação do regime de preços de transferência com base no preço normal de mercado, designadamente, que o valor indicado no contrato de transmissão do crédito para a Requerente como sendo o preço de aquisição do crédito corresponda ao preço que seria acordado entre pessoas independentes, em situação normal de mercado.

Ainda que a Autoridade Tributária e Aduaneira procure usar um comparável interno, no âmbito do método do preço comparável de mercado, o que em tese corresponde à melhor aproximação possível ao paradigma das condições de plena concorrência que hipoteticamente seriam praticadas entre partes independentes, o certo é que para o efeito terá de se assegurar um elevado grau de comparabilidade ou terão de ser efectuados os ajustamentos necessários. Ora, no caso, a simultaneidade e a relação sinalagmática entre a cessão e a dação, levam a admitir que na valoração das transacções as partes tenham divergido dos valores que praticariam na ausência dessa simultaneidade e relação sinalagmática. E a Autoridade Tributária e Aduaneira não demonstra qual seria o valor da transacção do crédito, ou do imóvel, na ausência dessa situação especial verificada entre o cedente (instituição bancária) e a adquirente do crédito (Requerente), prejudicando assim o necessário grau de comparabilidade com a operação vinculada (subsequente cessão do crédito adquirido).

Assim, não se provaram os pressupostos da aplicação do regime de preços de transferência invocados pela Autoridade Tributária e Aduaneira para efectuar a correcção a matéria tributável da Requerente, designadamente não se provou que o preço utilizado como comparável corresponda ao que normalmente seria contratado, aceite e praticado entre entidades independentes numa operação comparável.

Consequentemente, recaindo sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira o ónus da prova sobre essa matéria, a falta de prova dos pressupostos da aplicação do regime de preços de transferência utilizados na correcção da matéria tributável da Requerente tem de ser processualmente valorada contra ela, o que se reconduz a ter-se de considerar errado o pressuposto fáctico em que assentou a correcção efectuada de o preço fixado no contrato ser o preço que normalmente seria acordado num contrato semelhante entre entidades independentes.

Por isso, a liquidação impugnada, na parte em assentou numa correcção à matéria tributável baseada num pressuposto errado, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a anulação daquela, na parte respectiva [artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do artigo 2.º, alínea d), da LGT].

         

     5. Decisão

 

    De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente a excepção da inimpugnabilidade da liquidação impugnada, na parte em que assenta em correcção do valor da transmissão do terreno efectuada ao abrigo do disposto no artigo 58.º-A do CIRC;
  2. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de anulação da liquidação na parte correspondente à correcção efectuada com base na aplicação do regime de preços de transferência;
  3. Anular a liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2013 …, de 31-05-2013, na parte correspondente à correcção efectuada com base na aplicação do regime de preços de transferência.

    

          6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 205.866,26.

 

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente e da Autoridade Tributária e Aduaneira nas proporções de 10,61% e 89,39%, respectivamente.

 

 

Lisboa, 24 de Abril de 2014

 

 

Os Árbitros

 

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

 

(Jaime Carvalho Esteves)

 

 

 

(Luísa Anacoreta)