Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 423/2017-T
Data da decisão: 2017-11-30  IRC  
Valor do pedido: € 9.206,91
Tema: IRC - Perdas por imparidade em créditos - Especialização de exercícios.
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DECISÃO ARBITRAL

I.     RELATÓRIO

Em 11 de julho de 2017, A…, Ld.ª, com o NIPC … e com sede na Rua … n.º…, …, …-…, … (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2017…, de 29 de março de 2017 e da Demonstração de Liquidação de Juros n.º 2017…, referentes ao exercício do ano de 2014, no valor global de € 9 206,91 (nove mil, duzentos e seis euros e noventa e um cêntimos), valor económico que atribui ao pedido.

Mais pede a Requerente a condenação da Requerida na restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

Síntese da posição das Partes

a.    Da Requerente:

Como fundamentos do pedido de anulação das liquidações de IRC do ano de 2014 e juros compensatórios, vem a Requerente alegar o seguinte:

A Requerente é uma sociedade que tem por objeto a “compra e venda de prédios, construção de casas para venda, urbanizações e loteamentos”.

No âmbito da sua atividade, a Requerente celebrou, em 2010, quatro contratos- promessa de compra e venda, com a sociedade “B…, Ld.ª”, nos termos dos quais prometeu comprar, e esta prometeu vender, quatro moradias a construir em quatro lotes de terreno, tendo entregado à promitente-vendedora, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 500 000,00.

Em novembro de 2012, foi declarada a insolvência da sociedade “B…, Ld.ª” e citada a Requerente para reclamar os seus créditos, o que efetivamente fez.

Em 2014, foi a Requerente notificada da lista dos bens apreendidos para a massa insolvente e da homologação da lista dos credores reconhecidos e montantes dos respetivos créditos, só então se apercebendo da potencial incobrabilidade do seu crédito.

Inscreveu então na sua contabilidade uma imparidade pelo valor de € 500 000,00, que deduziu para efeitos fiscais.

Assim não entendeu a AT que, no âmbito de procedimento de inspeção, não aceitou a dedutibilidade para efeitos fiscais da perda por imparidade, em obediência ao disposto no artigo 18.º, do CIRC, do que resultou uma correção à matéria coletável de € 500 000,00, na origem da liquidação impugnada.

Discorda a Requerente da decisão da Requerida porquanto, em 2012, a promitente-vendedora não estava em mora, pois havia sido convencionado que os contratos definitivos apenas iriam ser celebrados em 2013; por esse motivo, não poderia a perda ser deduzida em 2012, desde logo por não ter sido contabilizada qualquer imparidade naquele exercício.

E não constituiu imparidade no exercício de 2012, por acreditar na boa cobrança do seu crédito, entendendo que não se encontrava preenchido o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º A, do CIRC, não obstante do disposto no n.º 1 do artigo 28.º B, do CIRC.

Não sendo o princípio da especialização dos exercícios um princípio absoluto, não pode o mesmo ser aplicado cegamente, como tem vindo a ser entendido pela doutrina e pela jurisprudência, antes devendo ceder perante o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º, da LGT.

Assim, ainda que se julgue errado o entendimento da Requerente em constituir a imparidade apenas em 2014 e não em 2012, esse lapso não poderá ter como consequência a desconsideração da perda suportada, tanto mais que já não é possível corrigir o exercício de 2012 e a desconsideração fiscal de uma perda de € 500 000,00 configura uma enorme injustiça, violadora do princípio da verdade material.

Não houve na atuação da Requerente qualquer omissão voluntária ou intencional, nem qualquer estratégia deliberada de contornar o princípio da especialização dos exercícios.

Ao deduzir a perda por imparidade apenas em 2014, em vez de o fazer em 2012, como defende a AT, a Requerente atrasou a entrada na sua esfera jurídica de uma vantagem patrimonial, não tendo daí resultado qualquer prejuízo para a AT.

Do entendimento seguido pela AT no relatório de inspeção resulta antes um prejuízo intolerável para a Requerente, uma vez que já não poderá contabilizar como custo a perda que efetivamente suportou, ultrapassado que está o prazo para efetuar a correção do exercício de 2012.

Termina a Requerente por formular o pedido de anulação da correção ao exercício de 2014, promovida pela inspeção tributária, bem como a anulação das liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas e a condenação da Requerida na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, da LGT.

 

b.   Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), em que veio defender a legalidade e a manutenção da liquidação de IRC do exercício de 2014, objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

No âmbito do procedimento inspetivo externo e parcial – IRC do exercício de 2014, os serviços de inspeção tributária verificaram que a ora Requerente constituiu uma perda por imparidade, no montante de € 500 000,00, correspondente a uma dívida do mesmo montante, da empresa “B…, Ld.ª”, declarada insolvente em 5 de novembro de 2012.

Verificaram ainda que a dívida respeita a adiantamentos (sinais), efetuados pela Requerente, na celebração, em 2010, de 4 contratos-promessa de compra de imóveis, entre as duas empresas, os quais previam a celebração das escrituras no prazo de 3 anos.

Resulta do regime fiscal aplicável ao caso vertente nos autos, designadamente, os artigos 18.º, 23.º, 35.º e 36.º, todos do CIRC, na redação de 2012 (atuais artigos 18.º, 23.º, 28.º-A e 28.º-B), que o sujeito passivo não tem a faculdade de reconhecer as perdas quando quiser e na proporção que entender, mas de acordo com o que a lei impõe.

Por isso as perdas por imparidade só poderão deixar de ser consideradas no período de tributação a que respeitam quando, na data do encerramento das contas a que deveriam ser imputadas, sejam imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas, conforme dispõem os n.ºs 1 e 2 do art. 18.º do Código do IRC.

O nº 1 do artigo 35.º, do CIRC, na redação de 2012 (atual artigo 28.º-A) determina que podem ser fiscalmente deduzidas as perdas por imparidade “relacionadas com créditos resultantes da atividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”, encontrando-se o seu montante associado à forma como o risco de incobrabilidade se considera justificado, o que nos termos do nº 1 do artigo 36.º, do CIRC, na redação de 2012 (atual artigo 28.º-B) se verifica quando “a) O devedor tenha pendente processo de insolvência e de recuperação de empresas ou processo de execução;”.

Face às disposições legais citadas, bem como às regras contabilísticas em vigor, não pode o contribuinte definir o momento para manifestar custos e prejuízos decorrentes da sua atividade comercial ou industrial.

E nem se diga que o diferimento de custos pretendido pela Requerente é absolutamente neutro do ponto de vista fiscal e não trará prejuízos para a administração fiscal, pois o facto de o custo ser considerado em 2014 e não em 2012, projeta dois anos para a frente a eventual dedutibilidade de prejuízos fiscais.

A AT está obrigada a repor a verdade sobre a determinação da matéria coletável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, mesmo que não essa reposição lhe não traga vantagem.

No caso concreto, embora a AT tenha acrescido ao exercício de 2014 os proveitos correspondentes à dedução indevida da perda por imparidade respeitante ao exercício de 2012, não deixou de ter em conta os prejuízos reportáveis de exercícios anteriores, nos termos do artigo 52.º, do CIRC, não existindo, pois, violação do princípio da justiça, princípio este que não pode, por si só e face a todo o circunstancialismo da situação em análise, ser suficiente para considerar ilegal a liquidação adicional do IRC de 2014.

Acresce que a Requerente contabilizou a perda por imparidade em 2014, no único ano em que apresentaria lucro, no montante de € 103 497,63, se não tivesse contabilizado como gasto a perda por imparidade em causa, no montante de € 500.000,00.

Assim, os argumentos invocados pela Requerente não colhem assentimento no edifício contabilístico e fiscal em vigor, pelo que vão aqui expressamente impugnados na íntegra.

Assim como se impugna, por infundado, todo o alegado na douta p. i. que contrarie o supra exposto, bem como os documentos juntos pela Requerente, por não corresponderem à verdade ou deles não se poderem retirar os efeitos jurídicos pretendidos pela Requerente, devendo ser considerada como improcedente a sua pretensão e a Requerida absolvida de todos os pedidos, com as legais consequências.

 

*

            Por despacho arbitral de 20 de outubro de 2017, atendendo a que não foram invocadas exceções e tendo em conta a prova documental junta aos autos, foi dispensada a prova por declarações de Parte bem como a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, determinando-se que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas, pelo prazo de 10 dias e fixando-se a data de 30 de novembro de 2017 para a prolação da decisão arbitral, com advertência à Requerente para o pagamento, até àquela data, da taxa arbitral remanescente.

Nas suas Alegações escritas veio a Requerente reiterar a argumentação inicial, frisando a injustiça em que se traduz a liquidação de IRC impugnada, decorrente da correção aos custos declarados no exercício de 2014, sem que tenha havido correção de sentido inverso, no exercício de 2012.

A Requerida contra-alegou, remetendo, na íntegra, para a argumentação expendida em sede de Resposta.

 

II. SANEAMENTO

1.    O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 18 de setembro de 2017, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

2.    As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3.    O processo não padece de vícios que o invalidem.

4.    Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar.

 

III.    FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

a.    Factos provados

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, fundamenta-se no exame crítico da prova documental junta à P. I. e do PA, fixando-se como segue:

1.    Em 13.04.2010, foram celebrados entre a Requerente, na qualidade de promitente-compradora e a sociedade B…, Ld.ª, na qualidade de promitente-vendedora, quatro contratos-promessa de compra e venda de quatro lotes de terreno inscritos na matriz predial urbana da freguesia de …, concelho de Oeiras, sob os artigos…, …, … e …  (lotes…, …, … e …, sitos em …), em cada um dos quais iria ser implantada pela promitente-vendedora uma moradia unifamiliar, a transmitir à Requerente livre de ónus ou encargos – Doc. 1, junto à P. I.;

2.    De acordo com a cláusula terceira de cada um dos contratos-promessa, foi estipulado o pagamento de um sinal da quantia de € 125 000,00, dos quais foram pagos € 25 000,00, por cheque, na data da sua celebração, correspondendo os restantes € 100 000,00 à conversão do crédito da Requerente sobre a promitente-vendedora;

3.    Nos termos da cláusula quarta de cada um dos contratos-promessa, a escritura definitiva teria lugar nos trinta dias subsequentes ao termo do prazo de 3 anos a contar da data da sua celebração;

4.    Entre 11.01.2017 e 17.02.2017, decorreram os atos de inspeção, no âmbito do procedimento aberto pela Ordem de Serviço n.º OI2016…, de 28.09. 2016, da Direção de Finanças de Lisboa (cfr. o Relatório de Inspeção Tributária, adiante RIT, junto como Doc. 2 à P. I. e ao PA);

5.    O procedimento de inspeção tributária, de natureza externa, conforme a notificação previamente expedida ao sujeito passivo, teve âmbito parcial (IRC do exercício de 2014);

6.    Do RIT consta, nomeadamente, o seguinte:

a.    A Requerente tem como objeto social a atividade de compra e venda de prédios, construção de casas para venda, urbanizações e loteamentos e exerce, desde 02.01.2008, a atividade principal de promoção imobiliária (Desenvolvimento de Projetos Edifícios), com o CAE 041100 e a atividade secundária de compra e venda de bens imobiliários, CAE 068100, enquadrada no regime geral de tributação de IRC;

b.    No exercício de 2014, a Requerente constituiu uma perda por imparidade no montante de € 500 000,00, correspondente a uma dívida da empresa B…, Ld.ª, declarada insolvente em 5.11.2012 (Anexo III ao RIT);

c.    Analisado o processo de insolvência (…/12… TYLSB) da B…, Ld.ª, conclui-se que a dívida respeita a adiantamentos (sinais) efetuados pela A…, Ld.ª, na celebração, em 2010, de 4 contratos de compra de móveis entre as duas empresas, os quais previam que as escrituras fossem celebradas no prazo de 3 anos; como as escrituras não se chagaram a realizar, devido à insolvência da promitente- vendedora, constituiu-se a dívida de € 500 000,00;

d.    O crédito encontra-se evidenciado na conta …;

e.    No entanto, o artigo 18.º, n.º 2, do CIRC, estabelece que “As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data do encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”;

f.     No caso em análise, a empresa era manifestamente conhecedora do facto originário da imparidade – risco de incobrabilidade da dívida, devido a insolvência da devedora –, em períodos anteriores ao do exercício de 2014, pelo que, segundo o princípio da especialização dos exercícios, acolhido pelo artigo 18.º, do CIRC, a perda por imparidade constituída no exercício de 2014 não pode ser aceite como gasto deste exercício;

g.    Propõem-se as seguintes correções ao resultado apurado pela Requerente para o exercício de 2014, decorrentes da não-aceitação fiscal da perda por imparidade, no valor de € 500 000,00:

Rubrica

Montante (Euros)

Prejuízo fiscal declarado

- € 398 502,37

Correção nos termos do Art.º 18.º do CIRC

€ 500 000,00

Resultado fiscal corrigido (Lucro)

€ 103 497,63

No entanto, verifica-se que a empresa tem prejuízos fiscais de exercícios anteriores, dedutíveis nos termos do disposto no n.º 1 do Art. 52.º, do CIRC, nos seguintes montantes:

Exercício

Montante

2012

€ 161 511,84

2013

€ 61 411,23

Total

€ 222 923,07

De acordo com o n.º 2 do citado artigo 52.º do CIRC “A dedução a efetuar em cada um dos períodos de tributação, não pode exceder o montante correspondente a 70% do respetivo lucro tributável …” e de acordo com o n.º 15 do mesmo artigo, “…devem ser deduzidos os prejuízos fiscais apurados há mais tempo”.

Face ao descrito, a matéria coletável de IRC, a considerar para o exercício de 2014, é de € 31 049,29, de acordo com os seguintes cálculos:

Descrição

Montantes

Resultado fiscal corrigido

€ 103 497,63

Prejuízo dedutível de 2012 (70%x103 497,63)

€ 72 448,34

Matéria coletável de IRC

€ 31 049,29

h.    Em anexo ao RIT, figuram cópias de peças processuais extraídas do processo de insolvência de pessoa coletiva que correu termos pelo 3.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa sob o n.º …/12… TYLSB, em que é insolvente B…, Ld.ª:

                                           i.          Da carta de citação da declaração de insolvência, dirigida à Requerente, através do ofício n.º…, de 6 de novembro de 2012 (registo dos CTT n.º RJ…PT);

                                         ii.         Do Despacho de homologação da lista de credores reconhecidos e respetivos créditos, de 11 de março de 2014;

7.    O RIT, na sua versão final, após o decurso do prazo para exercício do direito de audição, não exercido, foi notificado à Requerente por ofício de 21.03.2017, da Direção de Finanças de Lisboa (registo dos CTT n.º RD … PT);

8.    Em 29.03.2017, foi emitida a liquidação de IRC n.º 2017… (compensação n.º 2017…, de 31.03.2017), impugnada nos presentes autos, pelo valor global de € 9 206,91, com data limite de pagamento voluntário em 29.05.2017;

9.    A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação impugnada, em 4.05.2017.

 

b.  Factos não provados

Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

III.2 DO DIREITO

1.    A questão decidenda

A questão que cabe ao tribunal arbitral decidir consiste em saber se, no caso concreto dos autos, a liquidação de IRC do exercício de 2014 deve ser anulada, por vício de violação de lei, ao não ter sido considerada, naquele exercício, a dedutibilidade fiscal de uma perda por imparidade comprovadamente sofrida pela Requerente, no âmbito da sua atividade, mas respeitante ao exercício de 2012, tendo em conta a impossibilidade de correção dos prejuízos por si contabilizados e declarados, naquele outro exercício fiscal.

Como é sabido, o sistema de tributação do rendimento das pessoas coletivas assenta numa dependência parcial da contabilidade, correspondendo o lucro tributável das entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, à “soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”, conforme o n.º 1 do artigo 17.º, do Código do IRC, determinando-se a matéria coletável pela dedução ao lucro tributável dos prejuízos fiscais reportáveis, nos termos do artigo 52.º, e dos benefícios fiscais que constituam dedução ao lucro tributável (artigo 15.º, n.º 1, do Código do IRC).

Muito embora a vida das empresas decorra num fluxo contínuo e, em bom rigor, o lucro ou prejuízo só seja calculável no termo da sua atividade, a periodização do lucro tributável, por exercícios, em regra coincidentes com o ano civil, é um dos pilares estruturais do IRC, traduzido pelo princípio da especialização dos exercícios, princípio este mitigado pela “solidariedade dos exercícios”, consubstanciada no reporte de prejuízos de anos anteriores (cfr. o ponto 7 do preâmbulo do Código do IRC), ainda que temporalmente limitado.

Tal princípio da especialização dos exercícios, que é também um princípio contabilístico, de acordo com o § 22 da Estrutura Concetual do Sistema de Normalização Contabilística – Regime de Acréscimo, “os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (…), sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem”, vem expresso, de forma algo rígida, no n.º 2 do artigo 18.º, do Código do IRC, nos termos do qual “As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”.

Têm a Jurisprudência e a Doutrina entendido que tal princípio não pode ser aplicado às cegas se, da sua aplicação, resultar uma flagrante injustiça para o contribuinte, especialmente quando a administração fiscal se furte a efetuar “correções simétricas”, ou seja, quando, ao desconsiderar um gasto erradamente contabilizado e deduzido em determinado exercício, acrescendo o respetivo valor ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo, não efetuar a correção de sinal contrário, acrescendo-o aos gastos do exercício em que deveria ter sido contabilizado.

E que, não sendo a correção simétrica possível, v. g., por motivos de tempestividade, o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, pois, de outro modo, o sujeito passivo seria, por motivos de índole formal, sujeito a uma tributação por um lucro que efetivamente não obteve.

A este propósito, citamos Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in “Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada”, 4.ª Edição, 2012, págs. 452 e ss., também citados pela Requerente. Escrevem os Ilustres Autores:

A atividade da administração tributária não pode limitar-se a uma aplicação mecânica das leis às situações de facto, tendo de ter sempre presente o objetivo que a justifica, que é a prossecução do interesse público (arts. 266.º, n.º 1 CRP e 5.º e 55.º da LGT).

Por isso a administração fiscal deverá abster-se de atuar em situações em que, embora se preencham formalmente os pressupostos legais abstratos da sua atuação, esta não seja relevante para a prossecução do interesse público.

Alguns exemplos tirados da prática dos tribunais ilustram estas situações e podem servir para demonstrar a conveniência em não dar prevalência absoluta às normas que definem a atuação da administração em determinadas situações, restringindo o seu alcance por forma a assegurar a sua compatibilidade com aqueles princípios.

a)               Tanto na Contribuição Industrial como no IRC, vale o princípio da especialização dos exercícios, que determina, no que aqui interessa, que a cada ano fiscal de atividade da empresa devem ser imputados os proveitos e custos que nele tenham sido gerados ou suportados (arts. 22.º, 23.º e 26.º do CCI e art. 18.º do CIRC).

Quando há divergência entre o critério do contribuinte e o da administração fiscal sobre a imputação de determinado ganho ou perda a determinado exercício esta deve proceder a correção da matéria coletável, fazendo acrescer o proveito ou custo ao ano a que entende que ele deve respeitar e, correspondentemente, deveria abater tal proveito ou custo à matéria coletável do ano ao qual o contribuinte a imputou.

Com este procedimento, não haverá qualquer situação de injustiça, pois ao acréscimo de imposto em determinado ano, corresponderá uma diminuição tendencialmente semelhante no outro, não havendo, assim, tributação de um mesmo proveito em dois exercícios ou não dedução em qualquer deles de um custo que deva ser considerado.

(…) O mesmo sucede quando, embora no momento em que a administração fiscal faz a alteração da matéria coletável fosse possível efetuar a correspondente correção no ano a que se entende ser de imputar os custos, ela não o faz e, com o decurso do tempo, se torna inviável fazê-lo.

Nestas condições, se a administração fiscal tinha razão na correção que efetuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria coletável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente ao ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir.

Assim, no caso de não poder ser feita já a correção relativamente ao ano anterior, o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efetuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não tinha direito.

Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correção da matéria coletável em face da violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2 e 50.º da LGT, para obstar à possibilidade de efetuar a referida correção.

Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria coletável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efetuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a atividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça.

Entre estes dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efetuar a correção, limitando aquele dever de correção por força do princípio da justiça.

Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na atuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a atividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de atuar.

Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, atos de correção da matéria tributável que conduzam a situações de injustiça deste tipo”.

 

Revertendo para o caso dos autos, cabe perguntar se estaremos perante uma situação de injustiça que justifique a anulação da correção efetuada pela AT ao exercício de 2014, bem como da subsequente liquidação de IRC ora impugnada, sem que tenha sido feita a correção simétrica ao exercício de 2012 que, segundo a Requerente, já não seria possível.

 

Diga-se, em primeiro lugar, que, embora não esteja provada a intencionalidade do erro de contabilização, no exercício de 2014, da perda por imparidade não aceite pela AT, motivada pela convicção da Requerente de que iria ser ressarcida do seu crédito, no âmbito do processo de insolvência da promitente-vendedora, a correção efetuada era devida, face à redação dos artigos 28.º-A, n.º 1, alínea a) e 28.º-B, n.º 1, alínea a), ambos do Código do IRC, na redação em vigor em 2014 (anteriores artigos 35.º, n.º 1, alínea a) e 36.º, n.º 1, alínea a), na redação de 2012), concretização do princípio contabilístico da prudência (§ 37 da Estrutura Concetual do SNC), segundo o qual, na preparação das demonstrações financeiras deve usar-se “um grau de precaução (…) de forma que os ativos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados”.

 

Por outro lado, o excerto acima transcrito reporta-se àquelas situações em que, não sendo possível a correção de sentido inverso à que esteve na origem da liquidação de imposto de um determinado exercício, houve uma dupla desvantagem para o contribuinte: não viu diminuída a matéria coletável e, consequentemente, o imposto do exercício em que poderia ter deduzido o custo, vendo, por outro lado, aumentar o sacrifício patrimonial respeitante ao exercício em que a correção ocorreu, por não ser aceite o prejuízo fiscal erradamente deduzido.

Ora, como vem apontado no RIT e não é contestado pela Requerente, no exercício de 2012, a que respeitava a perda por imparidade constituída em 2014, a matéria coletável foi nula, por se ter registado um prejuízo fiscal de - € 161 511,84, não tendo, consequentemente, havido lugar ao pagamento de imposto. Não houve, por isso, para a Requerente, o adiamento de qualquer vantagem que lhe pudesse ser proporcionada pela atendibilidade do custo que deixou de contabilizar no exercício de 2012, pela razão de que não houve, naquele exercício, imposto a pagar.

Não é que a omissão da “correção simétrica” dos resultados do exercício de 2012, por parte da AT, seja completamente inócua para o contribuinte.

Tal omissão poderá, eventualmente, vir a refletir-se na possibilidade de reporte de prejuízos de anos anteriores, caso a Requerente, venha a obter lucro tributável dentro do prazo em que esse reporte seria possível. Mas não teve qualquer consequência ao nível da liquidação do ano de 2014, ora impugnada.

De facto, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º, do Código do IRC, na redação em vigor para o exercício de 2012, os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação, eram dedutíveis aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores, ou seja, até ao exercício de 2017.

No entanto, no exercício corrigido, a dedutibilidade de prejuízos acumulados restringia-se a 70% do respetivo lucro tributável. E a AT, no apuramento da matéria coletável do exercício de 2014, não deixou de atender à dedutibilidade do prejuízo fiscal contabilizado pela Requerente nos exercícios anteriores.

Efetivamente, tendo a Requerente declarado, no exercício de 2014, um prejuízo fiscal de - € 398 502,37 que, acrescido da correção de € 500 000,00 correspondente à perda por imparidade não aceite, por respeitar ao exercício de 2012, se transmutou num lucro tributável de € 103 497,63, ao mesmo foram deduzidos os prejuízos fiscais contabilizados em 2012, na razão de 70% do lucro tributável apurado para 2014, ou seja, no montante de € 72 448,34.

 Seria diferente o imposto a pagar, em 2014, se a AT tivesse corrigido os prejuízos fiscais do exercício de 2012?

 A resposta só pode ser negativa, pois tendo a Requerente contabilizado em 2012 um prejuízo de - € 161 511,84, a sua correção pelo acréscimo do valor da perda por imparidade, de que resultaria o prejuízo de - € 661 511,84, não teria qualquer influência na liquidação ora impugnada, dada a restrição à dedutibilidade de prejuízos, a que se refere o n.º 2 do artigo 52.º, do Código do IRC.

O eventual prejuízo para a Requerente apenas ocorreria se, nos exercícios de 2015 a 2017, viesse a registar lucros que permitissem deduzir a parte restante dos prejuízos corrigidos e não deduzidos em 2014. Prejuízo que a Requerente não invoca nem prova quanto aos exercícios de 2015 e de 2016, cuja matéria tributável já se encontrava determinada à data do pedido. Para além de que, àqueles prejuízos do ano de 2012, haveria ainda a acrescer o prejuízo fiscal declarado em 2013, de - € 61 411,23, como foi apurado no RIT.

Porém, nem a Requerente pede que sejam corrigidos os prejuízos fiscais do exercício de 2012, por no seu entender tal já não ser possível e, por outro lado, o que está em causa nos autos é a liquidação de IRC do exercício de 2014 e não a de qualquer outro exercício.

Posto o que se tem vindo de dizer, vejamos as consequências da anulação da correção efetuada pela AT ao exercício de 2014, de que resultou a liquidação de que trata os autos.

A anulação da referida correção, bem como da liquidação impugnada, não deixaria de se traduzir numa dupla vantagem para a Requerente, que assim beneficiaria do seu próprio erro: uma vantagem real e imediata, pois deixaria de pagar o imposto efetivamente devido no exercício de 2014, em obediência ao princípio da especialização dos exercícios; e uma possível vantagem futura, pois a consideração da perda por imparidade, da quantia de € 500 000,00, no exercício de 2014, permitir-lhe-ia, como bem nota a Requerida, projetar dois anos para a frente a eventual dedutibilidade de prejuízos fiscais (caso não tivesse havido qualquer alteração legislativa ao citado artigo 52.º, do CIRC).

Pelos motivos expostos e, antecipando a decisão, diremos que a liquidação de IRC do exercício de 2014, bem como as correções que lhe estão subjacentes, não colidem com os invocados princípios da justiça e da prossecução do interesse público a que a AT se encontra legal e constitucionalmente vinculada, não sendo passíveis da anulação pretendida.

 

IV.                 DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados decide-se em, julgando improcedente, por não provado, o presente pedido de pronúncia arbitral, manter na ordem jurídica a liquidação de IRC n.º 2017…, de 29 de março de 2017 e a Demonstração de Liquidação de Juros n.º 2017…, referentes ao exercício do ano de 2014, no valor global de € 9 206,91, absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 9 206,91 (nove mil, duzentos e seis euros e noventa e um cêntimos).

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo da Requerente.

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de novembro de 2017.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.