Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 493/2021-T
Data da decisão: 2022-10-19  IVA  
Valor do pedido: € 109.372,40
Tema: IVA. Sujeito passivo misto. Direito à dedução do IVA. Afetação real e Pro-rata. Pedido de Revisão oficiosa.
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SUMÁRIO:

  1. As orientações genéricas (instruções administrativas) ínsitas em circulares ou ofícios-circulados, que visam a uniformização de interpretação e aplicação das leis tributárias, só vinculam os funcionários e os órgãos da Autoridade Tributária e Aduaneira, não vinculam os contribuintes.
  2. A circunstância dos sujeitos passivos optarem por adotar o entendimento vertido nas orientações genéricas, só por si, não implica ou determina que o erro em que o sujeito passivo tenha incorrido seja imputável aos serviços da AT.
  3. A errada adoção de um método (coeficiente de imputação específico ou de afetação real) para apuramento do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, consubstancia um erro de direito subsumível no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, pelo que o ato tributário de liquidação (autoliquidação) em que se tenha expressado o excessivo ou indevido apuramento do IVA entregue nos cofres do Estado pode ser objeto de revisão no prazo de quatro anos, ao abrigo do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA e do artigo 78.º da LGT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. Jesuíno Alcântara Martins e Dra. Sofia Ricardo Borges, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 26.10.2021, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

  1. A A..., S.A., com o número de identificação fiscal ..., e com sede em Rua ..., n.º ..., ... Lisboa, (doravante designada por Requerente), apresentou, em 17.08.2021, um pedido de pronúncia arbitral (ppa), ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante designado por RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  2. A Requerente formula pretensões no sentido de obter pronúncia arbitral em que o Tribunal declare:

a)    a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 30.12.2020, e a que coube o n.º ...2020..., atribuído pela Unidade dos Grandes Contribuintes;

b)    a anulação parcial do ato tributário (auto)liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), referente ao ano de 2016, no valor de € 109.372,40, e materializado na declaração periódica de IVA referente ao período de tributação de dezembro de 2016, com fundamento em ilegalidade;

c)    A restituição à Requerente do valor de IVA, no valor de € 109.372,40, e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, contados desde a data da entrega da declaração periódica de IVA referente ao mês de dezembro de 2016.

  1. A Requerente fundamenta as suas pretensões nos fundamentos seguintes:
  1. O auto de autoliquidação relativo ao período de tributação 201612 encontra-se viciado de ilegalidade, por erro relativamente aos pressupostos de facto e de direito que regem a situação tributária da Requerente;
  2. Porquanto, ao preencher a declaração periódica do IVA observou o entendimento constante do ofício-circulado n.º 30108/2009, de 30 de janeiro, relativamente ao regime jurídico do direito à dedução do imposto em relação aos recursos de utilização mista adquiridos pela Requerente.
  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Presidente do CAAD em 19 de agosto de 2021 e automaticamente notificado à AT.
  2. Atento o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os árbitros, que de imediato aceitaram o encargo. As Partes, devidamente notificadas, não manifestaram qualquer oposição à designação dos árbitros feita pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
  3. Em conformidade com o preceituado no n.º 8 e na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação que lhe foi dada pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 26 de outubro de 2021.
  4. Em 02 de novembro de 2021 foi notificada a Exm.ª Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT.
  5. Em 08 de dezembro de 2021, a Requerida apresentou a sua resposta e, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do RJAT, não tendo sido remetido para ser junto aos autos o processo administrativo (PA).
  6. A Requerida na sua resposta, que aqui se dá por integralmente reproduzida, defendeu-se por exceção e por impugnação e perante as exceções invocadas (ineptidão da petição inicial e intempestividade do pedido), por despacho arbitral de 18 de dezembro de 2021, o Presidente do coletivo ordenou a notificação da Requerente para, no prazo de 10 (dez) dias, exercer, querendo, o contraditório em relação às questões suscitadas pela Requerida.
  7. Em relação às exceções, e atenta a notificação que lhe foi feita em 20 de dezembro de 2021, a Requerente não apresentou qualquer posição ou manifestação de vontade sobre exceções/questões invocadas na resposta da Requerida.
  8. Em 18 de janeiro de 2022, foi proferido despacho arbitral, que foi devidamente notificado às Partes, e em que o Tribunal equacionou os aspetos seguintes: i) à luz do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis, o Tribunal arbitral dispensou a realização da reunião com as partes, e considerou que, no caso, ii) que se trata de processo não passível duma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais; (iii)  que foi concedido prazo à Requerente para o exercício do contraditório relativamente à matéria da Resposta que fosse eventualmente passível de integrar o conceito de defesa por exceção; iv) foi considerada encerrada a instrução do processo, porquanto, os autos contêm os elementos de prova essenciais para a decisão; v) foi ordenado que  ambas as partes apresentariam, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias (cfr. artigos 29.º, do RJAT,  91.º-5 e 91º-A, do CPTA, versão republicada em anexo ao Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de outubro), alegações escritas, de facto (factos essenciais que considerassem provados e não provados) e de direito.
  9. No despacho arbitral de 18 de janeiro de 2022, o Tribunal fixou como data previsível para a prolação e notificação da decisão arbitral final o dia 25.03.2022. Porém, primeiro por razões inerentes à conjuntura da crise pandémica e, posteriormente, por necessidade objetiva de prioridades de gestão processual, o Tribunal teve, respetivamente, de proferir os despachos arbitrais de 24.04.2022, 20.06.2022 e 25.8.2022, a alterar a data para a prolação da decisão arbitral.
  10. A Requerente optou por não apresentar alegações, tendo a Requerida procedido à apresentação das suas alegações em 11 de fevereiro de 2022, tendo recorrido à invocação do teor da sua resposta, a qual deu por integralmente reproduzida.

 

II. RAZÕES ADUZIDAS PELAS PARTES

II.1 Pela Requerente

  1. A Requerente discorda da decisão de indeferimento proferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira sobre o pedido de revisão oficiosa, relativo à liquidação de IVA referente ao ano de 2016, expressa na declaração periódica de IVA referente ao mês de dezembro de 2016, tendo a Requerida fundamentado a sua decisão na circunstância de não existir qualquer erro na autoliquidação de IVA relativa ao período tributação do mês de dezembro de 2016.
  2. No presente pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pretende a apreciação da legalidade da autoliquidação de IVA relativa ao ano de 2016, materializada nas declarações periódicas de IVA referentes aos meses de janeiro a dezembro de 2016, nas quais deduziu, a título provisório, com referência aos meses de janeiro a novembro, o IVA suportado na aquisição de recursos de utilização mista de acordo com o coeficiente de imputação específico provisório de 2% e, na declaração periódica referente ao mês de dezembro de 2016, com base no coeficiente definitivo de 4.%, em observância do normativo do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.
  3. A Requerente pretende a correção do IVA deduzido, porquanto considera que existe erro na aplicação do regime jurídico de dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista afetos à atividade de gestão de carteira própria de títulos.
  4. A Requerente considera que a dedução do IVA em função do coeficiente de imputação específico imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, não se apresenta consentâneo com o princípio da neutralidade que estrutura o sistema comum do IVA, porquanto, não permite determinar com precisão o grau de recursos de utilização mista empreendidos em cada uma das atividades desenvolvidas, pelo que o erro por si incorrido na autoliquidação do IVA é imputável aos serviços da AT.
  5. A Requerente invoca que, em virtude da ligação direta existente entre um conjunto de recursos adquiridos e as áreas da gestão de carteira própria de títulos por si desenvolvidas, deveria ter deduzido o IVA de acordo com o método da afetação real, nos termos preceituados na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 23.º do CIVA e, assim, a dedução do IVA suportado na aquisição de recursos de utilização mista com ligação direta às duas áreas de atividade em causa traduzir-se-á numa dedução adicional de IVA, no valor de € 109.372,40, valor cuja restituição pretende acrescido de juros indemnizatórios, desde a data da apresentação da declaração periódica do mês de dezembro de 2016.
  6. A Requerente salienta que, na sequência de uma revisão de procedimentos, verificou que a dedução de imposto suportado na aquisição de recursos de utilização mista, com referência à área da gestão da carteira de títulos, de acordo com o critério de imputação específico não se afigura consentâneo com o efetivo consumo de recursos pela referida área, pelo que pretende que lhe seja validada a adoção do método da afetação real em substituição do coeficiente de imputação específico.

 

II.2 Pela Requerida

  1. A Requerida considera que em virtude da Requerente ter sido alvo de uma ação de inspeção tributária, realizada pela Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018..., de 01.03.2018, com referência ao ano de 2016, o ato de autoliquidação já não se encontra vigente na ordem jurídica.
  2. Nesta medida, o ato de autoliquidação que a Requerente invoca em relação ao período de tributação de dezembro de 2016 foi substituído pela liquidação adicional de IVA, n.º 2020 ..., com imposto a pagar (adicionalmente) no valor de € 30.589,83, e respetivos juros compensatórios, liquidação n.º 2020 ..., no montante de € 3.521,23, ambos os atos de liquidação (imposto e juros) com data de 06.03.2020, tendo estes sido pagos em 22.04.2020.
  3. A Requerida considera que o ato de autoliquidação impugnado e objeto do presente ppa já não se encontra vigente na ordem jurídica, visto que foi substituído pela liquidação adicional n.º 2020 ..., com imposto a pagar no valor de € 30.589,83, e juros compensatórios, liquidação n.º 2020 ..., no valor de € 3.521,23.
  4. E que, assim sendo, nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 29.º do RJAT, faltando em absoluto a causa de pedir ou o pedido, a petição é inepta, o que, nos termos do artigo 186.º, n.º 1 do CPC, consubstancia um vício de nulidade.
  5. Por outro lado, a Requerida alega que os atos tributários suscetíveis de revisão são datados de 06.03.2020, e que não existindo qualquer erro imputável aos serviços, o pedido de revisão só podia ser apresentado ao abrigo do n.º 1, 1.ª parte, do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
  6. A que acresce a circunstância do n.º 2 do artigo 78.º da LGT ter sido revogado pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, publicada no Diário da República, 1.ª Série, n.º 62, em 30 de março de 2016, e que, ainda que estivesse em causa o ato tributário de autoliquidação - que não está -, visto que tal foi praticado em 14.02.2017, isto é, em data posterior à referida revogação, não lhe poderia aproveitar a “ficção legal” de imputabilidade de erro aos serviços fixada no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.
  7. A Requerida sublinha que o erro invocado pela Requerente não foi cometido pelos serviços de inspeção tributária, os quais se limitaram a corrigir as regularizações de imposto respeitantes ao ano de 2014, correções que não são objeto de impugnação no pedido de pronúncia arbitral.
  8. A Requerida não acolhe o argumento de que o erro decorre do Ofício-Circulado n.º 30108/2009, de 30 de janeiro de 2009, porquanto foi a Requerente que procedeu ao apuramento do pro-rata definitivo de 2%, bem como é a si que é imputável a escolha dos critérios de imputação específicos e os cálculos de apuramento do IVA dedutível suportados na aquisição dos bens de utilização mista.
  9. A Requerida alega que do Ofício-Circulado 30108/2009 apenas decorre que as “instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD” devem adotar a metodologia de afetação real. O coeficiente de imputação específico é indicado a título supletivo, isto é, “sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns”. Se a Requerente não escolheu/usou o critério de imputação que agora apelida de mais adequado, não pode imputar tal circunstância à AT.
  10. A Requerida destaca que tem vindo a ser reconhecido pelos Tribunais e pela doutrina a conformidade das instruções administrativas veiculadas pelo Ofício-Circulado n.º 30108/2009 com os normativos legais, nacionais e comunitários.
  11. Na sequência da muita jurisprudência citada, quer do TJUE, quer do Supremo Tribunal Administrativa, quer ainda do CAAD, a Requerida alega que o n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA – art.º 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta diretiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços»”.
  12. Mais diz a Requerida que é precisamente por este motivo que não colhe a argumentação da Recorrente quando vem arguir que nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA é, necessariamente, “toda a renda recebida (ou seja, capital e juros) que constitui o valor tributável da locação financeira, pelo que não seria admissível “distinguir onde a lei não distingue” aquando da dedução de IVA relativamente a bens e serviços que são comprovadamente de utilização mista”. E não colhe porque, ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro. Porém, importa considerar que esta possibilidade concedida aos Estados-Membros apenas se revela possível na medida em que o método seguido garanta uma determinação mais precisa do pro rata de dedução que resulta do critério baseado no volume de negócios (vide, assim, o Acórdão Banco Mais e o Acórdão BLC Baumarkt, proferido a 8 de Novembro de 2012 no Processo C-511/10).
  13. A Requerida salienta que o coeficiente específico de dedução que permite calcular a percentagem de dedução apenas com base no montante anual de juros foi somente introduzido pelo Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, pelo qual, a Administração Fiscal, tendo concluído, relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afetação real.
  14. A Requerida considera que, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da atividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, à partida, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação direta. Caso contrário, estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da atividade geral, com juros e capital do leasing. E, nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fração que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante atividade.
  15. O método do pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se-ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela atividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstrato, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão direta com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante atividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.
  16. É este efeito que o Ofício-circulado citado tem subjacente ao referir que o método da percentagem de dedução tout court “é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”. Pelo que não se pode concordar com a Requerente que a AT não tenha fundado a imposição do coeficiente específico de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, ou seja, na distorção significativa passível de ocorrer pelo método supletivo.
  17. A Requerida considera que, mesmo na aceção lata de disponibilização perfilhada pela Requerente, as características do contrato de locação financeira não são de molde a fazer recair sobre o locador encargos significativos associados à disponibilização dos bens locados “no decurso do contrato”.
  18. A Requerida alega que, para além de ineptidão, sempre se teria de concluir pela intempestividade do pedido, dado não se poder aqui aplicar, contrariamente ao alegado, o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, “in fine”, da LGT, conjugado com o n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.
  19. E, em síntese, a Requerida conclui o seguinte:
  1. O ato tributário reclamado, a ter sido, como alega a Requerente, efetuado em conformidade com o Ofício-Circulado n.º 30108/2009, não padece de qualquer ilegalidade;
  2. As instruções administrativas contestadas no ppa não se apresentam em desconformidade com a Diretiva IVA, tal como têm concluído a jurisprudência nacional e comunitária;
  3. O ato tributário reclamado já não se encontra em vigor na ordem jurídica, pelo que já não se mostra passível de revisão e, por outro lado, não pode a AT substituir-se aos contribuintes na impugnação graciosa ou judicial dos atos tributários;
  4. Acresce que foi a Requerente quem escolheu os critérios de imputação específicos, os quais não foram questionados pela AT, quer em sede de reclamação graciosa, quer no âmbito do procedimento de inspeção tributária, não se vislumbrando a existência de qualquer erro imputável aos serviços.
  5. Ademais, a Requerente não comprovou, conforme se impunha, que o critério de imputação em que sustenta a dedução adicional de imposto seja mais preciso do que o sugerido [supletivamente] no aludido Ofício-Circulado e que supostamente terá adotado.

III. – EXCEÇÕES INVOCADAS PELA REQUERIDA

  1. A Requerida na sua resposta invoca exceções que importa analisar em ordem a tomar sobre elas uma decisão. Vejamos, então, as razões invocadas:
  2. A Requerida considera que o ato de autoliquidação de IVA que a Requerente impugna no presente pedido de pronúncia arbitral já não se encontra vigente na ordem jurídica, porquanto foi substituído por uma nova liquidação adicional n.º 2020 ..., com imposto a pagar no valor de 30.589,83, acrescido de juros compensatórios no montante de € 3.521,23.
  3. E que, consequentemente, verifica-se falta de objeto da ação, o que determina a ineptidão da petição, visto que, nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi o artigo 29.º do RJAT, a petição é inepta quando falte em absoluto a causa de pedir ou o pedido, o que, nos termos do n.º 1 do artigo 186.º do CPC, consubstancia um vício de nulidade.
  4. Tendo por referência o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 7034/15.9T8VIS.C1, de 14.11.2017, no qual se diz que a causa de pedir é o ato ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir) e que a petição inicial será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (art.º 186.º, n.º 2, alínea a) do CPC). No referido aresto é ainda referido que a figura da ineptidão da petição inicial (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objeto inteligível) distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida.
  5. Ora, na petição do pedido de pronúncia arbitral existe de forma clara uma causa de pedir e o pedido é inteligível e adequado, na medida em que o ato de autoliquidação de IVA relativo ao período de tributação de 2016 não foi anulado, foi sim corrigido por um ato de liquidação adicional, e, consequentemente, continua válido e vigente na ordem jurídica, pelo que improcede a alegação da Requerida no sentido da petição do ppa ser inepta e de existir nulidade do processo.
  6. Importa agora cuidar da eventual caducidade do direito de ação, em concreto, da tempestividade do pedido de revisão oficiosa.

a)  A Requerida considera que o pedido de revisão do ato tributário só poderia ser apresentado ao abrigo do n.º 1, in fine, do artigo 78.º da LGT, isto é, com fundamento em erro imputável aos serviços, mas que, atentos os fundamentos invocados, não se verifica a existência de qualquer erro imputável aos serviços, logo, o pedido de revisão é intempestivo.

b) É sublinhado pela Requerida que, tal como explicitado na Instrução de Serviço n.º .../2018, da Direção de Serviços de Justiça Tributária, sancionada superiormente com despacho da Subdiretora-Geral para a Área de Justiça Tributária e Aduaneira, por delegação, de 04.06.2018, a supressão da “ficção legal” de “imputabilidade do erro aos serviços”, quanto aos atos tributários autoliquidados, configura uma eliminação de uma garantia, pois, por força da sua revogação, os contribuintes passaram a ter o ónus de comprovar a imputabilidade do erro que, pela lei antiga, legalmente se presumia atribuída aos serviços.

c) Com efeito, a norma do n.º 2 do artigo 78.º da LGT estabelecia que “[s]em prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”. Esta norma foi revogada pela norma da alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março de 2016 (orçamento do Estado para o ano de 2016).

d) Há que sublinhar que a circunstância da norma do n.º 2 do 78.º da LGT ter sido revogada não é impeditivo dos contribuintes apresentarem pedido de revisão oficiosa com fundamento em erro imputável aos serviços, desde que fundamentem e provem as razões de facto e/ou de direito atinentes ou motivadoras do referido erro.

e)  Importa, assim, invocar a jurisprudência ínsita no Acórdão do STA, proferida no processo n.º 02683/1.5BELRS0181/18, de 03.02.2021, no sentido de que “i. Para além do pedido de revisão a deduzir no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, nos termos do art.º 78, n.º 1, da LGT, o contribuinte tem ainda a faculdade de pedir a denominada revisão oficiosa do acto, dentro dos prazos em que a Administração Tributária a pode efectuar, previstos no art.º 78, da LGT. ii) Recorde-se que nos casos previstos na norma de iniciativa de revisão, podem os contribuintes provocar a revisão (cfr. n.º 7 da norma) a levar a efeito pela A. Fiscal, visto se entender a mesma revisão como um poder-dever (natureza vinculada), pois os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a Fazenda Pública tem de observar na globalidade da sua actividade (art.º 266, n.º 2, da CRP, art.º 55, da LGT), impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei. iii) A doutrina e a jurisprudência referem-se à autoliquidação para aludir ao acto cuja iniciativa pertence ao contribuinte, por disposição legal, consubstanciando-se na apresentação de uma declaração, o que pressupõe as necessárias operações de qualificação (identificação do "an debeatur") e quantificação (aferição do "quantum debeatur") necessárias para avaliar o montante de imposto a pagar ou a restituir, normalmente acompanhada do respectivo meio de pagamento (cfr.art.º 82, al. a), do CIRC, então em vigor; art.ºs 27 e 41, do CIVA). iv) Deve o aplicador do Direito relevar o elemento sistemático de interpretação, dado que o legislador fiscal, quanto a uma situação de autoliquidação e de cômputo do respectivo prazo, utilizou como termo inicial a data de entrega da declaração (cfr. art.º 131, n.º 1, do CPPT), não se vislumbrando qualquer obstáculo a que se utilize o mesmo critério na interpretação do art.º 78.º, n.º 1 da LGT para situações de autoliquidação, nas quais o termo inicial do prazo de quatro anos deve coincidir com a data de entrega da declaração que consubstancia a mesma autoliquidação, enquanto acto de "liquidação" que quantifica a obrigação tributária.”

f)  Veja-se, outrossim, a jurisprudência firmada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 02030/16.1BEBRG, datado de 21.04.2022, no sentido de que “1. No fundamento de revisão dos actos tributários, traduzido, pelo legislador, na menção do “erro imputável aos serviços”, esta imputabilidade não se reporta, como no direito civil, ao estado normal da pessoa que lhe permite discernir a importância e efeitos dos seus actos e, muito menos, tem a ver com a “capacidade de culpa”, penalista. ii) O termo “imputável” vale, aqui, em primeira linha, com o significado, comum, de “susceptível de ser imputado; atribuível”, o qual, conformado com a, necessária, compatibilização aos interesses em jogo (no art. 78.º da Lei Geral Tributária (LGT)), quer dizer, erro, no sentido de ilegalidade, não resultante de, provocada por, atribuída a, uma informação/declaração/intervenção do contribuinte ou obrigado tributário. iii) Esta conformação tem de ter presente que aos sujeitos passivos (tributários), além da, principal, de pagar a dívida tributária, são impostas, por lei, obrigações acessórias, “designadamente, as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações” – cf. art.º 31.º da LGT, o que implica ter cautelas quanto à decisão de atribuir (ou não) o erro ao contribuinte ou outro obrigado.

g) Por fim, atente-se na jurisprudência enunciada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 00412/12.7BEPRT, de 05.03.2020, em que se diz que “i) Vigora no ordenamento jurídico português o dever de a Administração proceder à revisão dos actos tributários, no prazo de quatro anos a contar da data da exigibilidade do imposto, sempre que detecte uma situação de cobrança ilegal de tributos, seja por excesso, seja por defeito. ii) Existe erro de direito, fundamento do pedido de revisão do acto tributário, se na autoliquidação do imposto foi deduzido menos imposto do que o devido, por incorrecta aplicação do método (designadamente, o método de dedução directa integral - o sistema de débitos directos - método de afectação real). iii) O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 2, actual artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA. iv) Os prazos para a revisão do acto tributário e para o exercício do direito de liquidar contam-se de modo diferente, não havendo coincidência no dies a quo de cada um dos prazos: O prazo de quatro anos para o sujeito passivo pedir a revisão (que é o mesmo em que a AT pode proceder à revisão) conta-se da liquidação. O prazo de caducidade do direito à liquidação conta-se a partir da ocorrência do facto tributário ou – como sucede no caso do Imposto sobre o Valor Acrescentado – a partir do termo do ano em que este se verificou, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 45.º da LGT.”

h) O pedido que vem formulado pela Requerente é enquadrável como erro de direito, porquanto decidiu utilizar o método do pro rata para quantificar o imposto incorrido nos recursos de utilização mista, quando o método da afetação real, tendo por base critérios objetivos de imputação, seria o método que melhor se ajustava ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista e, deste modo, aquele que melhor garantia o princípio da neutralidade, princípio estruturante do imposto sobre o valor acrescentado.

i)  Assim, em face do exposto e, à luz da jurisprudência do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, proferido no processo n.º 984/14.1BELLE, de 08.07.2021, em que se diz que “É erro de direito, passível de possibilitar a correção da dedução, através do prazo mais longo de quatro anos, o erro na dedução do imposto que consiste em não fazer qualquer dedução de IVA de bens e serviços adquiridos exclusivamente para a realização de operações tributáveis, bem como no apuramento errado da percentagem de dedução, com base em certo entendimento da Administração Tributária sobre o modo de aplicação dos métodos de dedução”, importa concluir que a utilização de um pro rata específico para apuramento do IVA dedutível em vez da utilização do método da afetação real tem enquadramento na conceptualização do erro de direito, podendo a correção do imposto dedutível ser perspetivada à luz do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA e do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

j) A circunstância da Requerente não ter apresentado o pedido de revisão do ato de autoliquidação no prazo de dois anos (art.º 131.º do CPPT) não faz precludir o direito da Requente à revisão do direito à dedução do IVA, por via da revisão do referido ato tributário, desde que invoque erro imputável aos serviços e proceda ao ónus probatório adequado e necessário a justificar a motivação do erro, sendo, portanto, tempestivo o pedido de revisão oficiosa apresentado no prazo de quatro anos a contar do ato de autoliquidação.

45.  Assim, por todas as razões supra enunciadas, improcedem as exceções invocadas pela Requerida.

IV - SANEAMENTO

  1. O tribunal arbitral é materialmente competente, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
  2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  3. O processo não enferma de nulidades.
  4. Em face do disposto no normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente.
  5. Não se verificam quaisquer circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa ou que impeçam o tribunal de apreciar e de decidir.

V. MATÉRIA DE FACTO

V.1. Factos provados

51.  Em relação à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 29.º do RJAT, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar os factos considerados provados e os não provados. O tribunal considera provados e relevantes para a decisão arbitral os factos seguintes:

51.1 A Requerente é uma instituição de crédito tipo caixa económica bancária, cujo objeto social consiste na realização de operações descritas no n.º 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.

51.2 A Requerente é sujeito passivo de IVA, isto é, um sujeito passivo misto, porquanto, realiza operações que conferem direito a dedução de IVA (operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos) e, outrossim, operações que não conferem direito a dedução de IVA, em concreto, operações financeiras (operações de financiamento/concessão de crédito e o das operações relativas a pagamentos) enquadráveis na norma do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA.

51.3 Nas situações em que identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs), a Requerente determinou critérios objetivos do nível/grau de utilização efetiva e aplicou o método de afetação real, em função do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do CIVA.

51.4 Em relação às demais aquisições de bens e serviços, afetos indistintamente às diversas operações, para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível, a Requerente aplicou o coeficiente de imputação específico nos termos regulados pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009.

51.5 A Requerente em 30.12.2020 apresentou um pedido de revisão oficiosa a solicitar a apreciação da legalidade da autoliquidação de IVA relativo ao período de tributação de dezembro de 2016, consubstanciada na declaração periódica n.º ..., que visou substituir a declaração periódica n.º ..., na medida em que, na sequência de uma revisão interna de procedimentos, constatou que não havia exercido o direito à dedução do valor total do IVA incorrido na aquisição de bens e serviços diretamente relacionados com a atividade de gestão da carteira própria de títulos.

51.6 O pedido de revisão oficiosa teve por fundamento a substituição do coeficiente de imputação especifico determinado de acordo com o previsto no Oficio-circulado n.º 30108/2009, de 30 de janeiro, que se cifrou no ano em análise em 4%, pelo método da afetação real, visto que, em relação à atividade de gestão da carteira própria de títulos, a Requerente concluiu ser possível a determinação de critérios objetivos para quantificar o IVA dedutível em relação à utilização de recursos mistos na referida área, critérios de afetação real que identifica no documento 3, os quais determinaram IVA a regularizar a favor do Estado no valor de € 31.361,63, e a favor do sujeito passivo no valor de € 140.734,03, o que determina IVA a favor da Requerente no valor de € 109.372,40, conforme consta do documento 4, ambos anexos ao ppa.

51.7 O pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho de 07 de maio de 2021, exarado na Informação n.º 23-ISC/2021, processo n.º ...2020..., da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (cfr. Doc. 1 anexo ao ppa), e notificado à Requerente em 24 de maio de 2021.

51.8 A Autoridade Tributária e Aduaneira, através dos Serviços de Inspeção Tributária SIT) da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), a coberto da Ordem de Serviço n.º OI2018..., de 01.03.2018, emitida em nome da Requerente, realizou uma ação de inspeção aos períodos de tributação do ano de 2016, cujo âmbito incidiu sobre o IVA.

51.9 Em relação ao período de tributação de dezembro de 2016, em face das declarações periódicas de IVA apresentadas pela Requerente e dos DC’s (Documento de Correção) elaborados pelos serviços da AT, em nome da Requerente, foi liquidado IVA, sucessivamente, nos valores infra indicados:

i) DP n.º..., submetida em 2017-02-14, no valor de €1.586.263,81;

ii) DP n.º..., submetida em 2017-02-09, no valor de €1.573.329,12;

iii) DC n.º ... (DC Justiça Tributária), reportado à data de 14.02.2017, no valor de €1.304.795,76;

iv) DC n.º ... (DC Inspeção Tributária), submetido em 27.12.2019, no valor de €1.616.815,69.

51.10   A liquidação adicional de IVA, n.º 2020 ..., relativa a imposto no valor de € 30.589,83, e de juros compensatórios no valor de 3.521,23, o que perfaz o valor de € 34.111,06, foi paga em 22.04.2020.

51.11   O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 17.08.2021.

 

V.2. Factos não provados

  1. Não há factos essenciais com relevo para apreciação do mérito da causa, os quais não se tenham provado.

 

VI. MATÉRIA DE DIREITO

  1. Em ordem a decidir sobre a matéria controvertida nos presentes autos de arbitragem tributária, importa elencar e escalpelizar o direito aplicável.
  2. A Requerente veio impugnar o ato de autoliquidação de IVA, relativo ao período de tributação de dezembro de 2016, com fundamento em ilegalidade, visto que em relação aos recursos de utilização mista utilizou um pro rata específico, porquanto assimilou o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira vertido nas orientações administrativas ínsitas no Ofício-circulado n.º 30108/2009, de 30 de janeiro, tendo, posteriormente, concluído que a adoção deste método de cálculo de dedução do IVA incorrido nos recursos de utilização mista não refletia a realidade da sua utilização em relação à sua atividade no domínio da gestão de carteira de títulos própria, razão pela qual considera que o coeficiente de dedução específico decorrente do Ofício-circulado n.º 30108/2009 não se apresenta consentâneo com o princípio da neutralidade, violando, assim, um dos princípios fundamentais do imposto sobre o valor acrescentado.
  3. Uma vez que a opção pela adoção do método do pro rata específico para cálculo do IVA incorrido nos recursos de utilização mista decorreu exclusivamente da vontade de acolher o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, a Requerente considera que, por tal facto, se verificou a entrega de imposto em excesso nos cofres do Estado, na medida em que não deduziu parte do IVA suportado nos recursos de utilização mista e conexos com a atividade de gestão de carteira de títulos própria, razão pela qual considera que o erro que existe no ato de autoliquidação do IVA em relação ao períodos de tributação do ano de 2016 e expresso na declaração periódica do mês de dezembro de 2016 é imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira.
  4. Nesta medida, a Requerente veio solicitar a anulação parcial do ato de autoliquidação do IVA, relativo ao período de tributação de dezembro de 2016, no valor de € 109.372,40, visto que, na sequência de revisão de procedimentos internos, verificou que a dedução do IVA suportado na aquisição de recursos de utilização mista, em concreto, na área de gestão da carteira de títulos, efetuada em função da adoção do pro rata específico se mostrou desajustada com o efetivo consumo de recursos pela referida área de atividade, pelo que procedeu à correção do valor do imposto deduzido em relação aos referidos recursos de utilização mista, em função da adoção do método de afetação real atenta a ligação direta existente entre um conjunto dos referidos recursos e a área de atividade de gestão de carteira de títulos.
  5. A Requerente encontra-se inscrita como sujeito passivo de IVA, do tipo misto com afetação real de parte dos bens, como início de atividade em 24.03.1944, com enquadramento no regime normal de periodicidade mensal, para o exercício da atividade principal de “Outra intermediação monetária”, CAE 64190, e atividades secundárias de “Arrendamento de bens imobiliários”, CAE 68200, e “Compra e venda de bens imobiliários”, CAE 68100, sendo uma instituição de crédito, abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.
  6. Em sede de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal com periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º CIVA, realizando operações isentas sem direito à dedução, nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, e bem assim, operações sujeitas, e isentas com direito à dedução, nos termos do artigo 20.º do mesmo código. Nestes termos, tendo em consideração a natureza das atividades praticadas, a Requerente qualifica-se como um sujeito passivo misto.
  7. O direito à dedução é visto como um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado e que é exercido imediatamente para a totalidade dos impostos que oneraram as operações efetuadas a montante. O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, em conformidade com o consignado nos artigos 7.º e 8.º do CIVA, sem prejuízo do disposto nos artigos 78.º e 98.º do CIVA, consagrando este último normativo um prazo máximo para o exercício do direito à dedução, ou seja, decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução.
  8. O exercício do direito à dedução do IVA obedece aos pressupostos e às regras ínsitos nos artigos 19.º, 20.º, 21.º e 22.º do CIVA, sendo que, no caso dos sujeitos passivos mistos, têm que ser observados os preceitos que regulam os métodos de dedução relativa a bens de utilização mista constantes do artigo 23.º do CIVA, os quais dispõem que quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º do CIVA, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo: i) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afeto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, o imposto não dedutível em resultado dessa afetação parcial é determinado nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA; ii) Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA, tratando-se de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.
  9. A percentagem de dedução a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.
  10. Por sua vez, o n.º 2 do artigo 23.º do CIVA estabelece que, não obstante o disposto da alínea b) do n.º 1 deste artigo, o sujeito passivo pode efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo da Autoridade Tributária e Aduaneira  lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.
  11. Verifica-se, assim, que o direito à dedução do IVA suportado na aquisição de bens e de serviços (inputs) se encontra condicionado à existência de uma relação direta e imediata com as operações efetuadas pelo sujeito passivo que, inserindo-se no perímetro do conceito de atividade económica, sejam tributadas. A dedução será, porém, parcial caso aqueles inputs sejam mistos, isto é, simultaneamente afetos a operações tributadas ou operações não tributadas por se encontrarem isentas de IVA ou, simplesmente, fora do seu campo de incidência. Deste modo, a dedução do IVA deverá ser proporcional às operações que conferem direito a dedução. Esta proporcionalidade, no caso particular dos sujeitos passivos mistos, deve ser aferida, numa perspetiva ex ante, em função do método da afetação real, assente numa separação contabilística tendo por referência critérios objetivos de repartição dos inputs, ou, numa perpsetiva ex post, no método da percentagem de dedução ou pro rata, que toma como referência os outputs de cada atividade, concretizados, no volume anual de negócios.
  12. Independentemente do método adotado, o direito à dedução do IVA é um instrumento de realização do princípio da neutralidade, princípio estruturante do imposto sobre o valor acrescentado, através do qual se visa libertar inteiramente os sujeitos passivos do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. Há que sublinhar que a importância do direito à dedução do IVA foi logo reconhecida na 1.ª Diretiva IVA, de 11 de abril de 1967, sendo que, nas diretivas seguintes, este mecanismo foi considerado como verdadeiramente caracterizador da economia do imposto e garante da neutralidade que esta tributação visa assegurar. Também ao nível jurisprudencial, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), sempre que é caso disso, reforça a relevância interpretativa deste instrumento da mecânica do imposto. No acórdão SKF, processo C-29/08, de 29 de outubro de 2009, o parágrafo 57 dispõe: “Com efeito, o regime das deduções destina-se a libertar completamente o empresário do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. Por conseguinte, o sistema comum do IVA garante a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as mesmas estarem, em princípio, sujeitas ao IVA (…)”. É também a jurisprudência comunitária que equipara a neutralidade do IVA ao “princípio da igualdade de tratamento”, como decorre do parágrafo 49 do acórdão Marks & Spencer plc, processo C-309/06, de 10 de abril de 2008, nos seguintes termos: “(…) cumpre recordar que o princípio da neutralidade fiscal constitui a tradução, em matéria de IVA, do princípio da igualdade de tratamento (…)”
  13. Aquando da alteração do artigo 23.º do CIVA, através do artigo 52.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, no sentido de uniformizar a aplicação das alterações introduzidas naquele artigo do CIVA, em matéria do exercício do direito à dedução do IVA pelos sujeitos passivos mistos, através do Ofício-circulado n.º 30103, de 23 de abril de 2008, a Administração Tributária criou amplas e minuciosas orientações genéricas (instruções administrativas) de que se destaca o ponto IV relativo aos “Métodos de determinação da dedução relativamente a Bens ou Serviços de utilização mista”, no qual se dispõe:

“1.Segundo o previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA, sempre que esteja em causa a determinação do IVA dedutível respeitante a bens ou serviços parcialmente afetos à  realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica, é obrigatório o recurso à afetação real dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens ou serviços nessas e nas  restantes operações, conforme se prevê no n.º 2 do mesmo artigo.

2. Tratando-se bens ou serviços afetos à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica, parte das quais não conferem direito à dedução, a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 23.º do CIVA, estabelece que o imposto dedutível seja determinado mediante a utilização de uma percentagem, apurada nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, sem prejuízo de o sujeito passivo poder optar pela afetação real, nos termos do n.º 2.

3. No caso de utilização da afetação real, obrigatória ou facultativa, e ainda segundo o n.º 2 do artigo 23.º, os critérios a que o sujeito passivo recorra para determinar o grau de afetação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.

4. As correções ou alterações a que se refere o número anterior devem ser promovidas pelos competentes serviços de inspeção, quando, no exercício das respetivas competências, detetem vantagens injustificadas no exercício do direito à dedução.”

66. No sentido de clarificar e especificar alguns dos aspetos integrados nas orientações genéricas ínsitas no Ofício-circulado n.º 30103, em 30 de janeiro de 2009, a Administração Tributação criou e divulgou as instruções administrativas a que se refere o Ofício-circulado n.º 30108, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

67. As instruções genéricas ou administrativas são um instrumento do exercício da atividade tributária, que, no essencial, visam a uniformização da interpretação e aplicação das normas tributárias pelos serviços, pois, a elas se referem o artigo 55.º do CPPT e o artigo 68.º-A da LGT, as quais, sendo da exclusiva competência do dirigente máximo do serviço ou do funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, vinculam os funcionários e os órgãos da Administração Tributária, mas não vinculam os contribuintes. Estes apenas estão sujeitos à lei, podendo, todavia, optar por cumprir as suas obrigações tributárias em conformidade com o estabelecido nas orientações genéricas dos serviços e, neste caso, em caso de erro, este poderá, eventualmente, ser imputado aos serviços da Administração Tributária (cf. n.º 2 do art.º 43.º da LGT).

68. Quanto à questão dos normativos dos artigos 173.º a 175.º da Diretiva IVA não terem sido transpostos para o direito interno nacional e do cálculo do pro rata a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA, das instruções administrativas ínsitas nos Ofícios-circulados n.ºs 30103 e 30108, respetivamente, de 23.04.2008 e de 30.01.2009, não respeitarem o direito Europeu e, inclusive, violarem o princípio da legalidade tributária (art.º 266.º da CRP e art.º 55.º da LGT), importa trazer à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2021, publicado no Diário da República n.º 224, 1.ª Série, de 18 de novembro de 2021, em cujo sumário se prescreve “Acórdão do STA de 24 de Março de 2021, no Processo n.º 87/20.0BALSB - Pleno da 2.ª Secção. Uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: «Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação.»”

69. Não obstante a existência de orientações genéricas, os contribuintes apenas estão vinculados à lei e são livres de interpretar e aplicar as leis tributárias em função do seu entendimento e não estão obrigados a aplicar “cegamente” e sem sentido crítico os entendimentos preconizados pelos serviços da Administração Tributária (cf. Acórdão do TCA Sul, processo n.º 1481/09.2 BELRS, de 10.03.2022). Todavia, não se poderá excluir em termos absolutos a possibilidade dos contribuintes poderem sem induzidos em erro caso optem por adotar os critérios veiculados pela Administração Tributária nas instruções administrativas divulgadas para interpretação e aplicação uniforme da lei tributária.

70. Há que sublinhar que, nos termos do n.º 2, in fine, do artigo 23.º do CIVA , e tal como afirmado no n.º 4 do ponto IV do Ofício-circulado n.º 30103 e no ponto 4 do Ofício-Circulado n.º 30108, caso os serviços de inspeção tributária da Autoridade Tributária e Aduaneira detetem ou identifiquem que o sujeito passivo obtém (ou obteve) vantagens injustificadas no exercício do direito à dedução podem fazer cessar a utilização do método adotado ou, então, proceder  às respetivas alterações ou correções, com os devidos fundamentos de facto e de direito, o que pode ocorrer até ao termo do prazo de caducidade do respetivo período de tributação.

71.É certo que o normativo do n.º 6 do artigo 23.º do CIVA prescreve que “[a] percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efetuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objetivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afetação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efetuadas, a qual deve constar da declaração do último período do ano a que respeita.”

72. Não se vislumbra que exista qualquer base legal que imponha, de forma imperativa e absoluta, que o sujeito passivo apenas possa proceder à correção do método adotado para cálculo do IVA incorrido nos recursos de utilização mista ao longo dos períodos de tributação de cada ano civil e que a correções a efetuar o tenha de ser, de forma exclusiva e definitiva, na declaração periódica do último período de tributação. Afigura-se-nos razoável e racional que o sujeito passivo só, posteriormente, e em tempo mais próximo ou afastado, ao termo do prazo para apresentação da declaração periódica do último período de tributação se aperceba do erro em que incorreu, devendo, portanto, à luz dos princípios da legalidade, da igualdade e da proporcionalidade, ter direito a proceder à correção da situação ilegal, de modo a adequar a dedução do IVA incorrido na aquisição dos recursos de utilização mista o mais possível à efetiva realidade da expressão operacional do exercício da atividade desenvolvida e em função do grau, proporção ou intensidade da utilização dos referidos recursos.

73. De igual modo, atento o normativo do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA que aponta no sentido do ato tributário poder ser alvo de revisão no prazo de quatro anos, não se nos afigura que, nos casos em que exista imposto entregue em excesso nos cofres do Estado, ainda que por erro imputável ao sujeito passivo, tal esteja absolutamente dependente da iniciativa do sujeito passivo e no prazo de dois anos, conforme previsto no artigo 131.º do CPPT, entendimento que é corroborado pela jurisprudência dos Tribunais Tributários supra enunciada. Por outro lado, a circunstância do contribuinte ter optado por adotar o método do coeficiente específico para quantificar o IVA dedutível em relação aos recursos de utilização mista, em vez de ter adotado o método da afetação real, não configura um erro subsumível ao normativo do n.º 6 do artigo 78.º do CIVA, visto que não está em causa  “[a] correção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º (…)”, está sim em causa um direito de direito na qualificação dos factos justificativos do exercício do direito à dedução do IVA, erro que é enquadrável no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA.

74. In casu, o sujeito passivo pretende efetuar a correção do método do pro rata – coeficiente específico de dedução – pelo método da afetação real, porquanto concluiu ser este o método que melhor corresponde à expressão da efetiva utilização de determinados recursos em relação aos quais foi possível identificar uma conexão direta com a área de gestão da carteira de títulos, obtendo, assim, uma melhor expressão do princípio da neutralidade do imposto.

75. Esta pretensão do sujeito passivo, à luz dos normativos do artigo 23.º do CIVA, bem como das instruções administrativas (ofício-circulado 30103 e 30108), apresenta-se-nos adequada e razoável, porquanto, é a própria Administração Tributária que diz que “(…) seguindo as regras do artigo 23.º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, exceto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma atividade económica, caso em que é obrigatória a afetação real. Nos demais casos, a afetação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (n.º 3 art.º 23.º).”. E mais adiante é ainda disto que “Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.”.

76. Nesta medida, não se nos afigura que, com o fundamento de que a revisão do ato de autoliquidação do IVA referente ao período de tributação de dezembro de 2016 só podia ter sido efetuada no prazo de dois anos a contar da apresentação da respetiva declaração periódica (art.º 131.º do CPPT) ou de que a correção do método de dedução do IVA incorrido na aquisição dos recursos de utilização mista devia ter sido efetuada na declaração periódica do último período de tributação, in casu, o mês de dezembro de 2016, possa obstar à consideração e acolhimento da pretensão da Requerente.

77.  Como já se referiu o erro em que a Requerente incorreu não é subsumível no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA, na medida em que não se trata de um erro material, de cálculo ou de registo, ao invés consubstancia um erro de enquadramento ou de qualificação (erro de direito) enquadrável no normativo no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, logo passível de correção no prazo de quatro anos. Por forma a ilustrar este entendimento socorremo-nos da jurisprudência firmada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 984/14.1BELLE, de 08.07.202211, no sentido de que “[é] erro de direito, passível de possibilitar a correção da dedução, através do prazo mais longo de quatro anos, o erro na dedução do imposto que consiste em não fazer qualquer dedução de IVA de bens e serviços adquiridos exclusivamente para a realização de operações tributáveis, bem como no apuramento errado da percentagem de dedução, com base em certo entendimento da Administração Tributária sobre o modo de aplicação dos métodos de dedução.”.

78.  Pela sua relevância para a matéria em apreciação importa ainda enunciar a jurisprudência firmada nos arestos do Supremo Tribunal Administrativo infra identificados, em cujos sumários se afirma:

  • Processo n.º 01023/15.0BELRS, de 12.05.2021

“I - O legislador português fixou, no Código do IVA, dois conjuntos de prazos para efeitos do exercício do direito à dedução do IVA, consoante tal exercício se processe em termos normais ou patológicos.

II - Uma correção motivada pela indevida utilização de um método legal de dedução, quando um outro método legal deveria ser aplicável, configura um forçoso erro de Direito (situação patológica), sendo tempestivo o pedido de correção/revisão da autoliquidação se efetuado no prazo de quatro anos.”

  • Processo n.º 0796/15.5BEVIS, de 07.04.2021

“I - Se o município declara IVA relativamente a bens de utilização mista por erro de enquadramento ou de direito e vem a substituir o método de dedução de IVA pelo de “pro rata” não é de aplicar o prazo previsto no art.º 23.º n.º 6 do CIVA., mas o prazo máximo previsto no art.º 98.º n.º 4 do CIVA.

II - Tal está de acordo com a jurisprudência do TJUE, segundo a qual: “O direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado-Membro que, em circunstâncias como as do processo principal, em que o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) foi faturado ao sujeito passivo e por ele pago vários anos depois da entrega dos bens em causa, recusa o benefício do direito ao reembolso do IVA com o fundamento de o prazo de preclusão previsto nessa regulamentação para o exercício desse direito ter começado a correr na data da entrega e ter expirado antes da apresentação do pedido de reembolso.”- cfr., entre outros, acórdão “Volkswagen AG”, de 21-3-2018, no proc. C-533/2016, e acórdão “Biosafe”, de 12-4-2018, proferido no proc. C-8/17.”

  • Processo n.º 0136/14.0BEALM, de 02.12.2020

“I - A inclusão do valor dos descontos na matéria tributável do IVA constitui um erro de direito.

II - A correção da autoliquidação efetuada com base nesse erro de direito pode ser objeto de pedido de revisão oficiosa ao abrigo do disposto nos artigos 98.º n.º 2 do CIVA e 78.º da LGT, não tendo “aplicação o prazo de dois anos previsto no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA”.”.

  • Processo n.º 01427/14, de 28.06.2017

“O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA.”.

79.  A mesma linha de entendimento jurisprudencial se encontra no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 00412/12.7BEPRT, de 05.03.2020, no qual se afirma que “i). Vigora no ordenamento jurídico português o dever de a Administração proceder à revisão dos atos tributários, no prazo de quatro anos a contar da data da exigibilidade do imposto, sempre que detete uma situação de cobrança ilegal de tributos, seja por excesso, seja por defeito. ii) Existe erro de direito, fundamento do pedido de revisão do ato tributário, se na autoliquidação do imposto foi deduzido menos imposto do que o devido, por incorreta aplicação do método (designadamente, o método de dedução direta integral - o sistema de débitos diretos - método de afetação real). iii) O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 2, atual artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA. iv)  Os prazos para a revisão do ato tributário e para o exercício do direito de liquidar contam-se de modo diferente, não havendo coincidência no dies a quo de cada um dos prazos: O prazo de quatro anos para o sujeito passivo pedir a revisão (que é o mesmo em que a AT pode proceder à revisão) conta-se da liquidação. (…)”

80.  Importa, outrossim, ter em consideração a jurisprudência firmada no Acórdão do TCA Sul, proferido no processo n.º 192/09.3BESNT, de 24.02.2022, em que se afirma que “i) Para os sujeitos passivos mistos de IVA, ou seja, que pratiquem operações sujeitas e operações isentas de IVA, a dedução de IVA pode ser determinada por recurso (em alternativa ou em simultâneo) ao método da afetação real e/ou ao do pro rata (global ou parcial). ii) O método da afetação real pressupõe a possibilidade de determinar concretamente os inputs afetos às atividades tributadas e às atividades isentas, deduzindo-se integralmente o IVA suportado, no primeiro caso, e não se deduzindo no segundo. iii) No caso dos sujeitos passivos mistos, o método a utilizar, para cálculo do imposto dedutível, deverá ser o que assegure a maior neutralidade. iv) A análise, por parte da AT, da situação de um sujeito passivo, em termos de método de dedução utilizado, exige, antes de mais, que a administração demonstre, de forma sustentada, os pressupostos legais que legitimam a sua atuação. v) Tal demonstração não se verifica quando a mesma se reduz a afirmações de carater conclusivo e parcamente consubstanciadas.”.

81. Chegados aqui, e considerando que o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente foi indeferido com o fundamento de que a situação em análise – substituição ou correção do método do coeficiente de imputação específico (pro rata) pelo método da afetação real – seria enquadrável no prazo especial previsto no n.º 6 do artigo 23.º do CIVA, consubstanciando este uma das disposições especiais a que alude a parte inicial do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, afastando, assim, a aplicabilidade do prazo de quatro anos previsto neste último normativo, importa concluir que, com base em tal fundamento, o pedido de revisão oficiosa foi indevidamente indeferido, sendo, consequentemente, tal decisão ilegal.

82.  Quanto ao argumento da Requerida exposto no artigo 47.º da sua resposta que refere que “Na verdade, a Requerente limita-se a afirmar que “o critério acima referido era aquele que melhor se coadunava com a sua realidade operacional”, remetendo para o Documento 3 - cujo efeito jurídico pretendido obter com a junção desde já se impugna – que mais não faz do que evidenciar a sua forma de cálculo, quando aquilo que se impunha era comprovar que tal critério permite uma determinação mais precisa do grau de utilização dos inputs de utilização mista.”, há que realçar que caso o mérito do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente tivesse sido apreciado, a Requerida teria tido oportunidade de, à luz da lei, recusar a aplicabilidade do método da afetação real com fundamento em razões substantivas, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 032/20.2BALSB, de 21.04.2021, que diz que “[n]os termos do disposto no art.º 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações (inputs promíscuos) através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”, sendo certo que, in casu, o que a Requerida defende é que o método adequado para apurar o IVA incorrido nos recursos de utilização mista é o método do coeficiente de imputação específico e não o método da afetação real.

83.  Atenta a sua conexão com a matéria em apreciação no presente ppa, é relevante enunciar o segmento subsequente do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 984/14.BELLE, em que se diz “(…). O âmbito de aplicação dos normativos em presença resulta da distinção entre erro material ou de cálculo (artigo 78.º/6, do CIVA) e o erro de direito (artigo 98.º/2, do CIVA). A este propósito, cumpre referir que «estar-se-á perante um erro material no preenchimento do montante de IVA dedutível numa declaração quando se pretenda escrever um determinado montante e, por descuido ou lapso, acabou por se escrever montante diferente ou quando o erro do preenchimento da declaração resulta de um erro anterior do mesmo tipo que exista na contabilidade ou em algum documento que sirva de base ao exercício do direito à dedução. Estar-se-á perante um erro de cálculo, quando as operações aritméticas para determinar o montante do IVA dedutível foram mal efetuadas, na própria declaração ou em algum dos documentos em que ela se baseia». Por seu turno, os erros de direitos correspondem a «situações em que há um incorreto apuramento do pro rata, motivado por uma inexata subsunção no normativo aplicável das operações em que influenciam o cálculo, nomeadamente, no que que concerne ao enquadramento de uma operação como tributada quando a mesma é isenta, bem como aquelas situações em que o sujeito passivo, desenvolvendo várias atividades, efetua a dedução por recurso ao pro rata num primeiro momento e passa a utilizar o método da afetação real para efetuar a dedução do imposto exclusivamente afeto a determinada atividade, pretendendo corrigir a dedução que efetuou no passado com base no método do pro rata». A este propósito, o STA considerou que «[é] de concluir que a Autoridade Tributária e Aduaneira, através da Direção de Serviços do Imposto sobre o valor Acrescentado, separou, nitidamente, o que considerou serem erros materiais ou de cálculo circunscrevendo-os, basicamente, a operações mecânicas (erros de transcrição ou de registo na declaração periódica) das não mecânicas, ou seja, das que implicam interpretação da lei para a utilização dos métodos de dedução do IVA (designadamente alteração do método de dedução do imposto nos sujeitos passivos mistos, ou apuramento do pro rata).

No caso em exame nos autos, está em causa o pedido de revisão da autoliquidação do imposto, com vista à restituição do excesso do imposto entregue ao Estado, com base em erro na aplicação dos métodos de dedução, dado que o autor não fez qualquer dedução de IVA de bens e serviços adquiridos exclusivamente para a realização de operações tributáveis, bem como apurou de forma errada o pro rata de dedução, com base no entendimento veiculado pela AT de que a opção por um dos métodos de dedução excluía a aplicação de outro. Entendimento que se veio a verificar ser desconforme à lei, dado que os métodos de dedução do imposto não se excluem mutuamente, desde que se trate de garantir a dedução do imposto suportado nas aquisições de bens e serviços, por parte do sujeito passivo, enquanto tal.

Numa situação semelhante à dos presentes autos, este TCAS teve ocasião de afirmar o seguinte: «[a]s correções em causa correspondem a retificações do método de cálculo do pro rata e alterações na aplicação concomitante do pro rata com o método de afetação real. Por isso, as mesmas têm subjacentes erros de direito e não meros erros materiais. Ou seja, estão em causa erros no cômputo do método da percentagem aplicada pelo contribuinte na aferição do imposto dedutível, erros que se prendem com a discriminação de atividades, com a classificação das mesmas e a identificação da percentagem de dedução aplicável. Tais erros são invocados pelo contribuinte como fundamento do pedido de revisão do ato tributário. // Não sofre dúvida que vigora no ordenamento jurídico português o dever de a Administração proceder à revisão dos atos tributários, sempre que detete uma situação de cobrança ilegal de tributos. É que, ao contrário do ato jurisdicional, o ato tributário, uma vez praticado, não implica o esgotamento do poder que lhe deu causa; seja o seu autor, seja o superior hierárquico deste, podem sempre refazer ou desfazer a decisão tomada. // O procedimento de revisão do ato tributário pode constituir «meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos ou contenciosos (quando for usada em momento em que aqueles podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do ato de liquidação)». // Seja como meio alternativo, seja como meio complementar, o procedimento de revisão do ato tributário não pode deixar de ser visto como forma de correção da tributação ilegal e injusta, atuando um dever de garantia da legalidade e da justiça, que recai sobre a Administração Fiscal. (…) // Donde se impõe reiterar a doutrina fixada no Acórdão do STA, de 28.06.2017, P. 01427/17, segundo a qual, «[o] prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA».”.

84.  Importa ainda trazer aqui à colação a jurisprudência ínsita no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 01023/15.0BELRS, de 12.05.2021, de cujo acervo se destaca o segmento seguinte” “(…). IV. O IVA, tal qual delineado originariamente pela 6.ª Diretiva, é um imposto que assenta numa lógica de tributação plurifásica pelo valor acrescentado introduzido pelos agentes económicos nas diferentes fases do circuito produtivo e que tem por objeto a generalidade das transações, correspondendo assim a uma base tributável muitíssimo alargada e a um sistema operativo onde o direito à dedução do IVA suportado a montante por um agente económico deve, salvo quando expressa e justificadamente se estabeleça em sentido contrário, ser sempre assegurado. O direito à dedução configura, por isso, a espinha dorsal de todo o sistema, e sem a sua geral aceitação, o IVA não configuraria, em bom rigor, um imposto “sobre o valor acrescentado”.

Daqui decorre, desde logo, que qualquer restrição injustificada ao exercício do direito à dedução do IVA suportado pelos contribuintes é, por definição, contrária ao sistema de IVA e aos princípios de Direito Europeu que o enformam.

Isso não significa que, por razões de tutela da segurança dos créditos fiscais e da estabilidade das relações tributárias, não se possa exigir uma fixação de um prazo limite para o exercício de tal direito, conquanto um tal limite seja “razoável” – a expressão pode encontrar-se no Acórdão proferido em 21 de janeiro de 2010, no Processo C-427/08, pelo Tribunal da União Europeia (caso Alstom Power).

V. Assim, por um lado, temos o direito à dedução e à proteção do princípio da neutralidade. E este princípio impõe que o IVA não deva induzir os contribuintes a certos comportamentos económicos, como forma de reação aos diferentes encargos tributários, cabendo a cada sujeito decidir, independentemente de quaisquer considerações de ordem fiscal, qual a melhor forma de prosseguir os seus interesses - sobre as distorções ao princípio da neutralidade em IVA, veja-se José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, CEF, Lisboa, 1991, ps. 52 e ss.

Mas, por outro lado, razões pragmáticas de controlo e segurança jurídica, exigem que o exercício do direito á dedução se processe dentro de uma janela temporal razoável.

VI. Para tal exercício do direito à dedução, o legislador português fixou, no Código do IVA, dois conjuntos de prazos para o efeito, consoante tal exercício se processe em termos normais ou patológicos, distinção esta que bem se compreende, se atentarmos à metodologia de autoliquidação que rege a cobrança deste imposto.

Assim, o primeiro conjunto de prazos (situações normais) encontra-se regulado nos artigos 22.º e seguintes – sendo especialmente relevante in casu o artigo 23.º, n.º 6 do Código do IVA – e reporta-se aos casos de relacionamento normal entre o contribuinte e a Administração Fiscal na exigibilidade do imposto; nestes casos, o exercício regular do direito à dedução é regulado consoante o método de dedução adotado, e deve ser exercido num período mais curto (naturalmente), contado a partir do momento em que o imposto se torne exigível.

Já o segundo conjunto de casos reporta-se às situações patológicas, em que o exercício do direito à dedução foi inquinado por erros, falhas ou lapsos e, por conseguinte, pressupõe prazos mais longos para a respetiva correção, devidamente adequados às circunstâncias imponderadas que estão na sua base. Tais prazos encontram-se regulados pelos artigos 78.º, n.º 6 (sob a elucidativa epígrafe “regularizações”) e 98.º, n.º 2 do Código do IVA (sob a epígrafe “revisão oficiosa”), e são de dois e quatro anos, respetivamente.

Como, ainda muito recentemente, recordou o Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão proferido a 16 de Dezembro de 2020, no Processo n.º 940/07: “II-O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, em conformidade com o consignado nos artigos 7.º e 8.º do CIVA, sem prejuízo do disposto nos artigos 71.º, e 91.º, consagrando este último normativo um prazo máximo para o exercício do direito à dedução, ou seja, decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução.” (disponível em www.dgsi.pt).

VII. Cabe, portanto, apurar se é no domínio das situações normais ou das situações patológicas que se situa a factualidade do presente caso.

Tudo isto foi, devida e extensamente, esclarecido pela sentença ora recorrida, onde se sublinhou que os casos nos autos nunca poderiam configurar situações normais, apenas se devendo discutir acerca dos prazos aplicáveis às situações patológicas – na doutrina, veja-se, entre outros autores, Alexandra Martins / André Areias, “Os Prazos param a Regularização de Erros: Análise à Luz dos Princípios da Efetividade e Equivalência”, Cadernos de IVA – 2017 (Coord.: Sérgio Vasques), Almedina, 2017, ps. 53 e s..

Ora, julgamos inevitável concluir, à semelhança do que fez a sentença recorrida, que é patológico o presente circunstancialismo.

É que, como logo resulta do ponto D da matéria de facto provada e que já não cabe a este Supremo Tribunal questionar, “Na sequência de uma revisão interna de procedimentos, o Autor identificou, todavia, duas situações em que havia uma ligação direta e imediata entre os encargos suportados e os serviços prestados e em que não era devida a aplicação do método do pro rata de dedução (conforme invocado pelo Impugnante e não contrariado pela AT).”

Tal significa que nos encontramos diante regularizações respeitantes a recuperação de imposto incorrido em períodos de tributação anteriores, por revisão dos pro ratas então apurados e por implementação do método da afetação real; uma substituição, portanto, de métodos de apuramento da base tributável, por incorreta aplicação de um deles (o método pro rata, no caso), entendido por indevido - em termos não contestados pela própria AT.

Assim sendo, é de concluir que é no domínio das situações patológicas que se situa o presente debate, pelo que apenas restará clarificar qual dos dois prazos patológicos concretos se considera aplicável in casu; e, para tal efeito, quer os Tribunais Centrais Administrativos quer este Supremo Tribunal, já tiveram inúmeras ocasiões para fixar os termos em que tal aplicação tem lugar.

VIII. E há, agora, que segregar tal leitura jurisprudencial, em termos gerais e concretos.

Em geral, logo no recente Acórdão proferido em 17 de Junho de 2020, no Processo n.º 413/13, esclareceu este Supremo Tribunal, em termos que reputamos de lapidares, que: “I - A lei distingue prazos para o exercício do direito à dedução de IVA ou de reembolso de imposto entregue em excesso: - como regra, quatro anos, contados a partir do nascimento do direito à dedução ou do pagamento em excesso (art.98º nº 2 CIVA); - no caso de correção de erros materiais ou de cálculo, dois anos, contados a partir do nascimento do direito à dedução, sendo facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo e obrigatória quando resultar imposto a favor do Estado (art.º 78.º n.º 6 CIVA).” (disponível em www.dgsi.pt). Ainda mais recentemente, em 7 de Abril de 2021, relativamente ao Processo n.º 835/13, também se esclareceu neste Supremo Tribunal que: “O prazo aplicável para reclamar do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) entregue em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA.” E da mesma data consta o Acórdão proferido no Processo n.º 1056/15, onde se pode ler: “II - O prazo para proceder à retificação do imposto dedutível, em caso de erro material ou de cálculo, é o previsto no n.º 6 do artigo 71.º do Código do IVA, na redação da Lei n.º 39-A/2005, de 29/07 (que corresponde ao n.º 6 do artigo 78.º), ou seja, de dois anos.” (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Mas importa sublinhar que, já anteriormente, logo em 28 de Junho de 2017, se podia ler no Acórdão lavrado no Processo n.º 1427/14, que: “O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA.” (disponível em www.dgsi.pt).

Existe, por isso, uma sedimentada separação das situações patológicas de exercício do direito à dedução e dos seus respetivos prazos: por um lado, os erros materiais ou de cálculo, para os quais vigora o prazo de dois anos; por outro lado, os erros de Direito, relativamente aos quais vale o prazo de quatro anos.

IX. Vertendo agora à situação concreta dos autos, o auxílio jurisprudencial revela-se novamente precioso, por suficientemente cristalino.

É assim que, no Acórdão deste Supremo Tribunal, propalado em 7 de Abril de 2021, no processo n.º 2315/14, se pode ler que: “I - A errada qualificação das operações em causa como sujeitas e não isentas para efeitos de IVA constitui um erro de enquadramento ou erro de direito. II - A correção da autoliquidação efetuada com base nesse erro de direito pode ser objeto de pedido de revisão oficiosa ao abrigo do disposto nos arts. 98.º, n.º 2, do CIVA e 78.º da LGT, no prazo de quatro anos, não tendo aplicação o prazo de dois anos previsto no n.º 6 do art.º 78.º do CIVA.” (disponível em www.dgsi.pt).

Mas também nas instâncias imediatamente inferiores se denota esta convergência de análise. Assim, em acórdão lavrado em 5 de Março de 2020, no Processo n.º 412/12, pelo Tribunal Central Administrativo Norte, pode igualmente ler-se: “II - Existe erro de direito, fundamento do pedido de revisão do ato tributário, se na autoliquidação do imposto foi deduzido menos imposto do que o devido, por incorreta aplicação do método (designadamente, o método de dedução direta integral - o sistema de débitos diretos - método de afetação real). III - O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 2, atual artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA.” (disponível em www.dgsi.pt). De igual modo, também o Tribunal Central Administrativo Sul esclareceu, por acórdão proferido em 28 de Setembro de 2017, no Processo n.º 263/16, que: “2) Existe erro de direito, fundamento do pedido de revisão do ato tributário, se na autoliquidação do imposto foi deduzido menos imposto do que o devido, por incorreta aplicação do pro rata.” (disponível em www.dgsi.pt).

E contra esta leitura praticamente unívoca da jurisprudência não se invoque, como faz inadequadamente a Recorrente, o Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de Maio de 2011, proferido no processo n.º 0966/10, porquanto é cristalino que, não só se reporta a uma anterior redação legal do artigo 22.º do CIVA, como as suas conclusões se reportam a lapsos de escrita, aqui não verificáveis: “IV – Para além do art.º 71.º, n.º 6, do CIVA, não existe qualquer disposição legal que se possa interpretar como permitindo ao sujeito passivo o exercício do direito à dedução em momento posterior aos que resultam deste art.º 22.º indicados, nos casos em que, por lapso efetuado na sua contabilidade, só detete que tinha direito à dedução em momento posterior àquele em que o devia efetuar.” (disponível em www.dgsi.pt, sublinhado nosso).

Encontramo-nos, portanto, diante jurisprudência que também aqui acolhemos e da qual, salvo melhor opinião, não vemos razões óbvias para nos afastarmos. E, em respeito à mesma, forçosa é a conclusão de que uma correção motivada pela indevida utilização de um método legal de dedução, quando um outro método legal deveria ser aplicável, configura um forçoso erro de Direito, sendo tempestivo o pedido de correção/revisão da autoliquidação se efetuado no prazo de quatro anos.”

85. A Requerida tem razão quando no ponto 44 da sua resposta refere que “(..), foi a Requerente quem escolheu os critérios de imputação específicos, os quais não foram questionados pela AT, quer em sede de reclamação graciosa, quer no âmbito do procedimento de inspeção tributária, não se vislumbrando a existência de qualquer erro imputável aos serviços”, porém, invocando a Requerente que o coeficiente de imputação específico não se afigurava consentâneo com o efetivo consumo de recursos de utilização mista na área de gestão da carteira própria de títulos, pretendendo, assim, que lhe fosse validada a adoção do método da afetação real, deveriam os serviços da Requerida ter procedido à apreciação do mérito do pedido de revisão oficiosa do ato de autoliquidação de IVA relativo ao período de tributação de dezembro de 2016 e, em conformidade com a lei, ter acolhido a pretensão da Requerente ou, então, ter procedido ao seu indeferimento com fundamento em razões substantivas, designadamente, demonstrando que a adoção do método da afetação real lhe proporcionava vantagens injustificadas e motivava a ocorrência de distorções significativas na tributação. Não tendo procedido à apreciação do mérito do pedido de revisão oficiosa, tendo, ao invés, procedido, por despacho de 07 de maio de 2021, à sua rejeição liminar, a partir desta data, passou a ser imputável aos serviços da Requerida o erro de direito em que incorreu a Requerente.

86.  Assim, em face de todas as razões enunciadas, impõe-se concluir que o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é ilegal, bem como enferma de ilegalidade o ato autoliquidação de IVA relativo ao período de tributação de dezembro de 2016, fundado em erro de direito na adoção do método de apuramento do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, razão pela qual deve ser anulado parcialmente, no valor de € 109.372,40, o que se determina.

 

  1. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

87.  Conjuntamente com a anulação do ato de autoliquidação de IVA relativo ao período de tributação do ano de 2016, e o consequente reembolso do valor pago indevidamente, a Requerente pede, ainda, que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

88.  Nos termos da norma do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."

89.  Há que referir que, em face da norma do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral, sendo que o direito a juros indemnizatórios pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

90.  A circunstância da Requerente ter tido em consideração as orientações genéricas ínsitas nos Ofícios-Circulados n.ºs 30103 e 30108, respetivamente, de 23.04.2008 e de 30.01.2009, só por si, não é suficiente e determinante para considerar que o erro de direito em que incorreu é imputável aos Serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, porém, a circunstância do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 30.12.2020 ter sido, por despacho de 07 de maio de 2021, rejeitado liminarmente sem que o seu mérito tenha sido objeto de apreciação e, consequentemente, a situação tributária da Requerente não tenha sido apreciada e objeto de reparação, determina que, a partir de 07.05.2021, o erro de direito em que a Requerente incorreu por via da adoção do método de apuramento do IVA incorrido nos recursos de utilização mista seja imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira.

91.Nesta conformidade, em face das razões enunciadas, e porque a Requerente efetuou um pagamento de IVA, referente ao período de tributação de dezembro de 2016, de valor superior ao que, nos termos da lei, deveria de ter sido efetivamente pago, circunstância com que fundou o pedido de revisão oficiosa apresentado ao abrigo do artigo 78.º da LGT, é inequívoco que estamos perante um pagamento de imposto indevido. Assim, por força das normas dos n.ºs 1 e 2.º do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT, reconhece-se à Requerente o direito ao pagamento de juros indemnizatórios, contados à taxa legal sobre o montante indevidamente pago, desde a data de 07.05.2021, data da prolação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e até ao momento do processamento da nota de crédito.

VIII. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam, neste Tribunal Arbitral, em

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b) Revogar o despacho de indeferimento (rejeição liminar) do pedido de revisão oficiosa, proferido em 07 de maio de 2021, pelo Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, no processo n.º ...2020...;

c)  Anular parcialmente o ato de autoliquidação de IVA, relativo ao período de tributação do mês de dezembro de 2016, no valor de € 109.372,40;

d) Julgar procedente o pedido de restituição de IVA, no valor de € 109.372,40 e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios, à taxa legal, desde 07 de maio de 2021 e até à emissão da nota de crédito.

 

IX. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto o normativo do n.º 2 do artigo 306.º, do CPC e da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 109.372,40.

 

X. Custas

 

O valor das custas é fixado em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), ao abrigo do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 5 do RCPAT.

 

 

Lisboa, 19 de outubro de 2022

 

Os Árbitros

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

Jesuíno Alcântara Martins

(Árbitro Adjunto e Relator)

 

Sofia Ricardo Borges

(Árbitra Adjunta)