Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 367/2022-T
Data da decisão: 2022-12-15  IVA  
Valor do pedido: € 358.466,47
Tema: IVA – direito à dedução – IVA indevidamente liquidado
Versão em PDF

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Rui Duarte Morais (árbitro presidente), Catarina Belim e Raquel Montes Fernandes (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 30/08/2022, acordam no seguinte:

 

I.          Relatório

 

A..., LDA., adiante “Requerente”, com o número de identificação de pessoa coletiva ...  e sede na Rua ..., n.º..., ...-... Amadora, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”). 

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou “Requerida”.

 

A) O pedido

 

A Requerente pretende: 

(i)             a anulação das seguintes liquidações de IVA e de juros, bem como as correções ao excesso a reportar e demonstração de acertos de contas: 

 

Período

Liquidação IVA n.º 

Valor

JC

Valor

1805M

...

€ 2.578,76

...

€ 367,66

1806M

...

€ 1.453,23

...

€ 202,25

1807M

...

€ 608,85

...

€ 82,67

1808M

...

€ 2.376,92

...

€ 341.92

1809M

...

€ 5.492,65

...

€ 707,87

1810M

...

€ 8.753,68

...

€ 1.101,28

1811M

...

€ 3.352,11

...

€ 410,33

1812M

...

€ 19.961,26

...

€ 2.373,47

1901M

...

€ 12.338,73

...

€ 1.429,26

1902M

...

€ 9.914,78

...

€ 1.115,88

1903M

...

€ 10.645,33

...

€ 1.163,11

1904M

...

€ 8.821,66

...

€ 932,92

1905M

...

€ 6.823,87

...

€ 699,96

1906M

...

€ 6.758,7

...

€ 668,83

1907M

...

            € 3.116,99

...

€ 298,54

1908M

...

€ 10.135,16

...

€ 931,87

1909M

...

€ 2.865,65

...

€ 253,74

1910M

...

€ 9.970,11

...

€ 848,96

1911M

...

€ 25.631,97

...

€ 2.098,31

1912M

...

€ 15.636,05

...

€ 1.223,46

2001M

...

€ 11.380,64

...

€ 855,57

2002M

...

€ 10.691,93

...

€ 475,71

2003M

...

€ 12.910,35

...

€ 574,42

2004M

...

€ 12.930,02

...

€ 828,93

2005M

...

€ 6.931,31

...

€ 420,05

2006M

...

€ 5.743,36 

...

€ 329,81

2007M

...

€ 5.978,34

...

€ 322,99

2008M

...

€ 5333,24

...

€ 276,45

2009M

...

€ 8.339,13

...

€ 394,79

2010M

...

€ 6.339,32

...

€ 277,19

2011M

...

€ 8.722,58

...

€ 354,63

2012M

...

€ 13.785,68

...

€ 507,61

2101M

...

€ 4.173,35

...

€ 142,69

2102M

...

€ 6.869,94

...

€ 210,80

2103M

...

€ 6.996,96

...

€ 192,46

2104M

...

€ 9.501,46

...

€ 229,07

2105M

...

€ 7.899,7

...

€ 163,62

2106M

...

€ 5.964,24

...

€ 96,08

2107M

...

€ 7.835,31

...

€ 108,17

2108M

...

€ 8.753,87

...

€ 162,89

(ii)           e a condenação da AT no pagamento de custas. 

 

B) Posição das partes

 

As liquidações acima resultam de correções a deduções de IVA.

 

A Requerente contesta as correções às deduções respeitantes a IVA liquidado pelo respetivo prestador em operações de cedência de pessoal, operações que a Requerida considerou não sujeitas a IVA na medida em que entende que está em causa o exato reembolso dos custos de natureza salarial, segundo o Ofício-Circulado n.º 30019, de 04/05/2020, emitido pela Área de Gestão IVA.

 

Requerente defende que as liquidações sofrem de vícios de diferentes naturezas: 

a.     Ilegalidade por falta de fundamento legal - ausência dos pressupostos de facto e de direito em que assentam; e 

b.    Ilegalidade na correção da dedução do IVA. 

 

Dentro de cada categoria de vícios, a Requerente invoca os seguintes fundamentos de ilegalidade:

 

Posição da Requerente

a.    Ilegalidade por falta de fundamento legal – ausência dos pressupostos de facto e de direito em que assentam

1.

Falta a prova pela AT de que os montantes debitados correspondem ao reembolso exato dos custos de natureza salarial associados ao pessoal cedido.

2.

O Ofício Circulado n.º 30019 de 04/05/2020 não tem força de lei nem vincula os contribuintes.

3.

A solução do Relatório de Inspeção – de exclusão do campo de incidência do IVA das operações de cedência de pessoal com mero reembolso –  não é compatível com o direito europeu, conforme caso n.º C-94/19 do TJUE, 11/03/2020, que declara que: “O artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional em virtude da qual não são considerados relevantes para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado os empréstimos ou destacamentos de pessoal de uma sociedade‑mãe para a sua filial, realizados exclusivamente mediante o reembolso dos custos respetivos, quando os montantes pagos pela filial à sociedade‑mãe, por um lado, e esses empréstimos ou destacamentos, por outro, estiverem reciprocamente condicionados.” .

 

b.    Ilegalidade na correção da dedução de IVA

1.

Na medida em que o imposto foi pago, o mesmo, ainda que indevidamente liquidado, pode ser deduzido nos termos do artigo 20.º n.º 1, al. a) do CIVA, por estarmos perante serviços adquiridos/utilizados pela Requerente para a realização de operações sujeitas a IVA e dele não isentas.

2.

Negar a dedução deste imposto colide com o princípio da neutralidade ínsito ao sistema comum do IVA, o qual assegura que o imposto suportado na aquisição de serviços utilizados para a realização de operações tributáveis é dedutível, exceto quando se está perante uma situação de fraude ou evasão fiscal, que não é o caso.

3.

Negar a dedução do IVA conduziria a uma duplicação de coleta, que se afigura proibida, cfr. artigo 205.º n.º 1 do CPPT.

 

Na sua resposta, a Requerida invoca uma questão prévia, e defende-se por exceção e impugnação:

 

Posição da Requerida

1.

Questão prévia - atenta a causa de pedir, deve determinar-se que a Requerente contesta parcialmente os atos tributários, com fundamento em dedução indevida de IVA relativa a cedência de pessoal, e não o total das liquidações

2.

Por exceção - o tribunal é materialmente incompetente para conhecer da anulação das correções ao excesso a reportar (apenas pode conhecer do pedido de anulação das liquidações adicionais de IVA, de juros compensatórios, e respetivas demonstrações de acerto de contas), devendo a Requerida ser absolvida da instância quanto a esta parte do pedido

 

3.

Por impugnação:

(i)        quanto à não sujeição a IVA da cedência de pessoal -  não se está, através de orientações genéricas, a criar nenhuma exclusão tributária, mas somente a preconizar um tratamento em sede de IVA de determinadas operações de (re)débito de despesas em consonância com o princípio da neutralidade: o facto de o redébito se fazer pelo montante dos custos suportados “per se” não se mostra suficiente para que a operação se possa considerar não sujeita a IVA; o que aqui releva é o facto de a operação antecedente não ser sujeita a IVA e de, na operação de redébito, não se alterar, nem a natureza nem o valor daquela operação.

(ii)       quanto à negação da dedução:  o Tribunal de Justiça da União Europeia já declarou que o exercício do direito à dedução do IVA está limitado apenas aos impostos devidos e não pode ser estendido ao IVA indevidamente faturado e pago às autoridades fiscais (acórdãos de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C‑35/05EU:C:2007:167, n.os 23 e 27, e de 26 de abril de 2017, Farkas, C‑564/15EU:C:2017:302, n.o 47).

(iii)         quanto à duplicação de coleta: a duplicação da coleta, prevista no artigo 205º do CPPT, resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta, sendo que a não exigência de segundo pagamento, a que a invocação da duplicação de coleta se reconduz, apenas se pode justificar se o primeiro era devido, pois, se não o foi, o que foi pago poderá ser ulteriormente reembolsado, através dos meios adequados de impugnação e revisão do ato tributário e, numa situação desse tipo, não se justifica que se prescinda do segundo pagamento, que é efetivamente devido (cfr. Acórdão STA n.º 01079/12).

 

 

C) Tramitação processual 

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 20/06/2022. 

A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a designação do coletivo competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição. 

Os árbitros designados aceitaram tempestivamente a nomeação. 

O tribunal arbitral ficou constituído em 30/08/2022. 

A AT apresentou resposta em que aduziu exceções e apresentou o processo administrativo. 

Na sequência de despacho arbitral de 03/10/2022, a Requerente prescindiu da prova testemunhal indicada e apresentou Requerimento, em 21/10/2022, a indicar que o Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”) abrange todos os atos tributários identificados no pedido e não está em causa qualquer contestação parcial.

Por despacho arbitral de 7/12/2022 foi prescindida a realização da reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT, bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs a tal despacho.

 

II.         SANEAMENTO

 

II. 1 O Tribunal encontra-se regularmente constituído. As partes têm personalidade e   capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades.

 

II. 2   Questão prévia – contestação parcial dos atos 

 

Na sua resposta, a Requerida indica que a Requerente apenas contesta parcialmente os atos tributários, com fundamento em dedução indevida de IVA, relativa a cedência de pessoal, e não o total das liquidações.

 

Em Requerimento de 21/10/2022 ao Tribunal, a Requerente indica que o PPA apresentado abrange todos os atos tributários identificados no pedido e não está em causa qualquer contestação parcial.

 

Compulsados os autos, este Tribunal considera que o PPA tem por objeto os atos de liquidação de IVA e juros adicionais resultantes das correções efetuadas ao campo 24 das declarações periódicas quanto ao IVA pago por serviços de cedência de pessoal (ponto III.2 e III.3 do Relatório de Inspeção junto ao processo administrativo) o que exclui, no período de 201902, a correção efetuada no campo 20, no valor de € 756, 21, relativa a bens do ativo imobilizado (IVA decorrente de serviços de construção civil) (ponto III.1 e III.3 do Relatório de Inspeção junto ao processo) mas que também é aqui impugnada (inserida na liquidação do período de 2019.02).

 

Com efeito, no PPA não é efetuada referência a esta correção ao campo 20 ou aos serviços de construção civil em causa. Na medida em que, nos termos do artigo 124.º CPPT, apenas os vícios arguidos pelo Requerente são objeto de apreciação, conclui-se que relativamente ao período de 2019.02, o poder de apreciação do tribunal está limitado, não abrangendo assim as correções ao campo 20 no valor de € 756,21, dando-se razão nesta parte à Requerida.

 

II. 3   Exceção

          

Há que conhecer da exceção aduzida pela Requeridao tribunal é materialmente incompetente para conhecer da anulação das correções ao excesso a reportar.

 

No entender da Requerida, o tribunal é materialmente incompetente para conhecer da anulação das correções ao excesso a reportar e apenas pode conhecer do pedido de anulação das liquidações adicionais de IVA, de juros compensatórios, e respetivas demonstrações de acerto de contas.

 

Compulsada a resposta da Requerida, nota este Tribunal que a argumentação por si utilizada para sustentar esta exceção é baseada na incompetência do tribunal arbitral para anular atos administrativos de indeferimento de pedidos de reembolso de IVA. 

 

Ora, indeferimentos de pedidos de reembolso de IVA e correções ao excesso de IVA deduzido são atos distintos: os primeiros - atos de indeferimento de reembolso - negam, de forma autónoma, a concessão de um reembolso, o que se pode dever a motivos substanciais (correções ao excesso de IVA deduzido ou correções ao imposto por entregar) mas também a motivos formais (falta de apresentação de IBAN válido, existência de números inválidos nos fornecedores, cessação de atividade, falta de resposta etc.), enquanto que os segundos - atos de correção ao excesso a reportar - estão na base das liquidações adicionais de imposto e, inclusivamente, inseridos nestas (vide doc. 9 junto ao PPA). Nesta sede, para além dos documentos de correção não serem mais do que liquidações adicionais de imposto, as próprias notificações das liquidações adicionais de imposto demonstram os “valores corrigidos nas (DP/DC) declarações periódicas ou documentos de correção” para demonstrar o cômputo global de valor a pagar.  

 

Pelo que, apenas por aqui – pelo facto de as correções ao excesso a reportar consubstanciarem atos de liquidação adicional de imposto, a exceção seria improcedente.

 

Mas indo mais fundo, tendo em conta o que se estabelece no artigo 24.º do RJAT, sempre cabe referir que as decisões arbitrais têm, na prática, um efeito constitutivo, pois à declaração de ilegalidade dos atos estão associadas obrigações de execução idênticas às previstas para as decisões anulatórias, incluindo a reconstituição da situação que existiria se esse ato não tivesse sido praticado. No caso concreto, tal significaria que a declaração de ilegalidade e anulação das liquidações de IVA e juros em causa teria, necessariamente, por consequência, a anulação das correções ao excesso a reportar e demonstração de acertos de contas inerentes, o que levaria também à conclusão de que, por maioria de razão, o tribunal arbitral é materialmente competente para conhecer da anulação das correções ao excesso a reportar. 

 

Pelo que resulta indeferida a exceção invocada pela AT.

 

III.    PROVA

 

III.1  Factos provados

a.          A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto a atividade da indústria e comércio de panificação, pastelaria, confeitaria e afins.

b.          A Requerente está enquadrada, em sede de IVA, no regime normal mensal, com pleno direito à dedução.

c.          A Requerente deduziu nas suas declarações periódicas de IVA - campo 24 “Outros bens e serviços” entre os períodos de 2018.05 até 2021.08 (inclusive) - o IVA liquidado em faturas emitidas pela sociedade B... Unipessoal, Lda. (B...), respeitantes a cedência de pessoal, o qual foi pago pela Requerente à B... .

d.     A Requerente tinha uma relação comercial com a B... no âmbito da qual se realizou a cedência de pessoal.

e.     A Requerente acumulou um crédito de IVA na sua esfera e, na declaração periódica de 2021.08, solicitou um reembolso de IVA no valor de € 28.000.

f.      A Requerente foi objeto de uma inspeção interna cobrindo os anos de 2018, 2019, 2020 e 2021, cujo Relatório de Inspeção foi recebido em 03/03/2022.

g.     O Relatório considera que o IVA deduzido no campo 24 quanto à cedência de pessoal pela B... não era dedutível, na medida em que o IVA foi mal liquidado.

h.     Foram emitidas as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios identificadas no ponto I  A). 

i.      A Requerente apresentou PPA contra estes atos tributários. 

 

Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos, sendo que esta factualidade não foi questionada pela AT na sua resposta.

 

III.2   Factos não provados

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

IV.    O DIREITO

 

          IV.1 Ordem de conhecimento de vícios

 

De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, «na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação» e deverá dar-se prioridade aos «vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos»

 

No caso em apreço, afigura-se que o vício de ilegalidade na correção da dedução de IVA deverá ser apreciado prioritariamente, pois foi a dedução que foi corrigida na esfera da Requerente (a liquidação do IVA foi efetuada na esfera do prestador B...) e este vício tem potencialidade para assegurar eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente.

 

IV.2 Direito à dedução do IVA indevidamente liquidado

Como resulta do ponto I. B), a pretensão da Requerente é a de que tem direito à dedução do IVA incorrido, mesmo que o IVA tenha sido mal liquidado, na medida em que o imposto foi pago e incluído em despesas utilizadas na realização de operações que conferem direito à dedução. 

 

A Requerida contrapõe que o IVA apenas pode ser deduzido quando é devido, invocando para o efeito a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia nos acórdãos C‑35/05 e C‑564/15

 

Nesta sede, este Tribunal entende que a razão está com a Requerente: 

·            a jurisprudência invocada pela Requerida não é aplicável ao caso concreto, em que está em causa a liquidação e dedução de IVA nos termos normais; com efeito: 

(i)             o acórdão C-35/05 - Reemtsma Cigarettenfabriken, trata do regime específico do reembolso de IVA a entidades não residentes conhecido como 8ª diretiva, que contém provisões específicas relativas ao direito à dedução não aplicáveis em sede de liquidação e dedução do IVA nos termos gerais; 

(ii)           o acórdão C‑564/15 – Farkas, trata do regime específico de autoliquidação, segundo o qual não é admitida a dedução quando não acompanhada do movimento de autoliquidação, e que não se aplica no presente caso em que a liquidação e dedução de IVA seguem as regras gerais e não existe inversão do sujeito passivo;

·            a jurisprudência dos tribunais superiores, alicerçada no princípio basilar da neutralidade do IVA, considera que o princípio da dedução do IVA, enquanto meio de concretizar a neutralidade do imposto, impõe que todas as restrições ao direito de dedução sejam interpretadas de forma restritiva e reduzidas ao mínimo; 

·            nesta sede, conforme proferido no Acórdão do STA n.º 01455/12, de 07/10/2015, a dedução do IVA não é mais do que o “outro lado da moeda” do IVA devido e pago ao Estado ainda que indevidamente liquidado: 

“Ora, da aplicação conjugada de todas as normas invocadas, resulta demonstrado que o direito à dedução do IVA incorrido não está dependente de tal imposto ter sido devidamente liquidado pelo sujeito passivo, contrariamente ao que refere a Requerida.

Vem sendo jurisprudência unânime dos tribunais superiores que o IVA indevidamente liquidado em factura ou documento equivalente é, não obstante, devido ao Estado, competindo à entidade emitente do documento em causa a sua entrega ao Estado. Só desta forma é que se pode assegurar o princípio da neutralidade do imposto, quer para os intervenientes, quer para o próprio Estado. A título de exemplo, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04-06-2015, proferido no proc. n.o 07111/13 (disponível em www. dgsi.pt) em que se conclui que “(...) cada factura com menção de imposto, constitui um verdadeiro "cheque sobre o tesouro", pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o I.V.A. nela contido. Por isso, a simples menção do I.V.A. em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine sempre a obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um "devedor de imposto". Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar e se assegure o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados em sede de I.V.A. (cfr.ac.S.T.A.-2a.Secção, 24/4/2002, rec.26636; ac.S.T.A.-2a.Secção, 26/9/2012, rec. 555/12; ac.T.C.A.Sul-2a.Secção, 17/1/2012, proc.4711/11; José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, C.T.F. 362, Abr./Jun. 1991, pág.42 e seg.; F. Pinto Fernandes e N. Pinto Fernandes, Código do I.V.A. Anotado e Comentado, Editora Rei dos Livros, 4a. edição, Janeiro de 1997, pág.51; Clotilde Celorico Palma e Outros, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág.47).

 

(...) A razão de ser desta obrigação decorre do facto dessas mesmas facturas conterem I.V.A. dedutível por parte da entidade a favor da qual foram emitidas e, nessa medida, ser necessário assegurar que o imposto delas constante tenha dado entrada nos cofres do Estado.” 

 

O referido entendimento do Tribunal Central Administrativo Sul vem sustentado no aí mencionado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-09-2012, proc. n.º 555/12 (também disponível em www.dgsi.p), em que se concluiu que “(...) a simples menção do IVA em tais documentos, mesmo que porventura descabida, por não haver lugar ao mesmo, origina obrigação de imposto. Como ficou consignado no Acórdão deste Supremo Tribunal de 24/4/2002, proc no 26636, este resultado deriva tanto do carácter rígido e formalista do IVA como do facto de o sujeito passivo destinatário da factura ter o direito de dedução respectivo. Nas palavras de XAVIER DE BASTO ( Cfr. “A harmonização Fiscal na CEE”, Ciência e Técnica Fiscal, no 362, p. 44. ), cada factura com menção de imposto, constitui “um cheque sobre o tesouro, pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o IVA nela contido. Por isso, (...) a simples menção do IVA em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um “devedor de imposto”. Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar. Assim se assegura o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados”. Aplicando o exposto ao caso em apreço, verifica-se que o recorrente não era sujeito passivo de IVA e não estava obrigado a passar a factura, cuja cópia consta do ponto c) do probatório. No entanto, ao fazê-lo, a menção na mesma do imposto atribuiu ao destinatário (no caso dos autos, à B..., SA.), o direito de deduzir com base nela o IVA. Daí que o legislador comine que a simples menção do IVA no documento em causa origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, que se torna “devedor do imposto”, pois só assim se consegue, como refere XAVIER DE BASTO, “que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda uma obrigação de pagar”, com vista a assegurar “o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados” (sublinhado nosso).”.

·            sendo o direito à dedução do IVA essencial ao funcionamento do mecanismo deste imposto, este direito só pode ser limitado em situações excecionais;  no presente caso, tal limitação justificar-se-ia se estivéssemos perante operações simuladas, o que não se verifica – em nenhum momento são invocados indícios de simulação de negócio; pelo contrário, decorre dos autos que as operações da Requerente têm substância económica, que a cedência de pessoal aqui em causa é realizada no âmbito e para efeitos da sua atividade e que a Requerente pagou o IVA liquidado. 

Assim, entende este Tribunal que o imposto, que foi pago em operação não simulada, ainda que indevidamente liquidado, pode ser deduzido nos termos do artigo 20.º n.º 1 al. a) do CIVA, uma vez que os serviços de cedência de pessoal em causa foram adquiridos/utilizados pela Requerente para a realização de operações sujeitas a IVA e dele não isentas. Negar a dedução do imposto neste caso colidiria com o princípio da neutralidade ínsito ao sistema comum do IVA, o qual assegura que o imposto suportado na aquisição de serviços utilizados para a realização de operações tributáveis é dedutível, exceto quando se está perante uma situação de fraude ou evasão fiscal (que não se verifica). 

 

Conclui-se assim pela ilegalidade das liquidações aqui em causa quando limitam o direito à dedução do IVA pago sobre serviços não fraudulentos de cedência de pessoal.

 

IV.3  Questões de conhecimento prejudicado 

 

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por vício que assegura eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil o conhecimento dos restantes vícios imputados à liquidação impugnada (nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

 

V. DECISÃO ARBITRAL 

 

Anulam-se as liquidações impugnadas, IVA e juros, na parte respeitante às correções à dedução do IVA relativas à cedência de pessoal, com as devidas consequências legais, incluindo a anulação das correções ao excesso a reportar e demonstração de acertos de contas subjacentes. Mantêm-se na ordem jurídica as correções ao campo 20 (bens do ativo imobilizado) no valor de € 756.21 no período 2019.02. Devem as liquidações impugnadas ser reformuladas pela AT com observância do ora decidido.

 

 

VALOR: € 358.466,47

 

CUSTAS 

Fixa-se ao processo o valor de taxa de arbitragem de € 6.120,00, os termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respetivo decaimento, fixando-se o montante de € 11,02 a cargo da Requerente (considerando que a correção de € 756,21 representa 0,18% do total de correções) e de 
€ 6.108,98 a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

            15 de dezembro de 2022

 

Os árbitros,

 

Rui Duarte Morais

 

Catarina Belim 

 

Raquel Montes Fernandes