Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 469/2021-T
Data da decisão: 2022-01-19  IVA  
Valor do pedido: € 167.668,64
Tema: IVA – Isenção ao abrigo do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA - Prestações de serviços médicos e sanitários e operações estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares
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Sumário:

I - O art.º 132.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva IVA, consagra uma isenção para “a hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”.

II - Em correspondência com esta disposição, o art.º 9.º, n.º 2, do CIVA português determina que estão isentas “as prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

III – Da leitura destas normas infere-se que esta isenção assenta em dois requisitos cumulativos: um requisito objetivo, que se prende com a natureza do serviço prestado; e um requisito subjetivo, que se prende com a qualidade do respetivo prestador.

IV – Esta dupla exigência é evidente no art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, que se refere a “prestações de serviços médicos e sanitários e operações estreitamente conexas” na condição, porém, de serem “efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

 

Os Árbitros Guilherme W. d’Oliveira Martins (Presidente), Clotilde Celorico Palma e Raquel Montes Fernandes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

a.            A Requerente A…, S.A. (doravante “A…” ou “Requerente”), Pessoa Coletiva n.º …, com sede na Rua … Porto, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de Revisão Oficiosa dos Atos Tributários de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativo aos anos de 2015 e 2016 – conforme documento junto aos autos como doc. n.º 1, veio contra tais atos tributários e decisão, apresentar IMPUGNAÇÃO nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 15.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT), no artigo 99.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por remissão do disposto no artigo 97.º do Código do IVA (“CIVA”), e com os seguintes fundamentos:

a)            À data do procedimento de inspeção a Requerente era designada por B…, Lda. (“B…”) – tendo iniciado a sua atividade em 1 julho de 2009.

b)           Em setembro de 2015, o objeto social da A... correspondia à “Prestação de serviços médicos, internamento, convalescença, reabilitação, reabilitação e manutenção, cuidados continuados. Exploração de clínicas”.

c)            Consequentemente, em 2015, a A... estava coletada com o CAE 86100 – Atividades dos estabelecimentos de saúde com internamento.

d)           A A... registou-se a 9 de setembro de 2015 na ERS – Entidade Reguladora da Saúde (“ERS”) como prestadora de cuidados de saúde, tendo obtido licença de funcionamento como centros de enfermagem, clínicas ou consultórios médicos e unidades com internamento ou bloco operatório a 15 de setembro de 2016.

e)           A partir de setembro de 2015, momento em que a A... se registou como prestadora de cuidados de saúde na ERS, passou a ser reconhecida como uma clínica de cuidados continuados, o que originou a alteração do seu CAE e enquadramento em sede de IVA.

f)            Deste modo, os serviços prestados relacionados com o internamento na sua clínica passaram a ser faturados isentos de IVA ao abrigo do n.º 2 do artigo 9.º do CIVA, por constituírem prestações de serviços médicos no âmbito de cuidados continuados.

g)            Importa referir que o internamento inclui um quarto individual ou cama num quarto duplo e a correspondente alimentação, necessários ao próprio internamento (sendo garantido a todos os pacientes serviços de nutrição).

h)           Outros serviços como fisioterapia, cinesioterapia, fisiatria e psiquiatria, transporte e a venda de fraldas ou material de enfermagem eram faturados também isentos de IVA (ou à taxa reduzida ou normal, conforme aplicável).

i)             Em 2016 e 2017, a A... foi objeto de uma ação inspetiva que compreendeu os anos de 2013 a 2016 (inclusive), cujo relatório de inspeção foi junto aos autos pela Requerente como Documento 2.

j)             No âmbito da referida inspeção foi apurado IVA por liquidar com referência aos anos de 2015 e 2016, nos montantes de € 41.376,82 e € 126.291,82, respetivamente, relativamente aos serviços de internamento.

k)            No âmbito do mencionado procedimento inspetivo, a AT concluiu que parte das prestações de serviços realizadas pela A... sob a designação “internamento”, durante os anos de 2015 e 2016, não compreendiam prestações de serviços médicos.

l)             Outrossim, entendeu a AT que tais prestações decorriam do exercício da atividade de lar de idosos e, como tal, consubstanciavam prestações de serviços de apoio social e alojamento de pessoas idosas.

m)          De facto, a AT considerou que parte dos “serviços médicos de cuidados continuados (relativos ao utente C…)” são “isentos de IVA nos termos do artigo 9.º do IVA”, tal como os serviços “de cariz médico ou paramédico (fisioterapia/fisiatria/psiquiatria)”.

n)           Considerando que a A... não possuía o reconhecimento pelas autoridades competentes da sua utilidade social em relação aos serviços prestados, exigido pelo n.º 7 do artigo 9.º do CIVA, entendeu a AT que as operações realizadas deveriam ser sujeitas e não isentas de IVA.

o)           De facto, e conforme resulta do relatório inspetivo, a AT considerou que a partir de setembro de 2015 “a generalidade dos serviços prestados teve como descritivo Internamento, foi faturada, igualmente, numa base mensal e isenta de IVA ao abrigo do artigo 9.º do CIVA, por serem consideradas prestações de serviços médicos de cuidados continuados, mesmo quando efetuadas aos utentes que anteriormente usufruíam de serviços de alojamento e alimentação sujeitos a imposto e ainda que não tenha havido variação do valor dos serviços faturados pelo sujeito passivo.”

p)           Deste modo, considerando que:

• “A generalidade dos utentes ficou alojada/internada na B… por períodos muito alargados, superiores a um ano e, em muitos casos, ainda se encontra na B… ou deixou de o estar apenas quando faleceu”;

• “O valor pago pelos serviços é, por norma, fixo, correspondendo a uma mensalidade ou a um valor diário pré-estabelecido e varia, designadamente, consoante a tipologia do quarto (duplo ou individual) e o tipo de serviços específicos incluídos (fisioterapia/fisiatria/psiquiatria)”

• “A generalidade dos serviços prestados pelo sujeito passivo nos anos de 2014 a 2016, inclusive, correspondeu à prestação de serviços de alojamento e de apoio a pessoas idosas, vulgo, ao exercício da atividade de lar de idosos”;

• “Os serviços prestados em complemento aos referidos no ponto anterior, seja de cariz médico ou paramédico (fisioterapia/fisiatria/psiquiatria) ou outro (…), quando não incluídos na prestação principal, foram faturados à parte”; e

• “O internamento de utentes para cuidados continuados ocorreu de uma forma mais pontual e esporádica, por períodos de tempo mais limitados e não teve um peso significativo no total dos serviços prestados pelo sujeito passivo, bem como apenas passou a ser efetuado a partir de setembro de 2015, inclusive, após a inscrição da B… na ERS como prestador de cuidados de saúde”;

q)           Concluiu então a AT que não estariam em causa prestações de serviços médicos e operações com elas estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares.

r)            Neste âmbito, uma vez que, no entender da AT, estamos perante serviços de alojamento e alimentação que têm um preço único (não discriminado), “50% do valor total da operação corresponderá a serviços de alojamento, tributados à taxa reduzida do IVA”, enquanto que os “remanescentes 50% serão tributados à taxa aplicável aos serviços de alimentação” (que no período em análise variou entre a taxa normal e intermédia), como se a Requerente estivesse a explorar um hotel.

s)            Nos termos da Diretiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006 (“Diretiva IVA”), em concreto na alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º, os Estados–Membros isentam de IVA “A hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos ”.

t)            Assim, e nos mesmos moldes, determina o CIVA (n.º 2 do artigo 9.º) que estão isentas do imposto “As prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares.”

u)           A referida isenção encerra em si um conceito de “prestação de serviços médicos”, sem, no entanto, o definir – sendo certo que esta definição também não consta da Diretiva IVA.

v)            Assim, há que integrar tal conceito à luz da jurisprudência e doutrina.

w)          Sendo o IVA um imposto de cariz comunitário, é fundamental ter presente a orientação que vem sendo seguida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a propósito da harmonização das legislações entre os Estados-Membros no âmbito da isenção prevista para a prestação de serviços médicos.

x)            Resulta da jurisprudência comunitária que “os termos usados para designar as isenções previstas no artigo 132. ° da Diretiva 2006/112 são de interpretação estrita, dado que constituem exceções ao princípio geral (…) de que o IVA é cobrado sobre cada entrega de bens ou prestação de serviços efetuada a título oneroso por um sujeito passivo”.

y)            E tendo por base as aludidas premissas, “o conceito de «assistência médica» (…) e o de «prestações de serviços de assistência» pessoal (…) visam ambos prestações que tenham por finalidade diagnosticar, tratar e, na medida do possível, curar doenças ou anomalias de saúde”

z)            Apesar da referida finalidade terapêutica, entende o TJUE que “daí não decorre necessariamente que a finalidade terapêutica de uma prestação deva ser compreendida numa aceção particularmente restritiva.”

aa)         Assim, “o Tribunal de Justiça já declarou que as prestações médicas efetuadas para fins de prevenção podem beneficiar de uma isenção (…). Com efeito, mesmo nos casos em que as pessoas que se submetem a exames ou a outras intervenções médicas de carácter preventivo não sofrem de nenhuma doença ou anomalia de saúde, a inclusão das referidas prestações nos conceitos de «assistência médica» e de «prestações de serviços de assistência» pessoal é conforme com o objetivo de redução do custo dos cuidados de saúde (…). Portanto, as prestações médicas efetuadas com a finalidade de proteger, incluindo manter ou restabelecer, a saúde das pessoas, beneficiam da isenção prevista”.

bb)         No que se refere à jurisprudência interna, considera a Requerente relevante destacar a Decisão arbitral proferida no Processo n.º 215/2017 –T, de 06 de Julho de 2018, que analisa a aplicação da isenção prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA a serviços prestados a instituições hospitalares em regime de outsourcing relacionados com o apoio à prestação de cuidados equiparados a assistentes operacionais ou de apoio à atividade hospitalar.

cc)          Neste processo, o Tribunal Arbitral começa por referir que “A ratio destas isenções, em conformidade com a jurisprudência do TJUE e com a doutrina, consiste na redução dos custos de uma atividade económica e social considerada de essencial interesse público, in casu, a saúde pública.”

dd)         Como referido, nos termos do n.º 2 do artigo 9.º do CIVA estão isentas do imposto não só as “prestações de serviços médicos e sanitários”, como ainda as “operações com elas estritamente conexas, efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares ", ou seja, prestadas em meio hospitalar.

ee)         Ora, no caso da A... é por demais evidente que se está perante operações efetuadas em meio hospitalar, considerando que à data dos factos a Requerente se encontrava inscrita na ERS como prestador de cuidados de saúde, tendo obtido licença de funcionamento como centros de enfermagem, clínicas ou consultórios médicos e unidades com internamento ou bloco operatório.

ff)           Assim, importa analisar se os serviços prestados sob a designação “internamento” - que incluíam a utilização de um quarto e alimentação - podem ser considerados “prestações de serviços médicos” ou, no limite, “operações com elas estritamente conexas”.

gg)         Desde logo, à data dos factos, e tal como aceite pela ERS, a A... era um estabelecimento vocacionado para a prestação de cuidados médicos específicos e especializados na área dos cuidados continuados.

hh)         Conforme consta do portal do Serviço Nacional de Saúde (“SNS”), são considerados como “cuidados continuados” os cuidados de convalescença, recuperação e reintegração de doentes crónicos e pessoas em situação de dependência.

ii)            Estas intervenções integradas de saúde e apoio social visam a recuperação global, promovendo a autonomia e melhorando a funcionalidade da pessoa dependente, através da sua reabilitação, readaptação e reinserção familiar e social (https://www.sns.gov.pt/sns-saude-mais/cuidados-continuados/).

jj)           É convicção da Requerente que o serviço designado por “internamento” - englobando a dormida e alimentação em ambiente hospitalar e no âmbito da prestação de serviços médicos - deve ser englobado na isenção de IVA prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA.

kk)         Neste sentido, e conforme resulta do exposto, e ao contrário do propugnado pela AT, durante os anos de 2015 e 2016 a A... não vinha a desempenhar prestações de serviços e transmissões de bens conexas no exercício da atividade de exploração de lar de idosos.

ll)            Outrossim, a A... vinha a desempenhar prestações de serviços médicos, no âmbito das quais se verificava, naturalmente, o internamento dos doentes quando e pelo tempo que fosse necessário.

 

b.            A Autoridade Tributária, na sua resposta, defende a legalidade dos atos tributários praticados e alega, em síntese o seguinte:

a)            Na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de Revisão Oficiosa n.º …, a Requerente solicita a anulação dos atos de autoliquidação de IVA, efetuados como consequência das conclusões do procedimento inspetivo, consubstanciados na regularização voluntária efetuada a 13 de julho de 2017 através da entrega das declarações periódicas de substituição para os períodos referentes ao último trimestre de 2015 e de 2016, no montante global de € 167.668,64, bem como a restituição do imposto acrescido de juros indemnizatórios.

b)           Vem sindicar a legalidade dos referidos atos tributários de liquidação de IVA com todas as consequências legais daí decorrentes, com o fundamento de que o serviço designado por “internamento” - englobando a dormida e alimentação em ambiente hospitalar e no âmbito da prestação de serviços médicos - deve ser enquadrado na isenção de IVA prevista na al. 2) do art.º 9.º do CIVA.

c)            Defende que, durante os anos de 2015 e de 2016, não vinha a desempenhar prestações de serviços e transmissões de bens conexas no exercício da atividade de exploração de lar de idosos e que à data dos factos:

- Realizava operações em meio hospitalar;

- Encontrava-se inscrita na ERS como prestador de cuidados de saúde, tendo obtido licença de funcionamento como «centros de enfermagem, clínicas ou consultórios médicos e unidades com internamento ou bloco operatório»;

d)           Afirma tratar-se de uma clínica de cuidados continuados cuja prestação principal subjacente à sua atividade era a prestação de serviços médicos no âmbito da fisioterapia, cinesioterapia, fisiatria ou psiquiatria.

e)           Vem imputar aos atos tributários impugnados um erro imputável aos serviços que obriga à restituição do imposto pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.

f)            Em caso de dúvida, propõe, ao Tribunal Arbitral, o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

g)            A Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção tributária, realizado pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças do Porto, com início em 2016-10-13.

h)           A ação inspetiva foi, inicialmente, desenvolvida a coberto das Ordens de Serviço externas, de âmbito parcial e dirigidas ao IVA dos anos de 2013 e 2014, com os números OI2016… e OI2016…, respetivamente.

i)             No seu decurso, os SIT verificaram a necessidade de alterar a sua extensão por forma a contemplar o IVA dos anos de 2015 e de 2016, concretizada pela emissão de Ordens de Serviço externas de âmbito parcial e dirigidas ao IVA daqueles anos (OI2016… e OI2017…).

j)             À data do procedimento de inspeção a Requerente era designada por «B…, Lda.», tendo iniciado a sua atividade em 1 julho de 2009.

k)            Em tudo o resto se remete para a leitura do RIT, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

l)             Está em causa uma aplicação indevida, pela Requerente, da isenção da al. 2) do art.º 9.º do CIVA às operações realizadas a partir de setembro de 2015.

m)          Para a Requerente, as prestações de serviços de fisioterapia, cinesioterapia, fisiatria ou psiquiatria, constituem prestações principais subjacentes à atividade prosseguida como “clínica de cuidados continuados”.

n)           Para os SIT, tais serviços são meramente complementares aos serviços principais que são prestados pela Requerente aos seus utentes, e que, ao contrário daqueles, não revestem a natureza de serviços médicos ou operações conexas, na aceção da al. 2) do art.º 9.º do CIVA, “uma vez que decorriam do exercício da atividade de lar de idosos e consubstanciavam prestações de serviços de apoio social e alojamento de pessoas idosas”.

o)           Ora, a Requerente alterou, a partir de 2015-09-18, o CAE correspondente ao exercício da atividade principal, referente a “Outros Locais de Alojamento” (55900) e “Outras Atividades de Saúde Humana, Não Especificadas” (47740) para o exercício de Atividades dos Estabelecimentos de Saúde com Internamento (CAE 86100), e desde 2016-02-02 registou-se para o exercício da atividade secundária correspondente ao CAE 55900 – Outros Locais de Alojamento.

p)           E passou, a partir de setembro de 2015, a descrever os serviços prestados como «Internamento» no descritivo das faturas.

q)           Todavia, apesar das alterações formais preconizadas pela Requerente, constam do RIT elementos de prova suficientes que permitem concluir que a realidade económica dos factos não corresponde, e que a natureza da atividade efetivamente prosseguida não sofreu modificações substanciais.

r)            A comprovar que existiu uma continuidade da atividade de prestação de serviços e transmissões de bens conexas efetuadas no exercício da atividade como «lar de idosos», consta do RIT, desde logo, a caracterização das relações comerciais e contratuais com a sociedade D… (lar de idosos).

s)            Concretamente, consta a indicação da existência de faturação, entre agosto de 2014 até ao final do ano de 2016, no montante mensal de 1.500,00 €, acrescido de IVA à taxa normal, que é referente ao «contrato de cessão de exploração de geriatria», celebrado com a D… .

t)            A esse facto, acrescem outros elementos e indícios, apurados durante a ação inspetiva, que permitem concluir que a natureza do tipo de serviços incluídos na prestação contratada com os utentes não se alterou a partir de setembro de 2015, apesar da faturação emitida refletir o oposto, designadamente:

i.             Os períodos de permanência dos utentes;

ii.            Perfil etário dos utentes;

iii.           Observação in loco das instalações do sujeito passivo e dos utentes presentes à data;

iv.           Inexistência de relatórios médicos justificativos dos internamentos em cuidados continuados.

u)           A Requerente vem contestar esta fundamentação, especificamente que o elemento da “idade dos pacientes” não deve ser condicionante do enquadramento legal dos serviços prestados.

v)            Contudo, como já explicitado, os fundamentos que conduziram ao apuramento das correções em crise não radicam exclusivamente no perfil etário dos utentes da Requerente, sendo de salientar, por exemplo, a “inexistência de relatórios médicos justificativos dos internamentos em cuidados continuados”.

w)          Sem prejuízo, consta do RIT que “o internamento de utentes para cuidados continuados ocorreu de uma forma mais pontual e esporádica, por períodos de tempo mais limitados e não teve um peso significativo no total dos serviços prestados pelo sujeito passivo”.

x)            A este respeito, verifica-se que a Requerente não vem juntar em sede arbitral qualquer prova documental dos factos alegados, de que presta “cuidados continuados” (cuidados de convalescença, recuperação e reintegração de doentes crónicos e pessoas em situação de dependência), em regime de internamento, limitando-se a contrariar os elementos apurados pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

y)            Repare-se que foi a Requerente que, no âmbito do apuramento do IVA por liquidar, relativo às prestações de serviços discriminadas no Quadro III do RIT, associou apenas o utente C… na discriminação dos serviços médicos de cuidados continuados (cf. p. 18 do RIT).

z)            Face ao exposto, a AT no estrito cumprimento do princípio da legalidade deu efetividade ao primado da substância das operações sobre a sua forma, princípio que se encontra refletido, em geral, no n.º 4 do art.º 36.º da LGT.

aa)         Deste modo, os “serviços de alojamento e de apoio a pessoas idosas” que correspondem à prestação principal efetuada pela Requerente, nos períodos em referência, não são serviços médicos, e, por conseguinte, não se subsumem na isenção da al. 2) do art.º 9.º do CIVA, que isenta do imposto as prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares.

bb)         O art.º 9.º, al. 2), do, CIVA transpõe para o ordenamento jurídico nacional o dispositivo contido na al. b) do n.º 1 do art.º 132.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (Diretiva do IVA), conjugado com a al. 7) da parte B do Anexo X da mesma diretiva.

cc)          De acordo com a jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, a referida norma da Diretiva não condiciona o benefício da isenção aos serviços médicos e sanitários prestados em ambiente hospitalar, à obrigação de disponibilização de internamento pelo que a inexistência desta funcionalidade não inviabiliza, por si só, o enquadramento na alínea 2) do artigo 9.º do CIVA.

dd)         Neste âmbito é crucial averiguar se se encontrem asseguradas as demais funcionalidades no âmbito da hospitalização, assistência médica e diagnóstico.

ee)         Assim, a norma de isenção contempla, além dos estabelecimentos hospitalares, “outros estabelecimentos dedicados à assistência médica em geral”, ainda que não estejam em condições de providenciar o internamento dos doentes.

ff)           Ora, pela factualidade que consta dos presentes autos, conclui-se ser evidente que a Requerente não configura um «centro de assistência médica e de diagnóstico», na aceção do artigo 132. °, n.° 1, al. b), da Diretiva IVA (sobre o conceito v., Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 18 de setembro de 2019, Caso Peters, C-700/17; Acórdão de 2 de julho de 2015, Caso De Fruytier, Proc. C334/14, e jurisprudência referida).

gg)         Com efeito, os atos médicos que são prestados pela Requerente, faturados à parte dos designados “serviços de internamento”, cingem-se à fisioterapia, cinesioterapia, fisiatria ou psiquiatria.

hh)         Reitere-se que em momento algum a Requerente vem demonstrar que presta os alegados “cuidados continuados” no sentido que emprega de cuidados paliativos, independentes da idade, quando refere que aqueles poderão englobar cuidados a “pessoas com doença incurável em estado avançado e em fase final de vida”.

ii)            Os “serviços de alojamento e de apoio social a pessoas idosas”, que correspondem efetivamente à prestação principal efetuada pela Requerente, poderiam, ainda assim, beneficiar da isenção do imposto nos termos da al. 7) do art.º 9.º do CIVA, que isenta do imposto as prestações de serviços e as transmissões de bens estreitamente conexas efetuadas no exercício de lares de idosos cuja utilidade social seja, em qualquer caso, reconhecida pelas autoridades competentes.

jj)           No entanto, as condições de aplicabilidade da isenção exigidas na norma legal não se encontram reunidas, designadamente, falta o reconhecimento pelas autoridades competentes da sua utilidade pública, pelo que as operações, não podendo beneficiar de qualquer uma das isenções controvertidas, são sujeitas e não isentas do imposto (cf. p. 11 do RIT).

kk)         Razão pela qual não se vislumbram motivos para a procedência do pedido da Requerente.

ll)            Por fim, quanto ao requerimento de reenvio prejudicial, não se identifica a necessidade de suscitar a questão de interpretação e aplicação de Direito da União Europeia, sendo de dispensar a consulta ao TJUE, uma vez que, como referido, a análise do artigo 132. °, n.° 1, al. b), foi objeto de vários acórdãos.

mm)      Concretamente, a lei comunitária é clara no que concerne ao conceito de serviços médicos na aceção da Diretiva IVA, e à irrelevância do internamento para a sua aplicação.

nn)         Face ao que, tudo visto e ponderado, devem os atos tributários ser mantidos intactos na ordem jurídica.

 

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 03-08-2021, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 04-06-2021. Em 27-09-2021, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 27-09-2021, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 18-10-2021, tendo sido proferido despacho arbitral em 18-10-2021 em cumprimento do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

 

A AT apresentou a sua Resposta juntamente com o processo administrativo, em tempo, em 22-11-2021.

 

Em 24-11-2021 foi proferido Despacho arbitral com o seguinte teor:

«1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito, nem foi invocada ou identificada matéria de exceção.

2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença.

3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Fixa-se o prazo de 5 (cinco) dias para as partes, querendo, se pronunciarem. Notifiquem-se as partes do presente despacho.»

 

As partes não se pronunciaram no prazo proposto.

 

POSTO ISTO:

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

Tudo visto, cumpre decidir.

 

 

III. DECISÃO

A.           MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

a)            A Requerente iniciou atividade em 01.07.2009 e teve várias designações sociais e vários objetos sociais ao longo dos anos;

b)           Em setembro de 2015, já sob a designação de B…, Lda. (designação que detinha à data do procedimento inspetivo), o objeto societário foi novamente alterado para “Prestação de serviços médicos, internamento, convalescença, reabilitação e manutenção, cuidados continuados. Exploração de clínicas”, passando a estar coletada unicamente para o exercício de Atividades dos estabelecimentos de saúde com internamento (CAE 86100), coincidindo com a inscrição da Requerente na ERS – Entidade Reguladora da Saúde como prestadora de cuidados de saúde desde 09.09.2015;

c)            Desde 02.02.2016 a Requerente está, ainda, coletada para o exercício da atividade secundária correspondente ao CAE 55900 (Outros locais de alojamento);

d)           Na sequência das alterações acima referidas a Requerente obteve da ERS – Entidade Reguladora da Saúde, em 15.09.2016, uma licença de funcionamento com as seguintes tipologias autorizadas: centros de enfermagem, clínicas ou consultórios médicos e unidades com internamento ou bloco operatório (neste último caso, era uma licença condicionada e com validade até 17.03.2017);

e)           As instalações onde a Requerente exerce a sua atividade, e que foram edificadas por esta, têm um alvará de utilização, emitido pelo Município de Vila Nova de Gaia, destinado a empreendimento turístico – estabelecimento hoteleiro, com a classificação de hotel de 4*;

f)            A Requerente foi objeto de uma ação de inspeção por parte da AT, a qual foi inicialmente desenvolvida a coberto das Ordens de Serviço externas, de âmbito parcial e dirigidas ao IVA dos anos de 2013 e 2014 (OI2016… e OI2016…, respetivamente), com início em 13.10.2016, e posteriormente alargada para contemplar o IVA referente aos anos de 2015 e 2016 (Ordens de Serviço OI2016… e OI2017…, respetivamente), tendo sido finalizada em 21.07.2017.

g)            A partir de setembro de 2015, a generalidade dos serviços prestados teve como descritivo Internamento, tendo estes sido igualmente faturados numa base mensal, e isentos de IVA (art.º 9.º do CIVA) enquanto prestações de serviços médicos de cuidados continuados, mesmo quando efetuados aos utentes que anteriormente usufruíam de serviços de alojamento e alimentação sujeitos a IVA, e ainda que não tenha havido variação dos valores faturados pela Requerente;

h)           Neste período foram, ainda, faturados outros serviços complementares, como fisioterapia, cinesoterapia, fisiatria ou psiquiatria, serviços de costura ou transporte, bem como venda de materiais (fraldas ou material de enfermagem), isentos, à taxa reduzida ou à taxa normal, conforme aplicável;

i)             A generalidade dos utentes ficou alojada/internada nas instalações da Requerente por períodos muito alargados (superiores a 1 ano) e, em muitos casos, ainda lá se encontra ou deixou de o estar apenas por morte;

j)             O valor pago pelos serviços é, por regra, fixo (corresponde a uma mensalidade ou valor diário pré-estabelecido) e varia consoante a tipologia do quarto (duplo ou individual) e o tipo de serviços específicos incluídos (fisioterapia, etc.);

k)            A faturação mantém-se, grosso modo, inalterada do período em que se definiam os serviços como de alojamento e alimentação para o período de serviços de internamento, ainda que o utente seja o mesmo;

l)             O internamento de utentes para cuidados continuados ocorreu de forma mais pontual e esporádica, por períodos de tempo mais limitados, não tendo tido peso significativo no total dos serviços prestados – e apenas ocorreu após a inscrição da Requerente na ERS, em setembro de 2015.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Não foi dado como provado que a Requerente pratica atos que se qualifiquem como “serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas”, para efeitos da isenção em apreço. 

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a convicção ficou formada com base nas peças processuais apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

 

 

 

B. DO DIREITO

 

B.1. SOBRE A ISENÇÃO CONSTANTE DO N.º 2 DO ARTIGO 9.º DO CIVA

 

Está em causa nos presentes autos a aplicação da isenção conferida a hospitais e estabelecimentos similares pelo n.º 2 do artigo 9.º do CIVA que a Requerente invoca, tendo em conta a atividade prosseguida em 2015 e 2016, sendo que no âmbito da referida inspeção foi apurado IVA por liquidar com referência aos anos de 2015 e 2016, nos montantes de € 41.376,82 e € 126.291,82, respetivamente, relativamente aos serviços de internamento.

De facto, e conforme resulta do relatório inspetivo, a AT considerou que a partir de setembro de 2015 “a generalidade dos serviços prestados teve como descritivo Internamento, foi faturada, igualmente, numa base mensal e isenta de IVA ao abrigo do artigo 9.º do CIVA, por serem consideradas prestações de serviços médicos de cuidados continuados, mesmo quando efetuadas aos utentes que anteriormente usufruíam de serviços de alojamento e alimentação sujeitos a imposto e ainda que não tenha havido variação do valor dos serviços faturados pelo sujeito passivo.”

 

B.1.1. ENQUADRAMENTO NORMATIVO GERAL

O art.º 132.º, n. º1, alínea b), da Diretiva IVA, consagra uma isenção para “a hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”.

Em correspondência com esta disposição, o art. 9.º, n. º2, do CIVA português determina que estão isentas “as prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

Da leitura destas normas infere-se que esta isenção assenta em dois requisitos: um requisito objetivo, que se prende com a natureza do serviço prestado; e um requisito subjetivo, que se prende com a qualidade do respetivo prestador. Resulta, com efeito, da leitura do art.º 132.°, n.°1, alínea b), da Diretiva IVA, que estas prestações devem estar isentas se preencherem dois requisitos cumulativos:

a)            por um lado, constituírem prestações de serviços de hospitalização ou assistência médica ou operações com elas estreitamente relacionadas;

b)           por outro lado, essas prestações serem “asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”.

Esta dupla exigência é evidente também no art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, que se refere a “prestações de serviços médicos e sanitários e operações estreitamente conexas” na condição, porém, de serem “efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

 

B.1.2. REQUISITO OBJETIVO DO N.º 2 DO ARTIGO 9.º DO CIVA: NATUREZA DO SERVIÇO

 

As prestações de serviços abrangidas pela isenção do art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, têm pontos em comum e aspetos distintos face àquelas a que se refere o seu art.º 9.º, n.º 1.

 

Em comum, uma e outra norma, têm o seu conteúdo essencial. Na concretização que o TJUE tem vindo a dar a estas isenções, o conceito de “assistência médica”, que figura no artigo 132.°, n.°1, alínea b), da Diretiva IVA, e o de “prestações de serviços de assistência”, que figura no artigo 132.°, n.°1, alínea c), da mesma Diretiva, “visam ambos prestações que tenham por finalidade diagnosticar, tratar e, na medida do possível, curar doenças ou anomalias de saúde”. Quer isto dizer que as prestações de serviços médicos e sanitários a que se refere o art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, não devem ser concebidas em termos distintos das prestações de serviços realizadas no exercício de profissões médicas e paramédicas a que se dirige o seu art.º 9.º, n.º 1, sendo exigível a umas e outras a mesma finalidade terapêutica em que tem insistido o TJUE.

 

Já distintamente, o n.º 2 do art.º 9.º do CIVA, inclui na isenção as “operações estreitamente conexas” com os serviços médicos e sanitários, omissa no n.º 1 do mesmo artigo. Com esta referência, o âmbito objetivo da isenção dirigida aos hospitais e estabelecimentos similares alarga-se algo além do que abrange a isenção prevista no n.º 1, parecendo ficar assim abrangidas prestações às quais só mediatamente se pode atribuir função terapêutica.

 

Esta diferença de tratamento, assente na Diretiva IVA, compreende-se com alguma facilidade. a isenção do artigo 132. °, n.°1, alínea c), da Diretiva, dirige-se principalmente aos profissionais médicos, tendo sido pensada para profissionais liberais que exercem a sua atividade em pequena escala, muitas vezes no domicílio privado do prestador ou no domicílio privado do paciente, como o tem sublinhado o TJUE.

Já a isenção do artigo 132. °, n.°1, alínea b), da Diretiva, dirige-se a hospitais e estabelecimentos de saúde similares, que exercem a sua atividade em escala maior, com instalações próprias para o efeito, e que realizam prestações com outra complexidade. Esta complexidade explicará que o legislador europeu tenha pretendido abranger pela isenção do artigo 132. °, n.°1, alínea b), da Diretiva, não só as “prestações de serviços de hospitalização ou assistência médica” como também as “operações com elas estreitamente relacionadas”.

Relativamente às prestações de natureza médica, resulta da jurisprudência que o artigo 132.º, n.º1, alínea b), visa as prestações efetuadas no meio hospitalar entendida em sentido amplo, ao passo que a alínea c) desse número visa as prestações médicas fornecidas fora desse âmbito, tanto no domicílio privado do prestador como no domicílio do paciente ou em qualquer outro lugar .

Daqui resulta que as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 132.° da Diretiva IVA, cujos âmbitos de aplicação são distintos, têm por objetivo regulamentar a totalidade das isenções das prestações médicas em sentido estrito .

Como salientou o Advogado-geral Tizzano nas suas conclusões apresentadas em 27 de setembro de 2001 no Caso Klüger , a alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Diretiva IVA isenta as prestações fornecidas em contexto hospitalar, bem como em centros de tratamento e diagnóstico e noutros estabelecimentos análogos devidamente reconhecidos.

O Tribunal de Justiça decidiu no mesmo sentido neste Caso que “as alíneas b) e c) do artigo 13.°, A, n.º 1, da 6.ª Diretiva, cujos âmbitos são distintos, têm por objetivo regulamentar a totalidade das isenções das prestações médicas em sentido estrito. A alínea b) desta disposição isenta todas as prestações efetuadas no meio hospitalar, ao passo que a alínea c) se destina a isentar as prestações médicas fornecidas fora desse âmbito, tanto no domicílio privado do prestador como no domicílio do paciente, ou em qualquer outro lugar.”

O Tribunal de Justiça vê, assim, a possibilidade de uma clara demarcação das duas normas de isenção, em que o critério de distinção é menos o tipo de prestação do que o local da sua realização. Com este ponto de vista, o Tribunal de Justiça segue o Caso Comissão/Reino Unido . Neste Caso, o Tribunal de Justiça declarou que devem ser isentas, nos termos da alínea b), as prestações que no seu conjunto sejam tratamentos médicos, e que normalmente sejam realizadas sem fim lucrativo em organismos com um fim social, como, por exemplo, a proteção da saúde humana, ao passo que, nos termos da alínea c), são isentas as prestações realizadas fora de organismos hospitalares no quadro de uma relação baseada na confiança entre paciente e prestador de serviços.

No Caso Kügler, o Tribunal de Justiça salienta ainda que “o princípio da neutralidade fiscal se opõe, designadamente, a que operadores económicos que efetuem as mesmas operações sejam tratados diferentemente em matéria de cobrança do IVA”, pelo que o referido princípio seria ignorado se a possibilidade de invocar o benefício da isenção prevista para as prestações de cuidados pessoais mencionadas no artigo 13.° A, n.º 1, alínea c), da Sexta Diretiva, estivesse dependente da forma jurídica sob a qual o sujeito passivo exerce a sua atividade .

Assim, o TJUE conclui que a isenção em causa não depende da forma jurídica do sujeito passivo que fornece as prestações médicas ou paramédicas nele mencionadas, abrangendo quer pessoas singulares quer pessoas coletivas, entendimento que veio a ser acolhido pela jurisprudência posterior.

 

A noção de “operações estreitamente relacionadas” tem sido explorada pelo TJUE, embora em decisões menos numerosas do que as que respeitam ao conteúdo essencial da isenção.

             No seu  Acórdão de 06.11.2003 proferido no Caso Dornier, no Proc. C-45/01,  n.º 33 e ss., o TJUE sublinha que esta noção exclui as prestações “que não apresentem alguma conexão” com os cuidados de saúde hospitalares, abrangendo apenas as prestações que daqueles possam dizer-se acessórias, no sentido em que não constituem um fim em si mesmo mas apenas o meio de melhor beneficiar daqueles cuidados, pelo que os tratamentos psicoterápicos prestados no serviço de policlínica de uma fundação de direito privado por psicólogos diplomados que não têm a qualidade de médicos só podem beneficiar da isenção quando ministrados como prestações acessórias da hospitalização dos destinatários ou da assistência médica por eles recebida”.

             No Acórdão de 01.12.2005 proferido no Caso Ygeia, Proc.s C-394/04 e C-395/04, n.º 25, o TJUE fixa que “só as prestações de serviços que se inscrevem logicamente no quadro do fornecimento dos serviços de hospitalização e de assistência médica e que constituem uma etapa indispensável no processo de prestação desses serviços para atingir as finalidades terapêuticas prosseguidas por estes são suscetíveis de constituir «operações [...] estreitamente conexas”, o que não valeria, via de regra, para o fornecimento de serviços telefónicos e para a locação de postos de televisão aos pacientes de um hospital, ou para o fornecimento de dormidas e refeições aos respetivos acompanhantes.

             Nos Acórdãos proferidos em 10.06.2010 e em 10.06.2010, nos Casos Copy Gene, Proc. C-262/08,  n.º 52, e Future Health Technologies, C-86/09,  n.º 50, o Tribunal conclui que a noção de operações “estreitamente conexas” não abrange atividades como a colheita, transporte, análise de sangue do cordão e armazenamento das células estaminais contidas nesse sangue, “quando a assistência médica prestada em meio hospitalar, com a qual estas atividades só eventualmente são conexas, não existe, não está em curso nem está sequer planificada”.

 

É em torno desta questão que gira o essencial da argumentação no presente processo, tendo-se centrado o esforço probatório da Requerente em demonstrar a indispensabilidade dos serviços prestados pelos auxiliares de ação médica ao seu serviço. Neste sentido argumenta:

a)            Desde logo, à data dos factos, e tal como aceite pela ERS, a A... era um estabelecimento vocacionado para a prestação de cuidados médicos específicos e especializados na área dos cuidados continuados.

b)           Conforme consta do portal do Serviço Nacional de Saúde (“SNS”), são considerados como “cuidados continuados” os cuidados de convalescença, recuperação e reintegração de doentes crónicos e pessoas em situação de dependência.

c)            Estas intervenções integradas de saúde e apoio social visam a recuperação global, promovendo a autonomia e melhorando a funcionalidade da pessoa dependente, através da sua reabilitação, readaptação e reinserção familiar e social (https://www.sns.gov.pt/sns-saude-mais/cuidados-continuados/).

 

É convicção desta forma da Requerente que o serviço designado por “internamento” - englobando a dormida e alimentação em ambiente hospitalar e no âmbito da prestação de serviços médicos - deve ser enquadrado na isenção de IVA prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA. E é neste sentido que reivindica a aplicação do art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, com o fundamento de estarem em causa serviços médicos ou, pelo menos, a realização de uma atividade “conexa, indispensável e indissociável aos serviços médicos inerentes à hospitalização”, que entende por isso terem pleno enquadramento naquela isenção. E é essa indispensabilidade que nega a Requerida na Resposta, quando refere que «(…) tais serviços são meramente complementares aos serviços principais que são prestados pela Requerente aos seus utentes, e que, ao contrário daqueles, não revestem a natureza de serviços médicos ou operações conexas, na aceção da al. 2) do art.º 9.º do CIVA, “uma vez que decorriam do exercício da atividade de lar de idosos e consubstanciavam prestações de serviços de apoio social e alojamento de pessoas idosas”(…)».

 

Não é certo que as prestações levadas a cabo pelos auxiliares de ação médica se mostrem, na sua integralidade e do mesmo modo, “estreitamente conexas” com a assistência médica assegurada, não tendo a Requerente logrado provar, face aos argumentos invocados pela AT, que estamos efetivamente perante serviços principais que se qualifiquem como “serviços médicos e sanitários”, para efeitos da isenção em apreço.

 

 

 

 

B.1.3. REQUISITO SUBJETIVO DO N.º 2 DO ARTIGO 9.º DO CIVA: QUALIDADE DO PRESTADOR

 

Como vimos, para efeitos de aplicação desta isenção não basta a observância do requisito objetivo de estarmos perante prestações de “hospitalização e assistência médica” ou operações com elas “estreitamente relacionadas”, sendo necessário que essas prestações sejam realizadas “por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”, requisito subjetivo resultante do art.º 132.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva IVA — Acórdão proferido em 02.07.2015 no Caso De Fruytier, Proc. C-334/14,  n.º 2. Esta dupla exigência resulta com clareza também do art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, quando aí se determina que a isenção vale para as prestações de serviços médicos e sanitários e para operações com elas estreitamente conexas, sempre que sejam “efetuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

 

Para efeitos da aplicação do art.º 9.º, n.º 2, do CIVA não basta, portanto, que se demonstre a função terapêutica de uma prestação ou a sua conexão estreita com prestações que tenham essa função, havendo que comprovar que o sujeito passivo que as realiza é um “estabelecimento hospitalar” ou “similar”.

 

A qualidade do sujeito passivo que realiza as prestações de “hospitalização e assistência médica” ou as prestações que com estas estejam “estreitamente relacionadas” não é uma questão menor no contexto do art.º 132.º, n. º1, alínea b), da Diretiva IVA. Este é um requisito subjetivo indispensável à aplicação da isenção e um requisito de tal modo importante que o legislador europeu, no art.º 133.º da Diretiva, permite que os Estados-Membros façam depender a aplicação da isenção a organismos que não sejam de direito público da observância de um conjunto de condições respeitantes ao seu modus operandi e ao mercado em que atuam.

 

A este respeito, importa notar que o art.º 132.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva IVA, tal como o art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, não se refere a prestações realizadas em hospitais, mas a prestações realizadas por hospitais e estabelecimentos similares. Vejamos pois algumas versões:

             portuguesa, “por organismos de direito público ou (…) por estabelecimentos hospitalares (…) e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”;

             inglesa, “undertaken by bodies governed by public law or (…) by hospitals, centres for medical treatment or diagnosis and other duly recognised establishments of a similar nature”;

             francesa, “assurés par des organismes de droit public ou (…) par des établissements hospitaliers, des centres de soins médicaux et de diagnostic et d'autres établissements de même nature dûment reconnus”;

             italiana “assicurate da enti di diritto pubblico oppure (…) da istituti ospedalieri, centri medici e diagnostici e altri istituti della stessa natura debitamente riconosciuti”.

 

É verdade que o TJUE, ao traçar a linha divisória entre as alíneas b) e c) do art.º 132.º, n.º 1, da Diretiva IVA, nos diz que a primeira visa as prestações efetuadas “em meio hospitalar” e a segunda as que são efetuadas “fora desse âmbito”. Sem dúvida que é assim: a alínea b) terá sido pensada com os hospitais e estabelecimentos de saúde em mente; a alínea c) terá sido pensada tendo em mente os médicos enquanto profissionais independentes. Com esta referência muito aberta, no entanto, o TJUE mais não pretende do que sinalizar que existe identidade de natureza nas prestações de assistência médica em causa numa e outra disposições e que, com uma e outra alíneas, fica abrangida “a totalidade das isenções das prestações médicas em sentido estrito”, onde quer que se realizem, como vimos no Caso Kügler.

 

Para a aplicação da isenção prevista no art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, não basta, portanto, que as prestações “estreitamente conexas” sejam realizadas “em meio hospitalar” ou “no contexto da saúde”, como o sustenta a Requerente. Imperativo é que sejam realizadas “por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”, i.e., que o sujeito passivo que efetua a prestação reúna em si a qualidade que exige o art.º 132.º da Diretiva IVA e o art.º 9.º do Código.

 

Que assim é compreende-se também olhando aos processos em que o TJUE discute a noção de “operações conexas”, nomeadamente os processos aqui trazidos à colação pela Requerente. Esses são processos em que o TJUE se confronta com casos de um de dois tipos essenciais:

             casos em que são hospitais a realizar “operações conexas” com prestações de assistência médica que eles próprios efetuam; ou

             casos em que são estabelecimentos similares a realizar “operações conexas” com prestações de assistência médica que outros hospitais efetuam.

Quer num caso, quer noutro, porém, as “operações conexas” em jogo são sempre realizadas por sujeitos passivos que possuem eles mesmos a qualidade de hospital ou estabelecimento similar.

 

Entre os primeiros casos, temos o Caso Ygeia, Proc.s C-394/04 e C-395/04, em que se tratava de saber se a disponibilização de televisões, telefones e alojamento pode dizer-se estreitamente conexa com os serviços de assistência médica realizados pelo próprio centro médico e hospitalar.

Entre os segundos casos, temos o Caso Dornier, Proc. C-45/01, em que se tratava de saber se os tratamentos psicoterápicos realizados por uma policlínica de direito privado podem dizer-se estreitamente conexos com os serviços de hospitalização prestados por outros estabelecimentos; ou os Casos Copy Gene, Proc. C-262/08, e Future Health Technologies, Proc. C 86/09, em que se tratava de saber se a recolha de sangue e armazenamento de células por parte de bancos privados de células estaminais pode dizer-se uma atividade estreitamente conexa com serviços de hospitalização a prestar por outros estabelecimentos.

 

Em nenhuma decisão do TJUE de que este tribunal tenha conhecimento se admitiu a aplicação da isenção prevista no art.º 132.º, n.º1, alínea b), da Diretiva IVA, a sujeitos passivos que não fossem, eles mesmos, “organismos de direito público”, “estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico” ou “outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”. No Caso De Fruytier, Proc. C-334/14, o TJUE deixa isto mesmo em evidência, tratando-se de uma situação em que o Tribunal rejeita a aplicação da isenção a uma empresa independente cuja atividade consistia no transporte de órgãos e produtos biológicos de origem humana por conta de diversos hospitais e laboratórios, em regime de outsourcing.

 

Atenta a letra da lei e o princípio da interpretação conforme ao Direito Europeu, não se pode, portanto, reconhecer a aplicação da isenção prevista no art.º 9.º, n.º 2, do CIVA, a “operações conexas” levadas a cabo por sujeitos passivos que não possuam, em si mesmos, a qualidade de “estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”.

Assim, quando não estejamos perante hospital, clínica ou “estabelecimento similar”, porém, falha o requisito subjetivo para que este possa beneficiar da isenção, como resulta com clareza do Caso De Fruytier.

É consabido que a Requerente:

a)            Registou-se a 9 de setembro de 2015 na ERS – Entidade Reguladora da Saúde (“ERS”) como prestadora de cuidados de saúde, tendo obtido licença de funcionamento como centros de enfermagem, clínicas ou consultórios médicos e unidades com internamento ou bloco operatório a 15 de setembro de 2016.

b)           A partir de setembro de 2015 passou a ser reconhecida como uma clínica de cuidados continuados, o que originou a alteração do seu CAE e enquadramento em sede de IVA.

Factos que a Requerida não contestou de todo na Resposta, pelo que, deste modo, os serviços prestados relacionados com o internamento na sua clínica passaram a ser faturados isentos de IVA ao abrigo do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA, por constituírem prestações de serviços médicos no âmbito de cuidados continuados.

 

 

 

B.1.4. APRECIAÇÃO GLOBAL DOS REQUISITOS DO N.º 2 DO ARTIGO 9.º DO CIVA

 

Vale tudo isto dizer, em conclusão, sendo a Requerente qualificada para efeitos da isenção que nos ocupa como hospital, clínica, dispensário ou como um estabelecimento similar, por licença concedida por entidade reguladora competente:

(i)           está inteiramente verificado o requisito subjetivo, em causa,

(ii)          contudo, não se tendo provado, como vimos, o primeiro requisito objetivo de aplicação da isenção, não se poderá concluir pela respetiva aplicação da isenção de IVA no caso concreto.

Pelo que improcede a pretensão da Requerente, ficando prejudicada a apreciação de todos os pedidos consequentes de reembolso e juros indemnizatórios.

 

 

 

B.2. DA APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE REENVIO PREJUDICIAL

 

A Requerente, no artigo 118.º do pedido de pronúncia arbitral, requer o reenvio prejudicial deste Tribunal Arbitral para o TJUE, uma vez que está em causa a aplicação de normas comunitárias, designadamente normas da Diretiva n.º 2006/112/CE, de 28.11., do Conselho - sendo que inexiste pronúncia do TJUE sobre o tema, no seu entender.

Nesta matéria, de acordo com o disposto no artigo 19.º, n.º 3, do TJUE, “o Tribunal de Justiça da União Europeia decide, nos termos do disposto nos Tratados: a) Sobre os recursos interpostos por um Estado-membro, por uma instituição ou por pessoas singulares ou coletivas; b) A título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições; c) Nos demais casos previstos pelos Tratados”.

Já de acordo com o previsto no artigo 267.º do TFUE, “o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos catos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”.

Ora, a primeira questão que aqui se deverá colocar prende-se com a competência para submeter questões prejudiciais ao TJUE, a qual pertence aos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros da União Europeia.

Neste âmbito, dado que a qualidade de órgão jurisdicional não está densificada em qualquer dos Tratados da União, sendo tal conceito interpretado pelo TJUE, os Tribunais Arbitrais, sempre que estes cumpram os requisitos elencados na jurisprudência do TJUE (a origem legal do órgão que lhe submeteu o pedido, a sua permanência, o caráter obrigatório da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, por esse órgão, das regras de Direito e a sua independência), este Tribunal não tem hesitado em qualificá-los como órgãos jurisdicionais para efeitos do disposto no artigo 267.º do TFUE acima referido.

Com efeito, no preâmbulo do diploma legal que institui o RJAT é referido que “nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é suscetível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, sendo hoje esta questão pacífica face à jurisprudência do TJUE, vertida no acórdão “Ascendi”, prolatado em 12/06/2014 (no processo C-377/13), nos termos do qual o TJUE concluiu pela qualificação dos tribunais arbitrais em matéria tributária, constituídos sob a égide do CAAD, como órgãos jurisdicionais de um Estado-membro, para efeitos do previsto no artigo 267.º do TFUE.

 

Assim, atualmente é inquestionável que os tribunais arbitrais nacionais em matéria tributária são qualificados como órgãos jurisdicionais de um Estado-membro e, por isso, é-lhes admitida a possibilidade de submeterem questões prejudiciais ao TJUE, desde que tal se afigure necessário e adequado à luz dos pressupostos de base para operacionalizar o reenvio prejudicial.

No que diz respeito à questão prejudicial propriamente dita, entende-se como tal aquela que um órgão jurisdicional nacional de um qualquer Estado-membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si e, ou é relativa à interpretação, ou à apreciação de validade, do Direito da União (com exceção da apreciação de validade dos Tratados) sendo que, perante uma questão assim entendida, o órgão jurisdicional nacional pede ao TJUE (intérprete máximo do Direito da União) que se pronuncie, de forma a ficar esclarecido sobre o correto entendimento, ou se for caso disso validade, das disposições europeias que condicionam a solução do litígio concreto que é chamado a julgar.

Por outro lado, sempre que uma questão de natureza prejudicial seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie (reenvio facultativo) mas sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal (reenvio obrigatório), exceto se se verificar uma das exceções à obrigatoriedade do reenvio prejudicial fixadas pela Jurisprudência do TJUE.

Ora, as decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD são, em regra, irrecorríveis quanto ao mérito.

Com efeito, a recorribilidade permitida circunscreve-se aos casos de violação de normas constitucionais (recurso para o Tribunal Constitucional) ou de desrespeito pela jurisprudência do Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo (recurso por oposição de acórdãos para o Supremo Tribunal Administrativo).

Contudo, como já decidido pelo TJUE (Acórdão de 06/10/1982, Caso Cilfit, Proc. C-283/81), a referida obrigatoriedade de reenvio pode ser dispensada quando:

(i)           a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal,

(ii)          o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma,

(iii)         o Juiz Nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente (teoria do ato claro, cujos exigentes e cumulativos critérios de verificação foram igualmente definidos no referido acórdão). 

 

E é a esta luz que há que apreciar a necessidade de reenvio prejudicial no caso em análise.  Assim, entende este Tribunal Arbitral que, no caso concreto, estão preenchidas duas das três elencadas exceções à obrigatoriedade de reenvio prejudicial para o TJUE, acima elencada, porquanto:

             Por um lado, não subsistem dúvidas sobre a correta interpretação das normas jurídicas em causa nos autos (porquanto as normas são perfeitamente claras) e, por isso, não está já em causa interpretá-las, mas sim aplicá-las, o que é da competência do Tribunal Arbitral, tendo aqui total cabimento a teoria do ato claro;

             Por outro lado, existe também nesta matéria jurisprudência do TJUE (acima citada, no que concerne aos requisitos objetivos e subjetivos da norma em apreciação) que não deixa dúvidas de interpretação do normativo da UE que esteve na base do normativo nacional aplicável.

Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que não há fundamento para proceder ao peticionado reenvio prejudicial para o TJUE sendo, por isso, indeferido o pedido apresentado pela Requerente.

 

C. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:

a)            Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral, mantendo-se os atos de autoliquidação de IVA, consubstanciados na regularização voluntária efetuada a 13 de julho de 2017 através da entrega das declarações periódicas de substituição para os períodos referentes ao último trimestre de 2015 e de 2016, no montante global de € 167.668,64, não sendo, desta forma, procedente o pedido de reembolso desta quantia à Requerente;

b)           Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos acima referidos.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 167.668,64, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi julgado totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 19 de janeiro de 2022

 

O Árbitro - Presidente,

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

A Árbitra-Vogal,

(Clotilde Celorico Palma)

 

A Árbitra-Vogal,

(Raquel Montes Fernandes)