Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 292/2020-T
Data da decisão: 2021-04-09  IVA  
Valor do pedido: € 269.021,42
Tema: IVA - Locação financeira e ALD; Direito à dedução; Cálculo do pro rata. Ofício-circulado n.º 30108
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o tribunal arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Nina Aguiar e Marcolino Pisão Pedreiro (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o tribunal Arbitral, constituído em 2 de setembro de 2020, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A A...– SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante “A...” ou “Requerente”, titular do número de pessoa coletiva ..., com estabelecimento no ..., ..., ..., ...-... ..., apresentou, em 5 de junho de 2020, pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do n.º 3 do artigo 5.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), na redação vigente. 

 

A Requerente visa a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra a autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) referente ao período de dezembro de 2017, efetuada através da declaração periódica de IVA n.º..., e a consequente anulação parcial da autoliquidação, por não ter incluído IVA dedutível no valor de € 269.021,42.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também identificada por “AT” ou, simplesmente, “Autoridade Tributária”.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 8 de junho de 2020.

 

Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 5.º, na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 3 de agosto de 2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 2 de setembro de 2020.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente baseia a sua pretensão no vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, nos seguintes termos:

a)            É um sujeito passivo de IVA misto, uma vez que a sua atividade compreende, quer operações tributáveis que conferem o direito à dedução (contratos de leasing e ALD), quer operações isentas que não conferem esse direito (operações de financiamento e de concessão de crédito);

b)           Em relação à aquisição de bens objeto dos contratos de locação financeira (leasing e ALD), deduziu na íntegra o IVA incorrido, em virtude de tais bens estarem diretamente ligados a operações que conferem o direito à dedução;

c)            Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução (abrangidas pela isenção prevista no artigo 9.º, 27) do Código do IVA), não deduziu qualquer IVA;

d)           Para determinar o montante de IVA dedutível relativamente a aquisições de bens e serviços de utilização mista, a Requerente aplicou o coeficiente de imputação específico para o ano 2017, de acordo com o ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009;

e)           Seguindo este Ofício-circulado, no cálculo da percentagem de dedução apenas considerou como valor relativo às operações de leasing e ALD, no numerador e no denominador da fração de apuramento daquela percentagem, o montante anual da componente de juros e outros encargos contida nas rendas de locação, excluindo desse apuramento a componente da amortização de capital ou amortização financeira. Deste cálculo resultou a percentagem de 40,92% de IVA dedutível no ano 2017, com base na qual foi deduzido o valor de € 211.373,98 de imposto na declaração periódica de IVA reportada ao período de dezembro de 2017;

f)            Se tivesse procedido à inclusão da componente da amortização financeira na mencionada fração de apuramento, o IVA dedutível da Requerente corresponderia a 93%, ou seja, a € 480.395,40;

g)            A Requerente considera que o método consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108 é ilegal e defende que, no âmbito da atividade de leasing e de ALD, devia ser aplicado o disposto no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, cuja fórmula abrange (quer no numerador, quer no denominador da fração de apuramento da percentagem de dedução) o montante [anual] da globalidade das rendas e não apenas o montante [anual] parcial das rendas correspondente aos juros e outros encargos;

h)           O que se traduz na dedução adicional que entende assistir-lhe de € 269.021,42 de IVA;

i)             A imposição, pela AT ao sujeito passivo, do método da afetação real, nos termos previstos no artigo 23.º, n.º 3 do Código do IVA, depende de a AT determinar que a utilização do método do pro rata conduz a distorções significativas na tributação;

j)             Por outro lado, o método da afetação real implica a aferição do imposto (parcialmente) dedutível com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização dos bens e serviços adquiridos nas atividades/operações sujeitas a distintos regimes de IVA, com e sem direito à dedução;

k)            Relativamente a métodos de dedução, o Código do IVA prevê apenas dois métodos de dedução parcial, o pro rata e a afetação real, ainda que a Diretiva IVA  permita que os Estados-Membros adotem outros métodos de dedução para além destes, nomeadamente, no caso do pro rata, que estipulem que determinadas verbas sejam, ou não, consideradas para cálculo da percentagem de dedução;

l)             Porém, o legislador português não transpôs para o Código do IVA o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), ou seja, a possibilidade de os Estados-Membros mitigarem o pro rata;

m)          No caso, a convocação do critério de imputação específico determinado pelo ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108 resulta precisamente de não ser possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos “custos comuns”, circunstância que é reconhecida por diversa jurisprudência arbitral;

n)           Pelo que tal critério não é um pro rata nos termos do artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, nem se qualifica como afetação real, para efeitos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, pois não é possível o recurso a critérios objetivos;

o)           Assim, não tendo enquadramento quer nos n.ºs 1 e 4 (método pro rata), quer no n.º 2 do citado artigo 23.º do Código do IVA, configura um método que não está previsto na lei e a sua aplicação viola o disposto nos artigos 20.º e 23.º do Código do IVA, o princípio da neutralidade fiscal, o princípio da legalidade consagrado no artigo 112.º, n.º 5 da Constituição e no artigo 55.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e o princípio da reserva de lei constante dos artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição;

p)           Esta posição tem sido reiteradamente afirmada pela jurisprudência arbitral .

A Requerente conclui pelo pedido de anulação parcial da (auto)liquidação de IVA efetuada na declaração periódica referente a dezembro de 2017, apresentada em 12 de fevereiro de 2018, com a consequente restituição do valor de IVA que considera suportado em excesso, na importância de € 269.022,42, acrescido de juros indemnizatórios à taxa máxima legal até efetivo e integral pagamento. Juntou 3 documentos e não requereu a produção de prova testemunhal.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

A AT, notificada para o efeito por despacho de 2 de setembro de 2020, apresentou Resposta, na qual se defendeu por impugnação, concluindo pela improcedência da ação e absolvição de todos os pedidos. Neste âmbito, alega em síntese que:

a)            O artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA confere à AT o poder de obrigar o sujeito passivo a adotar o método previsto no Ofício-circulado n.º 30108, tendo em vista afastar distorções significativas na tributação;

b)           O coeficiente de imputação específico é o único adequado, salvaguarda a neutralidade e está de acordo como as normas de direito europeu, nomeadamente os artigos 173.º a 175.º da Diretiva IVA, e de direito interno (artigos 16.º e 23.º do Código do IVA);

c)            A renda de locação financeira mobiliária decompõe-se em duas partes, uma correspondente ao capital ou amortização financeira que traduz o “reembolso da quantia emprestada” (quantia que constitui o preço de aquisição do bem dado em locação), outra de juros e encargos, que constitui a remuneração do locador;

d)           Tendo o locador, no momento de aquisição do bem objeto da locação, exercido o direito à dedução integral do IVA que onerou essa aquisição, por via do método da imputação direta, deve ser expurgado do cálculo da percentagem de dedução a parte da renda que corresponde ao valor de amortização financeira, pois esta consubstancia a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado;

e)           Deste modo, é apenas o diferencial (genericamente de juros) que se encontra conexo com a aquisição de recursos de utilização mista (indistintamente em operações com e sem direito à dedução);

f)            Entendimento diverso permitiria um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido nos inputs de utilização mista;

g)            O acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais, C-183/13, de 10 de julho de 2014, corrobora a conformidade do procedimento preconizado pela AT e a interpretação deste tribunal europeu vincula os tribunais nacionais, nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição;

h)           Bem assim, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 052/19.0BALSB, de 4 de março de 2020, vem confirmar que a norma do artigo 23.º, n.º 2  do Código do IVA reproduz, em substância, a regra da Sexta Diretiva (em vigor à data dos factos) que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços, em linha com a jurisprudência anterior daquele Supremo Tribunal (arestos proferidos nos processos n.º 081/13, de 4 de março de 2015, n.º 0970/13, de 3 de junho de 2015, n.º 01874/13, de 17 de junho de 2015, n.º 0330/14, de 27 de janeiro de 2016, e n.º 0485/17, de 15 de novembro de 2017);

i)             Desta forma, não ocorre violação do princípio da legalidade, da neutralidade e da reserva de lei, pois o artigo 23.º do Código do IVA determina expressamente nos seus n.ºs 3 e 2 que a AT pode impor condições especiais (incluindo um método pro rata mitigado), pelo que não só o conteúdo das normas que constam do Ofício-circulado é conforme ao direito (Diretiva IVA), como o seu estabelecimento através desse processo está de acordo com as instruções do legislador;

j)             A utilização de bens e serviços de utilização mista por parte da Requerente não foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos locados. Em relação à disponibilização dos veículos locados, os inputs em que o locador incorre circunscrevem-se essencialmente à aquisição desses veículos. Os restantes inputs que emergem na vigência do contrato de locação, decorrem das vicissitudes deste e situam-se ao nível do financiamento e da gestão do contrato;

k)            Todos os custos em que a Requerente incorre inerentes à gestão do contrato encontram-se refletidos na parte da renda que corresponde aos juros e que constitui a remuneração do locador;

l)             No sentido que preconiza, a Requerida invoca as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 383/2019-T, 709/2019-T, 759/2019-T e 927/2019-T;

m)          Não se verificam os pressupostos elencados no artigo 43.º da LGT, designadamente o erro imputável aos serviços e o pagamento indevido de prestação tributária, pelo que não assiste à Requerente o direito a juros indemnizatórios.

 

* * *

Por despacho de 9 de outubro de 2020, o tribunal arbitral decidiu dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT por desnecessária, atendendo a que não foi requerida prova testemunhal, nem foi invocada ou identificada matéria de exceção.

 

Subsequentemente, foram as Partes notificadas para apresentarem alegacões, facultativas e sucessivas. O tribunal advertiu ainda a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, para o que foi designado o termo do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

 

Em 10 de novembro de 2010, a Requerente apresentou as suas alegações e argumentou,  com interesse para a decisão da causa, além do já por si alegado no pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), nos seguintes moldes:

 

i)             Sobre a violação do disposto no artigo 23.º do Código do IVA:

             O ponto 9 do Ofício-circulado não consiste na imposição à Requerente do método da afetação real, pois não é possível a utilização de critérios objetivos. Assim, o que a AT impõe é um método de pro rata, com base na aplicação de um coeficiente de imputação específico. Este método não encontra apoio no artigo 23.º do Código do IVA, nem noutra norma de direito interno, sendo ilegal;

             A lei nacional apenas transpõe o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA para o método da afetação real, incorrendo o Tribunal de Justiça em erro no pressuposto de que o legislador português transpôs aquela norma para o Código do IVA como incluindo a possibilidade de mitigar o pro rata; 

             Constata-se a violação dos princípios da legalidade e reserva de lei por se tratar de uma transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA por ofício, quando teria de o ser por via legislativa;

             Trata-se, além do mais, da imposição de uma percentagem de dedução de forma genérica, pois, no acórdão Banco Mais, a posição da AT é acolhida sob a condição de que “a utilização desses bens e serviços [de utilização mista] seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos”. A percentagem em causa foi imposta de forma genérica, sem atender ao caso concreto, incumprindo assim o próprio artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA;

ii)            Sobre as questões suscitadas pela AT relativas aos gastos de disponibilização com veículos e de gestão de financiamento dos contratos, bem como a aferir se os gastos mistos se encontram refletidos na taxa de juro, a Requerente afirma que estas não foram por si invocadas. Salienta que a única questão que suscita é de direito e consiste no facto de não se extrair do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, nem de qualquer norma de direito interno, suporte legal que confira à AT o poder de impor ao sujeito passivo um método de pro rata diferente do que se indica no 23.º, n.º 4 do Código do IVA. 

 

Em 24 de novembro de 2020, a Requerida contra-alegou, remetendo para o que foi escrito em sede de Resposta. Assinala a diferente situação fática subjacente ao acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Volkswagen Financial Services, de 18 de outubro de 2018, processo n.º C-153/17, relativo a uma entidade financeira localizada no Reino Unido, país que obrigava à desagregação do leasing em duas operações para efeitos de IVA, uma isenta de IVA (referente aos juros) e outra tributada (referente à amortização financeira), diversamente do que sucede em Portugal.

 

Segundo a Requerida, nesse caso, por um lado, para o cálculo da percentagem de dedução não eram tidas em conta as despesas com os bens e serviços repercutidos na componente de juros e, por outro lado, os juros não refletiam o custo das prestações de serviços e bens que compunham os custos mistos dos contratos de locação, ao contrário do que acontece no regime português, em que os juros são tributados e refletem o consumo dos bens e serviços de natureza mista.

 

                Em 8 de fevereiro de 2021, a Requerida procedeu à junção de documento superveniente, respeitante ao acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de janeiro de 2021, proferido no processo n.º 0101/19.1BALSB, sobre um caso análogo ao decidendo. 

 

                Por despacho de 23 de fevereiro de 2021, o tribunal arbitral determinou a prorrogação do prazo de prolação da decisão, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, resultante da complexidade das questões suscitadas.

 

II.            SANEAMENTO

 

O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de (auto)liquidação de IVA, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e artigo 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT.

 

Não existem exceções a apreciar. O processo não enferma de nulidades.

 

III.          QUESTÕES A APRECIAR

 

Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral:

 

a)            Saber se o artigo 23.º do Código do IVA constitui a transposição meramente parcial do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA, não permitindo a imposição de um método de pro rata mitigado como o coeficiente de imputação específico previsto no ponto 9 do Ofício-circulado nº 30108, de 30 de janeiro de 2009, emitido pela Área de Gestão Tributária do IVA para as instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as atividades de leasing, de ALD e de concessão de crédito;

b)           Saber se o coeficiente de imputação específico consubstancia um critério objetivo passível de fundar a aplicação do método da afetação real, de acordo com o disposto no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA;

c)            Aferir se a imposição à Requerente, por parte da AT, do referido coeficiente de imputação específico é conforme ao princípio da legalidade tributária, estabelecido nos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição;

d)           Determinar se a imposição do coeficiente de imputação específico, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, apurada caso a caso, viola o direito da União Europeia, em concreto o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA.

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO

 

1.            DE FACTO

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, que desenvolve, entre outras atividades de natureza financeira, a atividade de locação financeira (leasing) e o aluguer de longa duração (“ALD”) – provado por acordo atento o teor dos documentos 1 e 3.

B)           A Requerente qualifica-se, para efeitos de IVA, como um sujeito passivo deste imposto, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA, e está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal – provado por acordo atento o teor dos documentos 1 e 3.

C)           No exercício da sua atividade a Requerente realiza operações tributadas que conferem o direito à dedução do IVA – contratos de leasing e ALD – e operações isentas de IVA que não conferem esse direito – operações de financiamento e de concessão de crédito – provado por acordo atento o teor do documento 3.

D)           As rendas de leasing e de ALD contêm duas componentes distintas, uma respeitante à amortização/reembolso do capital utilizado para adquirir o bem dado em locação e outra relativa à taxa de juro aplicada a esse capital adicionada de outros encargos que a Requerente estima incorrer na execução do contrato – provado por acordo.

E)            Em 30 de janeiro de 2009, a Área de Gestão Tributária do IVA emitiu o Ofício-circulado n.º 30108, cujo teor se dá por reproduzido, no qual se refere, além do mais, o seguinte:

“7. Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.

9. Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.”

https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/legislacao/instrucoes_administrativas/Documents/OficCirc_30108.pdf

F)            A Requerente entregou, mensalmente, no ano de 2017, as respetivas declarações periódicas de IVA, tendo procedido ao ajustamento anual do IVA deduzido, na declaração do último período do ano [dezembro] – provado pelo teor do documento 1 (declaração periódica de IVA de dezembro de 2017, n.º...).

G)           Em relação à aquisição dos bens objeto dos contratos de locação financeira (leasing e ALD), a Requerente aplicou, para efeitos de exercício do direito a dedução do IVA suportado, o método da imputação direta, dessa forma deduzindo, na íntegra, o IVA suportado na aquisição de tais bens – provado por acordo atento o teor do documento 3.

H)           Para determinar o montante de IVA dedutível relativamente às aquisições de bens e serviços de utilização mista (i.e., em atividades que conferem e em atividades que não conferem o direito à dedução), a Requerente calculou o “coeficiente de imputação específico” para o ano 2017, em cumprimento do disposto no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 – provado por acordo atento o teor do documento 3.

I)             Este coeficiente resulta de uma fração construída em moldes semelhantes aos previstos para o método da percentagem de dedução no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, com a diferença de que o valor das rendas dos contratos de leasing e ALD não é considerado na sua totalidade, apenas sendo incluído no denominador e no numerador da fração de cálculo a componente das rendas respeitante aos juros e outros encargos, ficando portanto excluída desse cálculo, não o influenciando, a componente da renda que se destina a compensar o desembolso de capital para aquisição dos bens locados – provado por acordo atento o teor do documento 3.

J)            A percentagem definitiva de dedução apurada pela Requerente, por aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no ponto 9 do citado Ofício-circulado, foi de 40,92% e materializou-se no valor de € 211.373,98 de IVA dedutível e deduzido no ano 2017, através da declaração periódica de IVA reportada a dezembro desse ano – provado por acordo atento o teor dos documentos 1 e 3.

K)           Se a Requerente tivesse aplicado o pro rata de dedução previsto no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, a percentagem de IVA dedutível ascenderia a 93% e o correspondente IVA dedutível cifrar-se-ia em € 480.395,49, sendo a diferença, face à dedução efetuada, de € 269.021,42 – provado por acordo atento o teor do documento 3.

L)            Em 26 de dezembro de 2019, a Requerente apresentou uma Reclamação Graciosa da autoliquidação de IVA referente ao período de dezembro de 2017, com fundamentos idênticos aos do presente pedido arbitral – cf. documento 2.

M)          Por ofício de 9 de março de 2020, foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, de 5 de março de 2020, do Chefe de Divisão de Serviço da Unidade de Grandes Contribuintes – Justiça Tributária, ao abrigo de Subdelegação de competências – cf. documento 3.

N)           Não se conformando com a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra o ato de autoliquidação de IVA referente a dezembro de 2017, visando a anulação parcial deste, a Requerente deduziu a presente ação arbitral em 5 de junho de 2020 – cf. registo de entrada do pedido no SGP.

 

Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

 

A fixação da matéria de facto baseia-se na análise crítica dos documentos juntos pela Requerente e nas posições consensuais assumidas pelas Partes em relação aos factos essenciais, sendo o dissídio de direito.

 

2.            DE DIREITO

 

                2. 1.       RAZÃO DE ORDEM

 

A título preliminar importa salientar que nos presentes autos a Requerente pretende unicamente ver apreciada a questão de direito consistente no facto de, na sua perspetiva, não se extrair do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, nem de qualquer norma de direito interno, suporte legal que conferisse à AT o poder de impor ao sujeito passivo um método de pro rata diferente do indicado no 23.º, n.º 4 do Código do IVA. 

 

A Requerente declina, desta forma, qualquer discussão, quer relativamente aos concretos e efetivos gastos de disponibilização com veículos e de gestão de financiamento dos contratos, quer, também, sobre a questão de aferir se os gastos mistos se encontram refletidos na taxa de juro estipulada no contrato de locação, por não as ter invocado como fundamento do seu pedido, considerando, por essa razão, que o tribunal arbitral não deve conhecer de tal matéria, sem prejuízo da “extensa análise da AT sobre esta questão”.

 

O litígio é, nestes termos, claramente configurado como tendo por objeto exclusivo uma divergência de direito, inexistindo dissonância entre as Partes quanto à factualidade alegada pela Requerente.

 

O tema a decidir prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvem as atividades de leasing e ALD em simultâneo com as atividades de concessão de crédito e foi objeto de duas pronúncias no Tribunal de Justiça, nos processos Banco Mais, C-183/13, de 10 de julho de 2014, e Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de outubro de 2018, a que acresce o profuso debate na jurisprudência nacional da última década.

 

É assim considerável o lastro adquirido nesta matéria, pelo que as questões de direito suscitadas foram já aprofundadas e clarificadas pelo Tribunal de Justiça, no que respeita à interpretação do Direito da União Europeia, em concreto da Diretiva IVA, e pelo Supremo Tribunal Administrativo, em relação ao direito interno, destacando-se neste último caso dois importantes e recentes acórdãos do pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferidos nos processos n.ºs 084/19.8BALSB e 0101/19.1BALSB, de 24 de fevereiro de 2021 e de 20 de janeiro de 2021, respetivamente, todos no sentido da admissibilidade do critério de imputação específica consagrado no n.º 9 do Ofício-circulado n.º 30108, à luz do direito da União Europeia e da legislação nacional.

 

Diversamente, a jurisprudência arbitral que se pronunciou inicialmente sobre esta matéria propendia para a inadmissibilidade do mencionado critério de imputação específica, em linha com a argumentação da Requerente, por entender que se estaria perante um terceiro método, sem cabimento no artigo 23.º do Código do IVA, resultando, desse modo, violado o princípio da legalidade tributária .

Porém, na sequência do acórdão para uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de março de 2020, no processo n.º 7/19, assistiu-se a uma inflexão no sentido das decisões arbitrais, de que são exemplos as proferidas nos processos n.º 759/2019-T, de 5 de setembro de 2020, e n.º 927/2019-T, de 21 de setembro de 2020, concluindo-se, ao contrário da Requerente, que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno”.

 

2.2.  O ARTIGO 23.º DO CÓDIGO DO IVA E O COEFICIENTE DE IMPUTAÇÃO ESPECÍFICO

 

Na tese da Requerente, o artigo 23.º do Código do IVA só prevê dois métodos de dedução, o pro rata e a afetação real, constituindo o coeficiente de imputação específico um terceiro método, desprovido de base legal, pois, em seu entender, não constitui um critério objetivo que permita determinar o grau de utilização dos recursos mistos e, por essa razão, não tem assento no mencionado preceito, nem em qualquer outro previsto na lei interna. Assim, sem prejuízo de reconhecer que o artigo 173.º, n.º 2 alínea c) da Diretiva IVA contempla tal possibilidade, atribuindo essa prerrogativa aos Estados-Membros, sustenta que a norma comunitária não foi em parte transposta pelo legislador português, que não previu a possibilidade de um pro rata mitigado.

 

Afigura-se, todavia, que sem razão.

 

Desde logo, no processo C-183/13, o Tribunal de Justiça considerou que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA, correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Diretiva, posição que foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplos acórdãos. Neste âmbito, referimos, a título ilustrativo, além dos supra citados, os acórdãos de 29 de outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

 

Com efeito, o legislador português reproduziu no artigo 23.º do Código do IVA o essencial do regime de dedução parcial, i.e., aplicável aos recursos de utilização mista, previsto nos artigos 173.º a 175.º da Diretiva IVA.

 

Tal como na Diretiva, o método do pro rata é consagrado como método supletivo de dedução do IVA (artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código). Alternativamente, os sujeitos passivos podem optar pelo método da afetação real, sem prejuízo de a AT poder “impor condições especiais ou [ ] fazer cessar esse procedimento” se verificar que o mesmo provoca ou pode provocar [em função dos critérios objetivos empregues] distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 2 do Código). Por fim, pode ser a própria AT a impor a afetação real em detrimento do pro rata quando o sujeito passivo exerça atividades distintas ou este método seja passível de causar distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 3 do Código).

 

Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça C-183/13, inexistindo na Diretiva  regras que concretizem o método da afetação real, cabe aos Estados-Membros estabelecê-las, tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida diretiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas”. Importa, para tanto, ter em conta as características específicas próprias às atividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução .

Declara a este propósito o recente acórdão (Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 084/19.8BALSB) que a norma do artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “ao permitir que a AT imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA”, que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou parte dos bens ou serviços, nos exatos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA.

 

Assim, não se verifica o vício de ilegalidade abstrata que a Requerente sindica em relação ao ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, que funda a autoliquidação controvertida, esclarecendo o acórdão, também daquele Supremo Tribunal (Pleno), no processo n.º 101/19.1BALSB, que a expressão «afetação real» empregue pelo artigo 23.º do Código do IVA corresponde à expressão «utilização» adotada na Sexta Diretiva, a qual, “por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efetivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (cit. José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, in «Desfazendo  mal-entendidos em matéria do direito à dedução…», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, número 1, pág. 50). Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «…com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito»”.

 

E agora, acrescentamos nós, menos dúvidas existirão, pois a própria Diretiva passou a mencionar, em vez da expressão «utilização», outra coincidente com a empregue no Código do IVA: a “afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”. (sublinhado nosso)

 

Seguindo ainda este aresto, “[a] questão que ficava era a de saber se o método previsto  no ponto 9 do ofício circulado n.º 30108 [...] era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efetiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Diretiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.

E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.

Desde que fosse apurado que a utilização de bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira (parágrafo 33 do acórdão). […]

Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redação do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.

Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária”.

 

Sobre a alegação de que um pro rata mitigado não constitui um método de afetação real, que a aqui Requerente também aduz, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que não é assim, porque não existe apenas uma forma de proceder à afetação de bens e serviços. “A confirmar que o sistema de afetação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da atividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito, segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução.

Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.”

 

E conclui que, sob este prisma, as referências à violação do princípio da legalidade e da reserva de lei não têm cabimento.

 

Posição que, pelas razões acima expostas, aqui se acompanha.

 

Sérgio Vasques vai mais além e conclui que “aquilo que, no contexto do sistema IVA, consubstancia o método da afetação real, é questão que não está na disponibilidade dos tribunais nacionais determinar.”, numa remissão implícita para a competência do Tribunal de Justiça para dirimir tal questão, conforme este a exerceu no caso Banco Mais – v. “IVA, Pro rata e Locação Financeira”, Cadernos IVA 2020, p. 523.

 

2.3. SOBRE O CRITÉRIO DE IMPUTAÇÃO ESPECÍFICO NÃO SER UM CRITÉRIO OBJETIVO

 

Assente o pressuposto de que o critério de imputação específica é enquadrável no método da afetação real, uma segunda questão que daí deriva prende-se com saber se esse método constitui um critério objetivo e é ajustado, no sentido de constituir “uma modalidade do cálculo de dedução que reflita objetivamente a parte real das despesas efetuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.”

 

Com efeito, de acordo com o Tribunal de Justiça, importa que o critério adotado seja mais preciso do que o resultante do método residual do pro rata, considerando as especificidades do sujeito passivo , o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais.

 

Neste âmbito, o citado Ofício-circulado n.º 30108 invoca que se trata de um método menos suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação. O que, de uma forma geral, é uma asserção válida, atentas as características-padrão da atividade de locação financeira.

 

De facto, a remuneração da atividade de leasing e ALD, apesar de juridicamente configurada como uma renda unitária, do ponto de vista económico corresponde tendencialmente a apenas uma das duas componentes compreendidas nesta renda, “os juros e outros encargos”, o que é refletido no tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16 , que as equipara às operações de financiamento ou concessão de crédito. 

 

O valor do capital que é “amortizado” (no sentido de reembolsado ou pago), representa o valor do bem escolhido pelo locatário e que a este foi cedido. Ou seja, quando essa quantia é paga pelo locatário, nomeadamente via rendas, não constitui a remuneração da atividade do locador, mas o pagamento parcelar do custo de aquisição do bem locado, in casu, viaturas automóveis, ou, dito de outro modo, o reembolso gradual e progressivo do preço da viatura que findo o contrato, e se este se executar e desenvolver dentro da normalidade, passará para a esfera jurídica do locatário .

 

Assim, a atividade do locador, que disponibiliza a viatura ao locatário porque despendeu os meios financeiros para o efeito, é remunerada pela componente da renda, aqui denominada de “juros e outros encargos”, que excede o valor do reembolso do capital usado para adquirir a viatura.

 

Do ponto de vista do IVA, o valor do imposto liquidado na renda (output) referente à componente de reembolso do capital (originariamente usado para adquirir a viatura) está afeto por imputação direta, à dedução, na sua esfera, do IVA incorrido na aquisição dessa viatura (input) . O valor do capital debitado ao locatário e do IVA liquidado corresponderá ao do custo de aquisição da viatura e do respetivo IVA deduzido, em virtude dessa imputação/afetação direta, e em razão de tal componente, não contemplar, à partida, qualquer margem para acomodar ou prever outros inputs, como os de utilização mista em causa nesta ação, nem o “lucro” da operação.

Deste modo, é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afeto ao input da viatura adquirida para locação) que, em princípio, reflete a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representa, em regra, a (única) remuneração económica dos gastos da atividade de leasing e ALD, pois a outra, a do capital, esgota-se com o input da aquisição da viatura, não sobrando qualquer valor para imputar a outros gastos/inputs.

 

Assim sendo, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da atividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, em princípio, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação direta.

 

Caso contrário, estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da atividade geral, com juros e capital do leasing. Nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fração que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante atividade .

 

O método do pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela atividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstrato, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão direta com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante atividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.

 

Ao contrário do afirmado pela Requerente, o critério em análise é um critério de natureza objetiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objetivos comummente aceites e aplicados no método da afetação real, como o número de pessoas afetas às atividades, o número de horas homem incorridas, ou os metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objetivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso.

 

Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afetação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exata medida de consumo dos recursos por cada uma das atividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto indedutível em imposto efetivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa).

 

No plano concreto, quanto a determinar se tal entendimento seria de afastar atentas as circunstâncias verificadas na esfera da Requerente, interessa notar que é a própria Requerente que afasta essa discussão, dizendo expressamente que a única questão (vício) que suscita e alega é de direito, pelo que não invoca quaisquer factos nesse pendor, nem ao tribunal, nesse caso, cabe indagar. 

 

Aplica-se, neste contexto, o entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, reiterado nos dois recentes acórdãos do Pleno acima identificados (de 2021), de que quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamenta no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução.

 

Desta forma, caberia “ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.”

 

Ponto que, como referido, nem sequer se suscita na presente ação, pois esta não contém tal causa de pedir (de erro nos pressupostos de facto).

 

Por fim, numa breve referência ao acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de outubro de 2018, no processo Volkswagen Financial Services, C-153/17, convém notar que a situação fática aí apreciada é distinta da aqui em causa, pois, como refere Sérgio Vasques, “o direito do Reino Unido obriga à desagregação do leasing em duas operações: a disponibilização do veículo e o seu financiamento. […] Para efeitos de IVA, as duas operações são tratadas de forma distinta também. A disponibilização do veículo constitui uma operação tributada; ao passo que o financiamento é tido como uma operação de concessão de crédito isenta.”

 

Acresce que as conclusões do Tribunal de Justiça no processo C-153/17 foram ditadas pelo facto de o tribunal nacional de reenvio ter previamente determinado que, nesse caso concreto, os custos gerais tinham uma relação direta e imediata com a totalidade das atividades do sujeito passivo, o que se afigura não suceder na situação vertente, em que a Requerente não alegou, e menos demonstrou, que os recursos de utilização mista foram sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos locados (associada à componente de capital das rendas de leasing e ALD) e não pela gestão dos contratos.

 

2.4. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Peticionou, por fim, a Requerente que, para além do reembolso da quantia que tinha sido voluntária e indevidamente paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

 

A este respeito dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Tendo-se determinado, nos presentes autos, que não ocorreu qualquer erro imputável aos serviços, nem o pagamento de prestação tributária superior à devida, não se encontram reunidos os requisitos de que depende a aplicabilidade daquele regime, pelo que também improcede o peticionado pela Requerente a este respeito.

 

                EM SÍNTESE

 

Pelos motivos expostos, julga-se não verificado o vício de erro de direito alegado pela Requerente, em virtude de o critério de imputação específico consagrado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009 ter suporte legal no artigo 23.º, n.ºs 3 e 2 do Código do IVA, não ocorrendo violação dos princípios da legalidade e da reserva de lei, sendo conforme ao direito da União Europeia, em concreto ao disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA e ao princípio da neutralidade fiscal. Conclui-se, assim, pela manutenção do ato impugnado, de autoliquidação de IVA reportado ao período de dezembro de 2017.

 

V.           DECISÃO

 

À face do exposto, acordam os árbitros deste tribunal arbitral em julgar a ação improcedente, com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 269.021,42  correspondente ao valor da autoliquidação de IVA que se pretende anulado, indicado pela Requerente e não contraditado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 4.896,00, a cargo da Requerente, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de abril de 2021

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Nina Aguiar

Marcolino Pisão Pedreiro

 

 

Declaração de voto do árbitro Marcolino Pisão Pedreiro

 

Salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento, em linha com reiterada jurisprudência do Venerando Supremo Tribunal Administrativo, voto vencido, pelas razões que, sinteticamente, passo a enunciar.

Nas condições do nº 3, do art. 23º, do Código do Imposto sobre o Valor acrescentado, pode a AT obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o nº 2, que tem a seguinte redação:

“Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.”

Afigura-se-me, que a parte final da norma (“sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação”), se dirige à situação em que foi o contribuinte a   optar pelo método da afetação real, sendo inaplicável nas situações em que é a AT a obrigar o sujeito passivo a aplicar o método da afetação real.

Daqui decorre, a meu ver, que, se é a AT que obriga o sujeito passivo a utilizar o método da afetação real não faz sentido invocar que tal método provoca distorções significativas na tributação. Por outro lado, a imposição de condições especiais sempre estaria dependente de se verificarem estas distorções significativas na tributação decorrentes da aplicação do método da afetação real (e não na aplicação do método do pro rata).

Em todo o caso, mesmo que se entendesse que a AT pode obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução segundo a afetação real e ainda assim impor “condições especiais” a essa dedução (“fazer cessar o procedimento” seguramente não faz qualquer sentido pois, neste caso é a AT que impõe tal procedimento), continuamos, ainda, no âmbito do método da afetação real.

Este método   dirige-se diretamente à   resolução da questão da afetação de imputs, ou seja, dos bens ou serviços utilizados.Nas palavras da lei “efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços”

Diferentemente, o método definido pelo ofício circulado, exclui da percentagem de dedução parte dos outputs, não  determinando, nem procurando determinar a afetação dos imputs, nem o seu grau e utilização nas operações que conferem direito a dedução e nas atividades que o não conferem.

Não utilizando como método a aferição da afetação de imputs  e o seu grau de utilização, não se pode dizer que constitui um método de afetação real. Na verdade, trata-se do método pro rata expurgado dos outputs correspondentes à componente capital da renda, traduzindo-se no afastamento parcial da regra do art. 20º, nº 1, al. a) do CIVA, lida em conjugação com o art. 16º, nº 2, a. h), do CIVA).

Assim sendo, afigura-se-me que o método definido pelo ofício circulado não encontra guarida nos nºs 2 e 3º do artigo 23º do CIVA, consubstanciado a criação duma norma jurídica em violação do princípio da legalidade.

Esta posição não é, a meu ver, posta em causa pelo disposto na al. c), do nº 2, do art. 173º da Diretiva 2006/112/CE, na interpretação que lhe é conferida pelo Tribunal de Justiça, uma vez que, o previsto nesta alínea não constitui uma imposição aos Estado-Membros, mas sim uma faculdade (“Os Estados-Membros podem tomar as seguintes medidas”).

Relativamente ao acórdão Banco Mais, independentemente da questão de saber se o  Tribunal interpretou, ou não,  o artigo 23º do CIVA, não se me afigura que tal seja relevante ou, pelo menos, decisivo, uma vez que que a competência do TJUE  se dirige à interpretação do Direito da União e não ao Direito dos Estados-Membro e, ainda que, em contexto de interpretação  do Direito da União, proceda a alguma referência ao Direito dos Estados-Membros, não se pode esperar que o Tribunal tenha procedido a uma análise cuidada do mesmo e, mesmo que o tivesse feito, a sua interpretação do direito do Estado-Membro   não é vinculativa para os Tribunais Nacionais.

Apesar de, no meu entender, o art. 23º do CIVA não permitir a solução adotada pelo ofício circulado, não se discorda da posição que fez vendimento quando se refere que:

“se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstrato, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão direta com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante atividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.”

Só acrescentaria que tal ocorre de igual modo com o método da afetação real, se não se expurgar os outputs em causa. É que o problema não está nos bens e serviços adquiridos mas sim nos outputs (componente de  capital da renda) e a prova disso é que a solução do ofício-circulado é, apenas,   a de desconsiderar estes na percentagem de dedução, não procurando determinar o que quer que seja relativamente à afetação dos imputs e ao seu grau de utilização.

De jure condendo, à luz do princípio da neutralidade, considero que uma solução que desconsidere, para efeitos da percentagem de dedução, os outputs em causa, adotando, desta forma, um pro rata especial, se afigura adequada mas, a meu ver, é um problema que deveria ser solucionado por via legislativa, uma vez que a solução do oficio-circulado não encontra suporte nos nºs 2 e 3 do  art. 23º do CIVA.

Em consequência, entendo que o pedido arbitral merecia acolhimento.

Mantenho, assim, a posição que subscrevi nas decisões arbitrais proferidas nos processos 400/2019-T, 425/2019-T e 852/2019-T.

 

O Árbitro-Vogal

Marcolino Pisão Pedreiro

 

 

Declaração de voto do árbitro Nina Aguiar

 

Votei no sentido da improcedência do pedido, aderindo à argumentação explanada, por considerar ser essa a interpretação do direito conforme com a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Administrativo.

 

O árbitro vogal

Nina Aguiar