Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 234/2014-T
Data da decisão: 2014-09-16  IRS  
Valor do pedido: € 1.560.822,67
Tema: IRS - Cláusula geral anti-abuso
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Decisão Arbitral

 

            Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Guilherme W. d’Oliveira Martins e Prof. Doutor João Ricardo Catarino designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 13-05-2014, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

           

A... e B..., contribuintes n.ºs … e …, residentes na Rua …, (doravante simplesmente "Requerentes"), vieram, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro - e com base nos argumentos que abaixo se desenvolvem -, apresentar pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos de liquidação adicional de IRS n.º 2014..., de liquidação de juros compensatórios n.º 2014… e de acerto de contas n.º 2014..., relativos ao ano de 2009, dos quais resultou um saldo a pagar de € 1.560.822,67.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

            A Requerente optou pela não designação de árbitro.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Prof. Doutor Guilherme W. d’Oliveira Martins e o Prof. Doutor João Ricardo Catarino, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

            As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

            Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 13-05-2014.

            A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e a sua absolvição do pedido.

            Em 14-07-2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que foi produzida prova testemunhal e se acordou que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas.

            As Partes apresentaram alegações.

            Os Requerentes apresentaram as seguintes conclusões na sua alegação:

1         – A situação em apreço nos autos configura um caso típico de situações que se encontram fora do perímetro de aplicação da CGAA, não podendo através dela ser censurada,

2        – Em primeiro lugar, estão-lhe subjacentes operações com objectivos empresariais e fundamentos económicos genuínos e lícitos, não se verificando, pois, um caso de actuação com um desiderato exclusivo ou principal de obtenção de vantagens fiscais.

3        – A transformação da sociedade por quotas C..., Lda, em sociedade anónima, em 30 de Dezembro de 2008, foi apenas um momento do processo de tentativa de reforço da capacidade comercial da empresa, de base essencialmente familiar;

4        – A transformação em causa teve em vista a alienação do capital da sociedade apenas como uma mera eventualidade, não servindo para preparar qualquer negócio concreto, imediato, já acordado ou previsível.

5        – Por outro lado, a transformação foi realizada não em virtude do regime fiscalmente vantajoso de que beneficiavam as vendas de acções (por comparação com as vendas de quotas) mas por causa de razões de estratégia empresarial evidentes: podendo a C... vir a necessitar da entrada no seu capital de novos investidores — e tendo em conta que, por causa da tendência a que se assistia para as reorganizações empresariais, era grande a concorrência pela atracção de capital — deviam os Requerentes ter a sociedade estruturada de modo a facilitar o interesse e a entrada imediata de novo capital.

6        – Seja como for, independentemente dos objectivos das operações em apreço, a verdade é que todos os negócios foram realizados sem a "desfuncionalização" das formas jurídicas utilizadas, às quais se recorreu com o fim de cumprirem a sua vocação habitual e os seus efeitos típicos: a C... foi transformada em sociedade anónima porque se queria efectivamente que ela assentasse nesse modelo societário, e a alienação das acções foi realizada porque se quis de facto essa alienação.

7        – Ora, as situações que cabem no âmbito da CGAA são aquelas em que são utilizadas formas jurídicas insólitas, absolutamente impróprias, em que há uma total ausência de fins económicos ou, pelo menos, uma total divergência entre o fim económico logrado e o fim para o qual o negócio e/ou a norma mobilizados foram pensados.

8       – No caso vertente, pelo contrário, os meios (as formas jurídicas) foram totalmente consentâneos com os fins económicos para os quais foram criados: não existiu, pois, qualquer subversão do sistema jurídico — ele não foi vergado abusivamente à vontade fiscal ilícita dos Requentes, mas utilizado em estrito respeito pela sua intenção mais comum.

9        – De resto, o encadeado negocial que a AT reputa de abusivo envolveu um regime fiscal favorável que o legislador quis conceder às empresas e que, portanto, as incentivou a utilizar: por isso, o caso dos autos não traduz uma situação artificiosa, mas, em parte, o recurso a uma ausência de tributação que o legislador nunca procurou evitar (aquilo que a Doutrina, já amplamente citada em Decisões proferidas no âmbito deste Centro era processos análogos, chama de "lacuna consciente de tributação”).

10    – As situações deste tipo são o núcleo de liberdade de escolha mais seguro contra medidas anti-abuso, porque nelas não se identifica qualquer "desfuncionalização" de normas, que foram criadas, precisamente, para serem utilizadas em nome da poupança fiscal: o contribuinte beneficia de uma dispensa ou redução da carga tributada por opção do próprio legislador, opção essa que constitui uma presunção de não reprovação jurídica do recurso à norma que estatui o benefício.

11     Os actos tributários em causa nos autos são, portanto, ilegais, por violação do 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária.

Termos em que se conclui, como no requerimento inicial, pedindo a declaração de anulabilidade dos actos sobre os quais se solicita a pronúncia do presente Tribunal, com todas as consequências legais ao recebimento de juros indemnizatórios.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira formulou as seguintes conclusões:

 

I. A prova produzida nos autos permite demonstrar, indubitavelmente, que a operação de transformação da sociedade por quotas, C... – …, Lda., em sociedade anónima, a constituição da C... SGPS e a aquisição pela C... SGPS, aos seus accionistas, das participações sociais da C..., SA (actual D...) sem que se verificasse o respectivo pagamento constituem actos destituídos de qualquer racionalidade económica que tiveram como objectivo fundamental a eliminação de encargos tributários;

II. Os Requerentes praticaram um conjunto complexo de actos, que teve o seu início na transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, globalmente arquitectado para um fim elisivo sendo o objectivo final a criação de um direito dos accionistas junto da C... SGPS por forma a obter a exclusão de tributação das mais-valias geradas que teria ocorrido com a simples alienação das quotas que constituíam o seu capital e com a normal distribuição dos lucros;

III. Sendo que tal fim elisivo é facilmente apreendido perante a comprovada inexistência de razões económicas válidas subjacentes às operações em causa, o que demonstra que o principal objectivo dos Requerentes foi a obtenção de benefícios fiscais, em claro abuso de direito.

IV. A prova produzida não é susceptível de contraditar a legalidade das correcções efectuadas pela Inspecção Tributária, não logrando os Requerentes provar, como pretendiam, a ilegalidade da liquidação mostrando-se, ao invés, provados todos os pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti-abuso constante do artigo 38.º da LGT.

Nestes termos e nos mais de Direito, e com o douto suprimento de V. Ex.as, deverá o presente Pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os Pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

            Não se vislumbra qualquer nulidade.

 

            2. Matéria de facto

 

            2.1. Factos provados

 

            Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)      Os Requerentes, A... e B..., constituíram, em 22 de Dezembro de 1995, a sociedade C..., Lda., NIF ..., com o objecto social de “fabricação de aparelhos receptores de som e imagem, antenas parabólicas” e sob a forma de sociedade comercial por quotas [Relatório de inspecção (RIT), que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido];

b)      O capital social ascendia a € 274.338,84, sendo o sócio A..., detentor de uma quota de € 246.904,96, a que corresponde uma parte de capital de cerca de 90%, e a sócia B... detentora de uma quota de € 27.433,88, correspondente a uma participação social de aproximadamente 10% do capital social (RIT);

c)      No dia 28 de Novembro de 2008, reuniram os sócios da C... Lda. em Assembleia-geral Extraordinária para deliberar sobre os seguintes pontos:

1.      Aumento de capital social a efectuar por incorporação de reservas e transformação da sociedade em sociedade anónima;

2.       Aumento do capital social de € 274.338,84 para € 1.000.000,00, sendo € 721.661,16 a realizar por incorporação de reservas pelos sócios A... e B... e o restante, por dinheiro, com a entrada de novos sócios;

3.      Transformação da sociedade comercial por quotas em sociedade anónima;

4.      Análise, discussão e aprovação do contrato pelo qual a sociedade se vai reger.

d)     Nessa Assembleia, aprovaram os sócios o aumento de capital social por incorporação de reservas, bem como o balanço reportado a 30 de Setembro de 2008, que serviu de base à elaboração do relatório da gerência justificativo da transformação da sociedade comercial por quotas em sociedade anónima (RIT e Acta n.º 35);

e)      O aumento de capital social foi objecto de escritura pública datada de 30 de Dezembro de 2008, da qual consta:

· O montante de € 721.661,16 será realizado pelos sócios originários na proporção das suas quotas, ficando o sócio A... com uma quota que ascende a € 896.400,00, correspondente a 89,64% do capital, e a sócia B... com uma quota que ascende a € 99.600,00, correspondente a 9,96% do capital;

· O remanescente do aumento do capital social, € 4.000,00, será realizado em dinheiro, com a entrada de 4 novos sócios, filhas e genros dos sócios - E..., com uma quota de € 1.000,00, F..., com uma quota de € 1.000,00, G..., com uma quota de € 1.000,00 e H..., com uma quota de € 1.000,00 – os quais ficam detentores de 0,10% do capital social;

f)       Foi, ainda, deliberado pelos sócios proceder à transformação da sociedade em sociedade anónima, alterando a sua designação para C..., S.A., mantendo o seu objecto social e passando os accionistas a deter acções no valor nominal de um euro cada, correspondentes às quotas detidas (RIT e Anexo III);

g)      De acordo com o Relatório da Gerência Justificativo da Transformação da Sociedade por Quotas em Sociedade Anónima, a necessidade de proceder à transformação resultou da existência de maiores vantagens, designadamente:

·         “No tocante ao financiamento e à concessão de recursos financeiros, as possibilidades das sociedades anónimas são ilimitadas;

·         Permitirá obter mais facilmente fundos alheios, quer ao nível bancário, quer no mercado de capitais, apresentando ainda vantagens económicas quanto à possibilidade de dispersão do capital através da mobilização de recursos e eventuais alianças estratégicas com outros parceiros económicos;

·         Possibilidade de acesso à Bolsa;

·         Grande facilidade quanto à negociabilidade das ações o que não acontece com a transmissão de quotas.”

h)      A transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima foi registada na Conservatória do Registo Comercial de … no dia 16-01-2009 (anexo I do Processo Acto administrativo);

i)        No dia 24-02-2010, deliberou a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade a alteração do objecto social para “fabricação de aparelhos receptores de som e imagem, antenas parabólicas, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, locação de imóveis próprios ou de terceiros e a prestação de serviços conexos”, alteração registada na Conservatória do Registo Comercial em 18 de Março de 2010 (acta n.º 38, Anexo V do Processo Administrativo);

j)        No dia 15-07-2010, reuniu a Assembleia-geral, tendo deliberado a aprovação do balanço intercalar da sociedade a 31-05-2010, o qual serviu de suporte à elaboração de um projecto de cisão simples (acta n.º 40, Anexo VI do Processo Administrativo);

k)      O projecto de cisão simples, objecto da escritura outorgada em 28-09-2010, foi registado na Conservatória do Registo Comercial de … em 29-09-2010 (Anexo VII do Processo Administrativo);

l)        Da cisão resultou a constituição de uma nova empresa, a C... S.A, NIF …, cujo objecto social é a “fabricação de aparelhos receptores de som e imagem, antenas parabólicas”;

m)    Bem como, a alteração da designação social da sociedade cindida para C...-, S.A. e do seu objecto social para “compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, locação de imóveis próprios ou de terceiros e a prestação de serviços conexos”, sendo o capital social reduzido para o montante de € 100.000,00;

n)      Em 17-02-2011, foi registada na Conservatória do Registo Comercial a alteração da designação social da empresa C... -, S.A. para D..., S.A.;

o)      Em 22-06-2009, foi constituída a C..., SGPS, SA., por contrato registado na Conservatória do Registo Comercial em 26-06-2009, com um capital social de € 50 000,00, tendo como accionistas os mesmos accionistas da sociedade C... S.A. (Anexo VIII do RIT);

p)      A administração da sociedade C... SGPS - que tem por objecto a gestão de participações sociais noutras empresas, como forma indirecta do exercício de actividades económicas e as actividades acessórias e complementares desse objecto que sejam permitidas pela legislação aplicável – é exercida por:

·         A..., Presidente;

·         B..., Vice-Presidente;

·         F..., Vogal;

·         E..., Vogal;

q)      Em 31-12-2009, foram efectuados vários contratos de transmissão de acções, através dos quais os accionistas da sociedade C... S.A. alienaram a totalidade das suas acções à sociedade C... SGPS pelo preço total de € 14.000.000,00, a que corresponde um valor unitário de € 14,00 (anexo IX do RIT);

r)       Na sequência dessas alienações, foi reconhecido um crédito dos accionistas da C... S.A. na contabilidade da C... SGPS, no montante de € 14.000.000,00, conforme extractos de conta constantes do anexo X do RIT (contas .., …, …, …, … e ….);

s)       No que respeita ao pagamento, a cláusula sexta dos contratos de compra e venda de valores mobiliários refere que o preço devido pela compra e venda operada será liquidado de acordo com o plano de pagamento a acordar entre as partes (anexo IX do RIT);

t)       A contabilidade da C... SGPS evidencia o saldo de € 14.000.000, relevado nas contas 278 (Devedores e Credores Diversos) (RIT);

u)      A Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Aveiro analisou esta sequência de actos no âmbito duma acção inspectiva à sociedade D..., S.A. efectuada ao abrigo da ordem de serviço n.º OI…, a qual originou a abertura do procedimento inspectivo aos Requerentes, determinado pela ordem de serviço n.º OI…, no qual a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que se verificavam os pressupostos para a liquidação do imposto devido ao abrigo da cláusula geral antiabuso constante do artigo 38.º da LGT, o que implicou a abertura do procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT;

v)      No Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte:

 

2.2.2. Da verificação dos elementos para a aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT

Atendendo a que, para a aplicação das normas antiabuso deve ser observado o prescrito no artigo 63.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário, sendo essencial para a fundamentação da decisão, o cumprimente de diversos requisitos, importa, pois, na caso em apreço, e após explanação detalhada da factualidade supra transcrita, aferir da verificação cumulativa de tais requisitos.

 

a) Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a Indicação das normas de Incidência que se lhes aplicam

No caso em concreto, os negócios jurídicos celebrados foram os seguintes:

1 º Transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima;

2.º Constituição de uma sociedade SGPS;

3.º Alienação das acções da sociedade operacional à SGPS;

4.º Constituição de um direito junto da SGPS.

O ato jurídico de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e o posterior negócio jurídico de alienação das participações sociais teve como primeiro objectivo e resultado, a eliminação da tributação, em sede de IRS (mais valia não tributada, que resultou na eliminação de tributação no montante de € 1.366.966,12), dos sujeitos passivos, no ano de 2009, uma vez que os ganhos obtidos com a alienação, sem a utilização da estrutura utilizada, não beneficiariam da exclusão de tributação, própria das acções detidas há mais de 12 meses, ficando sujeitos a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria G do IRS, conforme a seguir se demonstra e quantifica.

Caso as quotas tivessem sido alienadas sem que tivesse havido a transformação, o ganho obtido seria qualificado como mais-valia e estaria sujeito a IRS, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS resultando da diferença entre o valor de aquisição das participações sociais que os sujeitos passivos detinham na C..., Lda, e o valor de realização, proveniente da alienação destas participações à C... SGPS, SA - alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º do CIRS,

A interposição da sociedade C... SGPS entre os acionistas e a sociedade C... S.A. (atual D...), através da transmissão realizada e a consequente alteração da titularidade jurídica direta por uma titularidade indireta - e a sua utilização abusiva, teve como objetivo a retirada futura dos lucros da C... 5.A. (atual D...) e da C... SA (nova sociedade) e a transformação destes em reembolso do crédito gerado com a transmissão, resultando na eliminação da tributação, em sede de IRS dos principais acionistas das sociedades em análise e acima identificados, pois, sem a utilização da estrutura utilizada, ao receberem o montante de €13.944.000,00 não beneficiariam da exclusão de tributação, ficando aqueles fluxos sujeitos a imposto, como rendimentos da categoria E de IRS.

Embora a sociedade operacional e a sociedade imobiliária ainda não tenham distribuído quaisquer lucros à sociedade mãe, a C... SGPS, certo é que, se o fizessem sem a utilização da estrutura descrita, os montantes pagos aos acionistas sob a forma de lucros, estariam sujeitos a tributação nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS.

 

b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que sanam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais

Consideramos que a transformação do tipo societário anteriormente à alienação das participações sociais, visou em primeira instância, a exclusão de tributação em sede de IRS, conforme alínea a) do n.º 2 do artº 10.º do CIRS e que o futuro reembolso do crédito pela sociedade C... SGPS aos seus acionistas, resultante da distribuição de dividendos das sociedades operacionais, visou a retirada de dividendos das sociedades operacionais sem qualquer tributação.

Para atingir aqueles objetivos, foram encenados vários atos jurídicos, mais complexos e dispendiosos, que, se revelam manifestamente desnecessários e denunciam claramente a intenção artificiosa da sua utilização, ou seja, evitar a tributação que seria devida

De facto, o ato jurídico de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e o posterior negócio jurídico de alienação das participações sociais teve, como já foi anteriormente referido, como primeiro objectivo e resultado, a eliminação da tributação, em sede de IRS. Caso as quotas tivessem sido alienadas sem que tivesse havido a transformação, o ganho obtido seria qualificado como mais-valia e estaria sujeito a IRS, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS resultando da diferença entre o valor de aquisição das participações sociais que os sujeitos passivos detinham na C..., Lda, e o valor de realização, proveniente da alienação destas participações â C... SGPS, SA - alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º do CIRS.

A interposição da sociedade C... SGPS entre os acionistas e a sociedade D..., através da transmissão realizada, a consequente alteração da titularidade jurídica direta por uma titularidade indireta e a sua utilização abusiva, teve como objetivo a retirada futura dos lucros da D... e da C... S.A. (nova sociedade) e a transformação destes em reembolso do crédito gerado com a transmissão, resultando na eliminação da tributação, em sede de IRS, dos principais acionistas das sociedades. Sem a utilização da estrutura utilizada, ao receberem o montante de €13.944.000,00, não beneficiariam da exclusão de tributação, ficando aqueles fluxos sujeitos a imposto, como rendimentos da categoria E de IRS.

 

3. Correções propostas e conclusão

Destarte, verifica-se que, de acordo com o supra exposto, estão reunidas as condições para aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º' 2, da LGT e no artigo 63.º do CPPT.

Com efeito, caso a venda da sociedade se tivesse dado sem o recurso à transformação prévia, as mais-valias obtidas seriam tributadas em sede de IRS, na categoria G.

Por assim ser, face ao disposto nos artigos indicados, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário, a transformação da sociedade, uma vez que tais atos/negócios foram praticados com abuso das formas jurídicas e tiveram como objetivo essencial a eliminação de Impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal estrutura, não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal come dispõe o n.º 2 do artigo 38 º da LGT.

Ou seja, no presente caso, deve proceder-se à tributação das mais-valias geradas no ato de alienação, em 31 de dezembro de 2009, como se de quotas se tratassem. A tributação da mais-valia fiscal, realizada no ano de 2009, está previste na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, e foi apurada de acordo com c disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º, nos artigos 43.º, 44,º, 48.º e 51.º do CIRS. Esta mais-valia é tributada à taxa especial de 10% de acordo com o n.º 4 do artigo 72.º do CIRS, originando um imposto de € 1.366.966,12, conforme se demonstra no quadro que se segue:

w)    No seguimento dos procedimentos referidos, foi emitida a liquidação adicional de IRS n.º 2014..., datada de 18-01-2014, em que se determina o valor a pagar de € 1.560.822,67, elaborada com base na liquidação de juros compensatórios n.º 2014.., no valor de € 1.366.966,12, e no acerto de contas n.º 2014..., que são objecto do presente pedido de pronúncia arbitral;

x)      A C..., Lda. estava numa fase de crescimento antes do ano de 2008 e continuava com boas perspectivas de crescimento futuro, que apenas não se confirmarem nos anos de 2008 a 2010 mas continuaram e continuam a confirmar-se presentemente (depoimento da testemunha I...);

y)      A empresa exportava 90% das parabólicas que produzia, inclusivamente para a India e Paquistão, países em que o potencial de crescimento é muito grande (depoimentos das testemunhas I... e J...);

z)      Em face do crescimento da empresa, o Requerente A... pretendia que a sociedade passasse a ter uma gestão profissionalizada e uma estrutura que permitisse fazer opções de gestão, designadamente a separação dos sectores imobiliário, das parabólicas e das energias renováveis (depoimentos das testemunhas I... e J...);

aa)   Existia outra empresa C... Brasil, que tinha os mesmos sócios (depoimento da testemunha I...) (depoimentos das testemunhas I... e J...);

bb)   Em face destas várias actividades, o Requerente A... entendia que se justificava constituir uma sociedade holding que fizesse a gestão global das empresas e facilitasse a abertura da empresa a capitais de terceiros, caso tal fosse necessário devido ao crescimento da empresa, para além de a estrutura de sociedade anónima projectar uma melhor imagem do que uma sociedade por quotas e permitir uma maior capacidade de negociação designadamente com os bancos (depoimentos das testemunhas I... e J...);

cc)     A C... SA possui um director-geral e um conselho executivo (depoimento da testemunha I...);

dd) A transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima foi apenas o primeiro passo para a reestruturação (depoimento da testemunha J...);

ee)   Em 06-03-2014, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não se provou que a obtenção de vantagem fiscal tenha sido o motivo exclusivo ou primacial da operação de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.

Não se provou que os Requerentes tivessem pago a quantia liquidada nem que tivessem prestado garantia para suspender uma execução instaurada para sua cobrança.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos que foram dados como provados com base no Relatório da Inspecção Tributária baseiam-se no acordo das Partes, pois não há controvérsia sobre eles.

No que concerne ao número da liquidação de juros compensatórios e ao número do acerto de contas, baseiam-se no facto de serem indicados pelos Requerentes e não serem questionados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, apesar de serem factos do seu conhecimento.

Na verdade, não foi junto qualquer documento comprovativo, embora o montante dos juros compensatórios conste da liquidação do IRS.

  No que concerne aos factos que foram dados como provados com base na prova testemunhal, baseiam-se na credibilidade dos depoimentos, pois ambas as testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento dos factos que referiram.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Interpretação do acto praticado

 

O processo arbitral tributário foi criado pelo RJAT como alternativa ao processo de impugnação judicial ( [1] ), pelo que, como este meio processual, está-se perante um contencioso de mera legalidade, em que se visa apenas a declaração de ilegalidade de actos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do seu artigo 2.º.

Por isso, sendo actos dos tipos referidos o objecto do processo, a sua legalidade tem de ser aferida tal como foram praticados, com a fundamentação que neles foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com os actos praticados. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo jurisdicional.

Por isso, importa interpretar o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida não quanto ao seu conteúdo decisório, mas também quanto à sua fundamentação, sendo esta uma tarefa prioritária quando, com sucede no caso em apreço, foram praticados mais que um acto de natureza administrativa, em sentido lato, antes do acto final de liquidação, designadamente o acto que autorizou a aplicação da cláusula geral antiabuso (acto administrativo em matéria tributária de tipo autorizativo) e o acto que definiu os termos da sua aplicação, aderindo à fundamentação do Relatório da Inspecção Tributária.

O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas»

No caso em apreço, a Administração Tributária decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso por entender que «o ato jurídico de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e o posterior negócio jurídico de alienação das participações sociais teve como primeiro objectivo e resultado, a eliminação da tributação, em sede de IRS (mais valia não tributada, que resultou na eliminação de tributação no montante de € 1.366.966,12), dos sujeitos passivos, no ano de 2009, uma vez que os ganhos obtidos com a alienação, sem a utilização da estrutura utilizada, não beneficiariam da exclusão de tributação, própria das acções detidas há mais de 12 meses, ficando sujeitos a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria G de IRS. Caso as quotas tivessem sido alienadas sem que tivesse havido a transformação, o ganho obtido seria qualificado como mais-valia e estaria sujeito a IRS, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS».

É certo que a Autoridade Tributária e Aduaneira parece entrever uma outra via para aplicação da cláusula geral antiabuso ao dizer que «a interposição da sociedade C... SGPS entre os acionistas e a sociedade C... S.A. (atual D...), através da transmissão realizada e a consequente alteração da titularidade jurídica direta por uma titularidade indireta - e a sua utilização abusiva, teve como objetivo a retirada futura dos lucros da C... 5.A. (atual D...) e da C... SA (nova sociedade) e a transformação destes em reembolso do crédito gerado com a transmissão, resultando na eliminação da tributação, em sede de IRS dos principais acionistas das sociedades em análise e acima identificados, pois, sem a utilização da estrutura utilizada, ao receberem o montante de €13.944.000,00 não beneficiariam da exclusão de tributação, ficando aqueles fluxos sujeitos a imposto, como rendimentos da categoria E de IRS».

Mas, o certo é que a Autoridade Tributária e Aduaneira acabou por não ir por esta via, pois tratou a quantia recebida pela venda das participações como rendimentos da categoria G de IRS e não da categoria E, pois acabou por concluir nestes termos: «deve proceder-se à tributação das mais-valias geradas no ato de alienação, em 31 de dezembro de 2009, como se de quotas se tratassem. A tributação da mais-valia fiscal, realizada no ano de 2009, está previste na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, e foi apurada de acordo com c disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º, nos artigos 43.º, 44,º, 48.º e 51.º do CIRS. Esta mais-valia é tributada à taxa especial de 10% de acordo com o n.º 4 do artigo 72.º do CIRS, originando um imposto de € 1.366.966,12».

Assim, tem de concluir-se que o acto que a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu implicar abuso para efeitos da cláusula geral antiabuso que está conexionado com a liquidação de IRS impugnada no presente processo é apenas o acto de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, que, em face do regime vigente em 2009, evitou que fossem tributadas as mais-valias que seriam tributadas se fossem transmitidas quotas da sociedade por quotas.

 

 

3.2. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo

 

Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches ( [2] ): o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal ( [3] ) passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal» ( [4] ). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema» ( [5] ). Este tipo de actuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal»( [6] ).

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem ( [7] ).

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo ( [8] ).

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal ( [9] );

– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente ( [10] );

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam» ( [11] );

– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela »( [12] );

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente» ( [13] ).

 

3.3. Análise da situação

 

No caso em apreço, sucintamente, os Requerentes contestam que configure planeamento fiscal abusivo a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima defendendo que essa transformação se justifica por várias razões económicas genuínas, designadamente, o crescimento da empresa, o potencial de crescimento futuro, o facto de actuar em áreas distintas e a melhor imagem que tem as sociedades anónimas em relação às sociedades por quotas, especialmente nas relações com os bancos.

A prova produzida confirma manifestamente a realidade destas razões económicas.

Por outro lado, é também inequívoco que a sociedade originada com a transformação em sociedade anónima subsistiu até ao presente e com crescente aumento do volume de negócios.

  A esta luz, passará a apreciar-se se se verificam os elementos referidos, necessários para aplicação da cláusula geral antiabuso, tendo como pressuposto que, se se não se verificar algum deles, será ilegal o acto de liquidação impugnado.  

 

3.3.1. Elemento resultado

 

 

Comparando de uma forma isolada e objectiva os negócios jurídicos da transformação da sociedade em sociedade anónima e a subsequente venda das acções (actos ou negócios jurídicos realizados) e da eventual manutenção da sociedade como sociedade por quotas e a subsequente venda das quotas (actos ou negócios jurídicos equivalentes ou de idêntico fim económico), é inequívoco que a primeira situação beneficiava de um regime legal de tributação mais vantajoso do que a segunda, pois, enquanto a primeira não é objecto de tributação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, a segunda é considerada uma mais-valia, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do CIRS, rendimento tributado a uma taxa de 10%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.

Verifica-se, por isso, este elemento resultado, pois os Requerentes obtiveram uma vantagem fiscal com a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.

 

 

3.3.2. Elementos meio e intelectual

 

 

Embora a constatação antecedente baste para preencher aquele requisito, o seu preenchimento é, por si só, irrelevante para a aplicação da cláusula geral antiabuso, em função da estrutura de actos e negócios jurídicos realizados: «em caso algum, uma vantagem ou um benefício fiscal indiciarão por si só qualquer ideia de abuso jurídico» ( [14] ).

A denominada «step transaction doctrine», teoria construída nos ordenamentos anglo-saxónicos e que está subjacente à argumentação da Autoridade Tributária e Aduaneira, consiste na consideração do conjunto complexo de actos ou negócios jurídicos que surgem numa arquitectura global, planeada, composta por actos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, para além do acto ou negócio jurídico que é objectivamente censurado, na medida em que somente através da sua visão completa se detecta o desenho elisivo ( [15] ).

No que toca ao preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso atinentes aos elementos meio e intelectual, os Requerentes alegam existirem razões que vão para além das meramente fiscais a justificar a concretização das operações em causa.

Pelo que já se disse, é manifesto que não há elementos que permitam formular uma conclusão no sentido de a obtenção de vantagem fiscal, ter sido o motivo exclusivo ou primacial da operação de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, havendo boas razões económicas que aconselhavam tal transformação.

No mínimo, terá de se ficar numa situação de dúvida sobre o objectivo visado pela transformação, dúvida essa que, por força do preceituado no n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, tem de ser processualmente valorada a favor da Requerente e não contra ela, o que tem os mesmos efeitos práticos que a prova positiva de que não foi de natureza fiscal o objectivo prosseguido.

Assim, tem de se concluir que não se verifica um dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, que é o de o acto ou negócio jurídico ser essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos se ele não fosse praticado.

 

 

3.3.3. Elemento normativo

 

O legislador não é particularmente exigente no que toca à fundamentação deste aspecto atinente à reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, no entanto, a doutrina tem vindo a considerar que este é fundamental na distinção entre planeamento legítimo e ilegítimo.

Na pena de Saldanha Sanches, é «necess[ário] encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente – planeamento fiscal não abusivo – as consequências da lei fiscal na sua actividade empresarial ou pessoal [...], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas – justas, ou não, é uma outra coisa – do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador» ( [16] ). Com efeito, sublinha, deve ser possível extrair-se uma «intenção inequívoca de tributação» ( [17] ), pelo que não basta haver uma lacuna ou uma disposição menos clara.

Este autor dá, inclusive, como exemplo de «lacuna consciente de tributação» a situação que aqui é objecto de aplicação da cláusula geral antiabuso (a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das acções), sublinhando que «se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributava com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais» ( [18] ).

Efectivamente, «mesmo que a transformação [fosse] motivada por razões exclusivamente fiscais», é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das acções naquele contexto, conforme decorre dos artigos supra citados.

E fê-lo deliberada e insistentemente, pois trata-se de uma norma várias vezes revista e ponderada.

Na verdade, na redacção inicial do CIRS, previa-se já a tributação em IRS das mais-valias obtidas com a «alienação onerosa de partes sociais» [artigo 10.º, n.º 1, alínea b), na redacção do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro], mas excluíam-se as mais-valias provenientes da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 24 meses» [artigo 10.º, n.º 2, alínea c)], limite temporal este que tinha como objectivo evidente afastar a exclusão da tributação relativamente a mais-valias que, no conceito então vigente, eram consideradas especulativas.

Esta regulamentação era completada com a que constava do EBF, na redacção inicial, dada pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, em que se estabelecia o seguinte:

 

Artigo 35.º (EBF)

Transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas

Para efeitos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, da alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS e do artigo 34.º deste Estatuto, considera-se que a data de aquisição de acções resultantes da transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas é a data da aquisição das quotas que lhes deram origem.

 

Esta norma, que tinha em vista o regime transitório, era completada com uma norma idêntica de aplicação permanente, que constava do artigo 18.º, n.º 5, alínea a), do EBF.

Estas duas normas evidenciam a enorme dimensão da preocupação legislativa em incentivar a transformação de sociedades por quotas em anónimas, que vai ao ponto de afastar a tributação em sede de mais-valias mesmo em situações em que o sujeito passivo detém as novas acções resultantes da transformação por um período muito curto, inclusivamente em situações em que a venda das novas acções é feita imediatamente a seguir à transformação, pois é precisamente a situações de detenção das novas acções por curtíssimo prazo que se aplicam as normas referidas. Isto evidencia que, ponderando os valores conflituantes nesta situação, se entendeu legislativamente prescindir da tributação em sede de mais-valias, independentemente de a vantagem fiscal concedida esse fosse o único objectivo da transformação, pois se considera de superior interesse público o resultado económico alcançado, da posterior existência de uma sociedade por acções.

Com a Lei n.º 30-B/92, de 28 de Dezembro, esta alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º passou a excluir da tributação as «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», aumentando, assim, o âmbito da não tributação da alienação de acções, ou, doutra perspectiva, a restrição do conceito de mais-valias especulativas.

A Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, reafirmou a vigência deste regime, eliminando a alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º, mas transpondo a sua redacção para a nova alínea b).

A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, eliminou a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções, mas limitou a exclusão às acções adquiridas após a sua entrada em vigor, mantendo expressamente o regime anterior para as acções adquiridas antes dessa data (artigo 4.º, n.º 5, do DL n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000).

Este novo regime não chegou a ser aplicado, pois a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, estabeleceu, no n.º 9 do seu artigo 147.º, que nos anos de 2001 e 2002 seria aplicável regime anterior à Lei n.º 30-G/2000 e, depois, o Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, reintroduziu o regime de não tributação das mais-valias derivadas da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», ao dar uma nova redacção à alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS.

Esta redacção manteve-se até à sua revogação pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.

É, assim, manifesto, que houve uma opção legislativa deliberada, mantida com variações desde a redacção inicial do CIRS, no sentido da não tributação de algumas das mais-valias provenientes da alienação de acções, opção essa, como a da fixação de uma taxa liberatória reduzida, é justificada pela existência de uma «política de desenvolvimento do mercado financeiro», expressamente reconhecida no 5.º parágrafo do ponto 12 do Relatório do CIRS.

A «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 1/IX, que veio a dar origem à Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária para aprovar o Decreto-Lei n.º 228/2002 é elucidativa no sentido de se ter reconhecido que a não tributação das mais-valias não especulativas provenientes da alienação de acções era preferível à sua tributação dizendo-se:

 

Com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, que tornou indispensável a revisão do Código de IRS operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, foi alargado o âmbito de incidência a todas as mais-valias de valores mobiliários e eliminou-se a taxa liberatória de 10%.

Na sequência desta alteração as mais-valias de valores mobiliários são simultaneamente englobadas e sujeitas às taxas gerais progressivas, que se situam entre 12% e 40%.

Acresce que, de acordo com o artigo 3.º da Lei n.º 30-G/2000, o referido regime de tributação das mais-valias só é aplicável aos valores mobiliários adquiridos após 1 de Janeiro de 2001, mantendo-se o anterior regime de tributação para as mais-valias quanto aos adquiridos antes dessa data.

Aquele regime tributário foi contudo alterado, transitoriamente, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2002), a qual veio estabelecer uma isenção da tributação das mais-valias relativamente a rendimentos inferiores a 2500 Euros, fazendo-se, no entanto, o englobamento, apenas, para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos.

Considerando que o impacto desta reforma fiscal no mercado de capitais foi altamente prejudicial para os investidores, configurando-se como um desincentivo ao investimento, com todas as inerentes consequências negativas para o desenvolvimento de uma política de recuperação económica, urge revogar o regime de tributação das mais-valias aprovado pela Lei n.º 30-G/2000 e, posteriormente, acolhido pelo Decreto-Lei n.º 198/2001 e, em consequência, retomar o regime de aplicação da taxa liberatória de 10%, bem como da exclusão de tributação das mais-valias de valores imobiliários detidos pelo seu titular durante mais de 12 meses, tributando-se apenas as mais-valias especulativas.

 

O Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, que reintroduziu a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo seu titular há mais de 12 meses é também elucidativo sobre a existência desta intenção legislativa ao dizer:

O regime de tributação dos rendimentos de mais-valias derivados da alienação onerosa de valores mobiliários, aquando da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, foi significativamente alterado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro.

Os traços mais salientes do quadro então instituído consistiram na abolição da exclusão tributária de que beneficiavam as mais-valias provenientes da alienação de obrigações e de outros títulos de dívida e da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, passando a incidir uma tributação generalizada sobre estes rendimentos, atenuada por uma isenção de base para os saldos positivos inferiores a determinado montante e pela consideração dos saldos positivos ou negativos em percentagem variável em função do período de detenção dos títulos pelo alienante.

Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, não chegou a ser aplicado.

O presente decreto-lei vem dar execução à autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, no sentido da reposição, no Código do IRS, das linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos

 

Do ponto de vista sistemático, acresce a preferência manifestada pelo legislador pela adopção do modelo de organização societária da sociedade anónima, cuja adopção desde a redacção inicial do CIRS pretendeu fomentar e é patente no Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, que reformou um vasto conjunto de leis relacionadas com as sociedades comerciais, com especial atenção para a simplificação e eliminação de actos e procedimentos registrais e notariais (artigo 1.º, n.º 1) e para as sociedades anónimas (artigo 1.º, n.º 2: «o presente decreto-lei visa ainda actualizar a legislação societária nacional, adoptando designadamente medidas para actualizar e flexibilizar os modelos de governo das sociedades anónimas»).

Explanando as razões de política económica subjacentes à reforma, o legislador afirma, no preâmbulo daquele Decreto-Lei:

 

Assim, as linhas de fundo da reforma realizada por este decreto-lei prendem-se com as seguintes ideias. De um lado, a preocupação de promover a competitividade das empresas portuguesas, permitindo o seu alinhamento com modelos organizativos avançados. A presente revisão do Código das Sociedades Comerciais assenta no pressuposto de que o afinamento das práticas de governo das sociedades serve de modo directo a competitividade das empresas nacionais. Esse é o primeiro objectivo de fundo que este decreto-lei visa prosseguir, em prol de uma maior transparência e eficiência das sociedades anónimas portuguesas. Ao encetar este caminho, Portugal colocar-se-á a par dos sistemas jurídicos europeus mais avançados no plano do direito das sociedades, salientando-se o Reino Unido, a Alemanha e a Itália como países que têm identicamente orientado reformas legislativas com base nestes pressupostos. […] Importa ainda apontar o atendimento das especificidades das pequenas sociedades anónimas como preocupação que esteve subjacente à preparação deste decreto-lei”.

 

Neste contexto, detecta-se uma opção legislativa deliberada no sentido de afastar a tributação das mais-valias não especulativas, como incentivo à criação de sociedades anónimas, formas de organização mais avançada, que proporciona tendencialmente gestão mais profissionalizada e eficiente, com benefícios para a economia em geral e, reflexamente, para o próprio interesse da tributação de rendimentos empresariais.

Por outro lado, é de notar que a afirmação do interesse público em não tributar as mais-valias não especulativas derivadas da detenção de acções foi, conscientemente, considerado superior ao da arrecadação das receitas que a tributação podia gerar e que esta afirmação foi efectuada já depois da Lei Geral Tributária ter previsto a cláusula geral antiabuso, no seu artigo 38.º, n.º 2.

Sendo assim, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira, num Estado de Direito, assente na soberania popular, no princípio da separação de poderes e no primado da Lei (artigos 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), deixar de acatar os juízos de valor legislativamente formulados, não podendo sobrepor os seus próprios juízos sobre a gestão de interesses públicos à ponderação de valores conflituantes efectuada legislativamente, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.

Isto é, mais concretamente, tendo o legislador expressamente considerado o interesse público da criação de sociedades anónimas superior ao interesse na tributação de mais-valias não especulativas e materializado a sua preferência num incentivo à criação de sociedades anónimas, criando para os detentores do seu capital um regime fiscal privilegiado em relação aos detentores do capital de sociedades por quotas, não pode, por via da aplicação da cláusula geral antiabuso, ser inviabilizado, por via administrativa, esse objectivo legislativo, aplicando àqueles que deram satisfação àquele interesse público através da criação de sociedades anónimas o regime que lhes seria aplicável se o não tivessem satisfeito.

Ou, doutra perspectiva, talvez mais clarificadora, não se poderá, em regra, numa situação de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónima, entender que o acto foi essencial ou principalmente dirigido à satisfação de interesse fiscal dos intervenientes (como exige o n.º 2 do artigo 38.º da LGT para ser accionada a cláusula geral antiabuso), pois esse acto, objectiva e forçosamente, com vontade do sujeito passivo ou sem ela, dirige-se sempre à satisfação do interesse público do incremento da criação de sociedades anónimas, interesse este que, na óptica legislativa, é sempre o essencial ou principal a atender nessa situação, para efeitos de tributação.

Por isso, em situações deste tipo, de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, o abuso de formas jurídicas indispensável para viabilizar a aplicação da cláusula geral antiabuso e a existência de uma intenção contrária ao desígnio legislativo só são perscrutáveis em situações em que não possa considerar-se satisfeito aquele interesse público da criação de sociedades anónimas, como, por exemplo, poderá suceder em situações em que a criação da sociedade anónima não é seguida da sua manutenção como realidade económica por um período de tempo apreciável.

No caso em apreço, é inequívoco que não se verifica uma situação desse tipo e, por isso, foi satisfeito com a operação de transformação da sociedade por quotas em sociedade por acções o interesse que, na perspectiva legislativa, é o principal a atender, superior ao da própria tributação.

Por outro lado, não se vislumbra nesta actuação dos Requerentes, em perfeita sintonia com o desígnio legislativo que se visou atingir com criação de um regime mais favorável de tributação dos detentores de acções, o uso de qualquer meio artificioso ou fraudulento ou abuso de formas jurídicas (como exige a aplicação da cláusula geral antiabuso) já que a transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas está expressamente prevista na lei como um meio normal de criação de sociedades deste tipo (artigos 1.º, n. 2, e 130.º do Código das Sociedades Comerciais), inclusivamente no âmbito da tributação do rendimento [artigo 43.º, n.º 6, alínea b), do CIRS]. O que, decerto, constituiria artifício ou fraude legislativa, incompaginável com o princípio constitucional da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, seria incentivar legislativamente os sujeitos passivos de IRS à criação de sociedades anónimas, através do anúncio da atribuição de uma vantagem fiscal e, uma vez satisfeito o interesse público que se visava com tal incentivo, não lhes reconhecer o direito à vantagem prometida.

Consequentemente, não se verifica uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, desde logo por não existir um acto que possa considerar-se dirigido essencial ou primacialmente à obtenção de vantagens fiscais (pois ele foi dirigido também à criação de uma sociedade anónima por se pretender que ela funcionasse com as características e potencialidades que lhe são inerentes), mas também por não ter sido utilizado qualquer meio artificioso ou fraudulento para obtenção de vantagens fiscais.

Esta interpretação não é desconforme com a Constituição, designadamente com o princípio da capacidade contributiva, da igualdade, da legalidade e da neutralidade fiscal.

A eventual violação desses princípios apenas poderá emergir da própria diferença de tratamento legal entre a venda de quotas e a venda de acções e não da interpretação que ora se efectua, sobre a não verificação de uma situação de aplicação da cláusula geral antiabuso. Por outro lado, aqueles princípios não representam valores absolutos, não havendo obstáculo constitucional a que eles sejam limitados para prossecução de outros valores constitucionalmente protegidos, como sucede, nomeadamente, com a generalidade das situações em que são concedidos benefícios fiscais. No caso, essa diferença de tratamento, conforme supra se expôs, resulta de um longo e reiterado caminho percorrido pelo legislador, que tem evidenciado a vontade de não tributar essas situações e de privilegiar e promover a adopção de um «modelos de governo das sociedades anónimas». Enquadra-se num quadro legislativo que não se limita à dinamização do mercado bolsista, pois a criação de sociedades anónimas, que são uma forma mais avançada de organização das sociedades comerciais e potenciadora de maior concentração de capital e maior eficiência económica, alinha-se com a primeira das incumbências prioritárias do Estado arroladas no artigo 81.º da CRP, que é a promoção do aumento do bem-estar económico e qualidade de vida das pessoas, que pressupõe a criação de riqueza e a adopção de formas de organização das empresas que potenciem.

Conclui-se, assim, que, mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estaria perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal optou por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda de quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções.

Uma situação destas, em que o legislador resistiu longamente a eliminar tal regime mantendo uma «lacuna consciente de tributação», não se mostra susceptível de aplicação da cláusula geral antiabuso, em situações em que foi atingido o fim legislativamente visado de criação de sociedades anónimas, designadamente, como sucede no caso em apreço, em que a sociedade anónima criada subsiste como realidade económica com as características próprias e potencialidades diferentes das que teria a manutenção da sociedade por quotas. E não cabe ao aplicador da lei substituir-se às opções de tributar ou não tributar certas realidades seguidas pelo legislador fiscal.

 

3.3.4. Elemento sancionatório

 

Não se tendo demonstrado a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral antiabuso, não há lugar à aplicação da estatuição do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, conducente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente ao que entendeu a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3.3.5. Conclusão

 

 

Conclui-se, assim, que não se verificam os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso.

Consequentemente, é ilegal o acto de liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida, que tem como pressupostos a verificação dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, por violação do preceituado no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRS liquidação n.º 2013… no valor de € 373.071,97, relativa ao ano de 2009, por enfermar de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo).

 

4. Juros indemnizatórios

 

Os Requerentes formulam pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

No entanto, não fizeram prova de ter pago a quantia liquidada.

Nos termos do artigo 43.º da LGT, na parte aqui aplicável, «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

Como resulta desta norma, sem pagamento não há direito a juros indemnizatórios.

Por isso, improcede o pedido de juros indemnizatórios formulado.

 

5. Indemnização por garantia indevida

 

Os Requerentes formulam pedido de indemnização por garantia indevida.

No entanto, não ficou provado que os Requerentes tivessem prestado uma garantia para suspender uma execução fiscal conexionada com a quantia liquidada que é objecto do presente processo.

Por isso, improcede o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.560.822,67.

 

7. Decisão

 

 

            De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)   Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral na parte em que é pedida a anulação da liquidação adicional de IRS n.º 2014...., da liquidação de juros compensatórios n.º 2014... e do acerto de contas n.º 2014..., relativos ao ano de 2009, dos quais resultou um saldo a pagar de € 1.560.822,67;

b)  Anular as liquidações e demonstrações de acerto de contas referidas;

c)   Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral na parte em que são pedidos juros indemnizatórios;

d)  Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral na parte em que é pedida a indemnização por garantia indevida;

 

8. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 20.808,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 16-09-2014

 

 

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

 

 

 

(João Ricardo Catarino)



[1]              No n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que é a lei de autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o diploma que veio a ser o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) estabelece-se que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária», mas este Decreto-Lei apenas atribuiu aos tribunais arbitrais tributários competências para anulação de actos, como decorre do seu artigo 2.º.

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[2]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.

[3]              Cfr. AcTCAS de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.

[4]              Cfr. Jónatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.

[5]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 181.

[6]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[7]              Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, Marques, Paulo, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

[8]              Ou seja, a uma «actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[9]              Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos».

[10]             Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».

[11]             Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 180.

[12]             Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 211.

[13]             Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».

[14]             Cfr. Leite de Campos, Diogo, e Costa Andrade, João, Autonomia Contratual e Direito Tributário, A norma geral anti-elisão, Almedina, Coimbra, 2008, p. 82.

[15]             «Quer os actos jurídicos, quer os negócios jurídicos, podem surgir isolados (adaptados à obtenção da utilidade económica e da vantagem fiscal), ou, naquela que é a hipótese porventura mais comum, formar um conjunto – conjunto de actos ou conjunto de negócios. Para tal, deverão formar uma unidade lógica, sequencial e indivisível a tal dirigida – uma estrutura [...]. A doutrina e a jurisprudência britânica [...] apurou a verificação dessa unidade quando – step-by-step doctrine – no momento da realização do primeiro acto, será pouco razoável admitir que outros não se lhe seguirão forçosamente, de modo a completá-lo, e assim obtendo a vantagem fiscal visada e o fim económico acautelado» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula…, pp. 166-167).

[16]             Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 180.

[17]             Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 180-181.

[18]             Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 182.