Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 182/2014-T
Data da decisão: 2014-09-28  IUC  
Valor do pedido: € 572,30
Tema: Incidência subjetiva; competência material do Tribunal Arbitral, tempestividade
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

A presente decisão vai proferida de acordo com a ortografia antiga

                                                                                                         

 

I. Relatório

 

1. A..., S.A., pessoa colectiva n…., com sede na Rua …, em Lisboa, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária, com vista à anulação dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativos aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 e aos veículos automóveis identificados pelos respectivos números de matrícula em anexos aos pedido de pronúncia arbitral, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

 

2. Como fundamento do pedido, a Requerente alega, em síntese, que, embora os veículos se encontrassem registados em seu nome à data a que se reportam os factos tributários a que respeitam as referidas liquidações, não era a sua efectiva proprietária, porquanto, no exercício da sua actividade empresarial, havia já transmitido a propriedade dos mesmos.

 

3. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) respondeu, suscitando questões prévias e excepções relativas a:

 

a) Falta de objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, invocando, em consequência da inexistência de objecto sindicável, excepção dilatória consubstanciada na incompetência material do tribunal para conhecer do mérito da causa;

b) Incompetência material do Tribunal Arbitral por preterição da necessária reclamação graciosa, nos termos do artigo 131.º do CPPT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março;

 

c) Intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

4. O tribunal arbitral foi regularmente constituído em 30-04-2014 e, consideradas as questões prévias e excepções suscitadas pela Requerida, decidiu pelo seu imediato conhecimento, antes de proceder a quaisquer diligências instrutórias.

 

5. Dado constarem do processo claramente expressas as posições de ambas as partes sobre as matérias suscitadas e assegurado o contraditório, desnecessário se revelou reunir o tribunal arbitral nos termos e para os efeitos do artigo 18.º do RJAT.

 

6. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

 

II. Matéria de facto

 

7. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, destacam-se os seguintes elementos factuais:

 

7.1. A Requerente é uma instituição financeira que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos, dispondo, para o efeito, de todas as autorizações legalmente exigíveis.

 

7.2. No âmbito da sua actividade, celebra com os seus clientes contractos de Aluguer de Longa Duração e Contractos de Locação Financeira, de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respectivos locatários ou a terceiros.

 

7.3. Segundo a Requerente, foi esta notificada, entre 10 e 20 de Dezembro de 2013, de liquidações oficiosas de IUC relativas aos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral e aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, tendo efectuado o pagamento voluntário do imposto alegadamente em falta, com dispensa de juros compensatórios [1] , conforme notas de cobrança e valores constantes dos documentos que junta (Docs. n.º 2 a 23).

 

7.4. Todavia, a Requerente manifesta a sua discordância relativamente aos mencionados actos de liquidação, na medida em que os veículos sobre que impendia o pagamento de IUC não eram sua propriedade à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador do imposto, facto que pretende comprovar através de cópia da facturação emitida.

 

 

III. Questões prévias

 

Sintetizados os elementos factuais relevantes, importa, antes de mais, analisar e decidir as questões prévias suscitadas pela Requerida que, como acima referido, se prendem com a falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, com a incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do mérito do pedido, com a incompetência material do Tribunal Arbitral por preterição da necessária reclamação graciosa, nos termos do artigo 131.º do CPPT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março e com a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

 

 

Da falta de objecto do pedido e da incompetência do Tribunal

 

8. Relativamente a esta questão, alega a Requerida não terem sido emitidas pela Administração Tributária quaisquer liquidações oficiosas, extraindo-se dos documentos juntos pela Requerente estar-se perante "notas de cobrança", por ela própria geradas e extraídas no "Portal das Finanças" através da internet.

 

9. A Requerida fundamenta a excepção suscitada nos seguintes termos:

 

E não constituindo a nota de cobrança um acto tributário, naturalmente que se verifica no caso vertente uma situação de falta de objecto, a qual constitui uma excepção peremptória, a qual se invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto no artigo 577.º/3 do CPC, na redacção dada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, aplicável ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT, a qual dá lugar à absolvição da Requerida do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 576.º/3 do CPC.

 

10. Do exposto, conclui a Requerida que:

 

"... não se tratando as notas de cobrança sub judice de actos tributários, mas de meros actos em matéria tributária, forçoso é concluir que o meio de reacção contra aqueles actos deverá ser a Acção Administrativa Especial, e não a dedução de pedido de pronúncia arbitral aqui operada pela Requerente."

 

terminando por considerar que

 

"... O Tribunal Arbitral Singular constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio sub judice, atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela Requerida, o que consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 572.º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT e do artigo 29.º/1-a) e e) do RJAT."

 

11. Sem prescindir, acrescenta a Requerida:

 

"Ainda que assim não se julgue - o que só por mera hipótese se admite - e entendendo-se que, na realidade se está perante autoliquidações geradas pela própria Requerente no Portal das Finanças, sempre se dirá que o presente pedido de pronúncia arbitral não poderá proceder.

...

... em matéria de autoliquidação importa não esquecer que a reacção contra esta última depende de prévia e necessária dedução de Reclamação Graciosa no prazo de 2 anos a contar da apresentação da declaração, conforme estatui o artigo 131.º, n.º1 do CPPT.

Ora, a Requerente não apresentou qualquer Reclamação Graciosa relativamente aos actos de liquidação sub judice, razão pela qual também por esta via não são susceptíveis de serem sindicados tais actos.

 

12. Apelando às disposições dos artigos 2.º e 4.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que expressamente excluem do âmbito da competência dos tribunais arbitrais as pretensões relativas à ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, conclui a Requerida que, no presente caso, seria obrigatória a apresentação de reclamação graciosa, pelo que nos termos do artigo 131.º do CPPT, o Tribunal Arbitral não tem competência para julgar o presente pedido.

 

13. Concluindo, do exposto, que "deve considerar-se verificada a excepção de incompetência absoluta por violação das regras de competência material, devendo a Requerida ser absolvida da instância nos termos do disposto nos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a) e 577.º, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT."

 

14. Notificada da resposta da AT, a Requerente pronuncia-se sobre a matéria das invocadas excepções nos seguintes termos:

 

" A requerente foi confrontada na sua parte privativa do Portal das Finanças, com uma séria de dívidas de IUC, documentadas naquilo que a AT chama de notas de cobrança (documentos de cobrança).

 

Para efeitos da sua situação fiscal, as dívidas de IUC documentadas pelas referidas notas de cobrança eram já passíveis de pagamento, e foram pagas pela requerente conforme consta da documentação anexa ao pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

 

Foi uma prioridade para a requerente proceder ao pagamento daquelas dívidas de IUC aparecidas no sistema, uma vez que a lesividade decorrente da impossibilidade de obter para os mais variados efeitos da sua actividade comercial, uma certidão negativa de dívidas (certidão de situação contributiva regularizada), ultrapassava em muito a lesividade das concretas liquidações de imposto, pressupostas naquelas dívidas e que lhe são logicamente antecedentes.

 

No mais a requerente não sabe, nem tem como saber. E acha altamente preocupante que a AT, com respeito a uma pluralidade de situações de dívidas em sede de IUC que a requerente desconhecia e não inventou, constantes do sistema informático da AT em estádio que permitia o seu pagamento, venha dizer agora que não tem nada a ver com isso, e que teria sido a requerente a responsável pela geração das notas de cobrança, o que quer que seja que isso possa exactamente querer dizer.

 

As dívidas de IUC (estas e muitas outras) aparecidas no sistema informático da AT (na área de acesso reservado à requerente), são um facto indesmentível da criação da AT, a possibilidade do seu pagamento é também um facto indesmentível da responsabilidade da AT, e a qualificação dos seus montantes muito concretos, ano e matricula do imposto, é também da inteira responsabilidade da AT e respectivo sistema informático.

 

Estas dívidas de IUC pressupõem lógica e necessariamente uma série de liquidações de IUC, sendo irrelevante para o caso no meio pelo qual a requerente tomou delas conhecimento: o facto é que tomou e na forma mais lesiva possível (imputação pela AT de uma dívida de imposto à requerente), e o facto é que contra elas reagiu via pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

A terminar, mais constata a requerente que pagou as dívidas de IUC em Dezembro de 2013 e até à data (Junho de 2014), não foi ainda notificada directamente ou ex professo, das liquidações. Com outros contribuintes está-se a passar exactamente a mesma coisa.

 

Donde a suspeita deste grave comportamento da parte da AT: coloca as dívidas de IUC visíveis para os contribuintes nas respectivas áreas reservadas do Portal das Finanças; estes acodem a pagar para evitar ficarem impedidos de obter certidões negativas de dívidas fundamentais para variadíssimos efeitos (ou para evitar, designadamente em fim de exercício, verem prejudicados os benefícios fiscais que se encontrem a fruir, por exemplo), pagamento feito, a AT dá por encerrado o assunto e não notifica ou dá a conhecer via Portal das Finanças (área reservada), mais nada, e depois vem invocar que não há liquidação (o que por si só é uma impossibilidade lógica) susceptível de ser discutida em Tribunal."

 

 15 A Requerente termina a sua resposta com as seguintes considerações:

 

"Isto parece animado da mais pura má-fé. Ora, atendendo à presunção legal constante do artigo 59.º, n.º 2, da LGT (presunção de boa fé), será de concluir que os representantes da AT nestes autos se equivocaram quando invocaram a ausência de liquidação levada ao conhecimento da requerente (no caso levada ao conhecimento da requerente via inscrição de dívida na área reservada do Portal das Finanças e voa documento de cobrança associado à mesma gerado por esse mesmo Portal).

 

Caso assim não se entenda, i.é, caso por absurdo se venha a concluir ter havido cobrança de uma importância a título de IUC de determinado ano e com referência a determinada matrícula, num cenário de ausência de liquidação de imposto lógica e legalmente pressuposta nessa cobrança.

 

Estar-se-á então perante o tipo penal previsto no artigo 379.º do Código Penal - agravada pelo facto de até à data não haver sinal da mínima intenção por parte da AT de devolver as quantias recebidas da requerente -, devendo ser  extraída certidão destes autos para remessa ao Ministério Público para que se inicie o competente procedimento criminal."

 

16. Do confronto das posições expressas pela Requerida e pela Requerente quanto à questão da falta de objecto do presente pedido por aquela suscitada, não pode o tribunal deixar de manifestar alguma perplexidade, questionando-se sobre como seria possível efectuar-se o pagamento de um tributo, através de documento de cobrança emitido pela entidade competente, sem que a dívida a que o mesmo respeita se mostrasse devidamente liquidada.

 

17. Com efeito, o documento de cobrança (DUC) constitui o título que exprime a obrigação pecuniária decorrente da relação entre o Estado e o devedor.  Emitido pelos serviços que administram a respectiva receita, este documento deve conter, designadamente, a identificação do organismo ou serviço processador - neste caso, a identificação da entidade liquidadora -  o período a que respeita, o número que lhe é atribuído, a identificação da entidade devedora, incluindo o número de identificação fiscal, a natureza e o montante da receita bem como a data limite de pagamento.[2]

 

18. Da análise dos documentos de cobrança juntos ao presente processo - Docs. 2 a 23 - verifica-se que estes obedecem aos requisitos legais supra referidos, permitindo a sua utilização para o fim a que se destinam.

 

19. Para além dos referidos elementos, verifica-se também que os mencionados documentos contêm a demonstração da liquidação do imposto e dos juros compensatórios a que respeitam, embora estes tenham sido objecto de posterior anulação, conforme se verifica dos documentos que integram o processo administrativo.

 

20. Diversamente do que alega a Requerida, como fundamento da excepção que suscita, não se extrai dos referidos documentos de cobrança que exista uma dissociação entre estes e as dívidas a que respeitam: cada documento identifica a entidade liquidadora (AT), o devedor (a Requerente), o tributo em causa, bem como veículo e período a que respeita, dele contendo ainda, em detalhe, os elementos relevantes para a determinação da base tributável e quantificação do imposto e juros compensatórios.

 

21. Segundo a Requerida, estes documentos de cobrança não configuram liquidações oficiosas emitidas pela AT, "mas sim documentos de cobrança de IUC, extraídos pela Requerente do Portal das Finanças". Qualquer que seja o significado exacto desta afirmação, não pode deixar de concluir-se que se a Requerente os extraiu do Portal das Finanças, cuja gestão é da exclusiva competência e responsabilidade da AT, é porque eles lá estavam em condições de ser extraídos e de com base nos mesmos ser efectuado o pagamento da dívida que exprimem, conforme veio a ser feito.

 

22. Ou seja, dos elementos constantes das referidas notas de cobrança não pode deixar de extrair-se que a liquidação tributária que os mesmos titulam se encontrava já efectuada no momento em que a Requerente a elas teve acesso. Tanto assim que dos referidos documentos constam, expressamente, notas demonstrativas do apuramento do imposto e dos juros compensatórios a que se referem.

 

23. De um mero raciocínio lógico decorre que em algum momento, prévio à emissão das referidas notas de cobrança, as liquidações tributárias a que estas respeitam foram efectuadas pela entidade que as emitiu.

 

24. Todavia, não resulta claro do que vem alegado pelas Partes, nem dos elementos documentais, designadamente do processo administrativo, que integram o presente processo, se as questionadas liquidações foram efectuadas por iniciativa da Requerente ou, oficiosamente, por iniciativa da Administração Tributária.

 

25. Por via de regra, a liquidação dos tributos efectua-se por iniciativa dos sujeitos passivos da obrigação tributária, através de declarações, nalguns casos meramente verbais, noutros apresentadas em suporte físico ou através de transmissão electrónica de dados.

 

26. Na terminologia utilizada nos diversos Códigos e leis fiscais, é designada por liquidação oficiosa a que é efectuada por iniciativa dos serviços tributários competentes em caso de incumprimento declarativo dos obrigados fiscais ou sempre que as declarações por estes apresentadas enfermem de erro ou omissão que não permita a liquidação do imposto que seria efectivamente devido. Com este sentido, é esta a designação acolhida no Código do IUC (vd. CIUC, art. 18.º).

 

27. Nos casos em que não seja efectuada com base nos elementos declarados pelo sujeito passivo, a liquidação por iniciativa da Administração Tributária - liquidação oficiosa - está dependente de comunicação prévia para o exercício do direito de audição, estando o acto sujeito a dever especial de fundamentação e notificação do destinatário (LGT, arts. 60.º, n.º1, al. a) e 77.º n.º 1 e CPPT, art. 36.º).

 

28. Diversamente, e sem prejuízo do dever de fundamentação, as liquidações efectuadas com base nas declarações apresentadas pelos sujeitos dispensam a comunicação para audição prévia, mas mantêm-se sujeitas a notificação, sem o que carecem de eficácia.

 

29. No presente caso, como já acima se referiu, não se consegue descortinar quer do que vem alegado pelas Partes quer do processo administrativo junto, se as liquidações a que respeitam os pagamentos efectuados foram processadas por iniciativa da Administração Tributária ou se, diversamente, foram originadas por iniciativa do sujeito passivo.

 

30. O que, com segurança, desses elementos se pode extrair, é que as liquidações em causa foram efectuadas pela entidade competente, de alguma forma levadas ao conhecimento do sujeito passivo e, uma vez efectuado o respectivo pagamento, a Administração Tributária deu como "Findo" o respectivo procedimento de liquidação, considerando regularizadas as situações a que a mesmas respeitam. 

 

31. Pode também concluir-se da análise dos referidos elementos que, como alega a Requerida, não foram as referidas liquidações validamente notificadas à Requerente.

 

32. Com efeito, decorre das normas legais aplicáveis, que o acto tributário só produz efeito em relação aos contribuintes quando lhes for validamente notificado. Enquanto tal formalismo legal não for cumprido, o acto é ineficaz (vd. CPPT, art. 36.º, n.º 1 e LGT, art. 77.º, n.º 6).

 

33. No entanto, não obstante a referida deficiência, a dívida tributária foi qualificada, quantificada e imputada ao respectivo sujeito passivo pela entidade competente, e por aquele voluntariamente paga com base em documentos de cobrança por esta emitidos e que, aceitando o pagamento, deu por concluído o procedimento, conforme se verifica do processo administrativo.

 

34. Porém, a falta, ou insuficiência, de notificação válida não afecta a validade do acto de liquidação efectuado pela entidade competente, mas tão-somente a sua eficácia conforme, de resto, é entendimento pacífico dos tribunais superiores.[3]

 

35. Resulta, assim, não subsistirem dúvidas quanto à existência e validade das questionadas liquidações que, independentemente de se qualificarem como oficiosas, no sentido de terem sido efectuadas por iniciativa da administração tributária, ou terem sido suscitadas por iniciativa do sujeito passivo, constituem actos lesivos, susceptíveis de impugnação pelo interessado (LGT, arts. 9.º, n.º 2 e 95.º, n.º 1).

 

36. Face ao exposto, o tribunal não pode deixar de concluir pela insubsistência da questão suscitada pela Requerida, quanto à falta de objecto do presente pedido de pronúncia, que, assim, declara improcedente.

 

37. De alguma forma relacionada com a antecedente, a Requerida suscita questão prejudicial relativa à incompetência material do tribunal arbitral para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio, atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela AT, o que, em seu entender, implica dever "ser absolvida da instância nos termos do disposto nos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a) e 577.º, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT."

 

38. Segundo a Requerida, estar-se-á perante actos de autoliquidação, subtraídos à competência do Tribunal Arbitral, por não ter o presente pedido sido antecedido de reclamação prévia, nos termos do artigo 131.º do CPPT.

 

39. Com efeito, a competência material do tribunal arbitral compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta (RJAT, art. 2.º, n.º 1, al. a).

 

40. A vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos (RJAT, art.4.º, n.º 1).

 

41. Ao abrigo da norma citada e atendendo à especificidade e valor das matérias em causa, a vinculação da AT  à referida jurisdição encontra-se estabelecida na Portaria n,º 112-A/2011, de 22 de Março, cujo artigo 2.º, alínea a) dela excepciona, designadamente, as "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário."

 

42. Relativamente aos actos de autoliquidação, determina o artigo 131.º do CPPT que, salvo nos casos em que esteja em causa exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tenha sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, a respectiva impugnação depende da precedência de reclamação graciosa.

 

43. A autoliquidação, efectuada pelo próprio sujeito passivo com base nos elementos que apura e declara à AT para efeitos de controlo, depende de previsão legal que expressamente lhe atribua tal competência [4].

 

44. Não é este o caso do IUC. Totalmente informatizado, o procedimento de liquidação deste tributo assenta na utilização, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, dos elementos constantes das bases de dados de veículos e da propriedade automóvel, como, de resto vem sendo claramente afirmado pela própria administração tributária [5].

 

45. Por regra, a liquidação deste tributo opera-se por recurso à internet, através do Portal das Finanças, nas condições de registo e acesso às declarações electrónicas, sendo a utilização deste meio obrigatório para as pessoas colectivas, salvo nos casos em que, por carência de elementos, a liquidação não possa efectuar-se por via electrónica. É o que se verifica, designadamente, nos casos em que o veículo não conste daquelas bases de dados, por se não encontrar matriculado em território português ou "sempre que exista erro ou omissão de veículo tributável na base de dados, que não permita ao sujeito passivo liquidar o imposto através da internet." (CIUC, art.º 16.º, n.ºs 2 e 3).

 

46. Exceptuados os casos referidos no número anterior, e sempre que o sujeito passivo seja pessoa singular, o recurso à liquidação através do portal das finanças na internet pode ser afastado, podendo a liquidação ser solicitada pelo sujeito passivo em qualquer serviço de finanças, em atendimento ao público (CIUC, art. 16.º,  3).

 

47. Tomando como referência os elementos constantes da base de dados, relativos à identificação do veículo e características relevantes para a definição objectiva da incidência tributária e aplicação da correspondente taxa bem como da incidência subjectiva, a liquidação é efectuada por meios informáticos, sendo de imediato emitido, pelos mesmos meios, o competente documento de cobrança, de que, além de outros elementos relevantes para o pagamento, consta a demonstração da respectiva liquidação (CIUC, art. 16.º, n.º 4).

 

48. Em situações normais, como, eventualmente, será o caso das que se evidenciam no presente processo, é ao sujeito passivo que cabe a iniciativa de provocar a liquidação, através da internet, nos moldes acima referidos ou junto de qualquer serviço de finanças, se tal possibilidade se não mostrar viável em consequência de erro ou omissão da base de dados ou sempre que a utilização daquele meio não seja obrigatória.

 

49. A referência à circunstância de a liquidação ser feita pelo próprio sujeito passivo através da internet não implica que se esteja perante uma situação em que a liquidação do tributo em causa - apuramento do montante de imposto devido em função dos elementos relevantes para a respectiva quantificação e aplicação da taxa respectiva - seja deferida ao sujeito passivo. O que se passa é que as operações de liquidação são efectuadas por meios informáticos, geridos pela Administração Tributária e Aduaneira, não sendo permitido ao sujeito passivo alterar minimamente qualquer dos elementos que para elas relevam.

 

50. É o que, claramente, resulta do texto da lei: em caso de erro ou omissão na base de dados, o sujeito passivo terá de solicitar a liquidação junto de qualquer serviço de finanças (CIUC, art. 16.º, n.º 3, al. c).

 

51. Porém, a opção do legislador pela utilização intensiva de meios informáticos no procedimento de liquidação deste tributo, recorrendo a bases de dados relativas à matrícula e registo de propriedade dos veículos a ele sujeitos, e à via electrónica facultada aos sujeitos passivo como meio de cumprimento da obrigação, não deixaria de suscitar algumas dúvidas quanto à competência material para efectuar a liquidação, designadamente, designadamente no tocante às garantias dos contribuintes. 

 

52. Esta questão foi, desde logo, lapidarmente resolvida no n.º 1 do artigo 16.º do CIUC, que, peremptoriamente, estabelece, que "A competência para a liquidação é da Autoridade Tributária e Aduaneira".  E, para afastar quaisquer dúvidas que pudessem subsistir, a referida norma viria, ainda, a ser objecto de clarificação, através da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, no sentido de que, " para todos os efeitos legais, se considera o ato tributário praticado no serviço de finanças da residência ou sede do sujeito passivo."

 

53. Não se estando, assim, perante actos de autoliquidação, cuja impugnabilidade careça de reclamação prévia ao abrigo do artigo 131.º do CPPT, nem se reconhecendo, nos termos atrás referidos, a falta de objecto do presente pedido, não podem proceder as excepções invocada pela Requerida.

 

54. Nestes termos, o tribunal considera-se materialmente competente para apreciar e decidir o pedido objecto do presente litígio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, do RJAT, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

 

 

 

Da intempestividade do pedido de pronúncia arbitral

 

55. Ainda como questão prévia, a Requerida suscita a da intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, nos seguintes termos:

 

Determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, que o pedido de pronúncia arbitral deve ser apresentado no prazo de 90 dias, contados a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT.

 

Visto o n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, deste ressalta, na alínea a), que o referido prazo de 90 dias tem como cômputo inicial o termo do prazo de pagamento voluntário as prestações tributárias.

 

Assim, e atento o prazo de pagamento voluntário aposto nas notas de cobrança que a Requerente extraiu via internet, e que juntou aos autos como Docs. 2 a 23, afigura-se que à data da formulação do pedido arbitral - 25.02.2014 - havia já precludido o direito a formular o pedido arbitral, por manifesta intempestividade do mesmo.

 

Caso assim não se entenda, o que apenas por dever de patrocínio se concede, sempre o tribunal deverá reconhecer aplicável a alínea f) do sobredito n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, que fixa como termo inicial do cômputo dos 90 dias previstos no n.º 1 do artigo 10.º do RJAT "o conhecimento dos actos lesivos dos interesses legitimamente protegidos".

 

Donde, tendo a Requerente tomado conhecimento dos actos, em última análise, no momento de extracção dos Documentos de Cobrança que juntou ao pedido, i.e., em 16.10.2013,

 

na data de formulação do pedido arbitral - 25-02-2014 - havia já precludido o direito de formular tal pretensão, intempestividade do mesmo.

 

56. Com base na fundamentação acima exposta entende a Requerida que "deve considerar-se verificada a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, e assim, a Requerida deve ser absolvida do pedido, por caducidade do direito de acção."

 

 57. Respondendo a esta questão, a Requerente pronuncia-se pela sua total improcedência, alegando, em síntese, que a data limite de pagamento inserida nas notas do cobrança (Docs. 2 a 24), não corresponde ao prazo de pagamento voluntário, porquanto a liquidações efectuadas em 2013 não poderiam corresponder prazos de pagamento situados em nos anos de 2009 a 2012.

 

 58. Acrescenta a Requerente que apenas tomou conhecimento das referidas dívidas tributárias através de notificações efectuadas por via electrónica, na sua área "Via CTT", em dia que não pode precisar do mês de Novembro de 2013, mas, seguramente, após a data de identificação dos documentos, neles impressas, todas de16 de Outubro de 2013.

 

59. Pelo que, considera a Requerente, o prazo de pagamento voluntário deverá, no mínimo, ser contado tomando como referência aquela data - considerada como sendo a da respectiva notificação - iniciando-se assim em 11 de Novembro de 2013, ou seja, no 25.º dia após a data da notificação.

 

60. Terminado este prazo de 11 de Dezembro seguinte, será nesta a data que se deve iniciar a contagem do prazo previsto na alínea a) do artigo 10.º do RJAT, o que conduz à data limite de 10 de Março de 2014.

 

61. Tendo o pedido de constituição do Tribunal Arbitral sido interposto em 27 de Fevereiro de 2014 é este tempestivo.

 

62. Analisando as posições em confronto, destaca-se, desde logo, que a questão suscitada pela Requerida assenta numa leitura incompleta da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, aplicável ao pedido de pronúncia arbitral, por remissão expressa da alínea a) do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT.

 

63. Com efeito, prevê a referida norma do CPPT que o prazo para apresentação da impugnação se conta a partir do "termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte."

 

64. No presente caso, como reconhece a Requerida, as liquidações que constituem objecto do pedido, não foram notificadas à Requerente.

 

65. Por seu lado, alega esta ter sido delas notificada através de comunicação o efectuada por via electrónica.

 

66. Dos elementos junto ao processo, designadamente do respectivo processo administrativo, pode, porém, inferir-se, que a Requerente não tendo sido destinatária de notificação válida, terá sido alertada, por comunicação electrónica, emitida pela AT, no sentido de regularizar as situações tributárias que se evidenciam como "irregulares" nos docs. 23 a 44.

 

67. Dos referidos documentos se extraem referências a comunicações efectuadas "Via CTT", com a indicação de "Recebido", o que parece confirmar o que vem alegado pela Requerente no sentido de ter tomado conhecimento das situações em causa através da referida via.

 

68. Com base quer no que no que vem alegado pelas partes, quer nos elementos do processo, poderá, pois, concluir-se com segurança que as questionadas liquidações não foram objecto de notificação, embora delas tenha a Requerente tomado conhecimento por outra via.

 

69. Não tendo sido notificados os actos de liquidação carecem estes de eficácia, nos termos do artigo 77º, n.º 6 da LGT e 36.º, n.º 1, do CPPT, pelo que enquanto se não se não efectuar respectiva notificação válida, não se inicia o prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT [6], conforme dispõe o n.º 1 do artigo 59.º do CPTA, aplicável ao caso por remissão expressa do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

70. Por outro lado, é irrelevante considerar-se para determinação do termo inicial do prazo de impugnação, o previsto na alínea f), do n.º 1, daquele artigo 102.º, relativo ao " conhecimento dos actos lesivos dos interesses legitimamente protegidos".

 

71. Com efeito, a possibilidade de contagem de prazos de impugnação a partir de termos iniciais diferentes da notificação, apenas é de considerar relativamente a actos que não devam ser objecto de notificação, circunstância que apenas se verifica relativamente a impugnações interpostas por quem não tenha, nem deva ter, intervenção no procedimento, conforme decorre do artigo 59.º, n.º 3, do CPTA.[7]

 

72. Todavia, desencadeada a execução do acto sem que tenha tido lugar a respectiva notificação - acto ineficaz - não está afastada a possibilidade da sua impugnação (vd. CPTA, arts. 54.º, n.º 1 e 59.º, n.º 2), caso em que o prazo de três meses previsto no artigo 102.º do CPPT se deverá contar a partir daquela data que, no presente caso, é possível situar no momento em que foi efectuado o pagamento voluntário do imposto, isto é, no dia 19 de Dezembro de 2012.

 

73. Tendo o presente pedido de pronúncia arbitral sido deduzido em 25 de Fevereiro de 2014, terá, necessariamente, de concluir-se que é o mesmo tempestivo, improcedendo, também quanto a esta questão, a excepção invocada pela Requerida.

 

 

 

 

 

IV. Cumulação de pedidos

 

74. Constatando a existência de uma relação directa entre as liquidações tributárias cuja ilegalidade questiona, a requerente optou por pedir a apreciação conjunta dos actos tributários em causa.

 

75. Considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 3-º do RJAT e 104.º do CPPT,  à pretendida cumulação de pedidos.

 

 

V. Matéria de direito

 

76. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente submete à apreciação deste tribunal a legalidade dos actos de liquidação de IUC relativos aos períodos de 2009, 2010, 2011 e 2012 e aos veículos que identifica em anexos ao referido pedido, invocando a circunstância de, à data a que se reportam os factos tributários que as originaram, não ser a proprietária dos veículos e, consequentemente, não assumir a qualidade do sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

 

77. Sobre a definição da incidência subjectiva do IUC, evidenciam-se, desde logo, posições diametralmente opostas entre a AT e a requerente: para aquela, o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado; enquanto que para esta, a norma de incidência estabelece uma presunção, derivada do registo, ilidível por força do disposto no artigo 73.º da LGT.

 

78. Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a requerente que, à data da ocorrência dos factos tributários, não era proprietária dos veículos a que a que se reportam as questionadas liquidações, pois que os mesmos haviam já sido vendidos aos respectivos locatários ou a terceiros.

 

79. Todavia, não sendo actualizado o registo dos identificados veículos, nele continuou a constar, como proprietária, a Requerente, situação que se mantinha à data em que foram efectuadas as questionadas liquidações tributarias.

 

80. Segundo entendimento da AT, expresso na respectiva resposta, basta que se verifique a inscrição registral do veículo em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária do IUC.

 

81. Com efeito, decorre do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, que são sujeitos passivos os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais aqueles se encontrem registados.

 

82. Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, primeiramente, na interpretação da norma do n.º 1 daquele artigo 3.º do CIUC, no sentido de se determinar se a norma de incidência subjectiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em direito, que não obstante tal facto, não é proprietário do veículo no período a que o tributo respeita e afastar assim a obrigação de imposto que sobre ela recai.

 

83. Em suma, trata-se de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de ilisão, nos termos gerais, como pretende a Requerente ou se, diversamente, como entende a Requerida "o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram cimo tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), as pessoas em nome das quais os mesmos ( os veículos) se encontram registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal."

 

Sendo esta a questão fulcral a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral, importa analisar mais detalhadamente as posições em confronto.

 

Posição da requerente.

 

84. Sobre esta matéria e como fundamento do pedido de pronúncia arbitral, alega o Requerente, em síntese, que:

 

a) Às datas a que se reportam os factos tributários do IUC que originaram as questionadas liquidações, não era proprietária dos veículos e, consequentemente, não assume a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado;

 

b) Face ao disposto no artigo 73.º da LGT, que prevê que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, a incidência subjectiva do tributo em causa, fundada na presunção de propriedade derivada do registo, pode ser afastada mediante prova em contrário;

 

c) Não basta, assim, que se verifique a inscrição no registo do veículo, em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária;

 

d) A norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC admite que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória possa demonstrar através dos meios de prova admitidos em direito, que não é proprietária do veículo no período a que o imposto respeita e afaste assim a obrigação de imposto que sobre ela recai;

 

d) As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através de procedimento contraditório previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via da reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiam;

 

e) No caso em apreço, a Requerente não utilizou o referido procedimento próprio, pelo que o presente pedido de pronúncia arbitral consubstancia o meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações cuja anulação constitui o objecto do presente pedido.

 

f) Por forma a ilidir a presunção decorrente da inscrição no registo automóvel, a Requerente apresenta cópia das facturas/recibo de venda (Docs. 24 a 44).

 

Posição da requerida.

 

85. Ao alegado pela requerente, respondeu a AT no sentido de que " o entendimento propugnado pela Requerente incorre, não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do sistema consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC."

 

86. Com efeito, estabelece o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC que "São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

 

87. Desenvolvendo a sua posição, diz a Requerida, em síntese, que "O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (...) considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

 

88. Em defesa deste ponto de vista, acentua a Requerida que "o legislador não usou a expressão "presumem-se" como poderia ter feito". Assinala, ainda, a circunstância de que " o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do art. 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência e de localização, entre muitos outros."

 

89. Como exemplo, entre outros, refere a norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 2.º do CIMT, em que o legislador tributário não presume que "há lugar a transmissão onerosa na outorga de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro." Neste caso, " o legislador expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT". Do mesmo modo, no caso do art. 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período mas que estes se consideram como tal. Depois de referir que grande parte das normas de incidência do IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado rendimento para efeitos deste imposto ter-se-ia de concluir que ao usar a expressão "considera-se" o legislador fiscal teria consagrado uma presunção em praticamente todas as normas de incidência do IRC que seria afastada precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar as regras contabilísticas.

 

90. Na sequência deste raciocínio, conclui a Requerida que "é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários...) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Pelo que, "entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem.”

 

91. Por outro lado, apelando ao elemento sistemático, entende a Requerida que "a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei." Isto porque, no mesmo sentido do que dispõe o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, " estabelece o artigo 6.º do CIUC, sob a epígrafe "Facto Gerador e Exigibilidade", no seu n.º 1, que "O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Ou seja, "o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo.... No mesmo sentido, milita a solução legislativa adoptada pelo legislador fiscal no n.º 2 do artigo 3.° do CIUC, ao fazer coincidir as equiparações ai consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respectivo registo".

 

92. Sustenta, ainda, a Requerida que " Tal posição está ainda patente na circunstância de o Registo Automóvel a que a Administração Tributária tem ou pode ter acesso, e o certificado no qual devem constar os actos sujeitos a registo, cuja exibição poderá ser exigida pela mesma Administração ao interessado, conterem todos os elementos destinados à determinação do sujeito passivo, sem necessidade de acesso aos contractos de natureza particular que conferem tais direitos, enunciados pelo CIUC como constitutivos da situação jurídica de sujeito passivo deste imposto. Na falta de tal registo, naturalmente, será o proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois, a Requerida, tendo em conta a actual configuração do sistema jurídico, não terá que proceder à liquidação do Imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos. Nestes termos, a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito activo deste Imposto."

 

93. Para além da fundamentação exposta, considera a Requerida ser ainda de referir que "a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade."

 

94. Com o fundamento de que " a interpretação proposta pela Requerente, uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registral em detrimento de uma "realidade informal" e insusceptível de um controlo mínimo por parte da Requerida, e ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária."

 

95. Expostas, em síntese e com parcial transcrição, as posições da requerente e da requerida, estarão claramente definidas:

 

- para o Requerente, a incidência subjectiva do IUC assenta numa presunção de propriedade, derivada do registo automóvel, susceptível de ilisão nos termos legais; e

 

- para a Requerida, a norma do CIUC não estabelece qualquer presunção, expressando  entendimento no sentido de que o legislador definiu como sujeito passivo deste tributo, expressa e intencionalmente, o proprietário do veículo identificado no respectivo registo.

 

Incidência subjectiva do IUC.

 

96. Com ressalva do disposto no n.º 2, relativamente a situações de venda com reserva de propriedade e locações que assumam natureza de financiamento, estabelece o artigo 3.º do CIUC, que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos, sendo como tal consideradas as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

97. O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema de liquidação deste tributo evidencia-se ao longo de todo o respectivo Código. Refira-se, designadamente, o seu artigo 6.º relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam abrangidos pela incidência objectiva deste tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo. É, pois, uma norma que, recorrendo ao elemento registral, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal. É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação e constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.

 

98. Todavia, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjectiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua um presunção de incidência. Haverá, pois, que recorrer a outros elementos interpretativos, com a especial relevância da noção legal de presunção.

 

Noção de presunção.

 

99. Segundo noção vertida no artigo 349.º do C. Civil, presunções são as ilações que a lei, ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. As presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º do C. Civil). Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art. 350.º, n.º1, do C. Civil). Todavia, as presunções, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do C. Civil). Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o artigo 73.º da LGT.

 

Presunção e ficção.

 

100. A par de presunções, utilizadas no direito tributário principalmente como meio de afastar a possibilidade de fraude e evasão ou por razões de simplificação e de praticabilidade das leis fiscais, o legislador recorre, também com alguma frequência, a ficções. Diversamente da presunção, que parte de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, a ficção, por seu lado, "traduz-se num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas" [8] Há, pois, uma assinalável diferença entre uma e outra desta figuras, utilizadas, com alguma frequência, nas normas dos códigos e leis tributárias. Essa diferença, que não se encontra assinalada na fundamentação da posição da AT, será particularmente relevante na apreciação do presente caso.

 

101. Tomando como referência a exemplificação apresentada pela Requerida em abono da sua tese, poderemos considerar o caso do n.º 2 do artigo 17.º do CIRC, que para efeitos deste imposto, determina que "os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do exercício.". Não ignorando o legislador do CIRC que as cooperativas, por força dos respectivos princípios e regime legal que lhes é aplicável, não podem ter como escopo a realização do lucro, imputa àqueles excedentes uma natureza distinta da realidade, para lhes atribuir uma consequência jurídica, qual seja a de resultado líquido do exercício para efeitos de aplicação das regras de determinação do lucro tributável das empresas.

 

102. Por outro lado, a existência, em paralelo, de presunções e ficções nas normas legais de incidência tributária é, ainda, mais notória, por exemplo, no artigo 2.º do CIMT, referido na resposta da AT. Segundo o corpo do n.º 3 deste artigo "Considera-se que há também lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 (norma que define a regra geral de incidência deste tributo, consistente na transmissão onerosa do direito de propriedade sobre imóveis) na outorga dos seguintes actos ou contractos:

 

a) Celebração de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente-adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro."

e

e) Cedência de posição contratual ou ajuste de revenda, por parte do promitente adquirente num contrato-promessa de aquisição e alienação, vindo o contrato definitivo a ser celebrado entre o primitivo promitente alienante e o terceiro."

 

103. No primeiro dos referidos casos, está-se perante uma ficção, pois que o legislador não ignora que a possibilidade de cedência de posição contratual num contrato de promessa não implica a transmissão do direito de propriedade, objecto da incidência geral do referido imposto municipal. Mas, para efeitos tributários, atribui-lhe as correspondentes consequências. Já no segundo caso - ajuste de revenda, a que se refere a alínea e) do mesmo número - tem-se uma situação algo mais complexa, mas que, segundo a jurisprudência constante dos tribunais superiores, traduz uma presunção.

 

104. Como se chega a esta conclusão, se ambas as normas têm por finalidade e efeitos tributar como transmissões de propriedade de imóveis realidades que o não são? A resposta está, precisamente, no recurso ao conceito legal de presunção. A norma da al. e) do n.º 3 do artigo 2.º do CIMT, no que respeita ao "ajuste de revenda" encontrava-se já prevista, em idênticos termos, no parágrafo 2.º do artigo 2.º do anterior Código da Sisa: o promitente-comprador que ajustasse, com um terceiro, a venda do imóvel que havia prometido adquirir ficaria sujeito ao imposto, com base na presunção de que lhe havia sido entregue o bem objecto do contrato de promessa e que sobre ele havia agido como um proprietário, por via da cedência da sua posição contratual naquele contrato, mas apenas se o contrato translativo se viesse a realizar entre o primitivo promitente vendedor e aquele terceiro. Neste caso, o legislador criou a presunção de transmissão económica (tradição), abrangida pela incidência do imposto, sempre que o promitente adquirente agisse, perante terceiro e com anuência do primitivo promitente vendedor, como um verdadeiro proprietário, ajustando a revenda do bem em causa. É a existência da "tradição jurídica" - entrega do bem objecto do contrato de promessa - que a norma presume, para a tributar. E aqui também, o legislador parte de factos conhecidos - a posição contratual e a transmissão jurídica do bem para um terceiro - para firmar um facto desconhecido, o ajuste de revenda. Presunção esta ilidível, por força do disposto no artigo 73.º da LGT. [9]

 

Presunções explícitas e implícitas.

 

105. Sustenta a requerida que o legislador fiscal, "dentro da sua liberdade de conformação legislativa" expressa e intencionalmente determina que se considerem como proprietários as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, não utilizando a expressão "presumem-se" como tal, como poderia ter feito.

 

106. Com efeito, na definição da incidência subjectiva do ICI, do ICA e do IMV, impostos que o actual IUC veio substituir, foi essa a expressão utilizada pelo legislador. No âmbito dos impostos abolidos, estabelece-se que "o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados" [10]

 

107. No mesmo sentido, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 3/05, que são sujeitos passivos destes tributos "os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

 

108. No que ao IUC diz respeito, o legislador optou por utilizar uma formulação diversa da norma de incidência subjectiva. Tal como nos impostos abolidos, continua a atribuir aos proprietários dos veículos a qualidade de sujeitos passivos. Porém, abandona a expressão "presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome quem os mesmos se encontrem registados" em favor de "considerando-se como tais as pessoas (...) em nome das quais os mesmos se encontrem registados".

 

109. Diversamente da posição expressa pela AT, entendemos que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão e por duas ordens de razões: Para que se esteja perante uma presunção legal, é necessário que a norma que a estabelece se amolde ao respectivo conceito legal, vertido no art. 349.º do C. Civil, sendo para tal irrelevante que a mesma seja explícita, revelada pela utilização da expressão "presumem-se" ou apenas implícita [11].  Por outro lado, a liberdade de conformação do legislador está limitada por princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, de que, com relevância para o presente caso, avulta o princípio da igualdade. No plano tributário, este princípio traduz-se na generalidade e abstracção da norma que cria os elementos essenciais do tributo, de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Segundo se extrai do acórdão do TC n.º 343/97, de 29-04-97 " A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo".

 

110. É no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjectiva deste tributo estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

 

111. Acresce que o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que disciplina o registo de veículos automóveis, não prevendo qualquer norma acerca do carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 1.º que o registo automóvel visa apenas dar publicidade à situação jurídica dos bens. De acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, supletivamente aplicável ao registo automóvel, por remissão do artigo 29.º daquele diploma, determina que o registo apenas "(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."

 

112. Pronunciando-se sobre esta matéria, o STJ, em Acórdão de 19 de Fevereiro de 2004, proferido no Processo n.º 3B4369, conclui que "(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juris tantum") da existência do direito (arts- 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º2, do C. Civil) bem como da respectiva titularidade, nos termos dele constantes (...)".

 

113. Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral [12] relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

Ilisão de presunções

 

114. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.

 

115. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pelo presente pedido de decisão arbitral que, assim, constitui meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC em que se suportam as liquidações tributárias cuja anulação constitui o seu objecto, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL 10/2011).

 

116. Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece, como meio de prova, cópia da facturação por si emitida com referência à transmissão dos veículos a que respeitam as liquidações questionadas (Docs.24 a 44).

 

117. Pronunciando-se sobre a prova documental apresentada, alega a Requerida que "à luz do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC e do artigo 6.º do mesmo Código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, constante da Conservatória do Registo Automóvel, sendo por esse facto o sujeito passivo do imposto.

Daí que, estabelecendo o disposto no artigo 3.º do CIUC que o proprietário que consta da Conservatória do Registo Automóvel é o sujeito passivo do imposto, entendemos que todo o raciocínio propugnado pelo Requerente se encontra eivado, não sendo possível elidir a "presunção" estabelecida."

 

118. No entanto, acrescenta a Requerida que "ainda que assim não se entenda - o que somente por mera hipótese académica se admite - e aceitando-se ser admissível a elisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de Arbitragem, importará, ainda assim, apreciar os documentos probatórios juntos pela Requerente, e o seu valor, com vista à elisão da presunção:"

 

119. Referindo-se a aos elementos apresentados pela Requerente em vista a ilidir a presunção em causa (Docs. 24 a 44) sustenta a Requerida que:

 

"- A factura não é apta a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente.

 

- Com efeito e como é do conhecimento público, não faltam casos de emissão de facturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca ocorreram,

 

- As regras do registo automóvel (ainda) não chegaram o ponto de uma factura unilateralmente emitida pela Requerente poder substituir o Requerimento de Registo Automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial,

...

- A inequívoca declaração de vontade dos pretenso adquirente poderia ser indiciada mediante a junção de cópia do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel, pois trata-se de documento assinado pelas partes intervenientes;

 

- A Requerente, porém, não juntou cópia do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito ...

...

- Acresce que o carácter sinalagmático da factura poderia ser indiciado mediante a prova do recebimento do preço nela constante por parte da Requerente, para mais quando a própria factura refere que a mesma só é válida como recibo após boa cobrança,

 

 - Porém, a Requerente não juntou prova documental do recebimento do preço quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior...

 

120. Se bem se extrai da posição da Requerida quanto à prova produzida, esta seria insuficiente para afastar a incidência tributária definida com base da propriedade dos veículos, tal como consta do registo, que, em coerência com a posição de fundo por ela assumida, apenas seria afastada em função de actualização, atempada, do próprio registo.

 

121. Não sendo esse o entendimento do tribunal, importa avaliar a prova produzida pela Requerente no sentido de se determinar se é esta bastante para ilidir a presunção derivada do registo automóvel que, no plano da incidência subjectiva, é acolhida para efeitos do IUC.

 

122. Para tanto, Importa ter-se presente que, na situação em análise, se está perante contractos de compra e venda que, relativos a coisa móveis e não estando sujeitos a quaisquer formalismos especiais (C. Civil, art. 219.º), operam a correspondente transferência de direitos reais (C. Civil, art. 408.º, n.º 1).

 

123. Tratando-se de contractos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis, mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C. Civil, arts. 874.º e 879.º).

 

124. No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objecto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[13] Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transacção, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova da transacção. 

 

125. Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, artigo 25.º, n.º 1, alínea a).

 

126. Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respectivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante transacções comerciais, efectuadas por uma entidade empresarial no âmbito da actividade que constitui seu objecto social.

 

127. Nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a facturação assume especial relevância.

 

128. Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma factura relativamente a cada transmissão de bens, qualquer que seja a qualidade do respectivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).

 

129. Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a factura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho.

 

130. É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico - como é o caso na grande maioria das situações a que se refere o presente processo - irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2).

 

131. Por seu lado, é também com base na facturação emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respectivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.

 

132. Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.

 

133. Com efeito, a referida presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respectivos documentos justificativos, conforme, de resto, constitui entendimento pacífico da própria administração tributária [14] e da jurisprudência firmada dos tribunais superiores [15]

 

134. A presunção de veracidade das facturas comerciais emitidas nos termos legais pode, porém, ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, bastando, para tanto, que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse facto (LGT, art. 75.º, n.º 2, al. a). [16]

 

135. No presente caso, como bem assinala a Requerida "as facturas corporizadas nos Documentos 25 a 44, levantam sérias dúvidas sobre a sua veracidade, podendo-se especular que a sua junção constituirá uma tentativa apressada para demonstrar uma realidade inexistente..."

 

136. Analisando detalhadamente cada um dos documentos apresentados, assinala a Requerida que os mesmos apresentam incongruências que põem em crise a sua validade enquanto meio de prova, afastando a presunção de veracidade consagrada na Lei Geral Tributária.

 

137. Com efeito, atendendo às datas de emissão das facturas verifica-se que as mesmas contêm elementos que, nas referidas datas, eram, de todo, inexistentes.

 

138. É o que se verifica com a indicação de um código postal de 7 dígitos na identificação da morada dos adquirentes em facturas que, conforme datas nelas inseridas, teriam sido emitidas em anos anteriores ao da sua adopção pelos serviços postais nacionais, a qual ocorreu no ano de 1998. Até esta data, o código postal nacional utilizado continha apenas 4 dígitos.

 

139. Para além da assinalada incongruência, os referidos documentos, contêm a indicação do valor da transacção em escudos, indicando, contudo, a sua conversão para euros, à taxa de 200,482, que seria fixada em 31 de Dezembro de 1998.[17] Estando em causa, pois, transacções tituladas por facturas emitidas em datas anteriores ao final do ano de 1998, não poderiam estas conter elementos, como os acima referidos, que não existiam à data da sua emissão. 

 

140. Face às incongruências apontadas - detalhadamente referidas na resposta da Requerida - não pode deixar de considerar-se que os documentos apresentados pela Requerente como meio de prova das transacções que, supostamente, titulariam, não oferecem credibilidade, contendo indícios que, sugerindo a sua elaboração em momento posterior àquele que deles consta como data de emissão, afastam a presunção de veracidade que a lei lhes confere.

 

141. Suportando-se a prova apresentada pela Requerente exclusivamente nos referidos documentos, não pode, consequentemente, considerar-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, relativamente aos veículos e períodos a que se reportam as liquidações questionadas.

 

 

VI - Decisão

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a) Julgar improcedentes as questões prévias e excepções invocadas pela Requerida;

 

b) Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter os actos tributários impugnados;

 

c) Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

 

Valor do processo: € 572,30.

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 306,00, a cargo da Requerente.

 

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2014,

O árbitro, Álvaro Caneira.



[1]  Atendendo à data do pagamento - 14.11.2013 - e ao termo do prazo legal de cobrança das dívidas em causa, infere-se que a anulação dos juros compensatórios ter-se-á efectuado a coberto do regime excepcional de regularização de dívidas fiscais aprovado pelo DL 151-A/2013, de 31 de Outubro.

[2]  Cfr. art. 11.º, do Regime da Tesouraria do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 191/99, de 5 de Junho e Portaria n.º 1423-I/2003, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regulamento do Documento Único de Cobrança.

[3]  Crf, entre outros, STA, Acs. de 2.4.2003, de 30.4.2003, de 3.5.2006 e de 19.1.2011, nos Procs. 37/03, 1640/02, 154/06 e 1034/10, respectivamente.

[4]  Cfr., a título exemplificativo, CIRC, art. 89.º, al. a) 

[5] Conforme informação vinculativa, disponibilizada no site da AT, homologada por Despacho da Subdirectora Geral da Área dos Impostos sobre o Património, de 18.4.2011: " A DGCI apenas liquida o IUC relativamente aos veículos que integrem a incidência objectiva do imposto, de acordo com os elementos fornecidos pelo IRN, IP (respectivas Conservatórias do Registo Automóvel) e pelo IMTT (ex-DGV), que constituem a base de dados do IUC".

[6]  Cfr. STA, Ac. de 16.1.2013, Proc. 141/11.

[7] Cfr. STA, Ac. de 11.5.2011, Proc. 94/11.

[8] Cfr. Francisco Rodrigues Pardal, "O Uso de Presunções no Direito Tributário", in Ciência e Técnica Fiscal n.º 325-327. pags.20

[9]  Neste sentido, vd., entre outros, STA, Acórdãos de 21.4.2010, de 3.11.2010, de 2.5.2012 e de 6.6.2012, Procs. 924/09, 499/10, 895/11 e 903/11, respectivamente.

[10]  Vd. artigo 3.º, n.º1 do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho.

[11]  Cfr.Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586 e STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12.

[12] Vd. Decisões Arbitrais de 19.7.2013, 10.9.2013,15.10.2013,5.12.2013 e 14.2.2014, proferidas, respectivamente, nos Processos 26/2013-T, 27/2013-T, 14/2013-T, 73/2013-T e 170/2013-T. 

[13] Cfr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.

 

[14]  Cfr. Parecer do Centro de Estudos Fiscais, homologado por despacho do Director-Geral dos Impostos, de 2 de Janeiro de 1992, publicado em Ciência e Técnica Fiscal n.º 365.

[15]  Cfr. STA, Ac. de 27.10.2004, Proc. 0810/04, TCAS, Ac. de 4.6.2013, Proc. 6478/13 e TCAN, Ac. de 15.11.2013, Proc. 00201/06.8BEPNF, entre outros.

[16]  Cfr. STA, Acs. de 24.4.2002, Proc. 102/02, de 23.10.2002, Proc. 1152/02, de 9.10.2002, Proc. 871/02, de 20.11.2002, Proc. 1428/02, de 14.1.2004, Proc. 1480/03, entre muitos outros.

[17]  Cfr. Regulamento (CE) n.º 2866/98, relativo às taxas de conversão entre o euro e as moedas dos Estados-membros que adoptaram o euro, publicado no JO L 359, de 31.12.1998.