Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 178/2014-T
Data da decisão: 2014-10-24  IUC  
Valor do pedido: € 3.064,16
Tema: Incidência subjetiva; competência material do Tribunal Arbitral
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REQUERENTE: A..., SA

 

REQUERIDA: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

I – RELATÓRIO

 

A)    As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral

 

  1. A..., SA, NIPC …, com sede na Rua …, Lisboa, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, nº 1, a alínea a) e 10º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante designado por “RJAT” e da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, pretendendo a declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, juntas aos autos como documentos nºs 2 a 52 e que se dão por integralmente reproduzidos, no montante global a pagar de €3.046,16. Pretende ainda o reconhecimento do direito ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago bem assim como o direito a juros indemnizatórios, calculados sobre o referido montante de imposto pago.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi apresentado pela Requerente em 24 de Fevereiro de 2014, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 26 de Fevereiro de 2014 e imediatamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, foi designada, em 11 de Abril de 2014, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa a ora signatária como árbitro singular. A nomeação foi aceite e as partes notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado a vontade de recusar a designação.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (RJAT), o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 30 de Abril de 2014. Na mesma data, foi a AT notificada, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 artigo 17º do RJAT, para apresentar resposta no prazo legal.

 

  1. A AT apresentou a sua resposta em 2 de Junho de 2014, na qual apresenta a sua defesa por excepção e por impugnação, a qual se dá por integralmente reproduzida. Em 5 de Junho de 2014 a Requerente apresentou requerimento de resposta às excepções invocadas pela AT a qual se dá por integralmente reproduzida.

 

  1. A 13 de Junho de 2014, foi proferido despacho arbitral para marcação da reunião prevista no artigo 18º do RJAT fixando a data da mesma para dia 10 de Julho de 2014 às 15 horas, convidando as partes a se pronunciarem sobre a possibilidade de dispensa da reunião, atendendo ao facto de ter sido apresentada resposta por escrito às excepções invocadas pela AT e não existir prova testemunhal a produzir, passando de imediato à fase de apresentação de alegações escritas e decisão final. As partes pronunciaram-se no sentido da dispensa da reunião, marcação de prazo para apresentação de alegações escritas e passando de imediato o processo para a fase de decisão final.

 

  1. A 24 de Junho de 2014 foi proferido despacho arbitral que deu sem efeito a data designada para a reunião do artigo 18º do RJAT, fixou o prazo de dez dias sucessivos para as partes apresentarem alegações por escrito e fixou como data provável para prolação da decisão arbitral 20 de Outubro de 2014, sendo a data limite para a prolação da decisão arbitral até 30 de Outubro de 2014. As partes apresentaram as suas alegações, respectivamente, em 6 e 7 de Julho de 2014.

 

  1.  A 21 de Julho de 2014 a Requerida AT apresentou requerimento de junção aos autos da decisão arbitral nº 183/2014, alegando que em processo em tudo idêntico ao dos presentes autos o tribunal arbitral decidiu favoravelmente a excepção de incompetência material do tribunal arbitral invocada nos autos. Apesar do disposto no nº2 do artigo 18º do RJAT, atendendo á relevância da questão em discussão e aos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar, foi proferido despacho de junção aos autos e notificação á Requerente, a qual não se pronunciou.

 

  1. Já em 23 de Setembro de 2014 veio ainda a Requerida AT requerer a junção aos autos das decisões arbitrais nºs 150/2014-T e 220/2014 – T, relativas a matéria idêntica à dos autos no que toca ao valor probatório das facturas como documentos de prova suficiente para ilidir a presunção prevista no artigo 3º, nº1 do CIUC, caso o Tribunal decida pela não procedência de alguma das excepções invocadas. Pelas mesmas razões e em obediência ao princípio do contraditório, foi aceite a junção do requerimento aos autos e notificada a Requerente para se pronunciar querendo, no prazo de dez dias.

 

  1. A 10 de Setembro de 2014 a Requerente veio aos autos requerer a junção de duas decisões arbitrais proferidas nos processos nºs 115/2014 – T e 169/2014-T, proferidas em matéria idêntica à dos presentes autos, nas quais se decidiu a improcedência das excepções invocadas pela Requerente AT nos presentes autos.

 

  1. O Tribunal admitiu a junção aos autos do supra referido requerimento, em conformidade com os princípios supra descritos e ainda em respeito ao princípio da igualdade das partes que deve presidir ao processo arbitral. Face à relevância das questões suscitadas nos presentes autos, à junção das decisões supra mencionadas e à necessária ponderação das mesmas a data inicialmente indicada para proferir a decisão arbitral foi alargada a 27 de Outubro de 2014. Considerando a data limite para a prolação da decisão arbitral já supra referida e as questões suscitadas pelas partes já após o encerramento da discussão e a apresentação de alegações, nos termos supra expostos, não se revelou necessário proferir despacho de prorrogação de prazo para o efeito.

 

 

B) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE:

 

 

  1. A Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade, com a consequente anulação, das liquidações de Imposto Único de Circulação e respectivos Juros Compensatórios, referentes aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, sintetizadas no quadro resumo junto aos autos como documento nº1 e conforme documentos juntos aos autos com os nºs 2 a 52, designadas pela Requerente como liquidações oficiosas de IUC.

 

  1. Em síntese, fundamenta o seu pedido, alegando o seguinte:

 

a)       No âmbito da sua actividade a Requerente celebra com os seus clientes contratos de aluguer de longa duração e contratos de locação financeira de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respectivos locatários ou a terceiros;

 

b)       Entre 10 e 20 de Dezembro de 2013, a Requerente foi notificada das liquidações oficiosas de IUC relativas às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral (quadro resumo junto como documento nº1 e documentos nºs 2 a 52) e aos períodos de tributação 2009, 2010, 2011 e 2012;

c)      Entre Outubro e Dezembro de 2013 a Requerente procedeu ao pagamento voluntário do IUC alegadamente em falta. Apesar disso, a Requerente não pode deixar de manifestar a sua discordância relativamente aos referidos actos de liquidação, na medida em que, os veículos relativamente aos quais impendia o pagamento do IUC já não eram sua propriedade à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador do imposto;

 

d)     Nos termos do disposto no artigo 3º, nº1 e no artigo 6º do CIUC, o regime legal em vigor, recorrendo aos elementos constantes do registo automóvel, o legislador estabeleceu, simultaneamente, consagra uma norma de incidência subjectiva que estabelece, meramente, uma presunção legal, tanto mais que no ordenamento jurídico tributário podemos encontrar o verbo “considerar” usado com um sentido presuntivo;

 

e)       Trata-se, pois, de uma presunção, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73º da LGT; a Requerente indica, a este propósito, vários exemplos extraídos do ordenamento jurídico em vigor;

 

f)       Invoca, ainda, em defesa da sua tese, o princípio da equivalência, previsto no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual o imposto deve onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam em concretização de uma regra geral de igualdade tributária, sendo este princípio estruturante do IUC um elemento racional subjacente à reforma da tributação automóvel revelado desde logo na Proposta de Lei nº 118/X;

 

g)      Assim sendo, os sujeitos passivos deste imposto são apenas os proprietários ou equiparados (como sucede com os locatários dos veículos já que são estes os potenciais poluidores) em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, ou seja os seus “efectivos proprietários”;

 

h)      Alega a Requerente que as presunções de incidência tributária são ilidíveis, nos termos do artigo 73º da LGT e, nessa medida, com o propósito de ilidir a presunção decorrente da inscrição do registo automóvel, a Requerente apresentou um conjunto de documentos anexos aos autos como documentos nºs 52 a 89;

 

i)        Conclui, assim, que à data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações em apreço, a ora Requerente A... já não era a proprietária dos veículos naquelas identificados, por ter já anteriormente ocorrido a respectiva transferência de propriedade por pagamento dos valores residuais previstos contratualmente, ou seja, por contrato de compra e venda, nos termos da lei civil, de acordo com os princípios consagrados nos artigos 874º, 879º e 408º do Código Civil (CC) ocorre independentemente do registo;

 

j)        Acrescenta que, se é certo que o artigo 5º do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, dispõe que o direito de propriedade dos veículos automóveis está sujeito a registo, do mesmo diploma se extrai que o registo tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando como uma presunção ilidível da existência do direito, a qual pode ser ilidida mediante apresentação de prova em contrário, como a que a Requerente apresenta nos presentes autos;

 

k)      A AT não preenche os requisitos da noção de “terceiro” para efeitos de registo, pelo que, não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao antigo proprietário o pagamento do IUC devido pelo comprador novo proprietário, desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida;

l)        Conclui peticionando a declaração de ilegalidade destas liquidações de IUC, no montante global de €3.046,16, o reconhecimento do direito ao reembolso do valor de imposto já pago, bem assim como, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado.

 

 

C – A RESPOSTA DA REQUERIDA

 

  1. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, alegou, em síntese, o seguinte:

 

Por excepção:

a)      A falta de objecto e da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria;

b)       incompetência do tribunal arbitral atendendo ao facto de não ter ocorrido prévia Reclamação Graciosa, que entende ser obrigatória no caso dos presentes autos.

 

Por impugnação:

a)      Alega a AT que não assiste razão à Requerente quanto ao invocado erro sobre os pressupostos, dado que o entendimento propugnado pela Requerente incorre, não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;

b)      Assenta a sua alegação no disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 3.º do CIUC;

c)      Alega, ainda, a AT que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, aliás à semelhança do que sucede em outros normativos legais, exemplificando algumas situações previstas na lei;

d)     Entende, por isso, que nos casos em que o legislador fiscal utiliza a expressão “considera-se”, não está a estabelecer uma presunção;

e)      Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;

f)       Conclui, pois, que no caso dos presentes autos, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal e que outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei: a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;

g)      Reforça esta alegação invocando que este é o entendimento seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais expressa na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no âmbito do Processo n.º … .0BEPNF;

h)      Conclui, que o artigo 3º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, e pela improcedência do pedido arbitral, porquanto os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, tal como atesta a Informação relativa ao histórico da propriedade dos veículos em causa, emitida pela Conservatória do Registo Automóvel;

i)        Na óptica da AT é inegável que o Código de registo predial se aplica subsidiariamente ao Regulamento do Registo Automóvel, porém, o Código de Registo predial não é legislação subsidiária do Código do IUC, pelo que o IUC passou, nos termos do disposto no artigo 3º do CIUC, a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos;

j)        Outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei; seria, ainda, uma interpretação desconforme à Constituição, por violação do princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade;

k)      Por fim alega, por mera cautela de patrocínio, caso assim não se entenda conclui que os documentos probatórios juntos pela Requerente, e o seu valor probatório, com vista à elisão da presunção, concluindo que os documentos juntos pela Requerente (55 facturas constantes dos autos como documentos nºs 78 a 133 juntos à PI) “não constituem prova suficiente para abalar a suposta presunção legal estabelecida no artigo 3º do CIUC, porquanto uma factura não é um documento apto a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático de compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e. de aceitação) por parte do pretenso adquirente”; a este propósito requereu a junção aos autos das decisões arbitrais nºs 150/2014 - T e 220/2014-T;

l)        Os elementos de prova carreados pelo Requerente são insusceptíveis de demonstrar os factos alegados, nomeadamente para efeitos de elidir a presunção legal, indicando exaustivamente os casos referenciados no pedido arbitral) mormente quando as facturas juntas se apresentam como válidas como recibo após boa cobrança, o que impunha a prova de todos os recebimentos dos valores mencionados;

m)    Em consequência conclui pugnando pela procedência das excepções invocadas na sua resposta ou, se assim não se entender, pela improcedência do pedido arbitral, bem assim como do pedido de juros, invocando quanto a estes a inexistência de qualquer erro imputável aos serviços que, em qualquer caso, sustentasse tal condenação; alega ainda, com os mesmos fundamentos, a sua não responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.

 

 

D. Resposta àS excepções

 

  1. A Requerente apresentou, em 5 de Junho de 2014, requerimento de resposta às excepções invocadas pela AT, no qual alegou, em síntese, que foi confrontada na sua parte privativa do Portal das Finanças, com uma série de dívidas de IUC, documentadas naquilo a que a AT chama de notas de cobrança (documentos de cobrança). Para efeitos da sua situação fiscal, as dívidas de IUC documentadas pelas referidas notas de cobrança eram já passíveis de pagamento, e foram pagas pela Requerente conforme consta da documentação anexa ao pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

  1. Foi uma prioridade para a requerente proceder ao pagamento daquelas dívidas de IUC aparecidas no sistema, uma vez que a lesividade decorrente da impossibilidade de obter, para os mais variados efeitos da sua actividade comercial, uma certidão negativa de dívidas (certidão de situação contributiva regularizada), ultrapassava em muito a lesividade das concretas liquidações de imposto, pressupostas naquelas dívidas e que lhe são logicamente antecedentes. “No mais a requerente não sabe, não tem como saber. E acha altamente preocupante que a AT, com respeito a uma pluralidade de situações de dívidas em sede de IUC que a Requerente desconhecia e não inventou, constantes do sistema informático da AT em estádio que permitia e permitiu o seu pagamento, venha dizer agora que não tem nada a ver com isso, e que teria sido a requerente a responsável pela geração das notas de cobrança, o que quer que seja que isso possa exactamente querer dizer.”

 

  1. As dívidas de IUC constantes do sistema informático da AT (na área de acesso reservado à requerente), são um facto indesmentível da criação da AT, a possibilidade do seu pagamento é também um facto indesmentível da responsabilidade da AT, e a quantificação dos seus montantes muito concretos, ano e matrícula do imposto, é também da inteira responsabilidade da AT e respectivo sistema informático. Estas dívidas de IUC pressupõem uma série de liquidações de IUC, sendo irrelevante para o caso o meio pelo qual a requerente tomou delas conhecimento e o facto é que contra elas reagiu via pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

  1. A terminar, mais constata a Requerente que pagou as dívidas de IUC em Dezembro de 2013 e, até à data (Junho de 2014), não foi ainda notificada directamente ou ex professo, das liquidações. Invoca que, esta situação está a suceder com outros contribuintes, o que revela má-fé da AT. Trata-se de “um grave comportamento da parte da AT: coloca as dívidas de IUC visíveis para os contribuintes nas respectivas áreas reservadas do Portal das Finanças; estes acodem a pagar para evitar ficarem impedidos de obter certidões negativas de dívidas fundamentais para variadíssimos efeitos (ou para evitar, designadamente em fim de exercício, verem prejudicados os benefícios fiscais que se encontrem a fruir, por exemplo); pagamento feito, a AT dá por encerrado o assunto e não notifica ou dá a conhecer via Portal das Finanças (área reservada), mais nada; e depois vem invocar que não há liquidação (o que por si só é uma impossibilidade lógica) susceptível de ser discutida em Tribunal.”

 

  1. A AT pronunciou-se por requerimento juntos aos autos em 24 de Junho de 2014, alegando que o RJAT não prevê a figura da Réplica, pelo que, tendo a Requerente apresentado resposta por escrito às excepções e sendo esta aceite, então ficaria afastada a possibilidade de se pronunciarem sobre esta matéria posteriormente, nomeadamente na reunião a que alude o artigo 18º. Na mesma data de 24 de Junho de 2014 foi proferido despacho arbitral admitindo a resposta às excepções e a junção aos autos do requerimento de resposta da AT e as partes convidadas a se pronunciar sobre a eventual dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18º passando-se imediatamente á decisão final ou manter a reunião ou, ainda, marcação de prazo para alegações por escrito. As partes pronunciaram-se pela dispensa de realização da reunião pelo que foi fixado prazo para as alegações por escrito.

 

  1. Nas alegações apresentadas pelas partes, que se dão por integralmente reproduzidas, vieram alegar no essencial reforçando tudo o que já se encontrava vertido nos respectivos articulados juntos aos autos.

 

  1. Por requerimento de 21 de Julho de 2014 a AT veio, ao abrigo dos princípios da colaboração e da justiça, requerer a junção aos autos da decisão arbitral proferida no âmbito do processo nº 183/2014 –T, por versar sobre a mesma matéria em discussão nos presentes autos. Posteriormente, conforme supra descrito no relatório, veio a Requerente juntar aos autos as decisões arbitrais nºs 115/2014-T e 169/2014 – T, as quais decidiram, em caso idêntico ao dos presentes autos, desfavoravelmente à AT a matéria relativa às excepções invocadas. E ainda posteriormente veio a AT juntar aos autos as decisões 150/2014-T e 220/2014 –T que, em caso idêntico ao dos autos, decidiram pela insuficiência das facturas como meio de prova da transmissão da propriedade, para efeitos de ilisão da presunção contida no artigo 3º, nº1 do CIUC.

 

 

  1. Chegados aqui, cumpre desde já esclarecer a razão pela qual este tribunal admitiu a junção aos autos das decisões arbitrais nos termos requeridos pelas partes.

Assim, parece pacífico que no âmbito do processo arbitral tributário o momento que marca o encerramento da discussão de facto em torno do caso a decidir é o que coincide com o encerramento da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, ou com a apresentação das alegações por escrito quando tal for requerido pelas partes ou determinado pelo tribunal ouvidas as mesmas.

No caso dos presentes autos, as partes requereram a junção aos autos das supra mencionadas decisões arbitrais em momentos distintos, mas em ambos os casos depois de finda a produção de prova e encerrada a discussão e já depois de apresentadas as alegações. O processo contencioso tributário e bem assim o processo arbitral não admitem requerimentos avulsos, tanto mais que, neste caso, o processo deve ser célere. Porém, também é verdade que o processo deve ser justo e proporcionar às partes os meios legítimos de defesa dos seus interesses processuais, em obediência aos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da cooperação e boa fé processual, princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas, conforme o disposto no artigo 16º do RJAT. Acrescenta, ainda, este último dispositivo legal o princípio da publicidade, o qual impõe que seja assegurada a divulgação das decisões arbitrais devidamente expurgadas de quaisquer elementos susceptíveis de identificar a pessoa ou pessoas a que dizem respeito.

 

Ponderados os princípios supra expostos e atendendo ao facto de muitas das decisões arbitrais já proferidas nesta matéria não se encontrarem ainda disponíveis para consulta pública, nomeadamente as que foram juntas aos autos pelas partes ao tempo em que tal foi requerido, entendeu este tribunal que se justificava permitir a junção das referidas decisões, obedecendo ao princípio do contraditório o qual foi assegurado, ainda que daí decorresse algum tempo mais até à prolação da decisão final. Desta forma foi plenamente assegurado às partes que, em defesa das respectivas posições processuais, invocassem a jurisprudência arbitral que entretanto foi de seu conhecimento sobre as questões em discussão nos presentes autos, de forma igual e totalmente transparente.

 

Dito isto, há que referir que este Tribunal considerará todos os argumentos legítimos aduzidos pelas partes, sendo certo que decidirá em conformidade com a sua razão de ciência, pois que nenhuma limitação ou vinculação lhe pode ser imposta pela orientação seguida nestas ou noutras decisões arbitrais ou jurisprudenciais.

 

 

 

 II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1.  As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. 4º e 10º nº2 do DL nº 10/2011 e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de vícios que o invalidem.

 

  1. Tendo em conta o processo administrativo tributário, a prova documental junto aos autos, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.

 

 

 

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

A)    Factos Provados

 

 

  1. Como matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:

a)      A Requerente é uma instituição financeira que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção de depósitos, e no âmbito da sua actividade celebra com os seus clientes contratos de ALD e de Locação financeira de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respectivos locatários ou a terceiros;

b)      A Requerente entre 10 e 20 de Dezembro de 2013, procedeu ao pagamento voluntário de Imposto Único de Circulação, considerado pela AT como em falta, relativo aos períodos de tributação 2009, 2010, 2011 e 2012 e às viaturas identificadas nos documentos nºs 1 e 2 a 52 juntos em anexo ao pedido arbitral, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;

c)      Para proceder a este pagamento a Requerente emitiu as liquidações de IUC, a partir do sistema informático da AT, constantes dos já supra referidos documentos nºs 2 a 52, conforme procedimento próprio, no Portal das Finanças, no qual verificou que constava uma série de documentos de cobrança correspondentes a dívidas de IUC, referentes a estas viaturas;

d)      Os veículos supra referidos foram alienados a terceiros nas datas constantes nos documentos nºs 53 a 69, juntos em anexo com o pedido arbitral, que se dão por integralmente reproduzidos;

e)      A AT não notificou a Requerente de qualquer liquidação oficiosa de IUC referente a algum dos veículos constantes dos presentes autos, situação que se manteve pelo menos até Junho de 2014;

f)       A Requerente não apresentou Reclamação Graciosa em relação às liquidações de IUC, cujo pagamento efectuou, e que impugnou nos presentes autos;

 

B)    FACTOS NÃO PROVADOS

 

  1. Não há factos não provados com relevo para decisão a proferir.

 

C)    FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

 

  1.  Os factos supra descritos foram dados como provados com base nos documentos que as partes juntaram ao presente processo, a Requerente em anexo ao pedido formulado e a AT na resposta apresentada.

 

 

IV – QUESTÕES DECIDENDAS e FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

  1. Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões a dirimir.

 

A título de questão prévia foi suscitada pela ATA a questão da irregular certificação da procuração forense junta aos autos pela Mandatária da Requerente. Tal irregularidade foi, porém, devidamente sanada.

 

Considerando as posições assumidas pelas das Partes nos argumentos apresentados, há que apreciar em primeiro lugar as excepções invocadas pela AT, relativas à falta de objecto e à preterição de prévia Reclamação Graciosa geradoras de incompetência material do Tribunal Arbitral.

 

  1. Assim sendo, estas questões são prévias e precedentes quanto às demais questões de direito suscitadas pelas partes. Apenas se apreciará a ilegalidade dos actos de liquidação de IUC e respetivos juros compensatórios em causa nos presentes autos, bem assim como do direito à restituição do valor de imposto pago e eventual direito a juros indemnizatórios, caso estas excepções sejam julgadas improcedentes.

 

Analisemos, pois, a primeira questão a decidir, ou seja, o conhecimento das excepções invocadas pela AT.

 

 

A)    Quanto À falta de objecto:

 

  1. Alega a Requerida que não estão em causa, contrariamente ao que alega a Requerente, liquidações oficiosas de imposto, mas simples notas de cobrança, as quais não constituem, verdadeiramente, um acto tributário impugnável, o que consubstancia uma situação de falta de objecto geradora de incompetência do tribunal arbitral. Segundo a AT o tribunal arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto de litígio, atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela AT.

Na óptica da Requerida tal situação consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, atento o disposto nos artigos 576º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi art. 2º, alínea e), do CPPT e do artigo 29º, nº 1 , alínea a) e e) do RJAT.

 

  1. Pois bem, quanto a esta questão importa atender à natureza dos documentos nºs 2 a 52 juntos aos autos, e, analisado o seu conteúdo extrair do mesmo se estes evidenciam apenas uma mera nota de cobrança, como pretende a AT, ou algo mais do que isso, nomeadamente uma liquidação oficiosa como pretende a Requerente. Ora, analisados os referidos documentos, não subsiste qualquer dúvida de que não estamos perante meras “notas de cobrança”, como pretende a AT, mas também não estamos perante liquidações oficiosas como pretende a Requerente.

 

De facto resulta muito claro que os documentos em causa contém os elementos típicos de uma liquidação de imposto, constando mesmo do referido documento a demonstração dos juros devidos, o que claramente induz o sujeito passivo a concluir que está em falta com o pagamento do imposto e é sua obrigação efectuar o seu pagamento, sob pena de sofrer todos os efeitos lesivos decorrentes do seu incumprimento.

 

  1.  No caso concreto, a liquidação do imposto, em sentido estritamente técnico-jurídico foi efectuada, ou emitida pelo próprio sujeito passivo, de acordo com o procedimento próprio previsto na lei para o efeito e de acordo com as regras implementadas pela própria AT. E, assim, sendo, não se compreende a argumentação da Requerida AT nesta matéria, quando alega tratar-se de meras notas de cobrança, para daí concluir pela ausência de acto tributário impugnável.

 

  1. O documento de cobrança constitui um título do qual se extrai uma obrigação fiscal decorrente da relação entre o sujeito passivo e a Autoridade Tributária. A sua colocação no sistema ou portal das finanças obedeceu á iniciativa da AT, tanto assim é que se o sujeito passivo pode muito bem verificar no seu histórico a existência daquelas dívidas o que é impeditivo, por exemplo, da emissão de uma certidão de não dívida que venha a ser solicitada.

 

  1. Por tudo isto, é inequívoco que as notas de cobrança em causa nos autos contêm em si mesmas todos os pressupostos ou requisitos próprios de um acto de liquidação, a saber: identificação do serviço emissor, identificação da entidade que procede à liquidação, incluindo o número de identificação fiscal, o período a que respeita a natureza da dívida ou do imposto em falta, o seu montante e a data limite de pagamento. Acresce que, ao sujeito passivo resta proceder ou não à emissão da referida nota de cobrança para proceder ao seu pagamento em conformidade com os elementos que constam do sistema, não podendo adulterar nenhum destes elementos previamente inseridos no portal das finanças.

 

  1. Ora, os documentos juntos aos presentes autos por cumprirem todos os requisitos supra descritos consubstanciam a natureza de actos tributários pelo que, neste ponto, não assiste razão á requerida AT.

 

Porém, não se trata de liquidações oficiosas como invoca a Requerente, mas sim de autoliquidações, as quais são verdadeiros actos tributários, impugnáveis.

 

 

  1. Importa, a este propósito, ter em conta o disposto no artigo 16º, nº2 do CIUC, do qual, aliás, resulta como regra que “a liquidação do imposto é feita pelo próprio sujeito passivo através da internet, nas condições de registo e acesso às declarações electrónicas, sendo obrigatória para as pessoas colectivas”.

E acrescenta o nº4 do mesmo normativo legal que “ é no momento dessa liquidação do imposto que é emitido o documento único de cobrança que, certificado pelos meios em uso na rede de cobrança, comprova o bom pagamento do imposto”.

 

  1. Entende-se, pois, que face ao disposto na lei, apesar de não ter sido a AT a proceder à emissão de uma liquidação oficiosa de imposto, nos termos e com o sentido previsto no artigo 18º, nº 2 do CIUC, daí não se pode extrair a conclusão por esta invocada, segundo a qual estamos perante meras notas de cobrança e não perante actos tributários impugnáveis. A verdade é que estas se encontravam disponíveis na parte privativa do sujeito passivo do Portal das Finanças, com indicação explícita dos valores em dívida e com demonstração de liquidação de juros compensatórios.

 

Qualquer cidadão comum entenderia tal “nota de cobrança”, como pretende a AT, com o mesmo sentido que lhe atribuiu a ora Requerente, a qual se limitou a cumprir o procedimento legal e a emitir as respectivas autoliquidações e a efectuar o seu pagamento.

 

  1. O facto das liquidações se terem produzido por iniciativa do sujeito passivo, como alega a AT, apenas pode ter o significado que a própria lei lhe atribuiu, ao prever o regime que consta no artigo 16º do CIUC. Ora, seria totalmente inaceitável que o sujeito passivo fosse penalizado por cumprir os procedimentos legais previstos.

 

Não se acompanha, pois, a tese da AT, segundo a qual, no caso sub judice, não há liquidações de imposto ou que estas não são verdadeiros actos tributários, incorrendo daí a falta de objecto e a incompetência material do Tribunal arbitral. Assim mesmo decidiu o Tribunal Arbitral na decisão proferida no processo nº 183/2014, a qual, aliás, foi invocada pela requerida AT no âmbito dos presentes autos, bem assim como nas decisões arbitrais 115/2014 – T e 169/2014 T.

 

 

  1. Em conclusão, no que toca à primeira excepção invocada pela AT é entendimento deste tribunal arbitral que as autoliquidações em causa nos presentes autos são actos tributários e, como tal, podem ser impugnados nos termos legalmente previstos, sendo uma das vias a do recurso ao pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 2º, nº 1, alínea a) do RJAT, o qual prevê a possibilidade de apreciação da legalidade de atos de liquidação e de autoliquidação de tributos.

Não há dúvida que os actos impugnados nos presentes autos constituem actos lesivos, susceptíveis de impugnação pelo sujeito passivo nos termos do disposto nos artigos 9º, nº2 e 95º, nº1 da Lei Geral tributária (LGT).

 

Deste modo, não assiste razão à Requerida AT na invocada excepção dilatória por falta de objecto, a qual se considera improcedente.

 

 

B) Quanto à incompetência material do tribunal arbitral por preterição de prévia Reclamação Graciosa:

 

 

  1. Relacionada ainda com os argumentos aduzidos quanto à primeira excepção invocada alega a AT que, mesmo que se entenda que os actos impugnados consubstanciam autoliquidações geradas pela própria Requerida no Portal das Finanças, há que concluir pela incompetência do Tribunal Arbitral, por preterição da prévia reclamação graciosa necessária.

 

Vejamos se assiste razão à AT quanto a esta questão.

 

  1. Dispõe o artigo 2º, nº1, alínea a) do RJAT, que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta. A Portaria nº 112-A/2011 de 22 de Março, exceptua da competência dos tribunais arbitrais as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso prévio à via administrativa, quando esta seja obrigatória, nos termos dos artigos 131º e 133º do CPPT.

 

  1. Sobre esta matéria há posições divergentes resultantes das decisões arbitrais juntas aos presentes autos pelas partes (decisões arbitrais nºs 183/2014 invocada pela AT e decisões nºs 115/2014 e 169/2014 – T invocadas pela Requerente). No mesmo sentido da decisão  arbitral nº 183/2014 T podemos acrescentar, também, a decisão arbitral nº 113/2014 – T, ainda não publicada no site do CAAD, mas que é do conhecimento de ambas as partes intervenientes nos presentes autos, na qual foi considerada procedente a excepção de incompetência material do tribunal arbitral.

 

 

  1. O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Sucede que, que, nos termos do artigo 4.º do RJAT, o início do funcionamento dos tribunais arbitrais ficou condicionado à vinculação da administração tributária, por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que apenas viria a ocorrer com a publicação da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março, com entrada em vigor em 1 de Julho.

 

  1. É à luz deste quadro jurídico que se define o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, delimitada com algumas restrições, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora. Assim, a competência atribuída aos tribunais arbitrais configura o respectivo processo, por um lado, como um meio alternativo ao processo de impugnação judicial, mesmo quanto às situações especiais previstas nos artigos 131 a 134.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que são as que no caso concreto dos presentes autos nos interessa analisar. No essencial a competência do tribunal arbitral nestes casos depende do mesmo pressuposto que o CPPT impõe para a competência dos tribunais tributários: a prévia precedência de reclamação graciosa.

 

 

  1. Dispõe o artigo 131º do CPPT, com referência á impugnação em caso de autoliquidação, que:

1 – Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração.

 2 – Em caso de indeferimento expresso ou tácito da reclamação, o contribuinte poderá impugnar, no prazo de 30 dias, a liquidação que efectuou, contados, respectivamente, a partir da notificação do indeferimento ou da formação da presunção do indeferimento tácito.

3 – Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do nº 1 do artigo 102º.”

 

  1. Ora, o disposto no artigo 2.º, nº1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, excepciona a competência do tribunal arbitral quanto às pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

A questão que agora se coloca é, pois, a seguinte: a AT vinculou-se à jurisdição dos tribunais arbitrais, nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, que tenham por objecto a apreciação da legalidade de pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, exceptuando pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos do disposto no artigo 131º CPPT.

 

  1. Ora, no caso dos autos, por tudo o que já se deixou exposto supra, entende este Tribunal que os actos em causa, cuja declaração de ilegalidade se peticiona, se caracterizam como autoliquidações de IUC. Enquanto tal, deviam ter sido precedidos de prévia Reclamação Graciosa necessária, nos termos do artigo 131º do CPPT, pelo que, nesta questão assiste razão à AT na invocada excepção de incompetência deste Tribunal Arbitral.

 

  1. Mas resta analisar uma última questão que a Requerente veio a suscitar, indirectamente, pela junção aos autos das decisões arbitrais nºs 115/2014 – T e 169/2014 – T, e que é a de saber se no caso em apreciação o recurso á via graciosa seria ou não obrigatório. Entende a Requerente que não, pois que os fundamentos de ilegalidade assentam no conhecimento de mera questão de direito. Pois bem, não lhe assiste razão, como se demonstrará.

 

  1. No caso dos presentes autos a reclamação graciosa prévia era, efectivamente, obrigatória. Mas como o sentido da decisão não é apenas a de fazer “vencer” mas, sobretudo, “convencer”, vejamos porquê.

Como bem refere Jorge Lopes de Sousa, no seu comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária “as razões subjacentes à imposição legal e à dispensa de reclamação graciosa prévia em relação à utilização de meios jurisdicionais, vale também em relação ao acesso aos tribunais arbitrais.”[1]

Assim, a aferição da competência do tribunal arbitral nesta matéria depende dos mesmos termos em que se analisaria, num caso idêntico, a competência do tribunal administrativo e fiscal competente para conhecer de eventual processo de impugnação. Na verdade o recurso prévio à reclamação graciosa só é obrigatório nos casos em que o fundamento da impugnação e as questões em análise no processo para conhecimento desses fundamentos, não sejam exclusivamente de direito e os actos sejam emitidos de acordo com as orientações da própria AT. Isso mesmo decorre do disposto no nº3 do artigo 131º e do nº6 do artigo 132º.

 

  1. Ora, que no caso dos presentes autos, os actos de autoliquidação foram emitidos de acordo com orientações genéricas da AT, não temos qualquer dúvida. Porém, os fundamentos invocados como razão da ilegalidade dos actos impugnados não assentam em matéria exclusivamente de direito, bem pelo contrário. Assim, analisada a questão tal qual é configurada pela Requerente no pedido arbitral, o conhecimento da ilegalidade dos actos implica o conhecimento de duas questões fundamentais, a saber:

a)      a primeira consiste em decidir se o artigo 3º, nº1 do CIUC configura ou não a consagração de uma presunção ilidível, e esta questão é claramente uma questão de direito;

b)       a segunda questão (decidida a primeira) consiste no conhecimento da matéria de facto invocada nos autos e na apreciação da prova aduzida pela Requerente a partir da qual o tribunal possa decidir se esta logrou cumprir o ónus da prova e ilidir a presunção. Dito de outro modo, cabe ao tribunal decidira se a requerente produziu nos autos a prova necessária e suficiente à demonstração da transmissão da propriedade das viaturas, quando, para quem e em que momento. Esta é matéria de facto, que implica a produção de prova, a qual pode ser exclusivamente documental ou complementada com prova testemunhal, mas em todo o caso trata-se de matéria de facto cujo conhecimento é essencial à correcta decisão dos autos.

 

 

  1. Nos termos supra expostos, entende este tribunal que no caso dos presentes autos o conhecimento da alegada ilegalidade dos actos impugnados não implica o conhecimento de questões exclusivamente de direito, pelo que a reclamação graciosa prévia era obrigatória e devia ter precedido o recurso à via impugnatória.

 

 

  1. Uma última referência se impõe, ainda a este propósito, quanto ao sentido e alcance da própria consagração da reclamação graciosa prévia em casos como o dos presentes autos. Na verdade, o processo tributário visa assegurar de modo equilibrado e justo as garantias dos contribuintes mas também o interesse público em presença, mormente, o da boa administração do Estado. Nesta medida, admitindo que possam suceder erros e equívocos que possam ser corrigidos pela via administrativa o legislador impôs o recurso à via graciosa prévia, concedendo mesmo um prazo substancialmente alargado, evitando o recurso imediato à via judicial.

Deste modo, concede um prazo generoso ao sujeito passivo para tentar reparar o seu prejuízo e garante à Administração Tributária a oportunidade de emendar o erro, voluntariamente, dando o bom exemplo de cumprimento da legalidade e prossecução do interesse público em presença.

Não cabe ao aplicador do direito ultrapassar os limites que o legislador definiu.

 

  1.  Por tudo o que se deixa exposto, conclui este tribunal arbitral que não tendo existido, no caso dos autos, prévio recurso à via administrativa graciosa, o Tribunal Arbitral carece de competência para julgar esta questão, como resulta do disposto no artigo 2º, alínea a) da Portaria 112-A/ 2011, de 22 de Março.

Neste mesmo sentido decidiu, em idêntica situação, o tribunal arbitral constituído no âmbito dos processos arbitrais nºs 183/2014 – T e 113/2014 – T, já supra mencionados.

 

  1. Nestes termos, conclui-se pela procedência da excepção de incompetência absoluta deste Tribunal Arbitral em razão da matéria.

Em consequência fica prejudicado o conhecimento das restantes questões de direito suscitadas pelas partes.

 

 

V - DECISÃO

 

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, nos termos e fundamentos supra expostos, com a consequente absolvição da instância da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nºs 1 e 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 3.064,16

 

 

Custas: Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €612,00, a cargo da Requerente.

 

Registe-se e notifique-se. 

 

 

Lisboa, 24 de Outubro de 2014

 

A Árbitro singular,

 

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)



[1] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, inserido no Guia da Arbitragem Tributária, Coordenado por  Nuno Vila Lobos e Mónica Brito Vieira, Almedina, 2013, pág. 131 e ss.