Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 146/2014-T
Data da decisão: 2014-09-30  IUC  
Valor do pedido: € 19.154,14
Tema: Incidência subjetiva, competência material do Tribunal Arbitral
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Requerente: A..., Lda

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

O Juiz-árbitro Francisco de Carvalho Furtado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), para formar o Tribunal Arbitral constituído em 22 de Abril de 2014, decide o seguinte:

 

A)Relatório

 

1.Em 17 de Fevereiro de 2014, A..., Lda, contribuinte n.º …, doravante identificada por Requerente, apresentou pedido de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por RJAT), em conjugação com a alínea a), do artigo 99.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

2.No referido pedido de pronúncia arbitral a Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação e, bem assim, dos respectivos actos de liquidação de Juros Compensatórios melhor identificados nos autos.

 

3.O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 19 de Fevereiro de 2014, pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante identificada como Requerida), na mesma data.

 

4.A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Singular, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos. O Tribunal foi constituído, nos termos do disposto no artigo 11.º, do RJAT, em 22 de Abril de 2014.

 

5.Em 3 de Junho de 2014, a Requerida apresentou a sua Resposta.

 

6.Em 1 de Setembro de 2014, e nos termos e para os efeitos previstos no artigo 18.º, do RJAT foi realizada a primeira reunião do Tribunal Arbitral, tendo sido lavrada acta, que se encontra junta aos autos.

 

7.Em 17 de Setembro de 2014, foi inquirida a testemunha arrolada pela Requerente após o que foram, pela Requerente e pela requerida, produzidas alegações orais.

 

A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:

 

a)      A Requerente foi proprietária de diversos veículos automóveis melhor identificados no artigo 4 do Requerimento Inicial;

b)      Posteriormente, a Requerente foi notificada de actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativamente a cada um dos referidos veículos;

c)      A Requerente foi também notificada de coimas aplicadas nos processos de contra-ordenação identificados no Requerimento inicial;

d)     No ano a que respeita cada uma das liquidações de IUC a Requerente já não era proprietária dos veículos, quer por alienação, quer por perda total em virtude de acidente;

e)      Da conjugação dos artigos 3.º e 6.º. do Código do IUC, resulta que o facto gerador deste Imposto é constituído pela propriedade do veículo sendo essa pessoa a responsável pelo pagamento do imposto;

f)       As referidas disposições legais limitam-se a constituir uma presunção ilidível;

g)      A requerente alienou os veículos em data anterior ao do facto gerador do imposto;

h)      Os actos de liquidação não se encontram fundamentados;

i)         Os veículos da Requerente pertencem à categoria “D” e não à “C” pelo “nunca poderá ser considerada lícita a sua tributação pela categoria “C”, como ocorreu relativamente aos veículos ..-..-..; ..-..-..; ..-..-..; ..-..-..; ..-..-.. e ..-..-..”

 

Na sua Resposta, a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

a)      O Tribunal Arbitral carece de competência para a apreciação do pedido de anulação das coimas aplicadas em processos de contra-ordenação fiscal;

b)      A Requerente não cumpriu a obrigação de comunicação da venda ao IMTT, estabelecida pelo artigo 118.º, n.º 4, do Código da Estrada;

c)      A interpretação e aplicação que a Requerente pretende fazer valer não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC;

d)     O legislador, estabeleceu no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC quem são os sujeitos passivos deste imposto não utilizando o vocábulo “presumem-se”, mas “considerando-se”;

e)      Assim, será imperativo concluir que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente sobre quem incide subjectivamente o imposto;

f)       Considerar que o legislador consagrou uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;

g)      Não se trata de uma presunção, mas de uma opção de política legislativa;

h)      De igual modo, é preciso atender ao facto de o artigo 6.º, n.º 1, do CIUC determinar que o facto gerador do imposto é a propriedade tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional;

i)        Da articulação entre a incidência subjectiva e o facto gerador resulta que só as situações jurídicas objecto de registo geram o nascimento da obrigação de imposto;

j)        Existe uma relação directa entre o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto e a emissão do certificado de matrícula;

k)      Tendo em consideração a actual configuração do sistema jurídico não se terá que promover a liquidação com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos;

l)        A ratio do regime aponta no sentido de ter sido a intenção do legislador criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel;

m)    Com efeito, o CIUC procedeu a uma reforma do regime da tributação dos veículos em Portugal passando a ser sujeito passivo do imposto o proprietário constante do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública;

n)      Tal ratio resulta dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de Janeiro;

o)      Esta conclusão não é afectada pelo facto de existirem preocupações ambientais, manifestadas na tributação do utilizador do veículo;

p)      A interpretação do artigo 3.º, do CIUC que a Requerente quer fazer valer é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica;

q)      De igual modo, tal interpretação da Requerente, também se mostra ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida;

r)       Por fim, a interpretação da Requerente viola o princípio da proporcionalidade na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade, sem que, contudo, o tenha exercitado em devido tempo;

s)       A Requerente não faz prova do que alega pois as facturas (por si só) não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos;

t)       Ainda que o Tribunal Arbitral decida pela ilegalidade das liquidações em apreço, as custas arbitrais deverão ser suportadas pela Requerente nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil;

u)      A Requerente não fundamenta a invocada falta de fundamentação, limitando-se a alegar.

 

B)Saneador

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

Importa antes de mais, conhecer da excepção de incompetência em razão da matéria invocada pela Requerida no que se refere à apreciação da legalidade das coimas aplicadas em processo de contra-ordenação tributária.

A competência da instância arbitral está delimitada, entre o mais, pela portaria de vinculação da Administração tributária à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa, constante da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. Analisado o artigo 2.º, da indicada Portaria, que, de forma taxativa, regula e delimita as pretensões que podem ser submetidas à apreciação da jurisdição material, verifica-se que desse elenco não fazem parte pretensões relacionadas com a apreciação da legalidade de coimas aplicadas em processo de contra-ordenação. Destarte tem que proceder a excepção de incompetência em razão da matéria invocada pela Requerida, com a consequente absolvição do pedido nesta parte.

 

Não se verificam nulidades ou outras questões prévias que atinjam todo o processo, pelo que se impõe, agora, conhecer do mérito do pedido no que respeita à apreciação da legalidade dos actos de liquidação de IUC e de Juros Compensatórios.

 

C)Objecto da Pronúncia Arbitral

 

Vêm colocadas ao Tribunal as seguintes questões, nos termos atrás descritos:

a)      O artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC ao prever que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, estabelece uma presunção ou uma opção legislativa?

b)      A factura é documento idóneo para demonstrar a alienação do veículo?

c)      O incumprimento da obrigação de comunicação a que alude o artigo 118.º, do Código da Estrada impede a elisão da presunção?

d)     Os veículos devem ser enquadrados na categoria “D”, de IUC?

e)      Os actos de liquidação encontram-se fundamentados?

f)       Estão verificados os pressupostos para condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios?

 

D)Matéria de facto

 

D.1 – Factos provados

 

Consideram-se como provados os seguintes factos com relevância para a decisão, com base na prova documental junta aos autos:

a)      A Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IUC e de Juros Compensatórios identificados no Requerimento inicial, no valor total de € 17.893.09 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

b)      Em 23 de Setembro de 2005, a Requerente emitiu a factura n.º ..., com o descritivo venda do veículo com a matrícula ..-..-.., de Outubro de 1998 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

c)      Em 10 de Novembro de 2005 o veículo referido na alínea anterior foi exportado para Angola, constando do documento alfandegário o destinatário a quem a factura foi emitida;

d)     Em 11 de Março de 2005 a Requerente emitiu a factura n.º ... com o descritivo venda do veículo com a matrícula ..-..-.., de Agosto de 2000 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

e)      Em 31 de Janeiro de 2008, a Requerente emitiu a factura n.º ..., com o descritivo venda do veículo ..-..-.., de Setembro (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

f)       Em 30 de Junho de 2005, a Requerente emitiu a factura n.º …, com o descritivo venda do veículo ..-..-.., de Agosto de 1989 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

g)      Em 29 de Julho de 2005 o veículo referido na alínea anterior foi exportado para Angola;

h)      Em 31 de Março de 2012, a Requerente emitiu a factura n.º …, com o descritivo venda da viatura com a matrícula ..-..-.., de Maio de 2000, e venda da viatura com a matrícula …, de Junho de 1996, (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

i)        Em 4 de Abril de 2012 a Requerente solicitou para o e-mail geral@....com, o envio dos documentos comprovativos do registo (em nome do adquirente) das viaturas identificadas na alínea anterior, seguindo-se troca de e-mails sobre o ponto de situação da actualização do registo (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

j)        Em 28 de Janeiro de 2010, a Requerente emitiu a factura n.º …, com o descritivo venda da viatura com a matrícula ..-..-.., de Julho (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

k)      Em 25 de Janeiro de 2011, a Requerente emitiu a factura n.º …, com o descritivo 7620Kgs sucata viaturas ..-..-../ ..-..-.., de Março de 1993 e Junho de 1991 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

l)        Em 26 de Junho de 2008, a Requerente emitiu a factura n.º …, com o descritivo venda da viatura com a matrícula ..-..-.., de Abril de 1989 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

m)    Em 21 de Agosto de 2008 o veículo referido na alínea anterior foi exportado para a Bolívia, constando do documento alfandegário o destinatário a quem a factura foi emitida;

n)      Em 30 de Junho de 2005, a Requerente emitiu a factura de Venda a Dinheiro n.º …, com o descritivo venda da viatura com a matrícula ..-..-.., de Novembro (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

o)      Em 28 de Fevereiro de 2009, a Requerente emitiu a factura n.º…, com o descritivo venda da viatura Scania com a matrícula ..-..-.., de Dezembro de 1989 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

p)      A Requerente é titular da licença comunitária n.º … para o exercício da actividade de transportes rodoviários por conta de outrem, de âmbito nacional e internacional entre 23 de Julho de 1996 e 23 de Janeiro de 2014 (cfr. doc. junto ao requerimento inicial);

q)      Para o exercício da referida actividade estão licenciados os veículos com a matrícula ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-..,, ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.., ..-..-.. e ..-..-..,  (cfr. doc. junto ao requerimento inicial).

 

Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na prova documental referida, junta aos autos e, no processo administrativo apenso.

 

D.2 – Factos não provados

 

a)      A Requerente promoveu o pagamento dos actos de liquidação cuja declaração de ilegalidade e consequente anulação se pretende;

b)      A Requerente alienou o veículo com a matrícula ..-..-..

c)      Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.

 

E)Do Direito

 

Em face do que se deixa exposto importa, desde logo, verificar a natureza do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC. Com efeito, a fonte da discórdia entre a Requerente e a Requerida prende-se com o facto de a Requerente considerar que a referida disposição legal estabelece uma presunção (ilidível) e a Requerida considerar que está em causa a manifestação de uma opção de política legislativa. Em consequência a Requerida considera que da conjugação dos artigos 3.º e 6.º, do Código do IUC resulta que o imposto recai sobre a pessoa, física ou colectiva, que conste como proprietária no respectivo registo. A Requerente, por seu turno, extrai das referidas disposições legais a conclusão de que o imposto deve ser suportado pelo real e efectivo proprietário independentemente de quem figure como tal no registo, sendo que a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 3.º, do Código do IUC, estabelece, uma presunção. Cumpre, pois, apreciar.

 

A noção de presunção encontra-se consagrada no artigo 349.º, do Código Civil, que a define como “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para formar um facto desconhecido.” Ora, a utilização de presunções não é desconhecida no âmbito do direito tributário na justa medida em que podem conferir contornos de maior praticabilidade ao sistema e, bem assim, serem instrumentos de combate à fraude e evasão. Com efeito, “perante a dúvida de certos factos ou situação a regular, a regra de Direito supõe que esses contornos são os de outro facto ou situações previstos numa outra regra jurídica” (Sousa, Marcelo Rebelo de; Galvão, Sofia, Introdução ao Estudo do Direito, Lex, 2000, Lisboa, Pág. 241).

 

Por outro lado, importa também ter presente que as presunções podem ser, quer explícitas, quer implícitas. As primeiras, são “reveladas pela utilização da expressão «presumem-se» ou semelhante (…)” (Sousa, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário, I Vol. 6.ª Edição, Áreas Editoras, 2011, Lisboa, pág. 589).

 

Por contraposição àquela categoria de presunções, existem as presunções implícitas ou seja, aquelas que não resultam directa e expressamente da terminologia utilizada pelo legislador. Ora, como bem referido na douta decisão arbitral proferida no Processo n.º 14/2013-T: “Examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314º, 369º nº 2, 374º nº1, 376º nº 2, 1629º. No Código da Propriedade Industrial, referimos a título de exemplo, o artigo 98º onde também o termo “considerando” é usado num contexto presuntivo. Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. Como explicam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação nº 3 ao artigo 73º da LGT “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (sublinhado nosso), dando de seguida alguns exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” como no nº 2 do artigo 21º do CIRC acontece, ao estabelecer que “para efeitos de determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo”. (sublinhados nossos). (…).Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos), autorizam a conclusão que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no nº 2 do artigo 9º do CC, o qual exige que o pensamento legislativo tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” (in www.caad.pt).

 

Em face do que se deixa exposto, parece curial que se conclua que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC ao considerar proprietários as pessoas, singulares ou colectivas, em nome das quais os veículos se encontrem registados, não faz mais do que estabelecer uma presunção. Com efeito, admitindo que se desconhece a real situação a regular (o titular do direito de propriedade) recorre-se a outra situação já conhecida pelo Direito (o registo). Importa, aqui referir que, como constantemente referido na jurisprudência o registo não é constitutivo do direito mas meramente declarativo.

Está, pois, em causa, uma verdadeira presunção e não uma ficção (o que poderia justificar uma opção de política legislativa) na justa medida em que no segundo caso o direito trata de forma idêntica factos que se sabe serem distintos. No caso concreto, e como resulta da primeira parte do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pretende-se tributar o real proprietário (facto desconhecido) e, na segunda parte da norma, estabelece-se uma relação com um outro facto do direito, o registo (facto conhecido).

E compreende-se que o Legislador tenha seguido este caminho pois, como bem aponta a Administração tributária na sua Contestação, por razão relacionadas com a praticabilidade e gestão do imposto, e mesmo a prevenção da fuga e fraude, o imposto deve ser liquidado com base nos dados conhecidos pelo sujeito activo da relação tributária. Todavia, estas razões de praticabilidade não se podem sobrepor a outros princípios de valor bem mais elevado para o direito, designadamente o Constitucional, como sejam o da igualdade. Com efeito, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar não estar constitucionalmente vedada a utilização de presunções em direito tributário, conquanto as mesmas possam ser ilididas (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, publicado em Diário da República, II Série, de 25 de Julho de 1997 e Acórdão n.º 211/2003, de 28 de Abril de 2003). Ou seja, o Tribunal Constitucional considera na sua Jurisprudência que, embora seja legítimo ao legislador tributário socorrer-se de presunções, está constitucionalmente limitado pelos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da repartição justa de rendimentos e da riqueza (que é o objectivo basilar do sistema fiscal, como se infere do artigo 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) sendo-lhe vedada a utilização de presunções absolutas. Com efeito, “o estabelecimento de presunções com o objectivo de conferir certeza e simplicidade às relações fiscais, de permitir uma pronta regular percepção dos impostos e de evitar e evasão e a fraude (…) tem de compatibilizar-se com o princípio em análise (de igualdade tributária) o que passa, quer pela ilegitimidade constitucional das presunções absolutas na medida em que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva Lei, quer pela exigência de idoneidade das presunções relativas para apresentarem o pressuposto económico tido em conta”» (…) «As presunções devem apoiar-se em elementos concretamente positivos que as justifiquem racionalmente e admitir prova em contrário, de modo a que o imposto se ligue a um pressuposto económico certo, provado e não apenas provável»” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/1997, citando Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), pág. 279). Assim, e como sustenta este último Autor na Obra citada, pág. 265 e ss., “A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto (…)”

 

Em consonância com a douta jurisprudência do Tribunal Constitucional e, bem assim, a mais reputada doutrina, o artigo 73.º, da Lei Geral Tributária determina expressamente que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”

 

Em suma: o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC estabelece uma presunção no que respeita à incidência subjectiva do imposto, a qual é, ilidível. Esta é a única interpretação que, aliás, permite salvaguardar os princípios constitucionais indicados pela Administração tributária na sua Contestação que, ao contrário do que sustenta, seriam prejudicados e ofendidos pela procedência do entendimento vertido pela Requerida nas sua peças processuais.

 

Em face da conclusão alcançada, importa analisar uma segunda questão que, bem, a Administração tributária suscita na sua Contestação. Com efeito, tratando-se de uma presunção (como está já assente), o beneficiário da mesma (a Requerida) escusa de provar o facto a que ela conduz, cabendo à Requerente fazer prova do contrário. Este é o regime que resulta do artigo 350.º, do Código Civil.

Sobre este aspecto, a Administração tributária sustenta que as facturas, por si só, não são documento idóneo para a prova exigida. Não cremos, contudo, que tenha razão.

A factura é, em termos genéricos, o documento contabilístico através do qual o comerciante especifica a quantidade, qualidade e preços das mercadorias vendidas e/ou dos serviços prestados. É, pois, um título representativo das mercadorias vendidas e/ou dos serviços prestados.

Por estarmos no domínio do direito tributário, não poder ser obnubilado o disposto no artigo 75.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária. Esta disposição legal confere uma presunção de veracidade aos elementos contabilísticos dos contribuintes – em que se inserem as facturas em causa -, pelo que se impunha que a Administração tributária afastasse essa presunção através da demonstração de inexistência de correspondência entre o declarado em tais elementos e a realidade – o que não fez, limitando-se a referir em abstracto que não considera que a Requerente tivesse feito prova.

É, pois, forçoso concluir que a prova junta aos autos é idónea e suficiente para a demonstração dos factos invocados pela Requerente (com excepção do facto para o qual não foi junta prova, claro está).

 

Por fim, importa aferir se o, alegado, incumprimento, da obrigação de comunicação prevista no artigo 118.º. do Código da Estrada, impede a Requerente de elidir a presunção. Ora, a possibilidade de elisão de uma presunção não está legalmente condicionada pelo cumprimento da obrigação de comunicação a que alude o artigo 118.º, do Código da Estrada. Não existem dúvidas que o princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-fiscal é o da tributação de acordo com a justiça material. Tal decorre, sem margem para dúvidas do disposto nos artigos 103.º e 104.º, da Constituição da República Portuguesa. Do mesmo modo, o artigo 266.º, da Constituição da República Portuguesa, ao determinar que a atividade administrativa deve, acima de tudo, visar a prossecução do interesse público e a justiça e a proporcionalidade das medidas, demonstra que o fim último é a verdade material. Vejamos, então, como está estruturado o sistema fiscal, designadamente no que a obrigações declarativas diz respeito. Analisados os diversos códigos tributários verifica-se que a regra é a de que mesmo as declarações através das quais a Administração tributária determina a matéria tributável de imposto podem ser apresentadas fora do respectivo prazo legal ou substituídas. E a consequência, mesmo nestes casos em que o contribuinte não declara a sua matéria coletável, ou na letra da lei da Lei quando existam erros ou omissões na declarações que devem ser apresentadas a fim de que a administração tributária especificamente determinante, avalie ou comprove a matéria coletável é a da, eventual, aplicação de coima em sede de processo de contra-ordenação. Ou seja, atento o princípio da verdade material e da prossecução do interesse público, a lei penaliza o contribuinte pela omissão, mas nem por isso obnubila a verdade material do caso concreto. É, pois, evidente, que o sistema jurídico-tributário está, no seu todo, gizado para que o incumprimento atempado de obrigação declarativa não tenha consequências, drásticas, definitivas, e, eventualmente, desproporcionais. Assim sendo, parece curial que se conclua que a única consequência decorrente do incumprimento do disposto no artigo 118.º, do Código da Estrada corresponderá, se verificados os respectivos pressupostos, pela aplicação de coima em processo de mera ordenação social.

 

Em suma: dos factos dados como provados resulta que cada um dos actos de liquidação em causa (com excepção dos actos de liquidação n.ºs …, …, …, praticados por referência ao veículo com a matrícula ..-..-..), se reporta a um ano fiscal em que a Requerente, na data em que se verifica o facto gerador do imposto, já não era a proprietária de cada um dos veículos em causa. Deste modo, visando, como vimos já, o IUC incidir subjectivamente sobre o real proprietário do veículo em cada ano e no mês de matrícula (cfr. artigos 3.º, 4.º e 6.º, do Código do IUC), é forçoso que se conclua que os actos de liquidação em apreço (com excepção dos actos de liquidação n.ºs …, …, …, praticados por referência ao veículo com a matrícula ..-..-..), violam o disposto nas referidas disposições legais devendo ser declarados ilegais e anulados, porque praticados com ofensa das normas e princípios jurídicos vigentes (cfr. artigo 135.º, do Código de Procedimento Administrativo).

 

Por fim, em face da conclusão a que se chegou supra importa, ainda, e por referência ao veículo com a matrícula ..-..-.., a que correspondem os actos de liquidação n.ºs …, …, …, analisar o argumento invocado e que se prende com o erro de direito na classificação do referido veículo. A requerente invoca que, à luz do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea d), do Código do IUC o mesmo deve ser enquadrado na categoria “D” e não na categoria “C” deste imposto. Nos termos da referida disposição legal pertencem à categoria “D”: “Automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2.500Kg, afectos ao transporte público de mercadorias, ao transporte por conta de outrem ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades”. Ora, atenta a matéria de facto assente não existem dúvidas de que o veículo em questão está licenciado para a actividade de transporte de mercadorias por conta de outrem. De igual modo resulta do auto de contra-ordenação junto aos autos que o veículo em causa deve ser qualificado como pesado. Resulta do disposto no artigo 106.º, n.º 1, alínea b), do Código da Estrada, que são veículos pesados aqueles cujo peso bruto seja superior a 3500Kg ou com lotação superior a 9 lugares, incluindo o condutor. Ou seja, devem ser qualificados como pesados os veículos que, independentemente do peso bruto, tenham lotação superior a nove lugares. Em face do exposto, e à mingua de mais prova, que atento o disposto no artigo 74.º, da Lei Geral Tributária, incumbia à Requerente fazer, não se encontram demonstrados os pressupostos de que a Lei faz depender a qualificação de determinado veículo como de categoria “D” para efeitos de CIUC. Improcede, pois, este argumento da Requerente.

 

Por fim, importa, analisar se os actos de liquidação n.ºs …, …, … se encontram fundamentados em termos adequados. Conforme impõe o n.º 1 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, “a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”. Ou seja, impende sobre a Administração tributária o dever legal de exteriorizar o percurso cognoscitivo de forma a que o destinatário possa perceber o motivo da liquidação de imposto. O dever de motivação ou de fundamentação de qualquer acto administrativo ou tributário tem associadas duas finalidades: (i) por um lado, inteirar o respectivo destinatário das razões ou dos motivos que conduziram à tomada de decisão em determinado sentido; e (ii) por outro lado, permitir que se faça um controlo sobre a legalidade da decisão e sobre a validade dos motivos que subjazem a determinada decisão concreta. Como ensina Vieira de Andrade, “o imperativo de fundamentação expressa (...) desempenha, assim, tipicamente, um papel de garantia funcional, com a pretensão de assegurar a racionalidade e a controlabilidade dos momentos característicos da função administrativa, daqueles em que os órgãos da Administração tomam decisões de autoridade que produzem modificações jurídicas no mundo externo” (cf. ANDRADE, José Carlos Vieira - O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 1992, p. 215). Ora, no caso em apreço, os actos de liquidação em causa contêm todos os elementos, de facto e de direito, que permitem – como efectivamente permitiram – à Requerente analisar e avaliar os motivos que lhe subjazem. Assim sendo, não resta outra conclusão senão a de que os actos em causa se encontram fundamentados em termos adequados, improcedendo este argumento da Requerente.

 

Com referência aos actos de liquidação de IUC cuja ilegalidade é aqui declarada é forçoso concluir pela ilegalidade dos respectivos juros compensatórios na justa medida em que inexistindo imposto em falta não podem, naturalmente, verificar-se os pressupostos a que alude o artigo 35.º, da Lei Geral Tributária, designadamente por inexistir atraso na liquidação do imposto.

 

Por fim, a Requerente pede o reembolso dos valores pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º, da Lei Geral Tributária. Vejamos então:

O artigo 43.º, da Lei Geral Tributária determina que o contribuinte terá direito a ser ressarcido através de juros indemnizatórios sempre que o pagamento indevido de imposto seja imputável a erro dos serviços. Ora, no caso em apreço, a Requerente não fez, como resulta do julgamento da matéria de facto, prova de que tenha pago o imposto que lhe foi liquidado. Deste modo, não se verificam os pressupostos de que a Lei faz depender a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios

 

Decisão

 

Em face do exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido formulado e consequentemente:

 

a)      Julgar procedente a excepção de incompetência material deste Tribunal para apreciar a legalidade das coimas aplicadas em processos de contra-ordenação, absolvendo a Requerida,

b)      Declarar a ilegalidade dos actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios n.ºs …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, anulando-os;

c)      Absolver a Requerida do pedido no que respeita aos actos de liquidação n.ºs …, … e …, praticados por referência aos anos de 2009, 2010 e 2011 e ao veículo com a matrícula ..-..-.., no valor de € 1.185,63;

d)     Absolver a Requerida do pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios;

e)      Condenar a Requerente e a Requerida no pagamento das custas na proporção do decaimento, que se fixa em 25% para a Requerente e 75% para a Requerida.

 

Fixa-se o valor da acção em € 19.155,14 (dezanove mil, cento e cinquenta e cinco euros e catorze cêntimos), nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

Fixa-se o valor da Taxa de Arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente e pela Requerida conforme supra exposto, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, 22.º, n.º 4, do RJAT e 4.º, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de Setembro de 2014

 

O Árbitro

 

 

Francisco de Carvalho Furtado