Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 339/2021-T
Data da decisão: 2022-07-22  IRS  
Valor do pedido: € 89.763,67
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias – Prova do valor de realização efetivo – Inimpugnabilidade – Arts. 44.º, 2, 5 e 6 CIRS e 139.º CIRC.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Ana Teixeira de Sousa e Rui Ferreira Rodrigues (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 10 de agosto de 2021, acordam no seguinte:

 

 

I.       Relatório

 

A..., doravante “Requerente”, contribuinte fiscal número ..., residente em França, na Rue ..., e B..., aqui “Segunda Requerente”, contribuinte número ..., residente na mesma morada, ambos de nacionalidade portuguesa e designados em conjunto por “Requerentes”, apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a); 3.º, n.º 1; 5.º, n.ºs 1 e 3 alínea a); 6.º n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. 

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

 

Os Requerentes pretendem:

a)    A declaração de ilegalidade de duas liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares(“IRS”) emitidas sob os n.ºs 2020..., no valor de € 45.045,11, e 2020..., no montante de € 44.718,56, ambas referentes ao ano 2019, perfazendo a quantia global de € 89.763,67, derivadas da venda de imóveis efetuadas nesse ano;

b)    A declaração de ilegalidade do deferimento parcial das Reclamações Graciosas deduzidas contra aquelas liquidações de IRS; 

c)     O cancelamento das penhoras no âmbito do processo de execução fiscal;

d)    A condenação da AT no pagamento de indemnização, tendo em conta o cálculo de juros que deixaram de auferir e a falta de acesso aos fundos até ao cancelamento das penhoras. 

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 8 de junho de 2021 e automaticamente notificado à AT. 

 

Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os signatários da presente decisão, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar. 

 

Por despacho de 16 de julho de 2021, da Subdiretora Geral, registado no sistema de gestão processual (“SGP”) do CAAD, em 22 de julho de 2021, foram parcialmente revogadas as liquidações de IRS impugnadas na presente ação, por aplicação da regra de limitação de tributação a 50% do saldo das mais-valias imobiliárias, conjugada com o regime de tributação autónoma à taxa específica de 28%.

 

Notificados para se pronunciarem, os Requerentes manifestaram o seu interesse no prosseguimento do procedimento. 

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 10 de agosto de 2021. 

 

Em 29 de setembro de 2021, a Requerida apresentou a sua Resposta, na qual se defende por impugnação, tendo junto o processo administrativo (“PA”). Pugna pela improcedência do pedido arbitral. 

 

Os Requerentes, por requerimento de 11 de outubro de 2021, juntaram os novos atos de liquidação de IRS, invocando a desconformidade dos mesmos com o despacho de revogação parcial dos atos originalmente impugnados, por não ter sido aplicada a taxa de 28%, prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS, antes as taxas progressivas (v. artigo 68.º deste diploma). 

 

Em 26 de outubro de 2021, a Requerida juntou a informação obtida junto da Direção de Finanças da ... no sentido de que iriam ser emitidas novas liquidações com aplicação da taxa correta, de 28%, ficando os autos a aguardar por 20 dias a correção das liquidações. 

 

Em 3 de novembro, a Requerida procedeu à junção aos autos da nova liquidação relativa ao Requerente, na qual foi aplicada a taxa de 28%. Em relação à Segunda Requerente, a AT juntou aos autos a comunicação à Direção de Finanças da ..., para concretização da decisão de revogação parcial em moldes idênticos aos do Requerente. 

 

Em 22 de novembro de 2021, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, sem comparência das testemunhas arroladas pelos Requerentes. Atento o disposto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT e no artigo 118.º, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Tribunal Arbitral decidiu pelo não adiamento da diligência, para o que foi ponderado que as duas questões que subsistem dirimir apenas são passíveis de prova documental, a saber: a preterição do direito de audição e o decurso do prazo para requerer o procedimento de prova do preço efetivo na transmissão de imóveis. As Partes foram notificadas para alegações e fixou-se o prazo para prolação da decisão, com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente pelos Requerentes até essa data (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD). 

 

Por requerimento de 2 de dezembro de 2021, a Requerida informou os autos de que, em relação à Segunda Requerente, o Documento de Correção já se encontrava liquidado, tendo procedido à junção da demonstração de liquidação em 7 de dezembro de 2021.

 

Requerentes e Requerida apresentaram as suas alegações, reafirmando, no essencial, as posições assumidas nos articulados iniciais. 

 

Por despachos de 1 de fevereiro, 29 de março e 2 de junho, todos do ano 2022, foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivado da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica.

 

* * *

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, relativa a liquidações de IRS, atenta a conformação do objeto do processo (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT). 

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), tendo em conta a data de notificação das decisões de deferimento parcial das Reclamações Graciosas (22 de dezembro de 2020) e a suspensão de prazos procedimentais e processuais operada com a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, com efeitos a 6 de abril de 2021. 

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

É de admitir a cumulação de pedidos, nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, por estarem em discussão as mesmas circunstâncias de facto e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito. 

 

Tendo sido parcialmente revogados os atos tributários impugnados com a consequente inutilidade superveniente (parcial) da lide e suscitando-se, na parte subsistente, a questão da não adoção do procedimento de prova do preço efetivo na transmissão de imóveis, nos termos previstos no artigo 139.º, n.º 3 do Código do IRC, por remissão expressa do artigo 44.º, n.ºs 5 e 6 do Código do IRS, que constitui uma condição de impugnabilidade dos atos tributários controvertidos, estas questões são de seguida apreciadas, com caráter prioritário, logo após a fixação da matéria de facto. 

 

 

II.     Questões a Dirimir 

 

Reconduzem-se a três as questões essenciais a dirimir nos presentes autos, devendo a pronúncia jurisdicional conhecer “em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica” (v. artigo 608.º, n.º 1 do Código de Processo Civil – “CPC”, aplicável ex viartigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). 

 

Importa, deste modo, começar por analisar o preenchimento da condição prévia de impugnabilidade dos atos de liquidação, relativa ao procedimento de prova do preço efetivo de venda, a impulsionar pelos sujeitos passivo no mês de janeiro do ano subsequente à transmissão dos imóveis e aferir da respetiva preclusão. Com efeito, a inimpugnabilidade dos atos tributários constitui exceção dilatória que impede o conhecimento do mérito, à face do disposto no artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e 4 alínea i) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), e do artigo 576.º do CPC, ex viartigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT, respetivamente, pelo que se impõe a sua apreciação a título preliminar. 

 

Se se verificar o pressuposto da impugnabilidade dos atos tributários contestados, importará apreciar o fundo da causa, em concreto, a alegada violação do direito de participação dos Requerentes na decisão de deferimento parcial das Reclamações Graciosas deduzidas contra as liquidações de IRS impugnadas e a violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real, da boa-fé, da cooperação e da verdade material por ter sido considerado o valor patrimonial tributário (“VPT”) dos imóveis como valor de realização. 

 

Posição dos Requerentes

 

Os Requerentes começam por invocar a preterição do direito de audição em relação à decisão das Reclamações Graciosas deduzidas contra as liquidações de IRS objeto da presente ação, em virtude de a respetiva notificação apenas conferir o prazo de 15 dias, i.e., sem atender à dilação de prazo prevista no artigo 88.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), por residirem em país estrangeiro (França). Assim, entendem que o exercício do direito de participação ficou comprometido, com violação do disposto nos artigos 60.º da LGT e 267.º da Constituição. Entendem ainda que a notificação devia ter sido efetuada por carta registada com aviso de receção, nos termos do artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 do CPPT. 

 

Sustentam que o facto de a AT ter reaberto o novo prazo para exercício de audição prévia, constitui mera formalidade que não elimina o vício, mantendo-se a ilegalidade das decisões da Reclamações Graciosas, dado não ter sido atendida a fundamentação de facto e de direito apresentada pelos Requerentes no direito de audição. 

 

Em relação à recusa da AT em tomar conhecimento dos valores de realização reais que defendem ser os constantes das escrituras de venda das frações, por estar ultrapassado o prazo para requerer o procedimento de prova do valor de venda do imóvel (v. artigo 139.º, n.º 3 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e artigo 44.º, n.º 1, alínea f), n.ºs 2, 5 e 6 do Código do IRS), os Requerentes sustentam que consubstancia a violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e, em última análise, os deveres de boa-fé e de cooperação. 

 

Segundo os Requerentes, o interesse da AT devia ser apurar a verdade material (v. artigos 58.º e 55.º da LGT) e as Reclamações Graciosas deviam ser convoladas em procedimento de prova do rendimento real. Acrescentam que é à AT que cabe o ónus da prova dos factos constitutivos e peticionam em sede da ação arbitral a oportunidade de provar o preço declarado na venda do imóvel. 

 

Invocam ainda que tinham um representante fiscal sobre quem recaía a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações declarativas e que desconheciam o procedimento previsto no 139.º, n.º 1 do Código do IRC. 

 

Posição da Requerida

 

A Requerida começa por sublinhar ter procedido à revogação parcial das liquidações de IRS impugnadas, por considerar aplicável o limite de 50% ao saldo das mais-valias imobiliárias, mantendo a tributação à taxa específica de 28% para não residentes, prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS. 

 

Sobre a alegada preterição do direito de participação na decisão, reconhece que a primeira decisão de deferimento parcial das Reclamações Graciosas, de 30 de outubro de 2020, padecia das desconformidades assinaladas pelos Requerentes. Contudo, apesar disso, em 6 de novembro de 2020 os Requerentes exerceram esse direito de participação, tendo, nessa sequência, sido reabertos os procedimentos das Reclamações Graciosas e analisados os fundamentos apresentados no direito de audição. Foram proferidos novos despachos de deferimento parcial das Reclamações em 17 de dezembro de 2020, anulando os anteriores, do que foram os Requerentes devidamente notificados. Assim, quer os atos de liquidação, quer as decisões das Reclamações Graciosas não enfermam da arguida preterição de audiência prévia. 

 

Relativamente ao valor de realização, a Requerida preconiza que se limitou a aplicar o regime legal pertinente às mais-valias resultantes da alienação de direitos reais sobre imóveis, que dispõe que o ganho sujeito a IRS é determinado pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, ficcionando-se ser aquele [o valor de realização] o VPT quando superior ao valor de venda (v. artigos 10.º, 43.º, n.ºs 1 e 2, 44.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 do Código do IRS). 

 

Esta presunção poderia ser afastada pelo contribuinte (v. artigo 44.º, n.º 5 do Código do IRS) mediante procedimento próprio a instaurar em janeiro do ano seguinte, nos termos do artigo 139.º do Código do IRC, por remissão do n.º 6 do artigo 44.º do Código do IRS, o que não foi concretizado pelos Requerentes. Não se verifica a violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, uma vez que a presunção é ilidível. Por outro lado, a mera invocação da realização da escritura e os preços na mesma declarados não são suficientes para comprovar o preço efetivo de venda que os Requerentes reclamam, não tendo sido evidenciados quaisquer fluxos financeiros (nomeadamente cheques ou transferências bancárias). 

 

Por fim, no tocante a juros indemnizatórios, a Requerida argumenta que estes pressupõem o pagamento em montante superior ao devido da prestação tributária e, bem assim, que se constate erro imputável aos serviços, de acordo com o artigo 43.º, n.º 1 da LGT, condição que considera não se verificar na situação vertente. 

 

 

III.          Fundamentação de Facto

 

1.              Factos Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

A.     A... e B..., aqui Requerentes, são residentes em França, para onde emigraram na década de 70 – provado por acordo (cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA3, 10 e 12). 

B.      Os Requerentes adquiriram em compropriedade com outros familiares, pertencendo-lhes 50%, um lote de terreno, no qual construíram um prédio constituído por 10 frações autónomas, sito na atual Rua..., n.º ..., ..., na cidade da Guarda – provado por acordo (cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA3, 10 e 12). 

C.     Em 9 de julho de 1992, os Requerentes requereram a inscrição na matriz, mediante entrega das declarações Modelo 129, das frações A a J do referido imóvel, a que correspondia o valor global de € 174.853,62, cabendo-lhes em conjunto ½, correspondente a € 87.426,81 – provado por acordo (cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA3, 10 e 12). 

D.     Por procuração datada de 27 de outubro de 2009, os Requerentes conferiram ao Sr.  C..., solicitador, poderes de administração, incluindo para celebrar contratos de arrendamento e representar os mandantes nos “Serviços Públicos e Administrativos, tudo em relação ao prédio urbano sito na cidade da Guarda, no ..., Rua ..., com o número ... de polícia, inscrito na respectiva matriz da freguesia da ..., do concelho da Guarda, sob o artigo ..., de que são proprietários” – cf. documento 12 junto pelos Requerentes.

E.      Em dezembro de 2019, os Requerentes venderam o imóvel pelo valor total de € 388.000,00, a que lhes correspondeu ½, ou seja, € 194.000,00 – cf. documentos 8 a 10 juntos pelos Requerentes (cópia das escrituras de compra e venda). 

F.      O VPT do imóvel (soma de todas as frações) no ano da venda – 2019 – era de € 659.464,43, sendo na proporção de ½ de € 329.732,22 – cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA3, 10 e 12 e documento 11 junto pelos Requerentes (cadernetas prediais). 

G.     Em 16 de junho de 2020, os Requerentes submeteram por via informática as declarações anuais de IRS relativas ao ano 2019, declarando as transmissões das frações pelo valor de aquisição de € 2.803,77 e de realização de € 164.866,08, que deram origem às liquidações ora impugnadas, emitidas, em 17 de julho de 2020, sob os números 2020..., no montante de € 44.718,56 (Requerente), e 2020..., no valor de € 45.045,11 (Segunda Requerente), perfazendo a quantia global de € 89.763,67. A data limite de pagamento das liquidações foi fixada em 8 de setembro de 2020 – cf. documentos 3, 4 e 13 juntos pelos Requerentes e cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA3, 10 e 12. 

H.     Os Requerentes apresentaram Reclamações Graciosas contra os atos de liquidação identificados no ponto anterior (G) em 31 de julho de 2020 – cf. documento 7 junto pelos Requerentes e procedimento de Reclamação Graciosa, PA3, 10 e 12.

I.       Os Requerentes foram notificados, por ofícios datados de 7 de outubro de 2020, remetidos por via postal registada para a sua residência em França, para exercerem o direito de audição em relação aos projetos de deferimento parcial das Reclamações Graciosas, enviado em cópia, ­sendo-lhes concedido para o efeito o prazo de 15 dias – cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA5.

J.       Os referidos projetos preconizavam a correção dos valores de aquisição a favor dos Requerentes para € 87.426,81 (½ de € 174.853,62), correspondentes ao valor da primeira inscrição na matriz, mantendo os demais pressupostos das liquidações, nomeadamente o valor de realização indexado aos VPT, por serem superiores aos valores de venda declarados nas escrituras (v. artigo 44.º, n.º 2 do Código do IRS), não tendo sido adotado o procedimento específico tipificado no artigo 139.º do Código do IRC, para o qual o artigo 44.º, n.º 6 do Código do IRS remete, que permitiria, através da prova do preço efetivo da transmissão, a requerer em janeiro do ano seguinte ao da transmissão (in casu, em janeiro de 2020), afastar a prevalência do VPT como valor de realização, ou seja, indeferindo nesta parte o peticionado pelos Requerentes. Refere ainda o projeto que o n.º 7 do artigo 139.º do Código do IRC proíbe que a Reclamação Graciosa seja utilizada como meio para fazer prova do preço efetivamente pago nas transmissões dos imóveis. Por fim, sobre a possibilidade de convolação das Reclamações Graciosas deduzidas pelos Requerentes no procedimento próprio (de prova de preço efetivo), nos termos do artigo 52.º do CPPT, considera-se não ser possível por ter decorrido o prazo para o mesmo – cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA3.

K.     As Reclamações Graciosas foram parcialmente deferidas, por despachos datados de 30 de outubro de 2020, nos moldes constantes dos projetos de decisão, considerando-se, a favor dos Requerentes, como valores de aquisição, os atribuídos quando da primeira avaliação efetuada, superiores aos declarados. Não foi deferida a pretensão referente aos valores de realização considerados nas liquidações de IRS, por não ter sido encetado o procedimento para prova do preço efetivo de venda, conforme descrito no ponto anterior – cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA4, 6 e 7.

L.      Em 6 de novembro de 2020, os Requerentes, exerceram o direito de audição em relação aos projetos de decisão, invocando a dilação prevista no artigo 88.º do CPA. Expressam a pretensão de lhes ser dada a oportunidade de provar o preço declarado de venda do imóvel em causa, que assumem constituir o objetivo da Reclamação Graciosa. Mesmo que se entendesse que o meio não era o próprio para cumprir o requisito do artigo 139.º, n.º 3 do Código do IRC, preconizam que nada impede que seja aceite o pedido formulado, mesmo que fosse necessário convolar a petição, devendo a AT apurar a verdade material. Vêm ainda requerer, pela primeira vez, a tributação do saldo positivo das mais valias apuradas apenas em 50%. Tudo com fundamentos idênticos aos da presente ação arbitral – cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA8.

M.    Em consequência, foram reabertos os procedimentos de ambas as Reclamações Graciosas e analisados os fundamentos apresentados pelos Requerentes em sede de direito de audição. As Reclamações foram parcialmente deferidas, por despachos de 17 de dezembro de 2020, anulando-se os despachos de deferimento parcial anteriores, nos moldes que se transcrevem parcialmente, na parte relevante para as questões sob análise: 

“[…]

II – Da revogação do ato

1. Em 31/07/2020, o contribuinte apresentou reclamação graciosa contra a liquidação do IRS de 2019.

2. Em 06/10/2020, foi proferido despacho de deferimento parcial do pedido pela Diretora de Finanças da ... .

3. A fim de dar cumprimento ao estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT e conforme também determinado no citado despacho, foi remetido ao contribuinte o projeto de decisão relativo a essa reclamação, para, querendo, exercer o direito de audição, mediante o Ofício n.º ..., de 7 de outubro de 2020 e carta registada n.º RF...PT, da qual se considerou notificado no dia 12 desse mês, nos termos do n.º 1 do artigo 39.º do CPPT.

4. Em 30/10/2020, mediante proposta nesse sentido, a Diretora de Finanças da ... proferiu despacho de deferimento parcial nos termos anteriormente projetados dado o contribuinte não ter exercido o direito de participação dentro do prazo previsto.

5. Através do Ofício n.º..., de 30/10/2020, foi enviado ao contribuinte o despacho de decisão mediante carta registada com aviso de receção.

6. Em 06/11/2020, a Advogada D..., veio exercer o direito de participação sobre o projeto de decisão em nome do sujeito passivo e esposa – carta registada n.º RH...PT-, alegando para o efeito a sua tempestividade, segundo o previsto no artigo 88.º do CPA, o qual prevê uma dilação de 15 dias para início da contagem do prazo concedido decorrente do facto do interessado residir no estrangeiro (neste caso em França).

7. Uma vez que a esse direito de audição não se fazia acompanhar de qualquer documentação apensa, muito embora nele seja referido que em anexo seguiam 6 documentos e a respetiva procuração, através do Ofício n.º ..., de 16/11/2020, foi solicitado à mandatária o envio da mencionada documentação no prazo de 10 dias.

8. Em 03/12/2020, por correio eletrónico, a Dr.ª D..., veio juntar aos autos uma procuração emitida pelo sujeito passivo e outra pela sua esposa, conferindo-lhe poderes de representação.

9. Posto isto, em momento anterior à pronúncia sobre o mérito dos fundamentos de defesa contra o projeto de decisão importa reconhecer que, efetivamente, aquando da emissão da proposta de decisão final de deferimento parcial da reclamação onde se considerou que o contribuinte não exerceu o direito de participação, apenas foi considerado o prazo de 15 dias resultante da conjugação dos artigos 60.º, n.º 6 da LGT, 38.º, n.º 3 e 39.º, n.º 1, ambos do CPPT.

10. Todavia, como agora se constata, em momento anterior à emissão dessa proposta final deveria ter sido também levado em linha de conta a dilação de 15 dias prevista no artigo 88.º do CPA para início da contagem do prazo de exercício daquele direito.

11. Assim não tendo sucedido, tal omissão acaba por ter repercussão na tomada de decisão final do procedimento, inquinando-a de vício, devendo por isso ser anulada nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA, aqui aplicável subsidiariamente por força do tipificado na alínea c) do artigo 2.º da LGT.

12. Com efeito, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 79.º da LGT, 163.º, n.º 2 e 168.º, n.º 1, ambos do CPA, deverá ser revogado o despacho proferido em 30/10/2020, que decidiu pelo deferimento parcial da reclamação.

13. E assim, admitindo que a proposta assinalada é aceite, norteados pelos princípios da celeridade e economia processual, é chegado o momento de proceder à análise concreta do direito de audição exercido.

Posto isto, vejamos:

III – DIREITO DE AUDIÇÃO

14. Do exercício do direito de audição resulta, em síntese, o seguinte:

         a) “…Os reclamantes não se conformam com a intransigência da AT em se recusar a efetivar, contra todas as evidências, a justa correção do valor de realização.”

         b) Mantêm a pretensão de “ver reconhecido o valor efetivo da transação que concretou a venda do prédio pelos valores reias, devendo este ser o valor a considerar e não os VPT.”;

         c) Os requerentes não lançaram mão do procedimento contemplado no artigo 139.º, n.º 1 do CIRC por desconhecerem a sua existência;

         d) Confiaram que o seu representante trataria devidamente do assunto o que não sucedeu; 

         e) Como consequência são confrontados com liquidações de IRS totalmente desfasadas da realidade, que em obediência ao princípio da tributação pelo rendimento real deverão ser prontamente revogadas;

         f) Nesse contesto, “deverá a AT convolar a presente reclamação graciosa em procedimento de prova do rendimento real e, assim, retificar, como é de justiça, os valores de realização, erradamente inscritos na declaração de IRS pelo representante fiscal para efeitos de mais-valia.”;

         g) Sem conceder, caso assim não se entenda, “deve aplicar-se o regime de apuramento e tributação das mais-valias resultantes da venda de bens imóveis situados em Portugal, isto é: o saldo positivo é tributado em 50% à taxa aplicável de acordo com as regras em vigor.”

O contribuinte conclui solicitando a anulação da liquidação do IRS de 2019 com todas as consequências legais daí decorrentes.

IV – ANÁLISE DA RESPOSTA

15. Elencados os argumentos apresentados pelo reclamante cumpre começar por se reiterar o seguinte:

16. Muito embora o contribuinte reconheça a aplicabilidade do artigo 139.º do CIRC e apesar de fundamentar de direito a sua pretensão baseado em vários princípios, a verdade é que nada refere como pode a AT ignorar a existência desse comando legal.

17. Dito isto, convém começar por relembrar os motivos pelos quais esse esse instituto tem forçosamente de ser observado.

18. Desta feita, atente-se ao facto do artigo 44.º, n.º 1, alínea f) do CIRS, prever que para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se valor de realização o da respetiva contraprestação acrescentando, porém, o n.º 2, que tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de IMT ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser caso fosse devida.

19. Muito embora essa previsão, o n.º 5 admite a possibilidade de afastar o estatuído no n.º 2. 

20. Designadamente, quando o sujeito passivo faça prova de que o valor de realização foi inferior ao ali previsto.

21. Contudo, segundo o n.º 6 da mesma norma, a realização dessa prova obedece a um procedimento específico tipificado no artigo 139.º do CIRC, a aplicar com as necessárias adaptações em sede de IRS.

22. Estabelecida essa ligação, contempla o n.º 1 do artigo 139.º do CIRC que “O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis”.

23. Na prática, o n.º 2 do artigo 64.º do CIRC encerra uma previsão legal semelhante à estatuída no n.º 2 do artigo 44.º do CIRS, daí a necessidade de aplicação das tais “necessárias adaptações”.

24. Acrescentando o n.º 3 desse artigo 139.º que “A prova referida no n.º 1 deve ser efetuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e APRESENTADO EM JANEIRO DO ANO SEGUINTE ÀQUELE EM QUE OCORRERAM AS TRANSMISSÕES, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos” (maiúsculas nossas).

25. O n.º 5 seguinte determina que a tramitação do procedimento segue, também com as necessárias adaptações, o regime previsto nos artigos 91.º e 92.º da LGT.

26. Depois, o n.º 7 do mesmo artigo disciplina o seguinte: “A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correções efetuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, NÃO HAVENDO LUGAR A RECLAMAÇÃO GRACIOSA” (maiúsculas nossas).

27. Aqui chegados e para que não restem dúvidas quanto à obrigatoriedade de observância do mecanismo elencado por parte da AT tem-se nesta fase a acrescentar o seguinte:

28. No âmbito das suas competências e conduta a AT está intrinsecamente vinculada ao princípio da legalidade - nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8.º e 55.º da LGT e 3.º do CPA, aplicável ex vi. alínea d) do artigo 2.º do CPPT-, o qual constitui o fundamento, o critério e o limite de toda atuação administrativa, delimitada quer na sua vertente negativa quer positiva.

29. A vertente negativa, expressa no princípio de prevalência da lei, traduz-se num dever intrínseco dos atos da administração se conformarem com as leis, sob pena de ilegalidade.

30. E na vertente positiva, consubstanciada no princípio da precedência da lei, onde se tem que a administração só pode atuar mediante autorização da lei.

31. Dito de outro modo, conforme refere o Professor Freitas do Amaral, In Curso de Direito Administrativo, Volume II, página 42-43, “a lei não é apenas um limite à atuação da Administração: é também o fundamento da ação administrativa. Quer isto dizer que, não há um poder livre de a administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrário, vigora a regra de que a administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permita que faça”.

32. Sendo mais impressivos nesta matéria se dirá, parafraseando António Francisco de Sousa em Código do Procedimento Administrativo Anotado, que o princípio da legalidade não admite que seja possível à Administração fazer tudo o que a lei não proíbe, antes impõe que apenas lhe seja possível aquilo que positivamente lhe seja permitido.

33. No seguimento do perscrutado, tem de se concluir que não pode a AT ignorar de forma alguma a previsão legal contida no artigo 139.º do CIRC, sob pena de grosseira violação da lei, motivo pelo qual deve manter a posição já revelada no projeto de decisão.

34. Isto é, considerando que o contribuinte não apresentou em janeiro do corrente ano o requerimento previsto no n.º 3 do artigo 139.º do CIRC, está-lhe vedada a possibilidade de patentear na declaração e assim ver refletido na liquidação os valores efetivamente utilizados na transação devendo manter-se os do VPT à data da alienação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 44.º, n.º 1, alínea f), n.º 2, 5 e 6, do CIRS, 139.º, n.º 1, n.º 3 do CIRC.

35. É este, e só pode ser este, o contexto de facto e de direito em que deve ser tratada a presente situação, não colhendo por isso a argumentação do contribuinte, mesmo a assente no princípio da tributação pelo rendimento real, o qual se aplica a pessoas coletivas – o que manifestamente não é o caso – e ainda assim admite exceções (é neste sentido que vem uniformemente decidindo, há muito tempo, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores).

36. Pelos mesmos motivos - e como melhor se explicou ainda no projeto de decisão - está vedada à AT a possibilidade de convolar oficiosamente a presente reclamação no pedido previsto no n.º 3 do artigo 139.º do CIRC, dada a sua intempestividade para esse efeito.

37. Por fim, já em sede de direito de audição sobre o projeto de decisão, a contribuinte vem requerer, pela primeira vez, a tributação do saldo positivo das mais valias apuradas apenas em 50% “de acordo com as regras em vigor”.

38. Acrescentando neste segmento que, um entendimento diverso consubstancia uma inaceitável violação do princípio da não discriminação, já reconhecida pelos Tribunais Portugueses e de Justiça, ao pronunciarem-se no sentido de não poder haver um tratamento diferente dos ganhos obtidos por não residentes na venda de bens situados em Portugal, “o que manifestamente não sucedeu, no caso dos autos”.

39. Ora, quanto a este novo pedido só agora formulado tem-se a comentar o seguinte:

40. O regime legal em apreço encontra-se consagrado no artigo 17-A do CIRS, o qual estatui no seu n.º 1 que “Os sujeitos passivos residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu com o qual exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, quando sejam titulares de rendimentos obtidos em território português, que representem, pelo menos, 90 % da totalidade dos seus rendimentos relativos ao ano em causa, incluindo os obtidos fora deste território, podem optar pela respetiva tributação de acordo com as regras aplicáveis aos sujeitos passivos não casados residentes em território português com as adaptações previstas nos números seguintes.”

41. Em complemento, disciplina ainda o artigo 72.º, n.º 13 do CIRS (na versão vigente a 31/12/2019) que os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos em apreço, pela tributação desses à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

42. Continuando no n.º 14: “Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”

43. A opção (e não a obrigação) assinalada deve ser exercida na “folha de rosto” da Declaração Modelo 3 do IRS, onde se encontra o espaço próprio para o efeito (Quadro 8 – Residência fiscal, Campos 8 e 10).

44. E exercida essa opção o contribuinte tem, obrigatoriamente, de indicar o total de rendimentos obtidos no estrangeiro (Campo 11).

45. Só que, no presente caso, nada disso sucedeu. 

46. Na verdade, ao preencher essa declaração e mais concretamente o Quadro 8, o contribuinte escolheu ser tributado pelo regime geral (Campo 7) em detrimento da “Opção pelas regras dos residentes - art.º 17.º-A do CIRS”.

47. Por conseguinte, se por um lado o exercício do direito de participação não é o meio próprio para formular o pedido em crise, por outro, não houve por parte da AT qualquer discriminação ao respeitar essa opção e, no limite, por também desconhecer o montante dos rendimentos obtidos no estrangeiro.

48. Antes, pelo contrário, esta, na emissão da liquidação, limitou-se a respeitar a opção exercida pelo contribuinte, motivo pelo qual nenhum erro lhe pode ser imputado.

V – Conclusões e proposta de decisão

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões e proposta:

a) O direito de participação exercido pelo contribuinte em 06/11/2020, sobre o projeto de decisão da reclamação é tempestivo, segundo resulta das disposições conjugadas dos artigos 60.º, n.º 6 da LGT, 38.º, n.º 3 e 39.º, n.º 1, ambos do CPPT e 88.º do CPA;

b) Por esse motivo, a decisão final tomada em 30/10/2020, mediante proposta nesse sentido, sem observar a dilação do prazo prevista no artigo 88.º CPA, deve ser expurgada e substituída;

c) Tal como se propôs no projeto de decisão, os valores de aquisição a ter em conta para efeitos de apuramento das mais-valias obtidas pelo sujeito passivo em 2019, resultantes da venda do prédio em contenda, deverão ser os apurados pela AT aquando da primeira inscrição das frações na respetiva matriz, conforme determina o artigo 46.º, n.º 3 do CIRS e pretende o reclamante;

d) Também na vereda do proposto anteriormente, quanto aos valores de realização a considerar no mesmo apuramento, uma vez que o contribuinte não apresentou em janeiro do corrente ano o requerimento previsto no n.º 3 do artigo 139.º do CIRC, está-lhe vedada a possibilidade de patentear na declaração e assim ver refletido na liquidação os valores efetivamente utilizados na transação devendo manter-se os do VPT à data da alienação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 44.º, n.º 1, alínea f), n.º 2, 5 e 6, do CIRS, 139.º, n.º 1, n.º 3 do CIRC;

e) Em igual medida, considerando o tipificado no n.º 7 do artigo 139.º do CIRC, o contribuinte está impossibilitado de utilizar a presente reclamação como meio para fazer prova e evidenciar na declaração os valores efetivamente recebidos nas respetivas transmissões dos imóveis, uma vez que este procedimento de reclamação para além de não ser o legalmente admissível para o efeito é absolutamente proibido por esta previsão legal;

f) Não cabe à AT, quando confrontada com o pedido apenas em direito de audição sobre o projeto de decisão da reclamação, obrigar o contribuinte a aderir ao “Regime opcional para os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu” contemplado no artigo 17-A e 72.º do CIRS, se a opção por si exercida aquando do preenchimento da declaração foi em sentido diverso.

Nestes termos, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 79.º da LGT, 163.º, n.º 2 e 168.º, n.º 1, ambos do CPA, deverá ser revogado o despacho proferido em 30/10/2020, através do qual se indeferiu a reclamação em juízo e deferida parcialmente a mesma com base nos fundamentos agora propostos.” – cf. procedimento de Reclamação Graciosa, PA10 a 13 (transcreve-se apenas a fundamentação da decisão relativa ao Requerente, por ser idêntica à da decisão proferida em relação à Segunda Requerente).

N.     As decisões de deferimento parcial das Reclamações Graciosas, foram notificadas aos Requerentes por ofícios datados de 17 de dezembro de 2020, rececionados em 22 de dezembro de 2020 – cf. Documentos 5 e 6 juntos pelos Requerentes. 

O.     Inconformados com os atos de liquidação de IRS acima identificados relativos ao ano 2019 e com o deferimento parcial das Reclamações Graciosas que os tiveram por objeto, os Requerentes apresentaram junto do CAAD, em 4 de junho de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD. 

P.      Por despacho de 16 de julho de 2021, da Subdiretora Geral da Direção de Serviços de IRS, foram parcialmente revogados os atos tributários impugnados, tendo em consideração o seguinte:

“[…]

xviii) Ora, face a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos termos do n.º 4 do artigo 68.º-A da LGT, cumpre referir que por despacho 177/2021.XXII, de 04.06.2021, do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais, foi determinado que a AT adotasse, caso a caso, nos procedimentos administrativos e processos judiciais pendentes, o seguinte entendimento:

“considerar aplicável aos sujeitos passivos não residentes que optaram pelo regime geral. A regra de limitação de tributação a 50% do saldo das mais-valias imobiliárias, mantendo a respetiva tributação pelo regime regra previsto na alínea a) do n.0 1 do artigo 72.0 do Código do IRS, ou seja, a tributação autónoma à taxa específica de 28%”.

xix) Pelo que, pese embora os contribuintes não terem optado pela tributação de acordo com as taxas gerais do artigo 68.º do Código do IRS, entende-se ser de atender ao procedimento definido pelo SEAF, devendo aplicar-se à liquidação de IRS do ano 2019 a regra de limitação de tributação a 50% do saldo das mais-valias imobiliárias. 

IV – Conclusão 

Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que devem ser parcialmente revogados os atos de liquidação do IRS do ano 2019, limitando-se a tributação a 50% do saldo das mais-valias imobiliárias auferidas pelos contribuintes não residentes.” – cf. documento registado no SGP do CAAD em 22 de julho de 2021. 

Q.     Em consequência foram emitidos novos atos de liquidação de IRS, em substituição dos anteriores:

(i)    Para o Requerente, a Liquidação n.º 2021 ..., no valor a pagar de € 23.424,28 – cf. documentos juntos pela Requerida por requerimento de 3 de novembro de 2021, registado no SGP em 4 de novembro. 

(ii)  Relativamente à segunda Requerente, a Liquidação n.º 2021..., no valor a pagar de € 23.637,43 – cf. documentos juntos pela Requerida por requerimento de 7 de dezembro de 2021, registado no SGP em 9 de dezembro. 

 

2.       Fundamentação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT. 

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica dos documentos juntos aos autos por ambas as Partes, conforme referenciado em relação a cada facto atrás enumerado, e na posição consensual por estas assumidas em relação aos mesmos, sendo o dissídio de eminentemente de direito. 

 

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados. 

 

 

IV.   Do Direito

 

1.       Inutilidade Superveniente da Lide (Parcial)

 

            A Requerida veio dar razão aos Requerentes, no que se refere à consideração do saldo das mais-valias em apenas 50%, com aplicação da taxa de 28%, prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS, procedendo, na pendência dos presentes autos, à anulação administrativa dos atos tributários de liquidação de IRS aqui impugnados, com reedição de novos atos em conformidade, nos moldes constantes da matéria de facto supra fixada. 

 

Desta forma, o objeto da ação ficou circunscrito ao tema da prova do preço efetivo de transmissão dos imóveis, verificando-se uma inutilidade superveniente parcial da lide em relação ao segmento remanescente, anulado pela AT, em conformidade com o disposto no artigo 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que determina que a instância se extingue com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide têm lugar quando, nomeadamente, desaparece o objeto do processo, se extingue um dos interesses em conflito em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, ou a decisão a proferir já não tem qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante pretende fazer valer no processo, ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio. 

 

No caso concreto, em relação ao valor das liquidações que foi anulado, está  preenchida a condição prevista para a extinção da instância por inutilidade superveniente, sem prejuízo subsistir o interesse em relação ao pedido de indemnização, em relação ao qual o despacho de anulação parcial das liquidações é omisso. Em consequência, na parte em que a presente ação arbitral se funda na causa de pedir respeitante ao excesso do saldo de mais-valias sujeito a tributação e à taxa de 28%, declara-se extinta a instância processual[1], por já ter sido alcançado, de outra forma, o fim visado com a ação, nos moldes do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do citado artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT, ficando, nessa medida, prejudicado o seu conhecimento, por este Tribunal. 

 

Acresce, por fim, assinalar que o artigo 20.º, n.º 1 do RJAT contempla a modificação objetiva da instância quando, na pendência do processo, sejam substituídos os atos objeto de pedido de decisão arbitral, como sucede nos presentes autos, prosseguindo a ação contra os novos atos, conforme manifestado nesse sentido pelos Requerentes (v. artigo 64.º do CPTA).  

 

2.       Inimpugnabilidade – Omissão do Procedimento de Prova do Preço Efetivo da Transmissão dos Imóveis

 

Em relação às liquidações de IRS contestadas, na parte mantida, discute-se a fixação do VPT como valor de realização das transmissões de bens imóveis, prevista no artigo 44.º, n.º 2 do Código do IRS, para efeitos de cálculo das mais-valias sujeitas a este imposto, quando o VPT seja superior ao valor da contraprestação declarada. Estamos, neste âmbito, perante uma prescrição anti-abuso que tem implícita a assunção, geralmente correta (embora nem sempre), de que o VPT é inferior aos preços transacionais praticados. 

 

Este regime cede, porém, se os contribuintes lograrem demonstrar que o valor efetivo da transmissão dos imóveis foi inferior ao dos respetivos VPT, pelo que o artigo 44.º, n.º 2, conjugado como os seus n.ºs 5 e 6, constitui uma norma de direito probatório material, consagrando uma inversão do ónus da prova, que passa a impender sobre o sujeito passivo, e não sobre a AT ao contrário do que alegam os Requerentes. 

 

Para este efeito, i.e., para afastamento da presunção, o legislador optou por consagrar, um procedimento próprio, remetendo o artigo 44.º, n.º 6, com as necessárias adaptações, para a disciplina de prova prevista no artigo 139.º do Código do IRC, preceito gizado para as situações similares (de consideração do VPT como valor de realização em vez do valor declarado quando este seja inferior àquele) do artigo 64.º do Código do IRC, que vigora para as pessoas coletivas e entes equiparados. 

 

Este procedimento específico deve ser requerido ao Diretor de Finanças competente no decurso do mês de janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões (n.º 3 do artigo 139.º do Código do IRC), dependendo a impugnação da liquidação da prévia apresentação deste pedido, não havendo lugar a Reclamação Graciosa (n.º 7 do mesmo artigo). 

 

Ressalta do exposto que o legislador consagrou um mecanismo administrativo especial, afastando ex professoa Reclamação Graciosa, para que os contribuintes possam ilidir a presunção legal do artigo 44.º, n.º 2 do Código do IRS, instituindo-o como condição prévia da impugnabilidade do ato a liquidar que daí resulte. Aliás, a própria Requerida o refere na decisão de (in)deferimento parcial das Reclamações Graciosas, apontando que o artigo 139.º, n.º 7 do Código do IRC, para o qual remete o citado artigo 44.º, n.º 6 do Código do IRS, proíbe que a Reclamação Graciosa seja utilizada como meio para fazer prova do preço efetivamente pago nas transmissões dos imóveis. 

 

No caso concreto, os Requerentes, como os próprios reconhecem, não apresentaram qualquer requerimento no decurso do mês de janeiro de 2020, tendo em vista a prova do preço efetivo da transmissão de imóveis ocorrida em 2019, tendo em vista a elisão da presunção consagrada no artigo 44.º, n.º 2 do Código do IRS. O impulso procedimental dos Requerentes surge apenas com a submissão das Reclamações Graciosas dos atos de liquidação de IRS, apresentadas em 31 de julho de 2020, muito depois de expirado o prazo do meio próprio (que não as Reclamações) para a mencionada prova, pelo que nem sequer a possibilidade de convolação poderia ser equacionada, dado o decurso do prazo (v. artigo 52.º do CPPT). 

 

A responsabilidade pelo cumprimento dos deveres tributários, principais (prestativos) e acessórios (declarativos), é, nos termos legais, dos sujeitos passivos e demais pessoas designadas por lei (v. artigos 31.º e 18.º da LGT[2]), não podendo ser transferida, com oponibilidade ao credor tributário, para terceiras entidades, nem podem ser modificados os elementos essenciais da relação jurídica tributária por vontade das partes (v. artigo 36.º, n.º 2 da LGT). Assim, a nomeação de procurador, pelos Requerentes, com poderes para atos de administração do imóvel e para a representação daqueles perante entidades públicas, não afasta nem altera o regime jurídico-tributário descrito.    

 

A demonstração do preço efetivo ou real da transmissão de direitos reais, no caso concreto, não pode, nem deve ser feita nesta sede arbitral, quando os Requerentes não acionaram o procedimento especificamente previsto para esse efeito e que o legislador consagrou, como acima dito, como condição de procedibilidade do meio contencioso para discutir tal questão, nos termos do disposto no artigo 139.º do Código do IRC. 

 

Este entendimento tem sido reiterado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de que se retiram os seguintes excertos ilustrativos: 

 

I - Para determinação do lucro tributável do vendedor e do comprador deve ser tido em conta o valor resultante da fixação do VPT de um prédio quando seja inferior ao estipulado no contrato de compra e venda, constituindo uma presunção de rendimentos o valor constante do contrato que lhe seja inferior, art.º 64, do CIRC

II - Por não serem admitidas nas normas de incidência tributária presunções inilidíveis - art. 73.º da LGT - o legislador estabeleceu no CIRC um procedimento no seu art. 139.º para prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário permitindo que aí se faça a ilisão de tal presunção.

III - Tal procedimento é accionado pelo sujeito passivo e, como indica o n.º 5 do art. 139.º do CIRC rege-se pelo disposto nos artigos n.º 4 do artigo 86.º 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações.

IV- Este procedimento constitui condição necessária à abertura da via contenciosa, n.º 7 do art. 130.º do CIRC.

V - O sujeito passivo de imposto sobre o rendimento pode utilizar os seguintes meios contenciosos: impugnação judicial do acto que fixou o valor patrimonial tributário do imóvel; acção administrativa especialpara sindicar a legalidade do acto final do procedimento tributário que instaurou com vista à prova do preço efectivo da transmissão; impugnação judicial do acto de liquidação de IRC, art. 58º-A do CIRC ao abrigo do mesmo preceito legal, com fundamento em qualquer ilegalidade ou erro praticado no procedimento destinado à prova do preço efectivo, podendo oferecer qualquer meio de prova adequado à demonstração do preço efectivamente praticado.

VI - A sentença que analisou detalhada e acertadamente a suscitada questão da condição de procedibilidade, ao fazê-lo, após ter indicado que o processo era o próprio, estava implicitamente a decidir que se não verificava qualquer erro na forma de processo porque as questões a dirimir poderiam ser conhecidas no processo em que estava a ser proferida.” – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de março de 2016, processo n.º 0820/15. 

 

A apresentação atempada do pedido para demonstração do preço efetivo (instauração do procedimento), previsto no n.º 3 artigo 129.º do CIRC (actualmente, artigo 139.º do CIRC), é condição de procedibilidade da impugnação judicial quando nesta se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis.” – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de novembro de 2019, processo n.º 0264/09.4BELRA 0806/15. 

 

Também a decisão arbitral proferida no processo 650/2020-T, de 9 de novembro de 2021, em situação idêntica relativa ao IRC, se pronuncia neste sentido:

 

“15.            […]

«(…) A consideração do VPT para efeito de determinação do lucro tributável em IRC, quando o valor constante do contrato seja inferior, constitui uma presunção de rendimentos. Não obstante, esta presunção pode ser ilidida mediante o procedimento previsto no art. 139.º.

(…) Deste modo, o legislador criou um procedimento em ordem a permitir ao sujeito passivo de IRC demonstrar que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT e, assim, afastar a presunção resultante do referido art. 64º do CIRC.

(…)

Este procedimento constitui condição necessária à abertura da via contenciosa, como resulta expressamente do n.º 7 do art. 139.º do CIRC, ou seja, o procedimento previsto no n.º 3 do art. 139.º do CIRC, que visa a demonstração pelo sujeito passivo de que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT, constitui uma condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis – neste sentido, vide Acórdão do STA de 06-02-2013, proc. nº 0989/12.»

16.  O legislador consagrou um mecanismo administrativo próprio para que os contribuintes pudessem ilidir a presunção legal, considerando condição prévia da impugnabilidade do ato a liquidar que daí resultasse.

17.  Não existe, neste caso concreto, um mecanismo enquadrado no âmbito do procedimento judicial arbitral para se ilidir a presunção em causa.

18.  Sucede que, nos presentes autos, a Requerente pretende demonstrar e comprovar que o preço efetivamente pago na transmissão dos imóveis é o constante da escritura de compra e venda e não o resultante das correções levadas a cabo pela AT, para daí retirar as devidas consequências quanto ao ato de liquidação de IRC.

19.  É facto que este valor está na génese da liquidação do IRC do exercício de 2016, mas é facto, igualmente, e verdadeiro, que este valor poderia ser o que a Requerente pretende agora fazer prova se tivesse diligenciado e acionado o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC.

20.  Procedimento este que foi previsto pelo legislador precisamente com esse propósito: prova do preço efetivo, nestas circunstâncias em que a alienação de bens imóveis é feita por um valor inferior ao VPT fixado.

21.  Se a Requerente tivesse acionado este procedimento que se «rege pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da LGT, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 86.º da mesma Lei», estaria agora em condições para vir, através do presente pedido de pronúncia arbitral, discutir a alegada (i)legalidade do ato tributário de IRC do ano de 2016, bem como, a alegada (i)legalidade do procedimento, caso não tivesse sido alcançado um valor por acordo dos peritos. 

[…]

  24.  Face ao exposto, não tendo a Requerente dado início ao procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, mediante o qual poderia fazer a prova do preço efetivamente pago na transmissão dos bens imóveis em causa nos presentes autos, não pode agora vir fazê-lo, nesta sede, nem poderá impugnar a legalidade do ato de liquidação de IRC, razão pela qual procede a exceção invocada quanto à «inimpugnabilidade do ato/correções relativas à diferença positiva entre o valor patrimonial definitivo do imóvel e o valor constante do contrato», sendo, consequentemente, a Requerida absolvida do pedido, nos termos do artigo 576.º/1 e 2 e artigo 579º do CPC, ex vi artigo 2.º- e) do RJAT.

 

À face do exposto, relativamente ao segmento das liquidações de IRS do ano 2019 que não foi anulado, de € 23.424,28, para o Requerente, e de € 23.637,43, para a Segunda Requerente, julga-se verificada a exceção da inimpugnabilidade desses atos, ao abrigo do disposto nos artigos 44.º, n.ºs 2, 5 e 6 do Código do IRS, 139.º, n.ºs 3 e 7 do Código do IRC, 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea i) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, que constitui exceção dilatória que obsta a que este Tribunal Arbitral conheça do mérito da causa, conduzindo à absolvição da Requerida da instância (v. artigo 576.º, n.º 2) do CPC, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). 

 

3.       Questões de Conhecimento Prejudicado

 

Nestes termos, fica prejudicado o conhecimento e a apreciação das demais ilegalidades imputadas aos atos de liquidação impugnados (v. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), com ressalva dos pedidos dependentes relativos à parte das liquidações anuladas administrativamente (ISL), objeto do ponto seguinte. 

 

4.       Juros Indemnizatórios 

 

Na parte em que ocorreu a impossibilidade superveniente da lide, sendo o ato anulatório omisso sobre a pretensão indemnizatória oportunamente deduzida, o Tribunal pode dela conhecer.

 

Este entendimento deriva de a eficácia retroativa da anulação (neste caso, em relação a uma parte dos argumentos dos Requerentes) dos atos de liquidação não ter a virtualidade de eliminar todos os efeitos lesivos que foram produzidos pelos atos tributários, durante o período de tempo que precedeu a anulação, designadamente no que se refere à privação dos meios financeiros. Assim, se a remoção dos atos de liquidação (ou da parte inquinada) não for acompanhada da regulação da situação que existiria se não tivessem sido praticados, ou seja da atribuição de juros indemnizatórios (ou de indemnização por prestação de garantia se for o caso), então, nessa medida o processo pode prosseguir para acautelar a pretensão acessória suscitada pela emissão de tais atos ilegais que, apesar de anulados, existiram e produziram efeitos lesivos.

 

Os Requerentes peticionam como decorrência da ilegalidade dos atos de liquidação de IRS o cancelamento das penhoras e a condenação da AT no pagamento de indemnização, tendo em conta o cálculo de juros que deixaram de auferir e a falta de acesso aos fundos até ao integral cancelamento das penhoras. 

 

Em relação à pretensão de cancelamento das penhoras trata-se de matéria respeitante ao processo de execução fiscal, excluído da competência dos Tribunais Arbitrais, que se circunscreve à apreciação da legalidade de atos de liquidação, nos termos do disposto no artigo 2.º do RJAT, pelo que da mesma não cumpre conhecer. 

 

No tocante à condenação da AT ao pagamento de indemnização, tal pedido é interpretado por este Tribunal de forma restrita, como respeitante ao pagamento de juros indemnizatórios, não dispondo a jurisdição arbitral de competência para o conhecimento de outras pretensões indemnizatórias. 

 

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deve entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial[3]”. 

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação (cassatório) de atos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, que estabelece serem “devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, nos termos do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT, ou seja, contando-se o prazo de pagamento “a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

 

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estabelecer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Apreciando a situação concreta dos autos, é aplicável o disposto no artigo 43.º, n.º da LGT, que postula o direito a juros indemnizatórios conquanto se verifiquem dois pressupostos fundamentais. O primeiro prende-se com a verificação de erro imputável aos serviços e o segundo ao pagamento da prestação tributária em montante superior ao legalmente devido.  

 

Em linha com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente nos Acórdãos proferidos nos processos n.º 574/14, de 7 de janeiro de 2016, e n.º 1101/16, de 3 de maio de 2017, a anulação pela AT dos atos tributários por desconformidade material com a lei é, por si só, demonstrativa de erro imputável aos serviços determinante do pagamento de juros. Neste ponto, tem-se por demonstrado o pressuposto do erro.

Suscita-se, porém, a questão relativa ao segundo pressuposto que é o de ter sido paga a prestação tributária. No caso concreto, o imposto não foi pago, o que motivou precisamente a adoção de atos de apreensão patrimonial para garantia da dívida exequenda concretizada na penhora de depósitos bancários. Deste modo, não se pode considerar cumprida a segunda condição constante da previsão do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, não assistindo aos Requerentes o direito a juros indemnizatórios.

 

Tal não significa que a ilegal privação transitória das quantias apreendidas pela penhora não tenham causado prejuízo aos Requerentes, porém, a aferição do direito ao seu ressarcimento e da medida do mesmo são matéria cuja apreciação não pode ser realizada num processo de natureza cassatória, como é o arbitral, devendo ser colocada em sede própria, nos Tribunais competentes, por via da correspondente ação de responsabilidade civil (extracontratual) do Estado. 

 

 Improcede, assim, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios. 

 

 

V.         Decisão 

 

            À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

a)      Julgar parcialmente extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, em relação à parte das liquidações de IRS do ano 2019 dos Requerentes que foi anulada e improcedente o pedido de juros indemnizatórios correspondentes; 

b)      Julgar procedente a exceção de inimpugnabilidade dos atos tributários relativamente à parte do valor das liquidações de IRS do ano 2019 que foi mantido, na importância de € 23.424,28 (Requerente) e € 23.637,43 (Segunda Requerente), perfazendo o total de € 47.061,71, com a consequente absolvição da Requerida da instância, neste segmento;

c)      Condenar a Requerida nas custas processuais em relação à parte das liquidações que foi administrativamente anulada, na proporção de 48%, por, nesta medida, ter dado causa à ação, e condenar a Requerente nas custas da parte remanescente, de 52%,

tudo com as legais consequências. 

 

 

VI.      Valor do Processo 

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 89.763,67, indicado pela Requerente e não impugnado pela Requerida, correspondente à utilidade económica do pedido de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

 

VII.    Custas 

            

            Custas no montante de € 2.754,00, a suportar pela Requerente, no valor de € 1.432,08 (52%), e pela Requerida na importância de € 1.321,92 (48%), na proporção do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. 

 

Lisboa, 22 de julho de 2022

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, Relatora

 

 

 

Ana Teixeira de Sousa

 

 

 

 

 

Rui Ferreira Rodrigues

 

 

 

 



[1] Extinção meramente parcial, pois a ação prossegue em relação ao segundo fundamento referente ao valor de realização aplicado e à prova do preço efetivo da transmissão dos imóveis. 

[2] Segundo o artigo 18.º, n.º 3 da LGT é sujeito passivo “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável”, dispondo o artigo 31.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma que constitui obrigação principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da dívida tributária, sendo obrigações acessórias deste, “designadamente, as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações”.

[3] Esta autorização legislativa refere ainda a ação para o reconhecimento de um direito, no entanto, esta forma processual acabou por não ser implementada na jurisdição arbitral pelo RJAT.