Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 824/2019-T
Data da decisão: 2020-04-21  IRS  
Valor do pedido: € 41.555,66
Tema: IRS- Artigo 43º, nº 2 – Tributação de mais-valias resultantes da alienação de bem imóvel, realizada por residente num Estado-Membro da União Europeia; pedido de reenvio prejudicial.
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DECISÃO ARBITRAL

I-RELATÓRIO

 

1. A..., contribuinte fiscal nº ... residente em ..., ..., ..., ..., Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda no Norte, e B..., contribuinte fiscal nº..., residente em ..., ..., ..., ..., ..., Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, (doravante designados por Requerentes ou Sujeitos Passivos), vierem em 2019-12-03,  em coligação de autores e com cumulação de pedidos (admissíveis face ao disposto no artigo 3º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto  na alínea  a) do nº 1 do artigo 2º. 5º, nº 1, alínea a), 6º, nº 1, 10º nºs 1 e 2, e 3º, nº 1 todos do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante designado por RJAT), e artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por Requerida ou AT), com vista à declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IRS, respectivamente, nºs 2019..., no valor de 20.777,83 € e nº 2019..., no valor de 20.777,83 €, ambos referentes ao ano de 2018.

2. O pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, e notificado à Requerida em 2019-12-04.

3. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º do RJAT, por decisão do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, devidamente notificado às partes, nos prazos previstos, foi designado como árbitro o signatário, que comunicou àquele Conselho a aceitação do encargo no prazo previsto no artigo 4º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.

4. Em 2020-01-24 foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b) na redacção que lhes foi conferida pela Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

5. O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 2020-02-26, de acordo com a prescrição da alínea c) do artigo 11º do RJAT, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

6. Devidamente notificada para tanto, através de despacho proferido em 2020-02-26, a Requerida apresentou em 2020-04-03 a sua resposta, informando ainda que (artigo 4º) “tratando-se de impugnação direta dos actos de liquidação supra mencionados, os quais não foi sujeitos a nenhum procedimento administrativo (reclamação graciosa, pedido de revisão ou recurso hierárquico), não existem processos administrativos.)”

7. Por despacho proferido em 2020-04-06, devidamente notificado às partes que, fundamentou, para além do mais, a dispensa da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, e a dispensa da apresentação de alegações, foi indicada  como data previsível para  a prolação da decisão e sua notificação às partes o dia trinta de Abril de dois mil e vinte, advertindo-se os Requerentes no sentido  de procederem ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até dez dias antes do indicado prazo.

8. A fundamentar o seu pedido os Requerentes invocaram em síntese e com relevo para o que aqui importa o seguinte (que se menciona maioritariamente por transcrição);

8.1. Residem e trabalham no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte desde 2014 (cfr. artigo 10 do pedido de pronúncia arbitral e documentos 3 a 12 com o mesmo juntos),

8.2. O pai dos Requerentes faleceu em 27 de Julho de 2001, sendo os Requerentes os únicos herdeiros (cfr. artigo 12 do pedido de pronúncia arbitral e documento 13 com o mesmo junto),

8.3. Sendo titular dos seguintes bens;

 8.3.1. direito de superfície sobre a fração autónoma designada pelas letras “AH”, correspondente ao sexto e sétimos pisos, com entrada pelo nº ... de polícia, com o nº ... do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ... números ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., freguesia do ..., concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo ...,

8.3.2. zona destinada a parqueamento e zona de recreio dos condóminos do Bloco D1, D2, A e B, D2 C e D, D2 E e F, D3 e D4, sita no interior destes Blocos, freguesia do ... sob o artigo ... (cfr., artigo 13 do pedido de pronúncia arbitral e documento nº 14 com o mesmo junto),

8.4. Por via da sucessão coube a cada um dos Requerentes 1/3 dos bens acima mencionados, tendo sido atribuído ao imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo ... o valor de  € 14.132,61 e, ao imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo ..., o valor de € 920,65, os quais foram declarados como sendo o valor de aquisição reportado ao ano de 2001 nos anexos G das Declarações Modelo 3 – IRS 2018. (cfr., artigo 14 do pedido de pronúncia arbitral e documentos nºs 15 e 16 com o mesmo juntos),

8.5. A 13 de abril de 2018, os Requerentes alienaram a sua parte dos bens supra descritos pelo valor global de 320.000,00 € (cfr., artigo 15 do pedido de pronúncia arbitral e documento17 com o mesmo junto),

8.6.”(…) os Requerentes submeteram a respetiva declaração Modelo 3 de IRS de 2018, declarando no Anexo G, a alienação (das correspondentes quota-parte) pelo preço de realização 106.666,67 €, preço de aquisição 15.053,26 € e como total de despesas e encargos o valor de 12.589,83 €, tendo sido gerada uma mais valia de 74,206,53 €, sobre a qual incidiu a liquidação promovida pela AT à taxa de 28%.(cfr., artigos 17,  18, 19,20,21 e 22 do pedido de pronúncia arbitral e documentos nºs 1,2, 15 e 16 com o mesmo juntos)

8.7. Concluem os Requerentes o seu pedido no sentido de que “deve ser reconhecido que o ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS nº 2019..., [1] no valor de  Eur. 20.777,83 e o ato de liquidação de Imposto de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS Nº 2019..., no valor de Eur. 20.777,83, que [não] aplicou o referido artigo 43º, nº 2 do Código do IRS, incompatível com o disposto no artigo 63º do Tratado, [i]enferme de vício de violação deste último normativo, o que consubstancia ilegalidade, que justifica a sua anulação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 135º do Código do Procedimento Administrativo”.

9. Como já referido em 2020-04-03,a Autoridade Tributária e Aduaneira, apresentou a sua resposta, não tendo impugnado a matéria factual vertida no pedido de pronúncia arbitral apresentado pelos Requerentes, de que supra se deu conta, afirmando expressamente (artigo 5º) que: “analisado o pedido de pronúncia arbitral do Requerente nada temos a impugnar relativamente aos factos vertidos nos artigos 1º a 23º, devidamente comprovados pelos documentos juntos, sem prejuízo de impugnação posterior caso venham ao conhecimento da AT factos que de momento desconhece”.

10. Centra a AT o seu argumentário em torno das questões suscitadas pela alteração introduzida ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei nº 67-A/2007, de 31/12, e ao pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, questões que serão alvo de apreciação e decisão de mérito.

11. O Tribunal Arbitral Singular é materialmente competente, e encontra-se regularmente constituído nos termos do disposto nos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º e 6º do RJAT;

12. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, estão devida e legalmente representadas (artigos 3º,6º e 15º do Código de Procedimento e de Processo Tributária, ex vi, artigo 29º, nº 1, alínea a) do RJAT);

13. Não foram suscitadas excepções de que deve conhecer-se;

14. O processo não enferma de nulidades.

15. Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

II-FUNDAMENTAÇÃO

A.1. Factos dados como provados

Com relevo para a apreciação e decisão da questão suscitada, dão como provados e assentes os seguintes factos:

1. Os Requerentes residem e trabalham no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte desde 2014.

2. O pai dos Requerentes faleceu em 27 de Julho de 2001, sendo seus únicos herdeiros os Requerentes, sendo à data do falecimento, proprietário dos seguintes bens;

2.1- direito de superfície sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AH” correspondente ao sexto e sétimos pisos, com entrada pelo nº ... de polícia, com o nº ... do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ... números..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e..., freguesia do..., concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo ... .

2.2- zona destinada a parqueamento e zona de recreio dos condomínios do Bloco D1, D2, A e B, D2 C e D, D2 E e F, D3 e D4, sita no interior destes Blocos, freguesia do ... sob o artigo   ... . (cfr., documento nº 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

3. Por via sucessória veio a caber a cada um dos Requerentes 1/3 dos bens acima referidos, tendo sido atribuído ao referido em 2.1 o valor de 14.132,61 € e ao descrito em 2.2. o valor de 920,65 €.

4. Em 13 de Abril de 2018, os Requerentes alienaram a parte que lhes competia dos ditos bens pelo valor de 320.000,00 € (cfr. documento nº 17, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

5. Tendo assinalado nos respectivos Modelos 3 do IRS, relativo a 2018, como valor de aquisição 15.053,26 €, e de realização 106.666,67 €.

6. Tendo sido gerada um mais valia de 74.206,53 €.

7. Em resultado da qual a Administração Tributária procedeu à respectiva liquidação à taxa de 28% (20.777,83 €).

8. Em 28/08/2019 e 01/09/2019, os Requerentes procederam ao pagamento do imposto liquidada pela AT.

9. Em 03/12/2019 os Requerentes apresentaram junto do CAAD pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada.

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada  da não provado (cfr., artº 123º, nº 2 do CPPT, e artigo 670º, nº 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão (ões) de Direito (cfr., artigo 596º do CPCivil, aplicável ex vi artigo 29º, nº1, alínea e) do RJAT).

Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal  baseia a sua decisão em relação às provas produzidas na sua íntima convicção, formando a partir do exame  e avaliação que faz dos meios de prova aportados ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas (cfr. artigo 670º, nº 3 do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho).

Somente quando a força probatória de certos meios de prova se encontra pré-estabelecida na lei (vg, força probatória dos documentos autênticos) (cfr., artigo 371º, nº 3 do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio de livre apreciação.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110, nº 7 do CPPT, e a prova documental carreada para os autos consideram-se com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

 

B.DO DIREITO

-do reenvio prejudicial

 

Na resposta, e como já sinalizado (ponto 10 do Relatório), a AT sugeriu que a questão suscitada  no presente processo fosse objecto de reenvio prejudicial para resposta a proferir pelo TJUE.

Não tendo todavia, formulado quaisquer questões em concreto a submeter à apreciação e decisão do TJUE.

Como já tivemos oportunidade de expressar, [2] o reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União.

Por força do artigo 19º-3/b do Tratado da União Europeia e do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União e sobre a validade dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Os tribunais arbitrais integram o conjunto de tribunais nacionais como expressamente resulta do previsto no artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Enquanto tal, e no desempenho activo da sua função arbitral, atendendo à natureza excepcional do recurso da  decisão dos tribunais arbitrais em matéria tributária, o legislador nacional deixou expresso no preâmbulo do Decreto-Lei nº 10/2011, que “(…) nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é susceptível de reenvio prejudicial em cumprimento do § 3 do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

Não há dúvida pois, que em cado de dúvida sobre a interpretação de normas jurídicas de direito europeu o tribunal arbitral pode recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial.

Os tribunais nacionais são considerados como tribunais comuns da Ordem Jurídica da União Europeia, dado o número considerável de normas e de actos comunitários, constituídos por disposições directamente aplicáveis ou com efeito directo, cabendo aos tribunais nacionais dos Estados-Membros aplica-las nos litígios que lhes sejam submetidos para apreciação. Cabe pois, aos tribunais nacionais o dever de aplicar o direito comunitário, mesmo contra disposições de direito interno em sentido contrário.

Assim, para recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa. Pelo contrário, se o texto é perfeitamente claro, não se trata de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é da competência do Tribunal/Juiz/Árbitro incumbido da competência de julgar o caso concreto aplicando a lei, a nacional e/ou a comunitária se for esse o caso. Este entendimento é amplamente conhecido e defendido pela doutrina e pela jurisprudência como a “teoria do acto claro”.

Nesta conformidade, não antevendo dúvidas de interpretação que fundamentem o pedido de reenvio, nem tão pouco ter indicado a AT as questões concretas que pretenderia ver colocadas ao TJUE, decide-se rejeitar o pedido de reenvio prejudicial.

 

 

De igual modo, não se vislumbram razões significativas para a suspensão da instância dos presentes autos – sugerida pela AT – até à prolação de decisão por parte do TJUE, no âmbito do reenvio prejudicial suscitado no processo nº 598/2018-T, de 30-04-2019.

 

- a questão decidenda

 

A questão colocada no presente processo tem a ver, fundamentalmente, com a compatibilidade do Direito de União Europeia, mormente com a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no artigo 63º do Tratado de Funcionamento de União Europeia (TJUE), correspondente ao artigo 56º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, da não aplicação do regime de exclusão de tributação das mais-valias imobiliárias em 50%, de acordo com a previsão do artigo 43º, nº 2 do Código do IRS, a residentes fiscais noutro Estado-Membro da União Europeia.

Dito de outro modo, trata-se de saber, se a base de incidência em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, prevista nos supra indicados normativos, na medida em que poderá traduzir-se num regime fiscal menos favorável para os não residentes.

 

-o quadro normativo pertinente

 

Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 10º do CIRS “constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais de capitais ou prediais, resulte, de (…) alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.”

Determinando por seu turno a alínea a) do nº 4 do artigo 10º que o ganho sujeito a tributação corresponde à diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição, determinados estes, respectivamente, nos artigos 44º e 46º do CIRS.

Sendo o valor de aquisição corrigido pela aplicação do coeficiente de desvalorização monetária, acrescido dos encargos e despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação do imóvel, por determinação dos artigos 50º e 51º do CIRS.

Preceituando por seu turno o artigo 43º do CIRS o seguinte

Artigo 43º- Mais-Valias

“1. O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinados nos termos dos artigos seguintes:

2. O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efectuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do nº 1, positivo ou negativo, é

(…)

b) Apenas considerado 50% do seu valor (…)”

 

Prevendo ainda o artigo 72º, nº 1, alínea a) do CIRS que as mais-valias provindas de transmissões de imoveis sitos em Portugal e auferidas por não residentes, são tributadas à taxa de 28%.

Sendo que o artigo 63º do TJUE, inserto no Capítulo 4 – Os capitais e os pagamentos - (correspondente ao artigo 56º do Tratado que Instituiu a Comunidade Europeia) prescreve o seguinte:

“1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e Estados-Membros e países terceiros.

2. No âmbito das disposições do presente capítulo são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados Membros e países terceiros”.

Estabelecendo o artigo 65º do TFUE o seguinte:

“1. O disposto no artigo 63º não prejudica o direito dos Estados-Membros:

Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido,

Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativo ou estatística ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem púbica ou segurança pública.

2.O disposto no presente Capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com o presente Tratado.

3. As medidas e procedimentos a que se referem os nºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63º”.

Ainda a reter o disposto no artigo 18º do TJUE; “no âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação”.

 

Se, na verdade o Tratado não densifica o conceito de capitais, ínsito no normativo em causa, tem o TJUE recorrido à Directiva 88/362/CEE como critério de concretização a qual optou por enumerar a classificar diferentes tipos de capitais, relembrando aqui que com a Directiva sinalizada que a livre circulação de capitais passou a ter efeito directo, proibindo as legislações discriminatórias ou restritivas por parte de um Estado.

 

Por agora, e para o que releva para a questão subjacente, temos como consolidado o entendimento de que o conceito de capital inclui qualquer transferência de capital, onerosa ou não, de um Estado-Membro para outro e vice-versa, abrangendo qualquer transação legal necessária para atingir a transferência de activos.

 

É fundamentalmente com base nos sinalizados normativos e princípios, que os Requerentes sustentam a desconformidade com a legislação doméstica, e a censura quanto à inaplicabilidade do disposto no nº 2 do artigo 43º do CIRS aos não residentes em território nacional, enunciando como  questão fulcral a dirimir a “compatibilidade com o Direito da União Europeia da não aplicação do regime de exclusão de tributação de mais-valias em 50% a residentes fiscais noutro Estado-membro da União Europeia, conforme previsto no artigo 43º, nº 2 do Código do IRS ( cfr., artigo 30 do pedido de pronúncia arbitral), pugnando pela ilegalidade dos actos de liquidação sob escrutínio, na medida em que, o saldo positivo das mais-valias realizadas deverá ser considerado em apenas 50% do seu valor, à semelhança do que se verifica para os contribuintes residentes em território nacional, face ao disposto no nº 2 do artigo 43º do CIRS, verificando-se, deste modo, a violação dos artigos 18º, 63º e 65º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TJUE).

 

*****

Por seu turno a Requerida, invocando o Acórdão C-443/06 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, e o Acórdão do STA que se lhe seguiu (proferido em 2008-01-16 no âmbito do processo nº 0439/06 [3], vem afirmar que no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão do TJUE foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro, o nº 7 (atual nº 9) cujo teor à data dos factos (2018) era a seguinte:

 

“9. Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do nº 1 e no nº 2 pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residente em território português”.

Prevendo então o número 8 do artigo 72º (hoje número 10) que “para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

 

Refere ainda a AT (artigos 65º e 66º  da resposta) que a “alteração operada por via das introduções dos atuais nºs 9 e 10 do artigo 72º, do Código do IRS, veio permitir que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43º, nº2 (consideração do saldo da mais valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que OPTEM pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território”.

 

Ora,

 

Não obstante as alterações mencionadas, e as conclusões que a AT das mesmas retira, podemos já avançar que este tribunal arbitral singular as não sufraga, em consonância, aliás, com a posição  esmagadora da jurisprudência que inequivocamente vai no sentido do entendimento de que as alterações introduzidas pela Lei nº 67-A/2007 (LEO 2008) não vieram eliminar o efeito discriminatório, subsistindo a violação das normas comunitárias.

 

- a jurisprudência

 

Perante o sentido decisório já antecipado, subscrevemos o que vem proferido no âmbito do processo nº 63/2019-T, relatado sob a égide do CAAD, no qual, data venia nos revemos, sem quaisquer reservas:

 

“(…) 38. No processo nº C-443/06, de 11 de outubro, do Tribunal de Justiça da União Europeia, conhecido por Acórdão Hollmann, embora anterior à Lei nº 67-A/2007, versou sobre esta questão, onde se decidiu que “O artigo 56º CE [atual artigo 63º do TJUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação  nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobra as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel”.

39. Nesse mesmo sentido a jurisprudência nacional tem decido, antes e após alterações da Lei nº 67-A/2007, de 31/12, respetivamente nos acórdãos do STA de 16 de Janeiro de 2009, no processo nº 439/06, de 22 de Março de 2011, no processo número 1031/10 de 30 de Abril de 2013, no processo número 1374/12, e mais recentemente no processo número 1171/14 de 03 de Fevereiro de 2016, todos podem ser consultados in www.dgsi.pt

40. A acompanhar a jurisprudência do TJUE e do STA, existe abundante jurisprudência arbitral proferido pelo CAAD, em particular, as decisões proferidas nos processos números 45/2013-T; 127/2012-T; 748/2015-T; 89/2017-T; 370/2018-T;617/2017-T; 520/2017-T; 399/2017-T;89/2017-T: 478/2015-T; 96/2015-T; 617/2017-T; 583/2018-T, todos a poder ser consultados in www.caad.pt.

 

Continuando a decisão que vimos seguindo e transcrevendo:

(…)

“42. O regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes em território português, estabelece uma discriminação com o princípio da liberdade de circulação de capitais, princípio fundamental da União Europeia, não obstante as alterações introduzidas ao Código do IRS pela Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro, traduzidas no aditamento dos atuais nºs 9 e 10 do artigo 72º do Código do IRS.

43. Considerou então o TJUE, no Acórdão Hollmann, que, “embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados-Membros, estes devem exercer essa competência no respeito do direito comunitário” e que o tratamento discriminatório dos não residentes assentava no facto de que “enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 25% [28% em 2017] sobre a matéria colectável correspondente à totalidade das mais-valias realizadas a consideração de apenas metade da matéria colectável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que, segundo as observações formuladas pelo Governo português, a tributação do rendimentos dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalação mais elevado é que 42% [48% em 2017, acrescida da taxa adicional de solidariedade de 2.5% ou de 5%] discriminatório e de outro regime supostamente não discriminatório”, sendo que “essa escolha não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.”

45. Também o Supremo Tribuna Administrativo se tem pronunciado de modo idêntico, ao referir, nomeadamente, que “I- As disposições do Tratado CE, que refere a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. II. É incompatível com o direito comunitário, porquanto limita os movimentos de capitais que o artigo 56º do Tratado CE consagra, o disposto no nº 2 do artigo 43º do CIRS, por não aplicação aos residentes fora do território nacional a limitação de tributação a 50% das mais valias que estatui para os residentes no território nacional” – cfr. o Acórdão proferido no processo nº 01173/14, em 3 de fevereiro de 2016”.

 

Realça-se e convoca-se ainda, pela sua inegável pertinência, o que vem dito no processo arbitral tributário nº 74/2019, de 22 de Maio de 2019:

 

“(…) em matéria de tributação dos rendimentos resultantes das mais-valias provenientes da alienação de direitos reais sobre imóveis, situados em Portugal, por não residentes neste território, mas residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou Espaço Económico Europeu, resulta do disposto nos nºs 1 e 8 do artigo 72º do artigo 72º do Código do IRS que, coexistem dois regimes fiscais:

i.O regime que sujeita os rendimentos a uma taxa especial de 28% e

ii.O regime equiparado ao que vigora para os sujeitos passivos em território português, segundo  qual os mesmos rendimentos são sujeitos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, tomando-se em consideração, neste regime, todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal, mantendo-se em vigor a disposição constante do nº 2 do citado artigo 43º do Código do IRS.

Porém, a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não senda a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa.

Na realidade, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43º, nº 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter de optar por dois regimes, um legal e outro ilegal.

Neste sentido, o TJUE considerou, no Acórdão Gielen, de 18/03/2012 (Processo C-440/08), um caso de evidente paralelismo (ainda que naquele acórdão estivesse em causa a violação do artigo 49º) o seguinte:

  1. “ a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente (… escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro supostamente não discriminatório”, frisando  que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais”;
  2. “o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar  o artigo 49º do TFUE em razão do seu carácter discriminatório”;
  3. O Tratado “se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefícios fiscal (…) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes”.

 A orientação que vem de se sublinhar e como já vincado, tem vindo a ser subscrita por várias decisões quer do âmbito arbitral, quer nas instâncias judiciárias.

Tomando-se exemplificadamente, pelo seu caracter recente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20-02-2019, (proferido no âmbito do processo 0901/11.0BEALM 0692/17), de onde se retira;

 

“I. Por imperativo constitucional as disposições do Tratado que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos de direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Nos termos do art. 8º, nº 4 da CRP “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”

II. Tendo Portugal competência para legislar quanto ao imposto sobre os rendimentos, por tal não ser matéria de competência exclusiva da EU, não pode incluir nessa regulamentação normas que, em concreto sejam violadoras dos Tratados, na interpretação que deles faça, como fez o Tribunal de Justiça da EU,

III. O acto impugnado que aplicou o referido art. 43º, nº 2 do CIRS, incompatível com o referido art. 56º do Tratado que institui a Comunidade Europeia, enferma de vício de violação deste último normativo, o que justifica a sua anulação (artº 135º do Código de Procedimento Administrativo.”

 

Acrescendo-se ainda em idêntico sentido o que vem dito no âmbito do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 08-05-2019, prolatado no âmbito do processo número 1358/08.BESNT:

 

(…)

“III. A operação de alienação de um bem imóvel constitui um movimento de capitais à face da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, sendo, por isso, abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 56º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia.

 

IV. A legislação nacional ao prever uma limitação de 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pela norma comunitária supracitada, sendo o nº 2 do artº 43º do CIRS, incompatível com o referido artº 56º do TJUE”.

 

Como já referido e sublinhado, a esmagadora maioria das decisões arbitrais tributárias proferidas sob a égide do CAAD que tiveram por objecto a mesma questão de direito que aqui subjaz, são no sentido que vimos sinalizando, ou seja, a ilegalidade da tributação de mais-valias obtidas  por não residentes por incompatibilidade do número 2 do artigo 43º do CIRS, com o artigo 63º do TFUE, dado que restringe a tributação de 50% das mais-valias a cidadãos  residentes (cfr., ainda que a título meramente exemplificativo:, processos nºs 45/2012-T, 127/2012-T, 748/2015-T, 89/2017-T, 520/2017-T, 617/2017-T, 644/2017-T, 67/2019-T, 74/2019-T, 748/2019-T.  

 

Com efeito,

 

Se é verdade que, na sequência do já assinado acórdão Hollmann o legislador nacional pretendeu criar através da referida alteração/aditamento ao artigo 72º do CIRS, a possibilidade de os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia poderem optar, relativamente aos rendimentos referidos nos números 1 e 2 do indicado normativo pela taxa de imposto prevista no nº 1 do artigo 68º do CIRS, não deixa de ser verdade que tal opção se materializa num ónus suplementar relativamente aos contribuintes residentes.

Tal opção, e como já amplamente afirmado não afasta o efeito discriminatório da diferenciação dos regimes previstos na legislação doméstica entre residentes e não residentes.

A  jurisprudencia que sobressai maioritariamente das decisões arbitrais, a propósito deste segmento é que “(…) a opção que é dada a um sujeito passivo da União Europeia ou espaço europeu, entre um regime que continua a ser discriminatório, por violação do disposto no artº 63º do TFUE e um outro alegadamente não discriminatório, equiparando-os com os residentes em território português, para além de terem a obrigação de optar e de declarar os rendimentos auferidos fora daquele território, não exclui nem neutraliza os efeitos discriminatórios do primeiro daqueles dois regimes”.

 

Para finalizar, e pelo claro paralelismo com a situação que vem de analisar-se, sempre se convoca e reitera o que vem dito no Acórdão Gielen de18/03/2010 (Processo nº C-440/08):

 

“(…) O Tribunal de Justiça precisa que, apresenta uma vantagem fiscal cujo benefício é retirado a não residentes, uma diferença de tratamento entre essas duas categorias de contribuições pode ser qualificado de discriminação, na acepção do Tratado FUE, quando não houver nenhuma diferença objetiva situação suscetível de justificar diferenças de tratamentos, quanto a esse aspecto, entre categorias de contribuintes (…)”

“ a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente (…) escolher entre um regime discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório, frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.”.

“O reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria em si mesmo, a violar o artigo 49º do TFUE em razão do seu carácter discriminatório.”

“O Tratado se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (…) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes”.

 

Da mesma forma, e em caso paralelo, se pronunciou o Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 21 de Fevereiro de 2013, Processo C-123/11), sobre a garantia da igualdade de tratamento fiscal entre os residentes e não residentes (embora aqui com referência a pessoas colectivas);

 

“(…) As regras de cálculo dos prejuízos da filial não residente para efeitos da sua assunção pela sociedade-mãe residente, em operações (…) “não devem constituir uma desigualdade de tratamento em relação às regras de cálculo aplicáveis caso essa fusão tivesse sido realizada com uma filial residente (…).”

 

Face ao exposto, sem necessidade de quaisquer outras considerações, e revertendo à situação dos autos, inexiste base legal que permita à Requerida excluir da tributação das mais-valias o regime previsto sob o nº 2 do artigo 43º da Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, procedendo, em consequência, o pedido de pronúncia arbitral formulado pelos Requerentes.

 

III- JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

De conformidade ao disposto na alínea b) do artigo 24º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a administração tributária, a partir do termo do prazo para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, a até ao termo do prazo para execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessárias para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100º da LGT, ex vi alínea a) do nº 1 do artigo 29º do RJAT, que prevê:

Artigo 100º

Efeitos de decisão favorável ao sujeito passivo

A administração tributária está obrigada em caso de procedência total ou parcial da reclamação, impugnação ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do prazo da execução da decisão.

Embora o artigo 2º, nº1, alíneas a) e b) do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade”, para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), não fazendo menção a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências, os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se harmoniza e conjuga com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O nº 5 do artigo 24º do RJAT a afirmar que “é devido o pagamento de juros independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deverá ser interpretado no sentido de permitir o conhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral tributário.

Os juros indemnizatórios têm uma função reparadora do dano, dano esse que resulta do facto de o sujeito passivo ter ficado ilicitamente privado de certa quantia, durante um determinado período de tempo, visando colocá-lo na situação em que o mesmo estaria caso não tivesse efectuado o pagamento que lhe foi indevidamente exigido.

Perante o que vem de expor-se, e face ao sentido decisório quanto ao mérito da causa, já sinalizado, decide este tribunal singular em condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios calculados sobre a data dos pagamentos efectuados (28/08/2019 e 01/09/2019) até à sua integral devolução.

 

 

IV- DECISÃO

 

Face ao exposto, decide o Tribunal Arbitral Singular em:

i.Anular parcialmente [4]as liquidações de IRS subjacentes, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total das mais-valias imobiliárias,

ii. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição aos Requerentes do valor correspondente ao montante de imposto indevidamente pago,

iii. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios desde a data em que os Requerentes efectuaram o pagamento, até à data da verificação do seu reembolso;

iv. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.

 

 

V-VALOR DO PROCESSO

 

De conformidade ao estabelecido nos artigos 296º, nºs 1 e  2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 46/2013,de 26 de Junho, 97º-A, nº 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 41.555,66 € (quarenta e um mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros, e sessenta e seis cêntimos)

 

VI-CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12º, nº 2, 22º, nº 4 do RJAT e artigos 2º e 4º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I a este anexo, fixa-se o montante de custas em 2.142,00 € (dois mil cento e quarente e dois euros).

 

NOTIFIQUE-SE           

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 131º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º, nº 1, alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, com versos em branco e revisto pelo árbitro.

 

 

 

 

 

[A redacção da presente decisão rege-se pela grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, excepto no que respeita às transcrições efectuadas].

 

Vinte e um de Abril de dois mil e vinte

 

O árbitro,

 

(J. Coutinho Pires)

                              

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Em bom rigor, o número da liquidação em causa é 2019 ... e não o indicado.

[2] Cfr. processo arbitral nº 659/2014-T, de 2015-04-24, em que interviemos como árbitro vogal, e processo nº 67/2019, de 27-08- 2019 e processo 748/2019-T, de 07-04-2020.

[3] “O nº 2 do artigo 43º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que limita a incidência de imposto a 50% das mais valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no artº 56º do Tratado que institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas noutro Estado Membro da União Europeia”.

[4] Cfr., Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30/04/2013, proferido no âmbito do processo nº 01374/12:

I-O acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal é suscetível de anulação parcial.

II- O critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, cado em que se justifica a anulação parcial.

III- Julgado incompatível com o direito comunitário a norma do nº 2 do artigo 43º do Código do IRS, porquanto prevê uma limitação da tributação a 50% das mais valias realizadas apenas para os residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56. CE, o acto de liquidação que a desaplicou encontra-se ferido de ilegalidade na medida do excesso, devendo ser anulado apenas nessa parte, num caso, como o dos autos, em que a matéria colectável do imposto é constituída exclusivamente pela mais-valia e a taxa aplicável é fixa (25%).”