Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 342/2019-T
Data da decisão: 2019-11-28  IRS  
Valor do pedido: € 37.500,00
Tema: IRS – mais valias
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DECISÃO ARBITRAL

 

1.            Relatório

 

No dia 15-05-2019, A..., contribuinte n.º..., na qualidade de cabeça de casal da herança com o número de contribuição fiscal..., deixada aberta por óbito de B..., doravante designado por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista, de forma imediata, à declaração de ilegalidade do ato de deferimento parcial da reclamação graciosa interposta, e de forma mediata, à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2013..., com referência ao ano de 2011, bem como o ato de liquidação de IRS que o substituiu com o n.º 2014..., no valor de 51.566,36 €.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD em 16-05-2019 e notificado à Requerida na mesma data.

O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º n.º 2 alínea a) do RJAT, foi designado como árbitro, pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em 08-07-2019, a Doutora Suzana Fernandes da Costa, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.

Na mesma data foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 29-07-2019.

Na mesma data, foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional e remeter ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.

Em 25-09-2019, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo.

Em 27-09-2019, foi proferido despacho a ordenar a notificar das partes para, em 10 dias, indicarem se estavam ou não de acordo com a dispensa da reunião e de alegações.

A Requerida veio informar os autos, em 30-09-2019, que prescindia da reunião e da apresentação das alegações. E o Requerente enviou requerimento, em 01-10-2019, a aceitar a dispensa da reunião e a prescindir das alegações.

No dia 02-10-2019, foi proferido despacho, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais, a dispensar a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, assim como a apresentação de alegações. Foi ainda fixado o dia 31-10-2019 para a prolação da decisão arbitral. Foi ainda advertido o Requerente para, até àquela data, efetuar o pagamento da taxa arbitral subsequente e juntar ao processo o respetivo comprovativo.

O Requerente juntou aos autos o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente em 16-10-2019.

Em 31-10-2019, foi proferido despacho a prorrogar o prazo para a decisão para 28-11-2019, por não estar concluída a decisão do processo.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias à exceção da que analisaremos em seguida.

 

Questão prévia – da migração do processo arbitral

O Requerente refere que desistiu do processo de impugnação judicial em curso na Unidade Orgânica 2 do Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º de processo .../14...BELRS, com vista ao cometimento do mesmo processo à arbitragem do CAAD, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 11º do Decreto-Lei n.º 81/2018 de 15-10.

O Decreto-Lei n.º 81/2018 de 15-10 veio permitir, à semelhança do que já aconteceu no passado, a desistência de impugnações judiciais em curso nos Tribunais Administrativos e Fiscais, e a interposição do processo junto do CAAD.

O artigo 11º do referido diploma dispõe o seguinte:

“1 – Os sujeitos passivos podem, até 31 de dezembro de 2019, submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respetivas competências, as pretensões tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016, com dispensa de pagamento de custas processuais.

2 – As pretensões a submeter aos tribunais arbitrais devem co9incidir com o pedido e a causa de pedir do processo a extinguir, apenas se admitindo a redução do pedido.

3 – O pedido de constituição de tribunal arbitral, a submeter ao Centro de Arbitragem Administrativa, é necessariamente acompanhado de certidão judicial eletrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial nos termos do presente artigo”.

Assim, tendo a impugnação judicial dado entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal em 2014, é possível a desistência da instância e a submissão do processo ao Centro de Arbitragem Administrativa.

O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, do artigo 102º n.º 1 alínea a) do Código do Procedimento e do Processo Tributário e do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018 de 15-10-2018.

 

2. Posição das partes

O Requerente refere que, em 29-05-2019, foi emitida a liquidação de IRS de 2011 n.º 2013 ... no valor de 1.064.160,56 €, em nome do falecido B..., se cuja herança o Requerente é cabeça de casal.

E em 30-09-2013, o Requerente apresentou reclamação graciosa da referida liquidação, junto da Direção de Finanças de Lisboa.

O Requerente afirma que esta reclamação graciosa foi objeto de decisão de deferimento parcial, e que apresentou impugnação judicial com vista à declaração de ilegalidade da aludida liquidação e IRS do ano de 2011.

O Requerente refere que foi notificada da nova liquidação de IRS n.º 2014 ... no valor de 51.566,36 € e da liquidação de juros compensatórios correspondentes, cuja anulação foi igualmente peticionada na impugnação judicial.

O Requerente alega que a reclamação graciosa improcedeu apenas na parte em que a Administração Tributária e Aduaneira (AT) considerou como mais-valia tributável a realizada na venda, em 01-2011, do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ... da freguesia de ..., pelo valor de 160.000 €.

Para o Requerente, a mais-valia não é tributável, uma vez que o imóvel foi adquirido por partilha verbal efetuada em 1951 por óbito de C..., altura em que se iniciou a posse conducente à invocação do usucapião, e porque, apesar da escritura de justificação notarial ser de janeiro de 2011, já antes de 01-01-1989 o imóvel em causa era livremente transacionável pelo seu titular através do ato semelhante àquele que foi praticado em janeiro de 2011. Assim, no entendimento do Requerente, a mais-valia verificada na alienação do imóvel deve considerar-se abrangida pela cláusula de delimitação negativa de incidência contido no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30-11-1988. 

Para sustentar a sua posição, o Requerente faz referência ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30-01-2013 do processo n.º 01072/12.

O Requerente pede que seja removida da ordem jurídica a ilegalidade que conduziu à liquidação impugnada como à liquidação de IRS e de juros compensatórios que a vieram substituir, realizadas no seguimento da decisão proferido no procedimento da reclamação graciosa.

Para o Requerente, inexiste qualquer facto tributário, uma vez que estamos perante mais-valias não tributáveis.

Por fim, o Requerente pede a restituição dos montantes pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

Já a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta, apresentou defesa por impugnação, referindo, desde logo, que o facto tributário não ocorre no momento em que se iniciou a posse, mas sim com o momento em que há um ato público que legitima a aquisição. E que apenas com a outorga da justificação judicial ou notarial surge a capacidade contributiva do usucapiente que poderá fundamentar a tributação.

A Requerida refere que não pode concordar com a posição do Requerente que defende que a aquisição por usucapião reporta os seus efeitos à data da aquisição verbal não titulada ou início da posse, uma vez que, a lei civil titula o direito da posse e, para efeitos fiscais, a aquisição conta a partir da data da celebração da escritura de justificação notarial.

Para a AT, a aquisição por usucapião é uma aquisição originária o que, para efeitos discais, faz com que se entenda que o facto tributário só ocorra no momento em que o documento que a titula se torna definitivo.

A AT socorre-se do artigo 5º alínea r) do Código do Imposto do Selo, que refere que “nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a ação de justificação judicial, for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial”.  

No entendimento da Requerida, a usucapião tem, necessariamente, de ser invocada, sendo que no presente caso, foi invocada relativamente à aquisição do imóvel em causa, através da escritura de justificação celebrada em 26-01-2011. A Requerida também alega que nada nos autos demonstra que a usucapião tenha sido invocada em momento anterior a 26-01-2011.

Para a Requerida, a alienação do imóvel não seria possível à data de 01-01-1989, mas só a partir de 26-01-2011, após a celebração da escritura de justificação.

Conclui, assim, a AT que a mais-valia obtida é tributável.

Quanto aos juros indemnizatórios, a AT refere que o Recorrente não tem direito a eles, uma vez que não se verifica qualquer erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

 

3. Matéria de facto

3. 1. Factos provados:

Analisada a prova documental produzida e a posição das partes constante das peças processuais, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:

1.            O Requerente é cabeça de casal da herança aberta por óbito de B..., que faleceu em 21-03-2011.

2.            O falecido B... celebrou, em 26-01-2011, escritura pública de justificação notarial e de compra e venda do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... (...) sob o artigo ..., conforme cópia da escritura junta ao pedido arbitral como documento 2/1.

3.            De acordo com essa escritura, o referido prédio entrou na posse de B... em 1951 por partilha verbal por óbito de C... .

4.            Em 01/01/89 o Requerente encontrava-se na posse pública e pacífica do referido prédio há 38 anos.

5.            Em 29-05-2013, foi emitida em nome do falecido B..., a liquidação de IRS n.º 2013..., no valor de 1.064.160,56 €, relativa ao ano de 2011.

6.            Em 30-09-2013, o Requerente, na qualidade de cabeça de casal, apresentou reclamação graciosa da referida liquidação de IRS do ano de 2011. 

7.            O Requerente foi notificado, por ofício datado de 09-01-2014, da decisão de deferimento parcial da reclamação apresentada, conforme cópia da decisão junta ao pedido arbitral junta como documento 1/1.

8.            O Requerente foi notificado da liquidação de IRS n.º 2014... no valor de 51.566,36 €, do ano de 2011, que substituiu a liquidação anterior, conforme cópia da liquidação junta ao pedido arbitral como documento 3/1.

9.            O Requerente interpôs impugnação judicial, junto do Tribunal Tributário de Lisboa, da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa, conforme cópia da impugnação judicial junta ao pedido arbitral junta como documento 2.

10.          O Requerente apresentou desistência da instância no processo de impugnação judicial, com vista ao cometimento do mesmo processo à arbitragem tributária, conforme documento 1 junto ao pedido arbitral.

11.          O Requerente interpôs o presente pedido de pronúncia arbitral em 15-05-2019.

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3.2. Factos não provados

Não se verificaram quaisquer factos que não tenham sido provados.

 

3.3. Fundamentação da matéria de facto provada:

A convicção do árbitro fundou-se nos documentos juntos aos autos pelo Requerente, incluindo o documento autêntico junto (a escritura de justificação notarial e compra e venda) e na posição e acordo das partes demonstrados nas peças processuais produzidas.

 

4. Matéria de direito:

4.1. Objeto e âmbito do presente processo

A questão essencial de direito que se coloca neste processo é a de saber a data em que se deve considerar adquirido a título de usucapião o imóvel alienado, para efeitos de tributação em sede de mais-valias de IRS.

 

4.2. Do regime de tributação em sede de mais-valias

Em sede de IRS, constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, conforme artigo 10º n.º 1 alínea a) do Código do IRS.

Pela alínea a) do n.º 4 do artigo 10º do Código do IRS, o ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição.

O Código do IRS foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30-11, e entrou em vigor em 01-01-1989, conforme artigo 2º do referido diploma.

O artigo 5º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30-11 refere que “os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afetos ao exercício de uma atividade agrícola ou da afetação destes a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respetivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código”.

O Código do Imposto de Mais-valias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673 de 09-06-1965, não fazia incidir o imposto sobre os ganhos obtidos com a transmissão de edifícios, limitando a incidência, no que concerne a prédios não detidos por empresas, aos terrenos para construção (artigo 1º deste Código).

O n.º 2 deste artigo 5º refere que cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código.

Assim, o artigo 5º do Decreto-Lei que aprovou o Código do IRS contempla uma cláusula de delimitação negativa de incidência de IRS, no caso de mais-valias obtidas pela alienação de bens ou direitos que foram adquiridos antes da entrada em vigor do Código do IRS, ou seja, antes de 01-01-1989.

Consequentemente, se estivermos perante bens ou direitos adquiridos após a data de 01-01-1989, há lugar a tributação em sede de IRS pelas mais-valias obtidas aquando da sua alienação.

Nos presentes autos, está em causa saber determinar qual é a data de aquisição relevante para efeitos de IRS, quando a aquisição é feita por usucapião.

Caso a aquisição se tenha dado antes de 01-01-1989, a mais-valia obtido com a venda não será tributável. Pelo contrário, se a aquisição foi efetuada após a entrada em vigor do Código do IRS, a mais--valia obtida é tributada nos termos previstos no Código do IRS para as mais-valias pela alienação onerosa de imóveis.

Para a AT, a mais-valia é tributável porque a aquisição ocorreu na data da escritura de justificação notarial, em 26-01-2011.

Para o Requerente, aplica-se o artigo 5º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30-11, e a mais-valia obtida não é tributada, já que o imóvel foi adquirido antes de 01-01-1989, uma vez que a aquisição reporta a 1951.

 

4.3. Da usucapião

O falecido B... celebrou, em 26-01-2011, escritura pública de justificação notarial e de compra e venda do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ..., conforme cópia da escritura junta ao pedido arbitral.

Na referida escritura, junta ao pedido arbitral, é referido o seguinte:

“(…) o indicado prédio foi adquirido por partilha verbal efetuada no ano de mil novecentos e cinquenta e um por óbito de C..., falecido em dezassete de dezembro de mil novecentos e cinquenta”.

É ainda dito na escritura de justificação notarial que:

“(…) desde a data da referida partilha o seu representado entrou na posse do imóvel, posse essa que sempre exerceu sem a menor oposição de quem quer que seja, exercida à vista de todos e sem interrupção, usufruindo as utilidades possíveis, sendo por isso uma posse pacífica, contínua e pública, tendo sempre suportado todos os encargos e despesas de conservação, procedendo às manutenções necessárias, pintando, remodelando, pelo que o seu representado o adquiriu por usucapião, não tendo todavia, considerando o modo de aquisição, documentos que lhe permitam fazer a prova do seu direito de propriedade perfeita”.

A usucapião encontra-se regulada nos artigos 1287º e seguintes do Código Civil.

A usucapião é a aquisição da propriedade com fundamento na posse de longa duração. Tem o direito de invocar a usucapião quem tenha sido possuidor de uma coisa durante um longo período, tornando-se proprietário ao fazê-lo. Através da usucapião, a «propriedade diminuída» que é a posse transforma--se em propriedade plena ou, noutra maneira de ver a coisa, a mera «relação de facto» com uma coisa transforma-se numa «relação de direito».

O tempo necessário à usucapião varia, sobretudo, com o tipo de bem em causa — menos tempo, no caso de coisas móveis, mais no caso de imóveis — e com a boa ou má fé do possuidor ao tempo em que adquiriu a posse. Assim, o Código Civil determina que «a usucapião de coisas [móveis] não sujeitas a registo dá-se quando a posse, de boa fé e fundada em justo título, tiver durado três anos» (art.º. 1299.º) e que «a usucapião [de imóveis] só pode dar-se no termo de [...] de vinte anos, se for de má fé» (art.º. 1296.º).

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2017, afirma o seguinte:

“a usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevantes que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário? Sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido”.

No presente caso, a escritura de justificação foi celebrada em 26-01-2011, e consta da referida escritura que “(…) o indicado prédio foi adquirido por partilha verbal efetuada no ano de mil novecentos e cinquenta e um por óbito de C..., falecido em dezassete de dezembro de mil novecentos e cinquenta. Que desde a data da referida partilha o seu representado entrou na posse do imóvel, posse essa que sempre exerceu sem a menor oposição de quem quer que seja, exercida à vista de todos e sem interrupção, usufruindo as utilidades possíveis, sendo por isso uma posse pacífica, contínua e pública, tendo sempre suportado todos os encargos e despesas de conservação, procedendo às manutenções necessárias, pintando, remodelando, pelo que o seu representado o adquiriu por usucapião, não tendo todavia, considerando o modo de aquisição, documentos que lhe permitam fazer a prova do seu direito de propriedade perfeita”, conforme cópia da escritura de justificação junta ao pedido arbitral.

Esta modalidade de justificação notarial “consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, devendo, quando for alegada a usucapião baseada na posse não titulada, ser mencionadas expressamente as circunstâncias de facto que determinaram o início da posse, bem as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora a usucapião”, conforme Neto Ferreira e Zulmira Neto da Silva, Manual de Direito Notarial, 4ª edição, Coimbra, 2008, página 490.

O Código do IRS não distingue entre as várias modalidades de aquisição do direito de propriedade, nem o momento do início da aquisição, deve aceitar-se todos e quaisquer modos de aquisição segundo o direito civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 2º da LGT.

Por outro lado, e de harmonia com o disposto no artigo 11º n.º 2 da LGT, “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, saldo se outro decorrer diretamente da lei”.

Tal como refere o acórdão do processo arbitral n.º 565/2015-T, “(…) por força daquela regra do artigo 11º, n.º 2, da LGT, em sede de IRS, designadamente para efeito do artigo 43.º do CIRS, não havendo qualquer norma de que resulte diretamente que, no caso de usucapião, seja utilizável um conceito próprio do direito fiscal, tem de se fazer aplicação dos conceitos do direito civil, não só quanto ao conceito de aquisição, como ao momento em que ela se considera efetuada, pois não se inclui qualquer indicação de momento diferente, na lista que consta do n.º 6 daquele artigo 43º”.

O artigo 1287º do Código Civil refere que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.

O autor Abílio Neto, no Código Civil anotado, 11ª edição refundida e atualizada, Ediforum, 1997, página 891, na anotação ao aludido artigo 1287º do Código Civil, refere que “a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má fé, titulada, etc.) influem apenas no prazo (Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967,112)”.  

O artigo 1288º do Código Civil dispõe que invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse.

O autor Abílio Neto, no Código Civil anotado, 11ª edição refundida e atualizada, Ediforum, 1997, página 894, na anotação ao aludido artigo 1288º do Código Civil, afirma que “em termos práticos, a regra consignada neste artigo significa que, uma vez consumada a aquisição do direito por usucapião, tudo se passa como se o efeito aquisitivo houvesse ocorrido no dia em que a posse teve início”.

Os autores Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil anotado, volume III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1987, página 66, refere que “ao falar em início da posse, a lei tem, evidentemente, em vista o início da posse em nome próprio”. O mesmo autor afirma também que “o início da posse tem lugar, pois, neste caso, no momento da entrega, enão no momento em que foi celebrado o negócio que deu causa à tradição, embora os dois momentos sejam em regra coincidentes ou se encontrem separados por tempo desprezível para o efeito da usucapião”.

O artigo 1317º alínea c) refere que o momento da aquisição do direito de propriedade é “c) no caso de usucapião, o do início da posse”.

Na anotação deste artigo 1317º, no Código Civil anotado, Volume II, Almedina, 2017, página 115, os autores Rui Pinto e Cláudia Trindade, referem que “também no caso da usucapião, nos termos do art.º. 1288.º, a aquisição do direito correspondente à posse que se exerceu e a correlativa extinção de qualquer direito real pré-existente é retroativa ao início da posse prescricional, isto é, pública e pacífica. A al. c) limita-se a receber, em sede especial de direito de propriedade, esse regime”.

 

4.4. Da aplicação da lei ao caso concreto

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30-01-2013, do processo n.º 01072/12, refere que “o que revela é o facto de no momento da entrada em vigor do CIRS o disponente já se encontrar na situação de poder invocar a usucapião, ainda que o título formal para registo fosse obtido após aquela data”.

Em virtude do acima exposto, a aquisição por usucapião ocorre na data de início da posse, sendo esta a data de aquisição para efeitos de tributação em IRS.

Concordamos, por isso, com o referido no acórdão arbitral do processo n.º 565/2015-T, ao referir que “à face do direito civil, a aquisição por usucapião considera-se efetuada na data do início da posse por usucapião, nos termos do artigo 1288.º e 1317.º, alínea c) do Código Civil, pelo que é esta a data de aquisição relevante para efeitos de mais-valias em IRS”.

Nos presentes autos, como resulta da escritura de justificação notarial, que é um documento autêntico com o correspondente valor probatório, o início da posse ocorreu, “por partilha verbal efetuada no ano de mil novecentos e cinquenta e um por óbito de C..., falecido em dezassete de Dezembro de mil novecentos e cinquenta”, sendo “que desde a data da referida partilha o seu representado entrou na posse do imóvel, posse essa que sempre exerceu sem a menor oposição de quem quer que seja, exercida à vista de todos e sem interrupção, usufruindo as utilidades possíveis, sendo por isso uma posse pacífica, contínua e pública, tendo sempre suportado todos os encargos e despesas de conservação, procedendo às manutenções necessárias, pintando, remodelando, pelo que o seu representado o adquiriu por usucapião, não tendo todavia, considerando o modo de aquisição, documentos que lhe permitam fazer a prova do seu direito de propriedade perfeita”.

Assim, a data de aquisição do prédio em questão, para efeitos de tributação em sede de categoria G do IRS, é o ano de 1951.

Com efeito, foi em 1951 que o Requerente passou a exercer os poderes correspondentes ao exercício do direito de propriedade, ainda que só mais tarde tenha estado em condições de poder justificar notarialmente esse direito. E à data de entrada em vigor do CIRS já se verificavam os pressupostos para que pudesse ser invocada a usucapião: mais de 20 anos de posse pública e pacífica. 

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30-01-2013, do processo n.º 01072/12, já acima referido, dispõe que o que revela é o facto de no momento da entrada em vigor do CIRS o disponente já se encontrar na situação de poder invocar a usucapião, ainda que o título formal para registo fosse obtido após aquela data. Ora, no presente caso, na data de entrada em vigor do Código do IRS, em 01-01-1989, o Requerente já se encontrava na situação de poder invocar a usucapião, já que o mesmo exercia os poderes relativos ao direito de propriedade desde 1951, ou seja, há 38 anos.

Concluímos assim, tal como o acórdão do processo arbitral n.º 565/2015-T, que a aquisição do prédio pelo Requerente ocorreu antes da entrada em vigor do Código do IRS (01-01-1989).

Assim, por força do disposto no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30-10, os ganhos obtidos com a sua venda, que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias pelo Código do Imposto de Mais-valias, não estão também sujeitos a tributação em sede de IRS.

A liquidação de IRS impugnada enferma de vício de violação da lei, devendo ser anulada.

 

5. Juros indemnizatórios

O Requerente requer o reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Dispõe o artigo 43.º n.º 1 da LGT que: “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 4 do art.º. 61.º do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

O artigo 100º da LGT refere que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

Nos presentes autos, verifica-se que a ilegalidade das liquidações controvertidas é imputável à AT.

Assim, o Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago e aos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos arts. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde a data do pagamento do imposto, à taxa resultante do n.º 4 do art. 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que serão incluídos.

 

6. Decisão

Em face do exposto, determina-se:

a)            Julgar procedente o pedido formulado pelo Requerente no presente processo arbitral, quanto à liquidação de IRS n.º 2013 ... e à liquidação de IRS n.º 2014 ..., do ano de 2011;

b)           Julgar procedente o pedido de condenação da AT a reembolsar o Requerente do valor do imposto indevidamente pago, e ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tal pagamento foi efetuado até à data do integral reembolso do mesmo;

c)            Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

7. Valor do processo:

De acordo com o disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor da ação em 37.500,00€.

 

8. Custas:

Nos termos do artigo 22º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 1.836,00 €, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22º n.º 4 do RJAT.

 

Notifique.

Lisboa, 28 de novembro de 2019.

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, por mim revisto.

 

A juiz árbitro

 

(Suzana Fernandes da Costa)