Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 205/2022-T
Data da decisão: 2022-07-26  IRS  
Valor do pedido: € 26.418,33
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias; caducidade do direito de ação /intempestividade do pedido de pronúncia arbitral
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Sumário: Os atos tributários praticados com violação do princípio constitucional da legalidade são anuláveis e não nulos.

 

DECISÃO ARBITRAL

I. RELATÓRIO

I.1

  1. Em 23 de março de 2022 a contribuinte A..., NIF..., solteira, maior, natural da freguesia de ..., concelho de Viana, residente em ..., ..., NY –...– Estados Unidos da América, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 30 de março de 2022.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b) e artigo 6.º, n. º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
  4. O tribunal arbitral foi constituído em 03.06.2022 e no mesmo dia proferiu um despacho a ordenar a notificação da Requerida para apresentar a sua resposta.
  5. A AT apresentou a sua resposta em 01 de julho de 2021.
  6. Por despacho de 04.07.2022 a Requerente foi notificada para se pronunciar sobre a exceção (caducidade do direito de ação) invocada pela Requerida, tendo-se pronunciado em 05.07.2022.
  7. Por despacho de 06.07.2022, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.
  8. A Requerente apresentou as suas alegações em 11 de julho de 2022.
  9. A Requerida apresentou as suas alegações em 25 de julho de 2022.
  10. Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare ilegal e reconheça a nulidade do ato de liquidação de IRS n.º2020..., referente ao ano de 2019, e condene a AT a restituir a quantia de €26.418,33, acrescido de juros de mora

 

I.2. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:

 

  1. O ato administrativo – liquidação de IRS/2019 – perpetrado pela AT padece de vícios substantivos que, pela sua natureza, geram a nulidade do mesmo, sendo, por isso, impugnável a todo o tempo – cfr. artº 102º, nº 3 do CPPT, artº 162º, nº 2 do NCPA e artº 58º, nº 1 do CPTA.
  2. O ato administrativo – liquidação de IRS/2019 – objeto de impugnação, ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental porque certifica factos tributários inverídicos e cria obrigações pecuniárias não previstas na lei – cfr. artº 161º, nº 2, alínea d) j) k) do NCPA.
  3. Daquela violação resulta a ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental, máxime, o previsto no disposto em nº 3, in fine do artº 103º do CRP.
  4. A administração tributária, aquando da liquidação do imposto resultante do rendimento proveniente daqueles incrementos patrimoniais, - mais-valias –, não observou o disposto em nº 2, alínea a) do artº 8º da LGT, assim como também não observou o disposto em nº 3, in fine do artº 103º da CRP, dado que liquidou aquele imposto sobre os incrementos patrimoniais – mais-valias – à revelia do disposto no artº 43º, nº 2, alínea b) do CIRS.
  5. A Impugnante, por via da alienação da fração autónoma em causa, obteve um incremento patrimonial – mais-valias – de 72.500,00 € (setenta e dois mil e quinhentos euros) e, nessa conformidade, seria tributada à luz do disposto no artº 10º, nº 1, alínea a) e artº 43º, nº 1 e nº 2, alínea b), ambos do Código de IRS.
  6. A AT, ex-vi-legis, deveria liquidar o imposto sobre o rendimento proveniente daquele incremento patrimonial – mais-valias –, considerando apenas cinquenta por cento – 50% - do valor daquele incremento patrimonial – cfr. artº 43º, nº 2, alínea b) do CIRS,
  7. A AT certificou facto tributário inverídico, o qual, comina a nulidade do ato administrativo – liquidação de IRS/2019.
  8. A AT, ao perpetrar o ato administrativo – liquidação de IRS/2019 – sub judice, criou para a Impugnante uma obrigação pecuniária não prevista na lei.
  9. A AT violou de forma grosseira os artigos 18º e 63º do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE –.
  10. A AT violou, grosseiramente, o disposto no artigo 13º, nº 1 – princípio da igualdade – artº 14º - ambos da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.

 

I.3 Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:

 

  1. O direito que a Requerente arroga não cabe no elenco dos direitos fundamentais e/ou direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP.
  2. Nessa medida é manifesto que, ao invés do alegado, e ainda que se equacione a
    ilegalidade da liquidação em discussão, o que não se concede, nunca a violação do n.º 3 do artigo 103.º da CRP implicaria o desvalor da nulidade.
  3. Assim, e tendo presente que o prazo para pagamento da liquidação impugnada terminou no dia 31/08/2020, e que a Requerente não reclamou e/ou recorreu administrativamente, é manifesto que em 24/03/2022, data em que foi apresentado o pedido de constituição do tribunal arbitral, há muito que o prazo consignado na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT havia decorrido.
  4. Não restando outra solução que não pugnar pela caducidade do direito de ação, exceção que obsta ao prosseguimento dos autos e determina a absolvição do Réu da instância, nos termos do disposto na alínea k) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
  5. Ao contrário do alegado, a Requerente encontra-se inscrita
    como residente em Portugal, tanto no ano em causa, como atualmente.
  6. Compulsada a Mod. 3 entregue pela Requerente, que deu origem à liquidação impugnada, constata-se que, no que releva para a matéria em discussão, assinalou no Quadro 8 A do Rosto que residia no Continente, e que declarou no Campo 4001 do Quadro 4 do Anexo G, Realização: Ano 2019/09, 145.000,00€, Aquisição: Ano 2006/08, sem qualquer valor, indicando o imóvel alienado (...-U-..., Fração F, Quota parte 50%).
  7. Resulta evidente que a declaração de IRS foi liquidada de acordo com a declaração entregue pela Requerente, não tendo a Administração Tributária procedido a quaisquer alterações.
  8. Por conseguinte, a declaração de IRS foi liquidada de acordo com as regras previstas para os residentes, sendo excluído 50% do saldo das mais-valias, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, ao contrário do alegado.
  9. Todavia, tendo-se verificado que a Requerente mencionou erradamente o valor de alienação do imóvel, dado que apenas era proprietária de 50% do mesmo, e não mencionou qualquer valor de aquisição, a Requerida procedeu à revisão oficiosa da liquidação.
  10. No anexo G da Mod.3 deveriam constar no quadro 4, campo 4001, as seguintes,
    datas/valores: Realização: 2019/09, €72.500,00; Aquisição: 2007/03, €2.330,31.
  11. Valores que a AT já corrigiu de forma oficiosa, conforme comunicado à Requerente no passado 10 de maio.
  12. Não existe qualquer erro imputável aos serviços, como ficou bem demonstrado
    nos autos, não se afigura estarem preenchidos os pressupostos para o pagamento de juros.

 

I.4 A Requerente respondeu à exceção invocada pela Requerida da seguinte forma:

 

  1. De facto, a AT, no âmbito da resposta ao pedido de pronuncia deduzido pela Requerente, confessa, que o ato administrativo – liquidação de IRS 2019 – objeto do pedido de pronúncia, ocorreu em manifesta violação das regras jurídico/fiscais tributárias que enformam aquela liquidação – IRS –.
  2. E, tal confissão, resulta do facto de a AT, após ter sido notificada do pedido de pronuncia arbitral (PPA) deduzido pela Requerente, (só após ter sido notificada) corrigiu de forma oficiosa o ato administrativo – liquidação de IRS 2019.
  3. Face ao exposto resulta claro que, sem prejuízo da correção de forma oficiosa efetuada pela AT no que concerne à liquidação de IRS 2019, impende, ainda, sobre a AT, a obrigação legal de pagar à Requerente os juros indemnizatórios resultantes do erro de liquidação de IRS 2019, contados desde a data do pagamento do tributo – IRS -, até à data em que ocorreu a correção do tributo e respetiva restituição à Requerente do montante pago em excesso.
  4. E, não se diga, que o erro de liquidação de IRS 2019, não é imputável à AT.
  5. É, que, então, tal como agora, a AT, que se encontra adstrita à rigorosa observância do princípio da legalidade, deveria ter corrigido oficiosamente a liquidação de IRS 2019, dado que, então, como agora, teve acesso à matéria coletável para efeitos de liquidação do IRS/2019.
  6. Nestas circunstâncias, sem recurso à filigrana jurídica fiscal, não subsistem dúvidas que a exceção de caducidade do direito de ação invocado pela AT não colhe, desde logo porque é a própria AT que admite o direito de a Requerente impugnar o ato administrativo em causa – liquidação de IRS/2019 – quando, oficiosamente, reduz a matéria coletável e liquida o IRS/2019, à luz desta redução da matéria coletável, restituindo, de imediato, à Requerente, o excesso do imposto obtido por via da, então, liquidação ilegal.

 

II. SANEAMENTO

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e encontram-se legalmente representadas.

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

O processo é o próprio.

Inexistem questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.

Suscitando-se a questão-prévia da caducidade do direito de ação, será esta apreciada prioritariamente

III. – MATÉRIA DE FACTO   

III.1. Factos provados

 

Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

  1. Em 30.06.2020 a requerente submeteu a declaração de rendimento Mod. 3 de IRS, referente a 2019.
  2. Em consequência da declaração, a AT efetuou no dia 07.07.2020 a liquidação n.º 2020..., a qual foi notificada à Requerente.
  3. O prazo para pagamento da liquidação terminou no dia 31.08.2020.
  4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi entregue no CAAD, pela Requerente, no dia 23.03.2022.

 

III.2. Factos não provados

 

Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.

 

III.3. Motivação da matéria de facto

 

Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.

Os factos que constam dos números 1 a 4 são dados como assentes pela análise dos documentos 1 a 4 juntos pela Requerente, documentos 1 a 3 juntos pela Requerida e pela posição assumida pelas partes.

 

IV. Do Direito

 

            A Requerida começa por alegar a caducidade do direito de ação.

A caducidade do direito de ação é uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e conduz à absolvição do Réu da instância, nos termos do artigo 89.º, n.º 1, 2 e 4, al. k) do CPTA, conjugado com os artigos 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2 e 577.º do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA (Vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, processo n.º 01198/18.7BEPRT, de 12.04.2019). Deste modo, impõe-se o conhecimento desta questão em primeiro lugar (art. 608º, n.º1 do CPC).

      Contra o ato de liquidação de imposto pode o contribuinte apresentar um pedido de constituição de tribunal arbitral, o qual deve ser apresentado, em regra, no prazo de noventa dias a partir do termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte (cfr. artigos 10º, n.º1, al., a) do RJAT, art. 97º, nº 1, alínea a) e art. 102º, nº 1, alínea a) do CPPT).


Este prazo de três meses conta-se nos termos previstos no artigo 279º do CC, por remissão do artigo 20º, nº 1 do CPPT ex vi art. 29º, n.º1, al a) do RJAT, ou seja, o prazo corre continuamente, não se suspendendo aos fins-de-semana, feriados e férias judiciais, inicia-se no dia seguinte ao da notificação do ato impugnado, e transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte se terminar em domingo, dia feriado ou férias judiciais.

      Trata-se de um prazo de natureza substantiva, de caducidade e perentório, cujo decurso determina a extinção do direito a propor a ação impugnatória (cfr. artigo 139º, nº 3 do CPC).

      O art. 102º, n.º3 do CPPT permite que a impugnação seja apresentada a todo o tempo quando o vício invocado for a nulidade do administrativo em causa. Os atos nulos são aqueles para os quais a lei expressamente determine essa forma de invalidade (art. 161º, n.º1 do CPA). Por exclusão, todos os outros casos que a lei não indique essa forma de invalidade, são anuláveis.

      O art. 161º, n.º2 do CPA indica de forma exemplificativa alguns casos de nulidade.

A Impugnante invoca a nulidade do ato de liquidação, fazendo apelo às als. d), j)  e k), n.º1 artigo 161° n°2 do CPA.

      Quanto à al. d) — “atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental” — (vide artigo 13° da Petição Inicial) alega a Impugnante que ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental previsto no art. 103º, n.º3 in fine da CRP. A expressão “direitos fundamentais” indicada na al. d), n.º2 do art. 161º do CPA só abrange os direitos, liberdades e garantias (título II da parte I da CRP), e os direitos de natureza análoga. O art. 103º, n.º3 da CRP não está inserido nos direitos, liberdades e garantias e não tem natureza análoga. Destarte, o art. 103º, n.º3 in fine da CRP não prevê um direito fundamental cuja suposta violação gera a nulidade do ato.

      A parte final do art. 103º, n.º3 da CRP prevê que a liquidação dos impostos deve ser feita nos termos da lei, ou seja, consagra o princípio da legalidade.

      Importa desde logo ter presente que, tal como a jurisprudência aceita, os atos tributários praticados com violação do princípio constitucional da legalidade são anuláveis e não nulos (cfr. Acórdãos do STA, de 30/05/2001 (do Plenário), Proc. n° 22251; de 22/06/2005, Proc. n° 1259/04 (do Pleno); de 26/03/2003, Proc.. n° 1754/02; de 28/01/2004, Proc. n° 1709/03; de 25/05/2004, Proc. n° 01708/03; de 16/11/2005, Proc. n° 736/05; e de 11/10/2006, Proc. nº 67606).

      Pelo que, a alegada invalidade, tal como invocada pela impugnante, decorrente do não cumprimento do disposto no art. 43º, n.º2 do CIRS (violação de lei), de que de acordo com a Impugnante padece a liquidação do IRS aqui em causa, é causa de mera anulabilidade da liquidação, e não causa de nulidade. Improcede, pois, nesta parte a arguição da Impugnante.

      A impugnante invoca também a al. j), n.º1, art. 161º do CPA porque, de acordo com a sua alegação, o ato tributário certifica factos tributários inverídicos.

      Serão aqui enquadráveis as situações em que a administração pública, baseando-se numa premissa falaciosa (factos inverídicos ou inexistentes), declara que se encontram reunidas determinadas circunstâncias ou condições (existência daquela incapacidade ou daquelas habilitações). Um ato certificativo, como a sua própria designação indica, corresponde a uma declaração que atesta ou comprova (certifica) a existência de determinada situação de facto, de uma qualidade ou de um direito de determinado indivíduo, originando, devido às suas características ínsitas (de “ius imperium”), regra geral, um “(…) efeito de certeza legal, fé pública ou força probatória (…)”[1], despoletando determinados efeitos na esfera jurídica do seu destinatário, os quais, em determinados casos, poderão ser oponíveis a terceiros.

      O ato de liquidação não é um ato certificativo, improcedendo por isso a invocação da al. j), n.º1 do art. 161º do CPA.

Acresce que, analisando o pedido de pronúncia arbitral apresentado (art. 33º) , na mesma é invocado, em termos de vícios, erros sobre os pressupostos de facto (valor de aquisição e valor de realização da mais valia).

O erro nos pressupostos de facto trata-se de uma invalidade material do ato. No entanto, considerando a situação concreta e atento o disposto no art.º 161.º do CPA, a mesma não é cominada com a nulidade. Como referem Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias (Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 278), no caso de falta de pressuposto concreto “tanto poderá acontecer que a situação concreta pura e simplesmente não exista (estaremos então perante um erro de facto) ou, existindo, não seja subsumível na hipótese legal (caso que que haverá um erro de qualificação dos factos ou um erro de direito quanto aos factos).  Em qualquer dos casos a consequência destes vícios é, em princípio, a mera anulabilidade”.

Como tal, é aqui aplicável a regra geral consagrada no art.º 163.º do CPA, sendo o suposto vício (erro sobre os pressupostos de facto) cominado, quando muito, com a anulabilidade e não com a nulidade.

            Prossegue a Impugnante alegando que o ato sindicado é nulo porque cria obrigações pecuniárias não previstas na lei – artº 161º, nº 2, al. k) do CPA. A liquidação de um tributo tem como pressuposto necessário  a respetiva base legal impositiva. “O pressuposto é sempre a exigência primária de lei (…)”[2]. Ora, no caso em apreço, existe base legal impositiva - CIRS D.L. n.º 442/-A/88 de 30 de novembro republicado pela Lei n.º 82-E/2014, de 31/12 – arts. 1º, n.º1 e 10º, n.º1, al. a).

            Deve-se distinguir entre a criação de obrigação pecuniária não prevista na lei e o erro ou ilegalidade na aplicação de uma obrigação que esteja prevista. Neste caso, a obrigação pecuniária está prevista na lei, embora quanto muito, haja um erro na aplicação da lei. Contudo, este erro, a existir, não consubstancia uma nulidade, mas sim, a anulabilidade. Aliás a impugnante refere no artigo 38º do pedido de pronúncia arbitral que a mais valia obtida é passível de tributação, não aceitando apenas a quantificação efetuada pela AT.

            Deste modo, uma vez que a obrigação pecuniária está prevista na lei, não se verifica a alegada nulidade (art. 161º, n.º2 al. k) do CPA). 

            A contribuinte invoca também a violação dos artigos 18º e 63º do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE. Sucede que, o ato que aplica norma interna simplesmente desconforme ao direito comunitário não é nulo, antes está viciado por erro nos pressupostos de direito, que integra violação de lei e, como tal, constitui causa de mera anulabilidade. (Cf. Ac. do STA de 9 de Outubro de 1996 -Recurso n° 20.873, in DR - Apêndice, de 28 de Dezembro de 1998, pp. 2843 e ss.).

Por fim, a contribuinte refere que a AT violou, grosseiramente, o disposto no artigo 13º, nº 1 – princípio da igualdade – e artº 14º - ambos da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.

A Impugnante em nada concretiza ou densifica a invocação (genérica) que faz, com vista a sustentar a conclusão, que pretende que também seja retirada por este Tribunal, de que o ato de liquidação viola os arts. 13º e 14º da CRP. Na falta dessa densificação, com alegação concreta e circunstanciada, do direito fundamental cujo núcleo essencial entende mostrar-se ofendido pelo ato de liquidação impugnado (sendo certo que só a ofensa do núcleo essencial de um direito fundamental será causa de nulidade), não há como, na falta de evidenciação de quaisquer outros elementos, julgar procedente a violação das normas constitucionais citadas.

Mais, conforme jurisprudência firme e reiterada do STA, mesmo nos casos de atos que apliquem normas inconstitucionais, o correspondente vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito gera mera anulabilidade, salvo se decorrer do conteúdo de um direito fundamental (alínea d) nº 2 do artigo 133º do CPA) o que não sucede no caso do princípio da legalidade (Acórdãos de 31/10/2001, 15/01/2003, 10/01/2007, e 07/05/2008, nos processos n.ºs 26.392, 1629/02, 459/06 e 1034/07).

Não vemos razões para seguir um entendimento diferente daquele que tem vindo a ser seguido pelos acórdãos do STA acima mencionados, porque uma coisa é o vício da norma, outra, diversa, é o vício do ato. Ou seja, um ato de liquidação que aplique uma norma no errado pressuposto da sua validade, da sua existência ou relevância jurídica, padece de vício de violação de lei por erro no pressuposto de direito, causa de mera anulabilidade, mas não de nulidade.

      De maneira que, face ao exposto, estando em presença da eventual ocorrência de vícios geradores de mera anulabilidade, não é aplicável ao caso sub judice o disposto no artigo 102.º, n.º 3 do CPPT.

      No caso dos autos, resultou provado que a impugnante foi notificada da liquidação impugnada, a qual tinha como data limite de pagamento voluntário o dia 30/08/2020, pelo que, o prazo para a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral  terminava em 28/11/2020 (art. 10º, n.º1 al. a) do RJAT) e art. 102º, n.º1, al a) do CPPT.)

      Ora, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentada em 23/03/2022, ou seja, após a preclusão do prazo para a sua apresentação, verifica-se a invocada exceção da caducidade do direito de ação.

      Mais se aduz que resulta dos autos que o ato sindicado foi sujeito a uma revisão oficiosa. Contudo, a apreciação da questão da caducidade do direito de ação deve preceder a apreciação da questão da eventual impossibilidade superveniente da lide, pois que a intempestividade do meio processual em causa impede o início da respetiva lide e a discussão, nesta sede, de qualquer questão jurídica, ainda que de conhecimento oficioso. Cf. Ac. do STA de 14.10.2020, proc. n.º  01/18.2BEPDL e Ac. do STA de 10.09.2014, proc. n.º 01681/13

 

VI) DECISÃO

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:

 

a) Julgar verificada a exceção dilatória de caducidade do direito de ação /intempestividade do pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, absolver a Requerida da instância;

b) Condenar a Requerente nas custas do processo face ao decaimento.

 

Fixa-se o valor do processo em €26.418,33 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n. º1 do artigo 29.º do RJAT e do n. º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.530,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de julho de 2022  

 

O Árbitro

 

_________________________________

(André Festas da Silva)

 

 

 

 



[1] Cfr. Licínio Lopes Martins, “A invalidade do ato administrativo no novo Código do Procedimento Administrativo: as alterações mais relevantes” in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, com a coordenação de Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, II Volume, 5ª Edição, 2020, pág. 518.

[2] Cfr. Licínio Lopes Martins, “A invalidade do ato administrativo no novo Código do Procedimento Administrativo: as alterações mais relevantes” in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, com a coordenação de Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, II Volume, 5ª Edição, 2020, pág. 520.