Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 191/2019-T
Data da decisão: 2020-02-04  IRC  
Valor do pedido: € 237.794,86
Tema: IRC - Fusão invertida; gastos de financiamento. Art. 23.º do CIRC
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Juiz Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente), Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares e Prof. Doutor Manuel Pires (árbitros vogais), designados respetivamente pelo CAAD (na falta de acordo dos árbitros nomeados pelas partes), pela Requerente e pela Requerida para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 27/6/2019, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

A..., SA, NIPC..., com sede na Rua ..., ..., ... (doravante A... ou Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), e 6.º, n.º 2, al. b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRC de 2010 e juros compensatórios e moratórios de 2010, das quais resultou um valor total a pagar de 237.794,8€ (demonstração acerto de contas n.º 2014...).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Todos os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros.

O tribunal arbitral coletivo foi constituído em 27/6/2019 e foi emitido tempestivo despacho de prorrogação da decisão por mais 2 meses.

A AT respondeu, por exceção e impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente. A requerente respondeu à exceção.

Foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade e tendo em conta a autonomia do tribunal na condução do processo e o princípio da celeridade e simplicidade processual. A requerida apresentou alegações escritas onde mantém, no essencial, os argumentos anteriores. As alegações da requerente foram desentranhadas, porque extemporâneas.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

a) A Requerente dedica-se ao fabrico de equipamento de aquecimento central e local ou outros conexos, bem como à comercialização de outros equipamentos para uso doméstico ou energias renováveis;

b) Em Maio de 2008, a Requerente transformou-se numa Sociedade Anónima, com o capital social de 2,4 Milhões de Euros;

c) Em 28/7/2008, os sócios da requerente prometeram vender a totalidade do capital social da A… a B... – Fundo de Investimento de Capital de Risco para Investidores Qualificados.

d) A B... (e suas dominadas) é uma entidade de capital de risco, dedicando-se à aquisição de participações de capital e controlo, na mira de valorização do capital adquirido, por incremento da qualidade de gestão, e consequente remuneração dos investidores.

e) Em 1/10/2008, efetuou-se a venda das ações da A... – as quais foram adquiridas por 15.250.000,00€ pela C..., SA, contribuinte ... (entidade do Grupo B...), constituída em 25 de Setembro de 2008 e com o objeto social de fabrico de unidades domésticas e equipamento para aproveitamento de energias renováveis, do ramo metalúrgico, bem como toda e qualquer atividade conexa ou relacionada.

f) A B... detinha 88,73% do capital social da D... SGPS, SA (entidade constituída em 22/9/2008); a D... detinha 100% do capital social da C..., a qual, por seu turno adquiriu a totalidade do capital social da A... .

g) A C..., para a consumação da compra da A..., financiou-se através de: i) Suprimentos do acionista D... de 6.880.000,00€; ii) Empréstimos bancários (da E...) de 8 Milhões de Euros.

h) Entre Junho e Setembro de 2009 (e efeitos contabilísticos a 1/1/2009), a C... (incorporada) fundiu-se na A... (incorporante), por transferência global do património da incorporada na incorporante – numa operação usualmente designada por fusão inversa ou invertida.

i) Após a fusão, a Requerente (incorporante) assumiu a (i) totalidade das dívidas da C... e (ii) dos encargos (juros e imposto de selo) contraídos pela C... junto da Banca e dos acionistas – que em 2010 ascenderam a 741.168,88€.

j) Na atividade de capital de risco (como desenvolvida pelo grupo B...) é usual a compra das ações da empresa a adquirir ser efetuada por uma sociedade veículo constituída para o efeito (C...) e promover-se, depois, fusão com a entidade operacional (A...) – normal ou invertida – para (i) operar diminuição dos custos administrativos (assim declarado no processo de fusão) e (ii) por exigência bancária (colocar a dívida na mesma entidade jurídica que possui os ativos).

K) A AT não aceita a dedução fiscal dedução fiscal desses encargos (juros), nos termos do art. 23.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), por alegadamente não indispensáveis à obtenção dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtora e promove, em consequência, a liquidação objeto do presente processo arbitral – e promoveu, com base nisso, a liquidação impugnada.

L) A Requerente pagou as liquidações contestadas neste processo.

M) Em 16/8/2018, a requerente apresentou pedido de revisão oficiosa contra o ato de liquidação do ano de 2010 (ato agora impugnado), nos termos do art. 78.º LGT.

N) Perante a ausência de resposta por parte da AT, o requerente presumiu o seu indeferimento e, com base nisso, apresentou a presente ação arbitral.

 

2.2. Factos não provados

Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos provados baseiam-se nos documentos apresentados pelas partes (que são, essencialmente, documentos emitidos pelas Finanças e da fusão), no consenso das partes (também em relação aos documentos e valores e datas dos pagamentos) e nas informações oficiais juntas ao processo.

 

3. Exceção: alegada incompetência material do Tribunal Arbitral

A Autoridade Tributária suscita a questão da incompetência material do tribunal arbitral por considerar que (i) está esgotado o prazo geral da reclamação administrativa (graciosa); (ii) preclusão do prazo de revisão oficiosa, porque não houve qualquer erro imputável aos serviços; (iii) e o tribunal arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber da verificação ou não dos pressupostos do pedido de revisão oficiosa (indeferido, de forma tácita, pela AT).

A requerente refuta esta argumentação, com base, em suma, de que a ação arbitral almeja a anulação de uma liquidação de imposto, pois era esse também o objeto do pedido de revisão oficiosa que lhe precedeu.

Em causa está a interpretação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT e art. 2.º, n.º 1, alínea a), da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, diploma que, em aplicação do artigo 4.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), regulamenta o âmbito de vinculação da administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. Nos termos dessa disposição, os serviços e organismos que integram a Administração Tributária vinculam-se à jurisdição arbitral no tocante a qualquer dos tipos de pretensões identificadas o n.º 1 do artigo 2.º desse Regime, nomeadamente à declaração de ilegalidade dos atos de liquidação dos tributos, com exceção das relativas à “declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”. Ou seja, o tribunal arbitral não é competente (i) para julgar pretensões tributárias que não contendem com a legalidade do ato de liquidação e (ii) para situações de recurso de autoliquidações, sem apresentação de reclamação administrativa prévia– e para a requerida, isso sucederia no processo em causa.

A Autoridade Tributária qualifica ainda como inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito e da separação de poderes, bem como do direito de acesso à justiça e da legalidade, como corolário o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, a interpretação normativa segundo a qual tal pressupor “a dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ao recurso jurisdicional pleno”.

Todas estas questões (relação entre a Revisão oficiosa e impugnação da liquidação do imposto) foram já objeto de inúmera jurisprudência (Acórdão de 22 de fevereiro de 2016, Processo n.º 617/2015-T), que veio a ser sufragada pelo acórdão de 27 de abril de 2017 do Tribunal Central Administrativo do Sul (Processo n.º 08599/17) e sobretudo, Acórdão STA de 2/Julho/2014, processo 01950/13) , e não há motivos para alterar tais entendimentos.

Este último aresto indica expressamente: “… decorre da lei e constitui jurisprudência pacífica deste supremo tribunal, a revisão oficiosa de atos tributários a que alude a parte final do n.º 1 do art. 78.º da LGT “por iniciativa de administração tributária” pode realizar-se a pedido do contribuinte. O indeferimento expresso ou tácito desse pedido de revisão é suscetível de impugnação contenciosa, nos termos do art. 95.º, n.º 1 e 2, al. d) da LGT e art. 97.º. n.º 1 al. d) do CPPT, quando estiver em causa a apreciação da legalidade do ato de liquidação, não prejudicando essa possibilidade, salvo melhor, entendimento, a circunstância do pedido de revisão oficiosa ter sido apresentado muito depois de esgotados os prazos de impugnação administrativa, mas dentro do prazo de 4 anos para a revisão do ato de liquidação por iniciativa da administração tributária”.

Em termos sistemáticos, esta jurisprudência permite concluir que:

a)            O contribuinte pode despoletar um pedido de revisão oficiosa, no prazo de 4 anos, ainda que tenha sido ultrapassado o prazo regra de reclamação administrativa (como sucedeu no caso dos autos);

b)           A Autoridade Tributária tem de o decidir, por “iniciativa da administração tributária”, porque vinculada ao princípio da legalidade: tomando notícia (por informação do contribuinte) de ilegalidade – tem a obrigação de a suprir.

c)            Não se trata de um alargamento dos prazos de reação do contribuinte, mas da reposição da legalidade, a que a AT está vinculada.

d)           O erro imputável aos serviços abrange qualquer ilegalidade em matéria fiscal, não imputável ao contribuinte, mas à AT (independentemente de culpa dos funcionários): alegada não observância da legalidade em matéria fiscal, por errada interpretação e aplicação ao caso do art. 23.º do CIRC.

e)           Indeferido esse pedido (que funciona como uma reclamação administrativa), de forma expressa ou tácita, o contribuinte tem meio judicial de reação: se em causa estiver a anulação de uma liquidação de imposto, a forma de reação é a Impugnação judicial (ou a ação arbitral).

No caso concreto, é esse o objeto da pretensão do requerente: o pedido de revisão oficiosa e a presente ação arbitral têm por objeto a anulação de uma liquidação de imposto, que o contribuinte reputa de ilegal, por motivos vários. Logo, o tribunal arbitral tem competência para analisar o presente caso, que se circunscreve à anulação de uma liquidação de imposto.

A requerida objeta, ainda, com o argumento de que o tribunal não tem competência para analisar sobre a verificação ou não dos pressupostos do pedido de revisão (se foram ou não bem aplicados pela AT) – ao que se percebe, quer-se dizer com isso que o tribunal está a analisar matéria que escapa à legalidade da liquidação (e, por isso não teria competência).

O argumento não procede: o tribunal tem de decidir se tem competência para analisar a presente pretensão. Nesse contexto, pode e deve ponderar todos os argumentos e apreciações, de facto e de direito, que sejam necessários para a sua decisão. Nomeadamente acerca dos pressupostos do art. 78.º da LGT – e sua verificação no caso em concreto.

A Autoridade Tributária suscita ainda a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 2.º da Portaria de vinculação e artigos 2.º, 25.º e 27.º do RJAT (!), quando interpretada no sentido de que tal pressupõe “a dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ao recurso jurisdicional pleno”.

A invocada violação dos princípios do Estado de Direito e da separação de poderes e do direito de acesso à justiça e da legalidade, por referência aos artigos 2.º, 3.º, 20.º, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 3, da Constituição, sem qualquer outro desenvolvimento ou explicitação, faz supor que a Requerida entende a sujeição de um litígio a um tribunal arbitral, fora dos casos legalmente tipificados, como correspondendo à violação de reserva de jurisdição, com a consequente descaracterização da própria atividade jurisdicional do tribunal arbitral.

Importa começar por fazer notar, a esse propósito, que a Constituição, no seu artigo 202.º, instituiu uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais, podendo aí distinguir-se entre a reserva absoluta de jurisdição, constituída por aquelas situações que são substancialmente jurisdicionais e não poderão ser dirimidas por órgãos administrativos ou entidades não judiciais, e a reserva relativa de jurisdição, integrada por aquelas outras situações em que a garantia de justiça se basta com a possibilidade de um reexame judicial através de uma via de impugnação ou recurso para os tribunais.

Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, a existência de uma reserva de jurisdição é ainda o corolário da aplicação dos princípios da separação e interdependência de poderes: sendo a competência dos órgãos de soberania definida na Constituição e devendo estes observar a separação e a interdependência nela estabelecidas (artigos 110.°, n.º 2, e 111.0, n.º 1), haverá de concluir-se que a atribuição constitucional de determinada competência a um certo órgão de soberania exclui a possibilidade de ela poder vir a ser legalmente atribuída a qualquer outro, salvo explícita ou implícita autorização constitucional (acórdão n.º 71/84).

Ora, os tribunais arbitrais são uma das categorias de tribunais expressamente consagrada na Constituição (artigo 209.º, n.º 2), e, como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional, ainda que não sejam órgãos estaduais nem se enquadrem na definição de órgãos de soberania, “nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais” (acórdãos n.ºs 230/86, 52/92 e 250/96). E enquanto categoria de tribunais constitucionalmente consagrada, eles estão sujeitos aos mesmos limites que impendem sobre os tribunais estaduais, as suas decisões têm natureza jurisdicional, e os árbitros estão submetidos a um estatuto similar ao dos tribunais judiciais, sendo-lhes aplicáveis as exigências constitucionais de independência e imparcialidade como forma de assegurar a confiança na jurisdição arbitral.

Por outro lado, como tem sido afirmado repetidamente, o recurso à arbitragem constitui um direito fundamental, que, como tal, se encontra coberto pelo disposto no artigo 20.º da Constituição, e a possibilidade de resolução de litígios através de um tribunal arbitral escolhido pelas partes é ela própria uma concretização da garantia de acesso ao direito e aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (cfr. FAUSTO QUADROS, “Arbitragem necessária, obrigatória, forçada: breve nótula sobre a interpretação do artigo 182.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, in Estudos em homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. II, Coimbra, 2012 pág. 258, e RUI MEDEIROS, “Arbitragem necessária e Constituição, in Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, pág.1318, e, em idênticos termos, os acórdãos TC n.ºs 250/96 e 506/96).

E, nesse plano, não há motivo para estabelecer qualquer diferenciação em relação à arbitragem necessária, visto que a Constituição, ao reconhecer a possibilidade de existência tribunais arbitrais, não distingue entre tribunais arbitrais voluntários e necessários, legitimando o entendimento de que esses tribunais poderão ser constituídos pelos cidadãos no exercício da autonomia de vontade, como também podem ser criados pelo próprio legislador para o julgamento de uma determinada categoria de litígios, como meio de impor aos cidadãos o recurso necessário a essa via de composição jurisdicional de conflitos (acórdãos n°s. 52/92, 757/95 e 262/98).

Acresce que, como decorrência do princípio geral de direito que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção da arbitragem ou a sua aplicabilidade ao caso concreto, sendo que a decisão do tribunal arbitral sobre a sua competência está apenas sujeita ao controlo dos tribunais estaduais por via do pedido de impugnação (cfr. artigo 18.º, n.º 9, da LAV). E esse mesmo princípio, não pode deixar de ser aplicado mesmo nos casos em que o elenco de matérias sobre as quais o tribunal arbitral se pode pronunciar se encontra legalmente definido, como é o caso da arbitragem tributária.

A impugnação pode ter também como fundamento a incompetência do tribunal arbitral, com base em pronúncia indevida, quando a sentença arbitral se tenha pronunciado sobre litígios que não sejam passíveis de arbitragem à face da lei (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2016, que julgou inconstitucional a alínea c) do n.º 1 do artigo 28.° do RJAT, na interpretação normativa de que o conceito de "pronúncia indevida" não abrange a impugnação da decisão arbitral com fundamento em incompetência do tribunal arbitral, por violação concomitante dos artigos 20.° e 209.°, n.º 2, da Constituição).

Como é de concluir, o tribunal arbitral, quando decide sobre a sua competência para apreciar um litígio que lhe é submetido, está ainda exercer a sua função jurisdicional. E se o tribunal entende que é competente para apreciar a questão com base numa certa interpretação de uma disposição legal – no caso a disposição do artigo 131.º do CPPT -, essa interpretação, ainda que suscetível de ser impugnada perante um tribunal estadual por via de um pedido anulatório, não viola qualquer dos princípios constitucionais que são invocados pela Requerente.

E, por fim, esta decisão do tribunal arbitral não viola os citados princípios constitucionais: o que se almeja, bem vistas as coisas, é a consagração do critério material da legalidade (definir a solução legal, não obstante a passagem do prazo regra da reclamação administrativa), em que a AT está absolutamente vinculada à sua consagração, dentro de prazo concedido pela lei fiscal (no art. 78.º da LGT) e com isso consagra-se o princípio da legalidade e acesso à justiça. E, na medida da consagração da solução legal, nunca se viola a indisponibilidade do crédito tributário. Não há ainda qualquer violação do princípio da separação de poderes, pois a pretensão é efetuada pelo contribuinte, perante o tribunal, que se limita à interpretação e aplicação da lei vigente.

Em suma: improcede a exceção de incompetência material do tribunal arbitral solicitada pela requerida.

 

4. Matéria de direito

4.1. Questão a decidir

Como é aceite pelas partes, a questão que se coloca nos presentes autos prende-se apenas com o tratamento fiscal a dar aos juros e demais encargos suportados, em 2010, pela A... relativos aos empréstimos (de sócios e de terceiros) para a compra do capital da própria A... e que a requerente suporta em virtude e por decorrência da fusão com a sua acionista C... que contraiu originariamente essas dívidas.

Na opinião da AT, esses juros e encargos são seriam fiscalmente dedutíveis, nos termos do art. 23.º do CIRC (na redação e numeração à data dos factos) porque não indispensáveis à obtenção do rendimento ou à manutenção da fonte produtora. Para a Requerente, ao invés, esses juros e encargos seriam fiscalmente dedutíveis, por preenchimento dos requisitos ínsitos no art. 23.º do CIRC.

 

4.2. As leis aplicáveis

Segundo o art. 23.º do CIRC (na redação e numeração à data dos factos), consi¬de¬ram-se custos ou gastos:

“1. […] os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(…)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração […], gastos com operações de crédito […]”;

Por outro lado, com a fusão de empresas “extinguem-se as sociedades incorporadas […], transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante” (art. 112.º, al. a), do Código das Sociedades Comerciais).

 

4.3. Os argumentos das partes

A fundamentação (e resposta da Requerida e demais pronuncia¬mentos da AT ao longo do processo) invoca, em síntese, que os juros suportados pela A... após a consumação da fusão (e por decorrência desta operação) relativos ao financiamento inicialmente contratado pela C... diretamente para a própria a aquisição do capital da A... não merecem a natureza de indispensável para os proveitos ou manutenção da fonte produtora: após a fusão já não financiam a aquisição das participações; teria de haver, em cada ano em que se registam os juros, um balanceamento entre os encargos financeiros suportados e os proveitos e existência do ativo; esses juros não estariam ligados com a atividade normal da requerente e o ativo associado não existe e não contribuiria futuramente para rendimentos tributáveis.

O Requerente advoga, ao invés, que os juros suportados em 2010 pela A... são indispensáveis para os proveitos ou manutenção da fonte produtora, sendo por isso qualificados como um custo fiscal nos termos do art. 23.º do CIRC. Os juros são suportados pela A... no exercício da sua atividade; os juros, quando incorridos inicialmente (pela C...), eram indispensáveis aos proveitos e manutenção da fonte produtora – e se o eram no momento inicial, terão de o ser para sempre, quaisquer que sejam as modificações ulteriores (mesmo com a fusão); a fusão, entre os seus efeitos normais, leva a que ao resultado económico e fiscal dos autos; a fusão é uma operação permitida pela lei comercial e fiscal e a AT, na fundamentação do ato, não invoca o pretenso abuso da operação de fusão, seguida da aquisição, nos termos do art. 38.º, n.º 2, da LGT.

 

4.4. Decisão

Os árbitros analisaram toda a retórica aduzida pelas partes (em todas as peças escritas e documentos apresentados ao longo do processo), bem como a argumentação e ponderação de decisões arbitrais anteriores sobre o tema – explanadas, aliás, pelas partes –, mas tendo sempre presente as (pequenas) particularidades do caso (“cada caso é um caso”).

Com efeito, várias decisões arbitrais (por exemplo, nos processos 14/2011-T e 87/2014-T) recusaram a dedução fiscal dos juros suportados pela incorporante pós fu¬são, relativos a financiamentos contraídos pela incorporada pré-fusão com vista à aqui¬sição do capital social da futura incorporante. Ao invés, existem muitas outras decisões arbitrais, por exemplo, nos processos 101/2013-T, 42/2015-T (aqui numa fusão não invertida, mas as considerações são iguais), 92/2015-T e 93/2015-T, 108/2015-T, 537/2016-T, 120/2018-T e 607/2018-T, 143/2018-T, 610/2018-T que se pronunciaram em sentido oposto, acei¬tan¬do a dedução destes encargos financeiros, por os considerarem ligados com os proveitos sujeitos a imposto.

Os árbitros ponderaram todos os argumentos das partes e o conteúdo de todas as decisões supra referidas e de¬cidiram no sentido da anulação da liquidação impugnada. Con¬sideraram que estes juros e encargos suportados pela Requerente preenchem os requisitos ínsitos no art. 23.º do CIRC para legitimar a sua dedutibilidade fiscal, com base nos argumentos a seguir explanados, por adesão ao teor da decisão 537/2016-T que, com a devida vénia, reproduzem seguidamente

Início da transcrição do Acórdão n.º 537/2016-T – adaptada às circunstâncias factuais deste processo.

“Comecemos por QUATRO notas de enquadramento, totalmente pacíficas, que ajudam a recortar a decisão da causa.

Em primeiro lugar, e como já foi referido, o tema dos autos resume-se apenas à aplicação do art. 23.º do CIRC aos juros suportados em 2010 pela requerente, relativos aos empréstimos (de sócio e de terceiros) contraídos para a compra do capital da própria requerente e que esta acaba por suportar em virtude e por de¬corrên¬cia da fusão com a sua acionista C..., SA, a qual contraiu originariamente essas dívidas.

Como segunda nota – relevante para a decisão – é necessário ter presente o teor do Acórdão do STA de 2/12/2011, proc. 0865/11 (num caso de cisão-fusão).

Esse aresto veio estabelecer que a noção fiscal de fusão (passível de neutralidade fiscal) é mais alargada do que a definição legal do CIRC que exigia, à época, o formalismo jurídico de atribuição aos respetivos sócios de títulos representativos do capital social da outra entidade. Há neutralidade fiscal na operação de fusão regulada no direito comercial, ainda que não envolva a atribuição aos sócios de títulos representativos de capital – como acontece, sinto-mati¬camente - entre outros casos, na situação de fusão invertida. Quer dizer: o STA equiparou em termos fiscais a fusão inversa e a fusão não inversa, reconhecendo a neutralidade fiscal de ambas as operações, ainda que não envolvam a atribuição de ações aos sócios.

Esta jurisprudência ilumina a decisão dos autos: é um dado assente que as fusões, invertidas ou não invertidas, possuem o mesmo regime jurídico, seja no âmbito do direito comercial, seja em matéria fiscal, nomeadamente ao nível do regime fiscal de neutralidade fiscal descrito no art. 73.º e ss. do CIRC. Ou seja, a operação de fusão descrita no direito comercial – seja invertida ou não – merece o mesmo tratamento e regime para o direito fiscal: quer no que tange à neutralidade fiscal (diferimento de tributação dos réditos associados a estas operações de fusão); quer, em geral, nas consequências tributárias, diretas ou indiretas, delas decorrentes.

Não há, por assim dizer, uma fusão de primeira – não inversa – com neutralidade fiscal e, em geral, aceitação fiscal da estatuição imposta pelo direito comercial; e uma fusão de segunda – a inversa – em que essas estatuições ou não se verificariam ou verificar-se-iam de forma mais casuística e excecional.

Nada disso: existe apenas a operação de fusão, englobando a invertida e não invertida, exatamente com o mesmo regime jurídico tributário, e com as mesmas e exatas motivações para as diversas consequências fiscais que lhe estão associadas.

Quer isto dizer, olhando para o caso dos autos, que a resposta legal é a mesma, quer exista ou não uma fusão invertida. O regime da aceitação fiscal dos juros em causa tem o mesmo enquadramento, considerações e solução, quer a fusão fosse não invertida, quer no caso de fusão invertida escolhida pelas partes. Nem tem, sequer, de existir uma fundamentação acrescida dos requerentes para explicarem porque escolheram uma e não a outra. Isso entra na liberdade total das partes, que ao intérprete cabe respeitar, no pressuposto, evidentemente, de ocorrer uma verdadeira e real fusão – e isso é um dado assento no processo, pois ninguém o põe em causa.

A terceira nota tem que ver com o regime da fusão sob a perspetiva jurídica e do direito comercial. Uma fusão (invertida ou não) não se assemelha, em termos económicos, a uma liquidação de sociedades. Aqui, ocorre o desaparecimento jurídico e económico de uma sociedade, porque esgotou o seu objeto ou interesse societário.

Na fusão, ao invés, o desaparecimento jurídico não se associa à morte económica da empresa, que continua, embora reestruturada, na sociedade resultante da fusão, quer na perspetiva da sociedade (prossecução da atividade), quer na ótica dos sócios (igual empenho naquelas atividades). Extingue-se a sociedade incorporada, sem dúvida; mas transmitem-se todos os direitos e obrigações para a Sociedade incorporante, que prossegue a atividade da “falecida” (art. 112.º, al. a), do CSC). Há uma modificação jurídica, com continuidade económica (Ac. do STA de 13-04-2005, proferido no processo 01265/04 e Ac. do TCA-Sul de 17-04-2012, proferido no processo 04172/10, consultável em www.dgsi.pt).

A quarta nota – dado aceite pelas partes – tem que ver com a pacífica aceitação, expressa e implícita, da dedução destes encargos financeiros se não tivesse ocorrido a fusão, por cumprimento dos requisitos do art. 23.º do CIRC. Aqui, em 2010 uma sociedade (C..., SA) para adquirir um ativo (capital social da requerente), como forma de exercício da sua atividade e perspetiva lucrativa, tem de se financiar junto de terceiros (banca e sócios), suportando, ao longo do tempo, os inerentes encargos financeiros anuais associados ao financiamento. Não se questiona – e cremos que bem – que previamente à fusão, na perspetiva da C..., SA, estávamos em presença de juros de capitais alheios aplicados na exploração (art. 23.º, n.º 1, al. c), do CIRC).

Pois bem:

A questão dos autos é assim a de saber se a fusão – invertida ou não – altera este estado de coisas; se os juros, outrora aceites em termos fiscais (de forma pacífica), deixam de o ser após a fusão, por incumprimento superveniente dos requisitos do art. 23.º, do CIRC (requisito geral da indispensabilidade e especial de aplicação na exploração).

A resposta, como o dissemos, vai no sentido da dedução fiscal desses juros, mesmo após a fusão, agora na esfera da Requerente, por três principais argumentos, a seguir explanados – e tendo presente as considerações anteriores.

O PRIMEIRO prende-se com a análise do teor literal art. 23.º, n.º 1 do CIRC [atual art. 23.º, n.º 2, al. c)]: a dedução dos encargos financeiros exige que os “juros de capitais alheios sejam aplicados na exploração”. E todos concordam que, no momento inicial, o crédito obtido (dos bancos e dos sócios) foi aplicado na exploração, com a aquisição da participação na Requerente, por parte da C..., SA – subsumindo-se, no exercício da sua atividade e prossecução do lucro.

Ocorre depois uma fusão, segundo as regras legais do direito comercial – fosse invertida ou não (como se viu, o padrão para o caso concreto é o mesmo). Com essa operação, não se pode dizer que os capitais alheios deixaram de ser aplicados (os financiamentos continuaram) e mantêm-se afetos à exploração, agora reestruturada por efeitos legais da fusão (transmissão dos direitos e obrigações para a sociedade incorporante). Ou seja: não ocorre um desvio do financiamento, num intuito abusivo, no sentido que serve-se agora o favorecimento de interesses extra empresariais, p. ex., em benefício de um sócio. Nada disso: o que ocorre é apenas a produção dos normais efeitos económicos da fusão, consentidos e impostos pelo direito comercial, e é impossível concluir que os efeitos dessa operação, seguindo os estritos ditames do direito comercial, redundam na tutela de interesses alheios ao interesse societário, apenas para beneficiar abusivamente terceiros da operação de fusão. Este resultado interpretativo seria uma verdadeira contradição nos seus termos, porque equivaleria a admitir que o direito comercial, ao regular a fusão (invertida ou não) permitiria resultados que violariam a tutela dos interesses acautelados por essa disciplina jurídica.

Em suma: se os juros eram fiscalmente aceites previamente à fusão (porque os capitais alheios estavam aplicados na exploração), então também o serão após a fusão (invertida ou não), que se limitou a seguir as regras do direito comercial, de transmissão de todos os direitos e obrigações da incorporada, porque após a fusão, continuam a ser considerados juros de capitais alheios aplicados na exploração.

O SEGUNDO argumento pondera a situação similar (idêntica aos autos) em que, havendo ou não uma fusão superveniente, a Sociedade decidisse abdicar do objeto do investimento (por não ser rentável), mas tivesse evidentemente de manter o financiamento que proporcionou os meios financeiros para o investimento.

Suponhamos que uma empresa X compra uma máquina de valor elevado para prosseguir uma nova atividade – e financia-se junto da Banca para a comprar e que pagará 100 mil euros de juros durante 10 anos (e no final terá de amortizar o capital). Imagine-se agora que a empresa conclui, no final do 4º ano, que essa atividade não é rentável, pois não há mercado para os produtos produzidos pela máquina, pelo que decide abandonar a produção e a máquina é desligada e “abandonada”. Claro que terá de continuar a pagar os juros anuais de 100 mil euros. Mas será que esses juros, a partir do 5º ano, não serão dedutíveis ao rendimento fiscal, por se advogar que não são aplicados na exploração ou que não são indispensáveis para os proveitos ou manutenção da fonte produtora?

Ora, aqueles encargos manter-se-ão dedutíveis, não obstante o desaparecimento – por via de uma decisão empresarial – do objeto em que os capitais alheios que remuneram foram aplicados. O capital alheio foi aplicado na exploração no momento inicial – dando origem ao investimento produtivo. E isso é suficiente e bastante para legitimar a dedução fiscal dos juros daí decorrentes, independentemente das vicissitudes empresariais futuras desse investimento. Os encargos financeiros continuam a ser dedutíveis, ainda que o investimento se tenha gorado ou se tenha revelado como um mau negócio ou uma decisão empresarial infrutífera – pois, e é isso que importa, os capitais alheios estiveram ligados a um investimento que no momento inicial foi aplicado na exploração.

E se isto é assim, independentemente da ocorrência de qualquer fusão (mas no desinvestimento económico), sê-lo-á ainda com mais propriedade em caso de fusão, em que, como se viu, não há uma decisão subjetiva de qualquer desinvestimento, mas apenas a objetiva transmissão de direitos e obrigações, por efeito legal desse instituto do direito comercial.

Claro que as considerações anteriores poderiam ser confrontadas – em termos fiscais – e este é o TERCEIRO argumento, com a existência de um encadeamento de operações para propositadamente proporcionar um resultado fiscal indesejado, de abusiva poupança de impostos, traduzido numa aquisição de partes sociais com utilização de financiamento, imediatamente seguida de fusão (invertida ou não) com o propósito de diminuir abusivamente os impostos a pagar nos anos seguintes pela sociedade operacional e lucrativa (por efeito dos encargos financeiros que haviam sido suportados para a sua aquisição). Não estamos a dizer que esse abuso ocorreu no caso dos autos. O que importa frisar é que a AT, na fundamentação do ato tributário, não convocou esse arsenal argumentativo para justificar a liquidação, em substituição ou cumulativamente com o art. 23.º do CIRC. Apesar de desconfiar do encadeamento temporal e cronológico das operações e da “poupança fiscal” assegurada com a dedução dos juros do financiamento da aquisição da requerente sobre os proveitos operacionais das mesmas empresas (pós fusão), não sustentou a correção fiscal no art. 38.º, n.º 2, da LGT ou no art. 73.º, n.º 10, do CIRC ou sequer no art. 63.º do CIRC (invocando uma quantificação excessiva dos juros entre sociedades em relações especiais). E o julgador, no contencioso fiscal, tem de se debruçar sobre o objeto do processo, tal como recortado pela fundamentação, sob pena de ilegal fundamentação a posteriori e intromissão no poder dever do poder executivo.

E, para finalizar, o art. 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do art. 38.º, n.º 2, da LGT, art. 73.º, n.º 10 do CIRC ou art. 63.º do CIRC. Cada norma tem um conteúdo prescritivo diverso – e o art. 23.º do CIRC não funciona como uma norma anti abuso substitutiva daqueles outros preceitos. O art. 23.º do CIRC limita o seu raio de ação à não dedução fiscal dos gastos assim contabilizados, mas que, quando contraídos (ou os investimentos efetuados) não se inserem no interesse económico da Sociedade, mas servem interesses extra societários, dos administradores ou de terceiros. Suponhamos que uma Sociedade suporta os juros de um financiamento por si contraído para efetuar um investimento apenas em benefício privado de um sócio ou administrador (e isso não é reconduzido a um rendimento em espécie da pessoa singular). Ou que se financia na banca para entregar essa quantia financeira a terceiro, sem qualquer contrapartida, fora do grupo ou fora do seu objeto social. Nesses casos, os juros que vier a suportar com esses fundos não são fiscalmente dedutíveis porque não foram (ab initio e para sempre) aplicados na exploração da Sociedade.

O caso dos autos é totalmente diverso. Os capitais alheios foram aplicados na exploração; e caso se pretendesse invocar que todas as operações se reconduziriam a um abusivo esquema de encadeamento de operações, ainda que lícitas sob o ponto de vista civil, para obter-se um ganho fiscal – o que nalguns passos da inspeção é isso o que fica subentendido – então a fundamentação não se teria de socorrer do instituto do art. 23.º do CIRC mas, como se explicou já, de outros institutos à mercê da lei fiscal para tentar alcançar tal resultado corretivo.

*

A argumentação exposta basta para se proceder à anulação da liquidação im¬pugna¬da. Não é assim necessário explorar os demais argumentos expostos pela impu¬gnan¬te (repercussão da neutralidade fiscal da operação de fusão sobre a dedução dos encargos financeiros decorrentes de empréstimos transmitidos por via de fusão neutra, violação do princípio da tributação pelo lucro real, princípio da liberdade de gestão) e que decorrem dos demais processos judiciais (assistência financeira).

Fim da citação do processo 537/2016-T

 

5. Quanto aos juros indemnizatórios

O art. 43.º, n.º 1, da LGT dispõe que são devidos juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando se determine em impugnação judicial (e a ação arbitral é incluída nesse ditame legal, por coerência e unidade do sistema jurídico) que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento de dívida tributária superior à devida.

Por outro lado, nos termos do art. 43.º, n.º 3, al. c) da LGT, os juros indemnizatórios são devidos a partir de um ano após o pedido de revisão efetuado pelo contribuinte (e não desde a data de pagamento da quantia indevidamente liquidada) – no mesmo sentido cfr. Ac. TCA Sul de 26/6/2014, proc. 07698/14).

Ora, é isso o que sucede nos autos: A AT, ao produzir a liquidação de IRC agora anulada, implicou um pagamento de imposto pelo contribuinte, afinal indevido e exigido apenas, por erro imputável aos serviços da AT (que efetuou uma liquidação de imposto ilegal), mas cujo prazo só se começa a contar após um ano contado do pedido de revisão oficiosa (a partir de 16/8/2019) (cfr. também art. 24.º do RJAT e art. 100.º da LGT).

 

6. Decisão

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a.            Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação impugnada de IRC e Juros de 2010: IRC 2014...; liquidação 2014...; liq 2014...; liq 2014..., e demonstração acerto

E em consequência:

b.            Ordenar a devolução à requerente do IRC de 2009 por ela pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados de 17/8/2019 até integral reembolso.

 

7. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 237.794,86€.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de fevereiro de 2020

 

Os Árbitros

Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente),

 

Tomás Cantista Tavares (árbitro vogal)

 

Manuel Pires (árbitro Vogal – que votou vencido conforme declaração junta)

 

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

1.            Votei vencido por entender verificar-se a incompetência material do tribunal arbitral. O artigo. 1º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, estabeleceu “a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”. No entanto,” A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros dos governos responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos” (art. 4° n° 1 do citado Decreto-Lei). Daí não corresponder à lei a simples opção entre aderir ou não, genérica e abstractamente, à arbitragem. mas sim aderir a algo com limitações admissíveis que seriam concretizadas. Em conformidade, na Portaria n° 112-A/2013, de 22 de Maio, estabeleceu- se a vinculação da agora AT à jurisdição dos tribunais arbitrais (artigos 1º e 2º proémios) “com excepção das (...) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, que não tenham sido precedidos de recurso de via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” [citado artigo 2º alínea a)]. A adesão, pois, “ a este mecanismo de resolução alternativa de litígios “foi” nos termos e condições aqui [na citada portaria] estabelecidos, atendendo à especificidade e valor das matérias em causa”, não se podendo, assim, invocar, sem mais, a plenitude do carácter alternativo da arbitragem com a impugnação, visto terem sido permitidas e estabelecidas limitações a que se tem necessariamente de atender, até pela sua relevância redobrada, no caso, por, não obstante ser excepção a apreciação do agora em causa, opera-se o retorno à possibilidade da competência, cumprindo-se algo que, sem ele, estaria fora do campo da arbitragem, isto é, está-se perante uma excepção à excepção. A limitação, no caso sob julgamento, é a precedência da reclamação graciosa e não “o recurso à via administrativa” em geral referido, mas imediatamente limitado. De outro modo porque se acrescentou algo ao recurso a tal via? Seria uma inutilidade. E é porque existe especificidade e não generalidade que não é aceitável a ideia de que o desejado foi qualquer tipo de apreciação prévia pela Administração, de algo por ela não ainda considerado, a ser submetido a entidade fora do seu âmbito, e não é aceitável porque houve especificidade estabelecida pela norma, houve limitação da via a utilizar. Aliás, a limitação é ainda mais ostensiva quando a lei de autorização da Arbitragem refere, no âmbito das possibilidades do objecto do processo, os actos” de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação”, redacção muito mais ampla do que a acolhida finalmente. É certo estarem ultrapassados desde há muito os brocardos in claris non fit interpretatio ou ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, mas a extensão da letra da lei, o que ocorreria no caso da opinião contrária, só é admissível por razões claras e determinantes, o que não ocorre, bem pelo contrário, visto nem sequer haver quaisquer razões, atento a reclamação graciosa e a revisão (oficiosa) constituírem procedimentos diversos quer pela iniciativa ( artigos 68º do CPPT e 78º da LGT), quer pelos objectivos ( idem), quer pelos prazos (artigos 70º do CPPT e 78º da LGT) quer pelo decisor (artigos 75º do CPPT, 78º da LGT e 6º n.º 4 do Decreto-lei nº 433/99), quer pelos efeitos ( artigos 68º do CPPT e 79º da LGT ), sendo assaz relevantes, no caso em apreciação, os prazos e o decisor, diversidade bem patente e que é contrariada pela opinião contrária. Portanto, não é indiferente o recurso a qualquer das duas vias. Como resultado do que se escreveu, não é admissível, seria mesmo incongruente que a lei incluísse implicitamente a perfeita equiparação, referindo apenas a reclamação, tendo em mente a interpretação do termo conforme a jurisprudência no âmbito da impugnação judicial cuja disposição relevante - artigo 131º do CPPT- não refere, contrariamente ao apertis verbis na norma sob análise, a reclamação a seguir a “ recurso à via administrativa”, redacção com função explícito-limitativa (daí não se ver onde está o “mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, incluído no artigo 9º nº 2 do CC para impor sentido diverso). Portanto, não basta, para sustentar a opinião contrária, a remissão para o artigo.131º do CPPT. Não existe, pois, razão para se desconhecer a reserva formulada, ferindo, com esse desconhecimento, a liberdade e a opção assumida, liberdade e opção que legal e claramente conduziram a uma alternativa restringida do processo arbitral face à impugnação, ao seu carácter alternativo, liberdade reconhecida pelo decreto- lei e simplesmente concretizada pela portaria, daí não se poder imputar a esta ilegalidade de qualquer grau. O contrário seria a ampliação da vinculação limitada que claramente foi permitida, vinculação não existente no caso da impugnação, limitação que poderia até ter sido mais ampla, dado o disposto no decreto-lei sob referência, e que, com o carácter acolhido, não impossibilita “a arbitragem como meio alternativo da resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, dado ser possível a arbitragem, o que antes não sucedia, não sendo igualmente invocável a extinção do direito do contribuinte, porque não lhe foi concedida a escolha que pode existir noutros domínios mas não neste, pelos motivos aqui amplamente referenciados. Invocar uma não concordância do género de palavra (“precedidos” em vez de “precedidas”, porque referida a pretensões) como algo probatório da falta de rigor na redacção do preceito sob análise, conduzindo a outra deficiência (!) que seria a aposição da reclamação á via administrativa em geral, aposição que, segundo a mesma opinião, seria desnecessária, é algo que, pela comparação feita, não envolve comentário prolongado, atento os dois casos serem qualitativamente bem diversos. A exigência é clara, não existe qualquer imperfeição, não esquecendo que “na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador considerou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9º n°3 do CC). No sentido sustentado, afigura-se o que o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa ensinou em 2011: ” De harmonia com o disposto no art. 2º, alínea a), da Portaria no 112-A/2011, de 22 de março, relativamente a atos de autoliquidação, a Administração Tributária apenas se vinculou a jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração da ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto é, de reclamação graciosa. Por isso, se o sujeito passivo pretender apresentar um pedido de declaração de ilegalidade perante um tribunal arbitral, a reclamação graciosa será sempre necessária “(Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, II volume, pág. 409; cfr., para outros tipos de casos, págs.430 e 428). E não se diga também, por reflectir pensamento outrora em voga e não o pensamento esclarecido actual, que a solução objecto de dissenso tem uma função garantística, visto a liquidação de impostos ter natureza agressiva ou mesmo fortemente agressiva e para apoio da nossa divergência não é necessário recorrer a Murphy e Nagel com o seu The Myth of Ownership – the taxes and justice. Nestes termos, deveria ser decidida a incompetência material deste tribunal arbitral para apreciar o presente caso, não devendo, pois, conhecer o mérito do pedido. E não se diga, utilizando o sentido usual, estar-se perante vox clamantis in deserto.

 

2.            Acrescente-se que, mesmo sendo o Tribunal competente, o que, repete-se, não constituir o nosso voto, a pretensão da Requerente não deveria merecer provimento, com todas as legais consequências.

 

2.1.        A questão objecto do julgamento é a consideração de gastos (na terminologia ao tempo custos) como dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável em IRC, operação fundamental para atingir a capacidade contributiva do SP em causa, capacidade contributiva de pessoa colectiva cuja natureza diverge, como sublinhou o saudoso Pérez d’Ayala, da capacidade contributiva das pessoas singulares. Quando os factos ocorreram, a norma aplicável - artigo 23º do respectivo Código -, na correspondente parte relevante, tinha a seguinte redacção: “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora nomeadamente os seguintes:...c) encargos de natureza financeira com juros de capitais alheios aplicados na exploração…”. “O significado do conceito de indispensabilidade”, como se pode ler, no Relatório da Comissão de Reforma do IRC, “tem sido um tema fortemente debatido, dele resultando um notório grau de incerteza quanto à dedutibilidade de certos gastos e, bem assim, um apreciável volume de litigância fiscal. Por isso mesmo, a doutrina e a jurisprudência, em particular, têm desenvolvido um significativo esforço no sentido de produzir a melhor interpretação de um tal conceito”.

É fulcral a relação de causalidade económica entre um custo para a empresa e o respectivo interesse, na qual relação não pode ser obnubilado o correspondente objecto social, o que envolve a integração na sua actividade com a finalidade, directa ou indirecta, lucrativa. No acórdão do STA, de 30.05.2012, proc. nº 171/11, concluiu-se “os custos ali [artigo 23º CIRC] previstos não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a atividade respetiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades.», bem como o seu acórdão de 10.7.2002, proc. n.º 0246/02, que decidiu: “os custos previstos naquele artigo 23.º têm de respeitar à própria sociedade contribuinte, a se” pelo que “para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedade ainda que em relação de domínio”. Ou como se julgou no acórdão do TCA Norte de 14.3.2013, proc. n.º 01393/06, “só devem ser considerados custos do exercício os que comprovadamente foram indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos ou para a manutenção da fonte produtora mas da própria soC... de e não de um terceiro. Ou seja, os custos têm que ser reportado à actividade desenvolvida pela soC...de em causa e não por outra soC...de.” e acrescenta-se, relativamente, à expressão “ capitais alheios aplicados na exploração “ , “ os juros de capitais alheios que aí [ artigo 23º nº1 c)] estão previstos são aqueles que ( também ) são aplicados na própria exploração do sujeito passivo”. Ou seja, os custos têm de ser reportados à actividade desenvolvida pela sociedade em causa e não por outra sociedade, isto é, tem de existir a subordinação ao princípio da correspondência, devidamente entendido, entre gastos e rendimentos.

No caso sob julgamento, trata-se de uma sociedade cujo objecto é o fabrico de caldeiras e radiadores para o aquecimento central e de aparelhos não eléctricos para uso doméstico, dele não fazendo parte a aquisição de acções. Como se contribui para atingir o correspondente objecto, ainda mais sobrecarregando-a, posto que por “milagre”, com um

 passivo absolutamente nada despiciendo? Tal vai contribuir para o desenvolvimento da respectiva actividade ou para preservar o que vai permitir essa mesma actividade? Que bens foram adquiridos com o financiamento de que derivam os juros que se pretendem deduzir, que gerarão rendimentos no SP ou de que resultem condições ou condições mais apropriadas para melhoria através do impulso da actvidade empresarial? Onde se descortina o nexo entre o gasto e o interesse da sociedade, considerando o seu objecto social, a sua actividade, a sua finalidade lucrativa? Podem considerar-se os custos em causa como vias abertas para a obtenção de rendimentos? A “aquisição” dos custos é potenciadora de rendimentos na “adquirente”? Se tais custos não tivessem sido assumidos, pode afirmar-se que se teria perdido uma oportunidade para o progresso na actividade do SP? Os encargos são destinados à actividade da sociedade que os suporta, porque é esta que aufere os rendimentos derivados das participações obtidas mediante os financiamentos fonte daqueles encargos? Pode contraditar-se que a aquisição das participações pelos sócios foi obtida pelos fundos resultantes do mútuo que deu origem aos custos em causa? Como é aceitável algo que conflitua com as preocupações legislativas de protecção do património das sociedades que deverá ser utilizado na actividade conforme o objecto social, obstando-se a descapitalização desnecessária? Em síntese, não ocorre a integração quer no objecto social quer na actividade quer no interesse, não se verificando a causalidade económica. Importa não esquecer que a não dedutibilidade está conexionada com o interesse público, evitando-se a diminuição do imposto devido. E importa adjuvar - não constituindo novo fundamento, mas apenas reforço do argumento da inaplicabilidade do parcialmente transcrito artigo 23º, fundamento da Requerida, conduzindo a que não apenas a consideração específica, autónoma fiscal implica o repúdio da posição contrária ao aqui suscitado - a proibição do artigo 322º do CSC, segundo o qual “1. Uma sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer  forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira acçōes  representativas do seu capital” .Esse procedimento é contrário à sanidade da entidade que vai assumir os encargos e  sem acrescentar muito do que conduz à proibição, para a aplicação  directa do preceito ao caso sob apreciação, é suficiente a inclusão de “por qualquer  forma”  e   “por outro  meio” A proibição nele contida de financiamento por qualquer forma é violada com o desenvolvido no caso sob julgamento e que conduziu a que a sociedade incorporante financiasse o negócio por ter de suportar os encargos e a amortização do capital, importando não esquecer que essa assistência não teve qualquer resultado integrado na actividade da sociedade beneficiária e tudo isto mostra a dispensabilidade dos encargos em questão, única matéria em causa e não questões de vício do acto em si. Quem foi o último beneficiário ou, noutra terminologia, o beneficiário efectivo? A sociedade incorporante?

Não, o sócio que recebeu, “por outro meio” que não a subscrição, as participações da

sociedade incorporante, não assumindo qualquer encargo, encargo assumido pela sociedade para a aquisição das suas próprias participações. Bem se pode lembrar o dito do presente envenenado, visto receber-se o passivo de outra sociedade, sem qualquer interesse, sem integração na actividade da recebedora.

 

2.2.        Mas tudo o que fica escrito é irrelevante, porque ocorreu uma fusão? Algo importa considerar inicialmente, dada a legislação aplicável ser a vigente em 2010: o resultado da comparação entre as versões dos artigos do CIRC com a enumeração/ definição dos diversos tipos de fusão e regime desta, bem como com o regime aplicável aos sócios,

 

naquele ano e actualmente, visto apenas após 2010 - ano do caso em causa- , mais precisamente em 2014, poder ser lida a fusão inversa na enumeração do artigo 73º, [alínea e)], uma outra disposição relativa a mais-valias ou menos-valias no caso da fusão inversa no artigo 74º (nº7) e ainda a sua inclusão no artigo 76º nº1.Teria o legislador introduzido tanta disciplina legal, mormente, a sua inclusão na enumeração, sempre exaustiva, desnecessariamente, porque já antes estava incluída? O legislador foi tão perdulário na inclusão do dispensável? Poderão ser considerados certos os fundamentos legais das posições até agora sustentadas? As respostas são dubitativas?

Mas mais, porquanto importa aduzir ter o direito fiscal, ramo de direito com autonomia científica e não meramente pedagógica, princípios próprios e um deles é o do realismo económico e, por essa razão, pode divergir de construções de outros ramos de direito, não sendo suficiente invocar o artigo 9º nº 1 da LGT, porque, discutido ou não, o mesmo artigo contém o nº 3 que é hard law. Já em 1971, era escrito, com linguagem da época, num acórdão do STA. “O imposto procura ferir factos económicos, como tais, desinteressando-se de qual a sua colocação jurídica, ou até se tem algum valor jurídico. A lei fiscal tributa estados de facto e não situações de direito” (Acórdão do Tribunal Pleno, de 12 de Novembro de 1971, in AD,121, pp.139-149) ou ainda, no ano seguinte: “ perante os princípios fundamentais da obrigatoriedade geral das contribuições e impostos, da igualdade de todos os contribuintes perante o dever de suportar os encargos públicos, da legalidade da tributação do exercício real e efectivo duma actividade por factos económicos e independentemente da sua qualificação jurídica,...”( Acórdão do Tribunal Pleno, de 21 de Abril de 1972, in AD,139, pp1480-1485).

Segundo o artigo 74º nº 3.do Código do IRC, redacção de 2010 e actual: “A aplicação do regime especial determina que a sociedade beneficiária mantenha, para efeitos fiscais, os elementos patrimoniais objeto de transferência pelos mesmos valores que tinham nas sociedades fundidas, cindidas ou na sociedade contribuidora antes da realização das operações, considerando-se que tais valores são os que resultam da aplicação das disposições deste Código ou de reavaliações efetuadas ao abrigo de legislação de caráter fiscal.”. Esta disposição constitui via para a neutralidade fiscal, do diferimento da tributação, preocupação essencial no regime fiscal da fusão. Ora, mesmo admitindo-se que o legislado em 14 era dispensável, o que se admite para conveniência de argumentação, tal ocorre no caso apreciado? Lendo e perscrutando o disposto na legislação  de 2010 - abstraindo, repito, por conveniência de raciocínio, o que acima se escreveu- o conceito fiscal de fusão e o seu regime também fiscal, tendo designadamente o preceituado visado a neutralidade, não encontramos no caso sob julgamento carácter completo e com esta afirmação não se está a aplicar o artigo 38º nº 2 da LGT, está-se a ficar subordinado ao CIRC e a não se ficar subordinado, sem mais, ao que pode ser encontrado noutros ramos de direito, O direito fiscal, veramente entendido, não é um direito subalterno ou um parente pobre dos outros ramos de direito e, a fortiori, não é um ramo de direito menor, modificável ou ajustável aos ditames de ramos para ele auxiliares. Será consonante com os princípios próprios do direito fiscal, por exemplo, a recepção de doutrina que afirma a manutenção despersonalizada das empresas fundidas com a consequência de desvirtuar a realidade receptora, alterando negativamente a sua possibilidade de pagar? Na fusão, escreve-se no acórdão do STA, de 24 de Setembro de 2018, no Processo nº 120/2018-T: “ O que se afigura determinante, por conseguinte, não é que o passivo tenha sido constituído para adquirir participações sociais das sociedades beneficiárias, mas que essa aquisição se torne passível de contribuir para a obtenção de rendimentos tributáveis”. Tal ocorreu neste caso, qualquer que seja a entidade considerada? Obviamente a negação destas asserções é tentar fazer primar o formal, bem longe, pois, do que o fiscalista sabe o que preside. No caso, os bens objecto da transferência persistiram na “adquirente”, continuaram nela, essencialidade para a neutralidade base do regime fiscal especial para as fusões? Quais os bens da sociedade que vão ser objecto do roll over relief subjacente à disciplina da fusão? Na verdade não se vê possibilidade de tal ser efectivamente aplicado em situações como a sob julgamento.

Aliás, já foi invocado, como um dos suportes da opinião contrária à não dedução, o “espírito” comunitário no âmbito das fusões Esse argumento foi integralmente rejeitado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no acórdão C- 48/2018, de 15 de Julho de 2019, no qual pode ser lido : “ 49. No caso em apreço, há que salientar que uma legislação nacional como o artigo 23.° do CIRC, que, no âmbito do regime fiscal geral, enuncia, para a determinação do lucro tributável, todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas que são dedutíveis, não é abrangida por nenhuma das situações previstas pela Diretiva 90/434 e recordadas no número anterior. 50. Por conseguinte, por força do princípio da autonomia fiscal dos EstadosMembros, cabe a estes determinar, no respeito do direito da União, se e, sendo caso disso, em que condições os gastos incorridos por uma sociedade podem ser dedutíveis do seu rendimento tributável (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de outubro de 2014, van Caster, C326/12, EU:C:2014:2269, n.° 47, e de 14 de março de 2019, Jacob e Lennertz, C174/18, EU:C:2019:205, n.° 30 e jurisprudência referida). Daqui resulta que a Diretiva 90/434 [Directiva da fusão] não se opõe a uma legislação fiscal como a que está em causa no processo principal. 51. Face ao exposto, há que responder às questões submetidas que a Diretiva 90/434 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, que leva a que não sejam considerados fiscalmente dedutíveis, para a sociedade incorporante, gastos que o foram, para a sociedade incorporada, antes da fusão entre essas sociedades, e que o teriam sido se essa fusão não tivesse ocorrido”.

A tese oposta, considerando como dedutíveis os juros significa, pois, a não aplicação da exigência do artigo 23º, porquanto tem o resultado inaceitável de acolher algo contrário a esta disposição legal que visa evitar o falseamento da determinação correcta do lucro tributável como via de tributação da capacidade contributiva, impedindo a diminuição do imposto a pagar, protegendo o interesse público fundamento da tributação. Aliás, onde se encontra na opinião contrária a businesslike approach?

 

3 Concluindo: Pelo que foi escrito, não se torna, pois, necessária, para a improcedência do pedido, o apelo à não invocação do artigo 38º nº 2 da LGT, visto ser suficiente o sempre citado artigo 23º CIRC. Daí, entender que, mesmo que o Tribunal fosse competente, o que não se concede, mantendo-se a opinião contrária, a improcedência do pedido deveria ter sido decidida, com todas as consequências legais emergentes dessa improcedência.

 

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2020

 

(Manuel Pires)