Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 441/2019-T
Data da decisão: 2020-02-24  IRC  
Valor do pedido: € 512.569,12
Tema: IRC – Insolvente – Rendimentos provenientes do exercício de actividade económica; Fundada dúvida.
Versão em PDF

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Jorge Bacelar Gouveia e José Nunes Barata, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 01 de Julho de 2019, A..., S.A. – EM LIQUIDAÇÃO, NIPC..., com sede em ..., ..., ...-... ..., representada pelo seu Administrador de Insolvência, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRC n.º 2019 ... e n.º 2019..., referentes aos exercícios de 2014 e 2015, e respectivas liquidações de juros compensatórios, no valor global de € 512.569,12.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             a inexistência de facto tributário, uma vez que as alienações dos imóveis foram levadas a cabo por uma sociedade insolvente em fase de liquidação, pelo que não visavam o desenvolvimento de uma actividade comercial, nem integram o conceito de mais-valias e menos-valias previsto no Código do IRC;

ii.            a violação do princípio da capacidade contributiva e do princípio da tributação do rendimento real;

iii.           a inexistência de qualquer lucro para a Requerente decorrente das escrituras públicas celebradas;

iv.           ainda que se entenda que o artigo 268.º do CIRE abrange as situações de alienação de património por sociedades insolventes em liquidação que não prossigam a sua actividade, deve prevalecer o princípio da substância sobre a forma, uma vez que algumas das escrituras públicas celebradas, embora façam menção a “compra e venda” configuram, em seu entender, uma verdadeira dação em cumprimento.

 

3.            No dia 02-07-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 20-08-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 09-09-2019.

 

7.            No dia 14-10-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

 

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A sociedade. A.., S.A é uma sociedade anónima, inscrita no cadastro da AT desde 28-08-1990, com o CAE – 411000 – Promoção imobiliária (desenvolvimento de edifícios).

2-            A sociedade A..., S.A esteve enquadrada, para efeitos de IVA, no regime trimestral e, para efeitos de IRC, no regime geral de tributação.

3-            A sociedade A..., S.A. foi declarada insolvente por sentença datada de 18-05-2012, no âmbito do processo de insolvência n.º.../12...TB…, que correu termos junto do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de …, em que se reconheceu que o activo revelado não era suficiente para garantir o pagamento dos credores.

4-            A sociedade A..., S.A. apresentava um passivo global de €45.913.626,81, dos quais:

             €17.463.973,75 correspondiam a créditos garantidos titulados pela B..., S.A.;

             €885.685,39 correspondiam a créditos garantidos titulados pela C..., S.A.;

             €4.555.385,01 correspondiam a créditos garantidos titulados pelo D... .

5-            Os referidos créditos garantidos estavam associados às hipotecas existentes sobre os imóveis objecto do relatório de inspecção.

6-            No âmbito do processo de insolvência, foi nomeada uma Comissão de Credores e determinada a prossecução da insolvência para liquidação, por manifesta inviabilidade de manutenção da actividade da empresa insolvente.

7-            Por deliberação de 26-09-2012, a Requerente foi encerrada, tendo sido decretado o início da sua liquidação e averbada no cadastro da AT a cessação de actividade.

8-            No contexto da liquidação da massa insolvente, a Requerente, no ano de 2014, outorgou as seguintes escrituras públicas de “compra e venda”:

 

9-            No ano de 2015, a Requerente celebrou as seguintes escrituras públicas, denominadas de “compra e venda”:

 

10-         Em 26-03-2014, foi celebrada uma escritura pública de “compra e venda” com E.../F..., relativa ao prédio urbano sito na ..., Lote ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e na respectiva matriz sob o artigo ..., que se encontrava hipotecado a favor do credor B..., S.A., na sequência da decisão do Administrador de Insolvência de cumprimento do contrato promessa de compra e venda.

11-         Em 16-04-2014 foi celebrada uma escritura pública de “compra e venda” com G.../H..., relativa ao lote terreno para construção, sito na ..., lote..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e na respectiva matriz sob o artigo ..., que se encontrava hipotecado a favor do credor B..., S.A., na sequência da decisão do Administrador de Insolvência de cumprimento do contrato promessa de compra e venda.

12-         O Administrador de Insolvência prosseguiu com a venda judicial, por proposta em carta fechada, dos prédios urbanos, sitos no ..., lote ... e lote ..., freguesia de ..., concelho de ..., descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs ... e..., respectivamente, e na matriz da referida freguesia sob os artigos ... e ... .

13-         Ambos os imóveis tinham hipoteca constituída a favor do D... .

14-         O Administrador de Insolvência solicitou ao credor hipotecário dos referidos imóveis, o D..., que se pronunciasse quanto à modalidade de venda e valor base a atribuir a esses bens.

15-         De seguida, o Administrador de Insolvência determinou que a venda prosseguisse por proposta em carta fechada, atribuindo ao lote 60 o valor mínimo de venda de €175.000,00 e ao lote 77 o valor mínimo de venda de €229.000,00.

16-         A referida venda ficou deserta por inexistência de propostas, tendo os bens sido mantidos em venda por negociação particular.

17-         Decorrido um ano sobre o início da venda por negociação particular, as melhores propostas de aquisição sobre os imóveis em causa foram a de I...e J..., quanto ao lote 77, por um valor de venda de €194.650,00, e a de K... e L... quanto ao lote 60, por um valor de venda de €148.750,00.

18-         O Administrador de Insolvência formalizou a adjudicação judicial desses bens, através do processo Casa Pronta n.º .../2015, celebrado a 16-01-2015, respeitante ao lote 77, e da escritura pública celebrada a 16-07-2015, respeitante ao lote 60.

19-         Em 23-05-2014, foi celebrada uma escritura de “compra e venda” com a C... CRL que formalizou a aceitação da proposta de aquisição do lote de terreno para construção, sito na ..., ..., freguesia de ..., concelho de..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e na respectiva matriz sob o artigo ... .

20-         O referido imóvel foi colocado à venda pelo Administrador de Insolvência, por proposta em carta fechada, pelo valor de venda mínimo de €360.000,00, tendo a proposta da C... CRL pelo valor mínimo, sido a única oferta recebida.

21-         Em 21-03-2014, foi celebrada uma escritura de “compra e venda” relativa a imóveis colocados à venda, por proposta em carta fechada no dia 20-01-2014, tendo sido adquirente a B..., S.A.

22-         A venda dos referidos imóveis por carta fechada ficou deserta, tendo o Administrador de Insolvência solicitado à B..., S.A, credor hipotecário dos mesmos, que se pronunciasse quanto à possibilidade de os adquirir.

23-         Em 08-02-2014, a B..., S.A. confirmou a intenção de adjudicação dos imóveis sobre os quais detinha hipoteca.

24-         Em 10-07-2015, foi celebrada a escritura de compra e venda de vários imóveis com a B..., S.A., no Cartório Notarial de M... .

25-         Os credores C... e B..., S.A. detinham hipotecas sobre os imóveis que lhes foram transmitidos, tendo reclamado e lhes sido reconhecidos créditos garantidos de valor muito superior ao montante global dos produtos das vendas referentes às escrituras aqui em causa.

26-         A Requerente não reflectiu contabilisticamente as vendas efectuadas pelo administrador de insolvência, considerando que as referidas alienações não geraram rendimentos tributáveis.

27-         A Requerente foi objecto de um procedimento inspectivo externo, ao abrigo das ordens de serviço n.º OI2018... e OI2018..., de âmbito parcial (IRC), com referência aos anos de 2014 e 2015.

28-         Através da consulta do sistema informático, nomeadamente da declaração Modelo 11, a AT detectou a existência de alienações de imóveis nos anos de 2014 e 2015, sem que a Requerente tivesse declarado na IES, no campo relativo a “Vendas e Serviços Prestados”, quaisquer valores.

29-         A AT solicitou cópias das escrituras aos Cartórios Notariais onde as mesmas foram lavradas, tendo constatado que o Administrador de Insolvência, na qualidade de fiel depositário dos bens da Requerente, e como representante da massa insolvente, procedeu à alienação onerosa de bens imóveis na mesma integrados.

30-         Do relatório final de inspecção tributária, consta o seguinte:

 

31-         Da referida inspecção, resultaram correções técnicas em sede de IRC, para os anos de 2014 e 2015, no valor de €476.687,52 e €1.705.570,45, respectivamente.

32-         A Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IRC n.º 2019 ... e n.º 2019..., relativos aos anos de 2014 e 2015, respectivamente, no valor global de €512.569,12.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

                Nos presentes autos, a AT procedeu a correcções que qualificou como meramente aritméticas, considerando como rendimentos o produto das escrituras de compra e venda, outorgadas pelo administrador de insolvência da Requerida, nos anos de 2014 e 2015, no decurso do procedimento de liquidação do seu activo, decretado no respectivo processo de insolvência.

Como se viu já, a Requerente insurge-se contra as liquidações operadas, suscitando as seguintes questões:

i.             a inexistência de facto tributário, uma vez que as alienações dos imóveis foram levadas a cabo por uma sociedade insolvente em fase de liquidação, pelo que não visavam o desenvolvimento de uma actividade comercial, nem integram o conceito de mais-valias e menos-valias previsto no Código do IRC;

ii.            a violação do princípio da capacidade contributiva e do princípio da tributação do rendimento real;

iii.           a inexistência de qualquer lucro para a Requerente decorrente das escrituras públicas celebradas;

iv.           ainda que se entenda que o artigo 268.º do CIRE abrange as situações de alienação de património por sociedades insolventes em liquidação que não prossigam a sua actividade, deve prevalecer o princípio da substância sobre a forma, uma vez que algumas das escrituras públicas celebradas, embora façam menção a “compra e venda” configuram, em seu entender, uma verdadeira dação em cumprimento.

Vejamos.

 

*

                De acordo com a doutrina e jurisprudência mais sedimentadas, a personalidade jurídica das sociedades não se extingue com a declaração de insolvência, mas apenas com o registo do encerramento da liquidação do activo.

                Assim, como se esclarece no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2007, proferido no processo 0742535:

“Assim, nos referidos Ac.s. deste tribunal de 6.10.2004 e do STJ de 2.10.2006, uma sociedade que se encontre em liquidação, enquanto se mantiver nessa situação, mantém a personalidade jurídica e continuam a ser-lhe aplicáveis, com as adaptações necessárias, as normas que regem as sociedades não dissolvidas, artigo 146º/2.

O que vale por dizer, que apesar de ter sido decretada a falência da sociedade arguida, a mesma fica com existência jurídica para a liquidação e partilha.

A sociedade apenas se considera extinta mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162º a 164º, pelo registo do encerramento da liquidação, artigo 160º/2.

Assim a personalidade jurídica da sociedade declarada falida, só se extingue com o termo da liquidação, isto porque, posteriormente a ser decretada a falência, existe uma sequência de actos ou factos jurídicos que determinam a cessação progressiva da existência da sociedade.

Donde, com a decisão de decretar a falência, a sociedade não morre, continuando a ter existência jurídica até à liquidação do seu património e só com o termo da liquidação é que se extingue a personalidade jurídica.

Já, em sede do C Comercial, em consonância com o estatuído no artigo 142º, entretanto revogado pelo C S Com., se defendia, que uma vez registada a acta final da liquidação extrajudicial ou a sentença da liquidação judicial, a sociedade carece de existência jurídica, não tendo sequer personalidade judiciária.

Com efeito, dispunha, aquela norma que “a acta final na liquidação extrajudicial ou a sentença na liquidação judicial, será publicada e averbada no respectivo registo, fixando-se o termo da existência jurídica da sociedade”.

O registo estava então, previsto no artigo 3º alínea e) do C R Comercial e hoje está previsto na alínea t) da mesma norma, correspondente ao C R Comercial, aprovado pelo Decreto Lei 403/86, entretanto, alterado por inúmeras vezes.”.

                Assim, mantendo uma sociedade a sua personalidade jurídica, mesmo após a declaração de insolvência, até ao encerramento da liquidação do seu activo, como acontece no caso sub iudice, manterá essa mesma sociedade a sua personalidade e capacidade tributárias, sendo, por isso, susceptível de ser sujeito activo e passivo de relações jurídico-tributárias, conforme decorre dos artigos 15.º e 16.º da LGT.

                Posto isto, e como discorrem as autoras citadas pela Requerente a este propósito :

“De facto, o artigo 2.º do CIRC ao definir que são sujeitos do IRC “as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais pessoas coletivas de direito público ou privado, com sede ou direção efetiva em território português”, o legislador fiscal não exclui da tributação as sociedades insolventes, porque apesar de se encontrarem em processo de insolvência não deixam se ser sociedades. Mais ainda, o legislador fiscal ao contemplar como sujeitos passivos de IRC “as entidades desprovidas de personalidade jurídica, com sede ou direção efetiva em território português”, bem como “as entidades, com ou sem personalidade jurídica, que não tenham sede nem direção efetiva em território português”, não faz depender a personalidade tributária (ou personalidade fiscal) da personalidade jurídica. Significa tal, pois, que para o legislador fiscal se determinada entidade não possuir personalidade jurídica, mas obtiver rendimentos, a mesma é sujeito passivo de IRC pois tem personalidade tributária.

Aliás, se atendermos aos artigos 15.º e 16.º da Lei Geral Tributária (LGT), no que se referem, respetivamente, à personalidade tributária e à capacidade tributária, verificamos, pois, que quem tem personalidade fiscal é quem tem capacidade contributiva, e que esta é uma faculdade de quem tem capacidade de gerar rendimentos, independentemente da personalidade jurídica. Ora, nesse sentido, a sociedade insolvente em fase de liquidação mantém, pois, a personalidade tributária. (...)

Parece-nos, pois, que, no que se refere às sociedades insolventes, o legislador fiscal de alguma forma adota os conceitos previstos no Código das Sociedades Comerciais (CSC):

Dissolução – fase prévia, que se traduz na modificação da situação jurídica, que se caracteriza pela entrada em liquidação da sociedade – conceito previsto nos artigos 141º e 146.º CSC;

Liquidação – realização dos bens e direitos que integram o ativo, que consiste em converter em disponibilidades líquidas, os saldos das diversas contas do ativo - conceito previsto no artigo 146.º CSC;

Extinção – registo exclusivo do encerramento da liquidação – conceito previsto no artigo 160.º CSC.

Todavia, e por se tratarem de sociedades insolventes, e atendendo-se ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que não adota estes conceitos, percebemos a origem da controvérsia que tem existido sobre esta temática. Senão vejamos, as normas do CIRE tratam da liquidação dos ativos insolventes e regulam a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, em favor dos credores da sociedade insolvente (e não regulam a partilha do património societário de uma sociedade dissolvida, em que a liquidação é feita no interesse dos sócios).

Mas o legislador fiscal não olha à situação jurídica, mas apenas à capacidade contributiva.”.

E prosseguem as mesmas autoras:

“Define, pois, o artigo 3.º do CIRC, no seu n.º 1 que “o IRC incide sobre o lucro das sociedades”, e que o mesmo, nos termos do n.º 2, “consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas no CIRC”. Tal significa que a base do IRC, apesar de ter a sua matriz na contabilidade, não incide apenas sobre o lucro contabilístico, mas antes numa realidade económica mais abrangente constituída por todo o acréscimo de rendimento e riqueza, tributando, assim, a globalidade dos rendimentos obtidos.

Nesse sentido, o n.º 1 do artigo 17.º do CIRC define então o conceito de lucro tributável das pessoas coletivas, sendo o mesmo “constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do CIRC”. Inclusivamente o artigo 17.º do CIRC estipula também que a contabilidade deve estar organizada de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC)7 e outras disposições específicas de cada setor de atividade.

Ora, as sociedades insolventes, quer tenha sido deliberado ou não o encerramento do estabelecimento, não estão excecionadas no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, e como tal estão genericamente abrangidas pelo SNC, e, por isso, sujeitas à obrigação de manter a contabilidade organizada. Tal resulta também da aplicação do disposto no artigo 123.º do CIRC, bem como do artigo 18.º do Código Comercial, que prescrevem a obrigação de as sociedades disporem de contabilidade organizada, nos termos da lei. Inclusivamente o conteúdo da Circular 10/2015, refere o entendimento da Comissão de Normalização Contabilística no sentido de considerar que “uma sociedade comercial, objeto de um processo de insolvência em fase de liquidação e partilha da massa insolvente, não fica dispensada de cumprir com as obrigações legais de contabilidade organizada após a data da deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento”.

Afere-se assim que, no caso das sociedades insolventes (para as quais, reforçamos, não estão comtempladas regras fiscais específicas no CIRC), e para o legislador fiscal, a base do imposto é o lucro tributável, assente num conceito de globalidade (rendimento global). Tributa-se, pois, qualquer acréscimo de riqueza, independentemente da sua fonte, obtido pelas sociedades (não importando, portanto, para a AT se estão insolventes). Nesse sentido segue também o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 0876/15.”.

                Conclui-se, assim e pelo exposto, que as sociedades comerciais, até ao registo do encerramento da liquidação do activo, em processo de insolvência, se mantém como sujeitos passivos de imposto, em concreto, e no que para o caso releva, de IRC.

 

*

                Relativamente à tributação de rendimentos decorrentes de operações praticadas pela massa falida, em processo de liquidação do activo, o STA pronunciou-se já, em termos aparentemente divergentes, em sede de IRS e IRC.

                Assim, em sede de IRS, tem aquele Alto Tribunal entendido que:

“I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.

II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente, que está obrigado a declará-lo, enquanto sujeito passivo de imposto.” .

                Neste âmbito, tem entendido o STA que:

“A mais-valia, enquanto categoria de rendimento designada por incrementos patrimoniais em sede de I.R.S., deve definir-se pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, especialmente quando o facto gerador do imposto se descreve como uma alienação onerosa, assim estando sujeita ao princípio da realização. Tal regra está em linha com o princípio da tributação do rendimento real em que assenta a tributação do rendimento nesta cédula de imposto (cfr.artºs.10, nº. 4, al.a), 44 e 46, do C.I.R.S., na redacção em vigor em 2010; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.443 e seg.; Paula Rosado Pereira, Estudos Sobre IRS: Rendimentos de Capitais e Mais-Valias, Cadernos IDEFF, nº. 2, Almedina, Reimpressão, 2018, pág.103 e seg.; Rui Duarte Morais, Sobre o I.R.S., 2ª. Edição, Almedina, 2010, pág.134 e seg.)

"In casu", a A. Fiscal baseia a liquidação adicional objecto do presente processo na declaração de substituição apresentada pelos recorrentes e no pressuposto de que a venda que originou tal acto tributário, realizada na qualidade de proprietários do imóvel em causa, gerou mais-valias enquadráveis em sede de I.R.S. no artº.10, nº.1, al.a), do C.I.R.S., mais sendo tributáveis como rendimentos de categoria “G”. E recorde-se que da dita declaração de substituição apresentada pelos apelantes, anexo G, se retira que o imóvel foi adquirido em Dezembro de 1995, pelo valor de € 3.304,00, mais sendo o valor de realização, em Agosto de 2010, de € 137.700,00 (cfr.nºs.1, 3, 4 e 11 do probatório).

O artº.10, nº.1, do C.I.R.S., então em vigor, mostrava o carácter selectivo da tributação das mais-valias, norma que consagrava uma espécie de “numerus clausus” em matéria de incidência fiscal. Assim e desde logo, afasta-se da qualificação como mais-valias os ganhos que devam considerar-se como rendimentos resultantes de actividade profissional ou empresarial, os quais se consideram como rendimento de categoria B, enquadráveis no artº.3, do mesmo diploma. Pelo que, somente os ganhos inesperados ou imprevistos, não enquadráveis numa actividade profissional ou empresarial são passíveis de enquadramento nas diversas alíneas do examinado artº.10, nº.1, do C.I.R.S. É o caso da alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, situação prevista na primeira parte da norma constante do artº.10, nº.1, al.a), do mesmo diploma (cfr. José Guilherme Xavier Basto, ob.cit., pág. 394; Paula Rosado Pereira, ob.cit., pág.88 e seg.; Rui Duarte Morais, ob.cit., pág.136 e seg.).

Revertendo ao caso dos autos, importa, antes de mais, vincar que, apesar da declaração de insolvência, os recorrentes não deixaram de ser proprietários do prédio alienado e gerador das mais-valias que deram origem à liquidação de I.R.S. impugnada, situação que se verificou até à data da venda do mesmo imóvel (cfr.nºs.1 a 3 do probatório).

É que, quando uma pessoa, singular ou colectiva, é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com o artº.36, nº.1, al.g), do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo dec.lei 53/2004, de 18/03), passando a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez que se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominado massa insolvente. No entanto, a constituição do dito património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor (insolvente) que lhe deu origem. O que significa que, com a declaração de insolvência, a massa insolvente não passa a ser um sujeito passivo de imposto distinto da pessoa insolvente, pois o sujeito passivo do imposto continua a ser apenas um: a pessoa insolvente. Ou seja, no processo de insolvência, tanto o devedor singular como o colectivo, mantêm a sua qualidade de sujeitos passivos da relação jurídica tributária. Por outras palavras, quando sobrevém a declaração de insolvência, apenas ocorre a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência, isto é, os bens não deixam de ser propriedade do insolvente, apenas se operando uma transferência daqueles poderes incidentes sobre os mesmos (cfr.artº. 81, nº.1, do CIRE; Bruno Santiago e Beatriz Capeloa Gil, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, nº.13, Julho/Setembro de 2016, pág.3 a 15; Sara Luís da Silva Veiga Dias, O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, Abril de 2012, pág.121, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em www.tributarium.net; Ana Prata e Outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág.716 e seg.).

No caso “sub judice”, o prédio alienado não deixou de ser propriedade dos impugnantes/recorrentes, mesmo após a declaração de insolvência, ou seja, não se verificou qualquer alteração da relação jurídica tributária, continuando os apelantes a ser os proprietários do prédio e sujeitos passivos do imposto até ao momento em que ocorreu a venda do mesmo, mais sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu - valores estes já supra identificados e que não foram colocados em causa nos presentes autos.”

                Relativamente à mesma matéria, o STA já havia anteriormente afirmado que :

“Atento o disposto nos arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores, podendo ser objecto de tal processo quaisquer pessoas singulares ou colectivas, sendo que, no caso, apenas nos interessa considerar a insolvência de pessoa singular.

Quando uma pessoa singular é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com a alínea g) do n.º 1 do art. 36.º do CIRE, e passam a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominada massa insolvente. A massa insolvente, de acordo com o conceito do n.º 1 do art. 46.º do CIRE, «destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo».

Esses bens são entregues ao administrador da insolvência (O administrador da insolvência é um órgão da insolvência sem poderes de representação do insolvente que seja pessoa singular, contrariamente ao que sucede relativamente às pessoas colectivas (cfr. art. 81.º, n.º 4, do CIRE).), que é quem pode exercer poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE).

Daqui decorre que a massa insolvente tem autonomia patrimonial, que existe quando se está perante uma «certa massa de bens afectada ao pagamento de um conjunto próprio de dívidas» (Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, anotação 4 ao art. 601.º, pág. 586).

No mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido, Revista da Ordem dos Advogados, Dezembro de 1995, págs. 652/653; MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, PUC 2000, pág. 127; PAULA COSTA E SILVA, A liquidação da massa insolvente, Revista da Ordem dos Advogados, 2005, volume III, págs. 717 a 719, onde fala de «património de afectação» (também disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=44561&ida=44625).), mas não constitui uma pessoa (singular ou colectiva), um novo ente, distinto daquele a quem o património autónomo continua a pertencer (() Não passam a existir duas pessoas, tal como não existem três entes em resultado de um casamento, apesar de existirem dois patrimónios próprios e um comum.). Dito de outro modo, «A constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem» (Cfr. BRUNO SANTIAGO e BEATRIZ CAPELOA GIL, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, n.º 13, págs. 3 a 15.).

A massa insolvente constitui apenas uma parte separada do património da pessoa singular a quem os bens pertencem e a quem não deixam de pertencer por força da declaração de insolvência; o que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE). Os bens não deixam de ser propriedade do insolvente; apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles.

Assim, praticando o administrador actos de liquidação da massa insolvente, designadamente vendendo (Segundo o art. 158.º, n.º 1, do CIRE, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente.) bem imóvel integrante dessa massa (venda efectuada na qualidade de fiel depositário dos bens do devedor, como representante da massa insolvente, e não em nome próprio), se a venda for efectuada por um valor superior àquele pelo qual o imóvel foi adquirido, gera um acréscimo do património do insolvente, constituindo assim um rendimento sujeito a IRS, nos termos do art. 10.º, n.º 1, alínea a), do Código daquele imposto. Como deixou já dito este Supremo Tribunal Administrativo, para a qualificação como mais-valia sujeita a tributação releva unicamente a diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi alienado e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu (Cfr. o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: - de 21 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 582/15, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b601a4ed1e38d3eb80258037004cbb31.). Aliás, nem sequer pode dizer-se que não haja benefício para o insolvente, pois esse acréscimo patrimonial beneficiou o insolvente embora na parte do seu património separada para a massa, traduzindo-se numa diminuição do seu passivo.

Neste sentido, aponta também, a contrario, o disposto no art. 268.º do CIRE, ao prever uma isenção de IRS para as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento (realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a obrigação) de bens do devedor e da cessão de bens aos credores (em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos); o que significa que, se as mais-valias não resultarem de um desses negócios previstos nesta norma de isenção, designadamente se resultarem da venda de bens da massa insolvente, e a menos que gerem rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais (Ou seja, pressupomos que os imóveis pertencem ao património particular do sujeito passivo, isto é, que não estavam afectos a qualquer actividade empresarial e/ou profissional.), estão abrangidas pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria colectável em sede deste imposto [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS].”.

 

*

                Já em sede de IRC, o STA pronunciou-se no sentido de que:

“II - A venda que tem lugar nos autos de liquidação do activo da empresa, que foi declarada falida não é uma venda de bens do seu activo imobilizado, mas a venda de bens da referida massa falida com vista à satisfação dos credores, em concurso universal.

III - Com base na falta de apresentação de declaração de rendimentos e impossibilidade de comprovação e quantificação directa do lucro tributável, poderia a Administração Tributária proceder à determinação do lucro tributável com recurso a métodos indirectos, se, tendo em conta a sua declaração de falência e a sua declaração de que cessou a sua actividade comercial em 1991, apenas relativamente às condições que subsistam de sujeição ao IRC, para além das que derivam do exercício de uma actividade económica, como sejam os negócios jurídicos que se possam ter continuado a realizar seja por serem de execução duradoura que se protelou para além da declaração de falência, ou por terem resultado da confirmação de negócios do falido posteriores à declaração de falência, ou, até pelo que sobrou do produto da venda dos bens que integravam a massa insolvente depois de pagas as dívidas da massa e os créditos reconhecidos.” .

                De igual modo, entende o mesmo Alto Tribunal que:

“I - A circunstância de se estar em presença de uma situação jurídica de falência e de liquidação do património não impede que se possam verificar ganhos fortuitos e inesperados, vendas de bens por valores que podem não só solver todas as dívidas como gerar sobras, incrementos patrimoniais esses para os quais nenhuma razão subsiste para se furtarem a tributação em sede de IRC.

II - Por conseguinte, se na sociedade falida ocorrer actividade económica geradora de rendimentos sujeitos a IRC, tais rendimentos encontram-se sujeitos às regras de tributação previstas nos arts. 73º e segs. do CIRC; todavia, se não ocorrer actividade económica não pode haver lugar a tributação, por inexistência de facto tributário, não sendo aplicável à liquidação de bens da massa insolvente as regras do art.º 73º e segs. do Código do IRC.” .

                A jurisprudência referida retrocede a 2003, quando no acórdão de 29-10-2003, proferido no processo 01079/03, o STA julgou que:

“I - A venda de bens que integravam o activo imobilizado de uma sociedade entretanto declarada falida, efectuada nos autos de liquidação do respectivo activo, não integra o conceito de mais-valias e menos-valias previsto no artº 43º do CIRC.

II - Com efeito, com a declaração de falência, não há mais activo imobilizado, qua tale, sendo, antes, todos os bens apreendidos, passando a constituir um novo património, a chamada "...": um acervo de bens e direitos retirados da disponibilidade da sociedade e que serve exclusivamente, depois de liquidado, para pagar, primeiramente, as custas processuais e as despesas de administração e, depois, os créditos reconhecidos.”.

                Neste último aresto pode ler-se o seguinte:

“Ora, como acima se referiu, a venda em causa teve lugar nos autos de liquidação do activo da empresa, uma vez decretada a respectiva falência. Pelo que, em rigor, se não trata da venda de bens do seu activo imobilizado. Trata-se, antes, da venda de bens da referida massa em ordem, nomeadamente e sobretudo, à satisfação dos credores, em concurso universal.

Assim, a venda de bens da ..., não se integra no disposto no artº 43º do CIRC.

Aliás, ainda por um outro caminho - afinal o seguido na sentença - se chega à mesma solução.

É que - a haver lugar a tributação - não podiam deixar de deduzir-se os prejuízos fiscais anteriores à data da dissolução e com referência a todo o período de liquidação - cfr, aliás, o artº 65º do CIRC - da ....

Como ali se refere, "a declaração de falência pressupõe uma situação claramente deficitária e que esta seja economicamente inviável" - artº 1º do CPEREF – “só através de uma ficção jurídica se poderia considerar lucro tributável o produto da alienação de património afectado ao pagamento de dívidas que já não consegue cobrir.”

Por outro lado, admitir a tributação sem lucros, reais ou presumidos, seria claramente inconstitucional - artº 103º nº 3 e 104º nº 4º da Constituição da República.

Ora, "a liquidação impugnada não levou em conta os prejuízos existentes à data da declaração de falência ... nem lhes faz qualquer referência".

E, ainda que tal tivesse acontecido, como pretende a recorrente, "por inacessibilidade dos elementos de escrita" - cfr. conclusão V - ou por serem os prejuízos desconhecidos - cfr. conclusão VII - , isso não invalida o exposto.

Não pode haver tributação de rendimentos ficcionados, sem consideração dos respectivos prejuízos, sob pena de inconstitucionalidade, nos referidos termos.

Aliás e fundamentalmente, a Administração Fiscal efectuou a liquidação em termos muito próximos do revogado CIMV.

Ou seja, considerou as mais-valias e os custos da venda (menos-valias!) de modo totalmente desintegrado do rendimento global.

Como é sabido, aquele diploma legal consagrava uma tributação autónoma em relação à Cont. Industrial - cfr. seu artº 1º e artº 25º do CCI.

Mas não assim no CIRC e no CIRS.

Aí, adoptou-se, para efeitos fiscais, uma noção mais ampla de rendimento - o chamado rendimento acréscimo, - que não o rendimento produto - que "abrange "não só os ganhos resultantes da actividade produtora, como outros ganhos alheios a ela" e, por conseguinte, também as mais-valias realizadas". Cfr. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª edição, citada na sentença.

Ora, o ac. do STA, de 12-10-94, in BMJ 440 pag 203, ao decidir que, apesar de declarada a falência de uma sociedade comercial, os ganhos resultantes nas alienações do respectivo activo imobilizado, obtidos no domínio do CIMV, são imputáveis à sociedade, ficando, por isso, sujeitos ao respectivo imposto, insere-se naquele conceito de rendimento vigente naqueles diplomas mas agora abandonado nos novos impostos sobre o rendimento.

Como se disse, a tributação das mais-valias assim obtidas deixou de ser autónoma para se integrar no rendimento global da empresa, onde terão de ser considerados tanto os proveitos como os custos ou perdas - artºs 20º e 23º do CIRC.”.

                No já citado Acórdão de, pode, ainda, ler-se que:

“Na verdade, do teor do relatório de inspeção constata-se que a Administração Tributária considerou a existência de “proveitos” para a sociedade advindos da venda de bens do seu ativo imobilizado no âmbito do processo de falência, venda essa realizada pelo respectivo Liquidatário Judicial no âmbito do respectivo processo falimentar.

A sentença recorrida julgou procedente impugnação judicial, no entendimento de que o produto da venda desses imóveis configura a venda de bens da massa falida em ordem à satisfação dos credores, em concurso universal, não integrando o conceito de proveitos nos termos e para os efeitos do CIRC. Isto é, a liquidação efectuada à sociedade comercial seria ilegal, por inexistência de facto tributário, atento o facto de tal sociedade não ter auferido rendimentos ou proveitos passíveis de tributação em IRC no exercício em causa e não ser admitida a tributação (real ou presumida) sem a sua existência.

Tal como nela se deixou afirmado, apesar de a sociedade dissolvida continuar a existir enquanto sujeito passivo de IRC até à data do encerramento da liquidação, sendo de acolher a posição plasmada no acórdão proferido pelo STA em 24.02.2011, no recurso nº 01145/09, o certo é que «decretada a falência, cessa a prossecução do objeto social da empresa e, portanto, a obtenção de lucros que é a base do IRC — cfr. artºs 1º e 3º do CIRC — deixando de existir ativo imobilizado, como tal, uma vez que todos os bens da pessoa coletiva são apreendidos e passam a integrar a chamada massa falida, constituída por um acervo de bens e direitos retirados da disponibilidade da sociedade e que serve exclusivamente, depois de liquidado, para pagar os créditos reconhecidos.

Assim, a venda dos bens imóveis ocorrida em 2008 não configura uma venda de bens do ativo imobilizado da falida (que deixou de existir como tal) mas antes a venda de bens da massa em ordem à satisfação dos credores, em concurso universal, não integrando, por isso, o conceito de mais-valias previsto no artº 43º do CIRC, na redação em vigor à data dos factos — cfr. neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.10.2003, recurso nº 01079/03.

Uma vez que os únicos rendimentos considerados para efeitos da liquidação oficiosa de IRC do ano de 2008 foram os relativos à venda dos mencionados bens imóveis, que a AT qualificou e tributou como mais-valias, procede, neste ponto a alegação do Impugnante.». (...)

Ora, apesar não terem sido cumpridas obrigações fiscais declarativas – e que se mantinham conforme doutrina citada na sentença e que encontra acolhimento no acórdão proferido pelo STA em 24.02.2011, no recurso nº 01145/09 – o certo é que a venda que tem lugar na fase de liquidação do activo de empresa falida não é uma venda de bens do seu activo imobilizado, mas a venda de bens de um património autónomo (massa falida) que visa a satisfação dos credores em concurso universal. E o incumprimento de obrigações declarativas, ainda que permita à Administração Tributária averiguar, através de acção inspectiva (como aconteceu no caso) se a empresa tinha ou não continuado a exercer actividade económica e, no caso afirmativo, proceder à determinação do lucro tributável em sede de IRC, não integra fundamento para a tributação em imposto sobre o rendimento.

Na verdade, a declaração de falência e a entrada em período de liquidação da massa falida não determina, por si só, a abolição de imposto sobre o rendimento, o que se compreende na medida em que durante o período de cessação progressiva da existência da sociedade ou período de liquidação pode existir alguma actividade económica geradora de rendimentos sujeitos a IRC (fruto, por exemplo, de negócios jurídicos que se continuaram a realizar, mormente negócios de execução duradoura que tiveram início antes da declaração de falência, ou fruto da confirmação de negócios do falido posteriores à declaração de falência - artigo 155.º, nº 2 do CPEREF), podendo o «Resultado da Liquidação», evidenciado pelo respectivo “Balanço”, apresentar lucro tributável.

Aliás, o facto de uma sociedade ter sido declarada falida e haver entrado em fase de liquidação, não obsta, sequer, a que se possa assistir ao término do seu processo de falência e ao reiniciar da sua normal actividade, com surgimento de matéria tributável para efeitos de IRC. Pelo que, não é o facto de se estar em presença de uma situação jurídica de falência e de liquidação do património que impede que se possam verificar ganhos fortuitos e inesperados, vendas de bens por valores que podem não só solver todas as dívidas como gerar sobras, incrementos patrimoniais esses para os quais nenhuma razão subsiste para se furtarem a tributação em sede de IRC.

Por conseguinte, se na sociedade falida ocorrer actividade económica geradora de rendimentos sujeitos a IRC, tais rendimentos encontram-se sujeitos às regras de tributação previstas nos arts. 73º e segs. do CIRC.

Todavia, se não ocorrer qualquer actividade económica não poderá haver lugar a tributação, por inexistência de facto tributário, não sendo aplicável à liquidação de bens da massa insolvente as regras do art.º 73º e segs. do Código do IRC, como bem se deixou explicitado no acórdão do STA de 29/10/2003, no recurso nº 01079/03.

Com efeito, a venda que tem lugar nos autos de liquidação do activo da empresa falida não é uma venda de bens do seu activo imobilizado, mas a venda de bens da massa falida com vista à satisfação dos credores, em concurso universal, e que não integra o conceito de mais-valias e menos-valias previsto no art.º 43º do Código do IRC.

Como se deixou frisado naquele acórdão proferido no recurso nº 01079/03, com a declaração de falência não há mais activo imobilizado, qua tale, sendo, antes, todos os bens apreendidos, passando a constituir um novo património, a chamada “massa falida”, que constitui um acervo de bens e direitos retirados da disponibilidade da sociedade e que serve exclusivamente, depois de liquidado, para pagar, primeiramente, as custas processuais e as despesas de administração e, depois, os créditos reconhecidos.”.

 

*

                Aqui chegados, cumpre antes de mais assinalar que nenhuma da jurisprudência anterioremente citada será directamente transponível para a situação sub iudice.

                Assim, e no que diz respeito aos arestos que se debruçaram sobre a tributação em IRS, não só está em causa um tributo distinto, como será distinta a posição dos sujeitos passivos, já que as pessoas singulares não se extinguem, nunca, por força do encerramento da liquidação do activo, enquanto que as sociedades, por regra (ressalvadas excepções mencionadas na jurisprudência referida), deixam de existir, enquanto pessoas jurídicas, após aquela liquidação.

                Quanto à jurisprudência citada, que incidiu sobre matéria de IRC, verifica-se, entre os casos julgados pelo STA e a situação sub iudice, uma diferença substancial, que se prende com a circunstância de aquela jurisprudência se ter debruçado sobre a tributação de rendimentos qualificáveis como mais-valias, o que não é o que acontece nos presentes autos, dado que a Requerente era uma pessoa colectiva que tinha como objecto a promoção imobiliária, pelo que os imóveis em causa não integrariam o seu activo imobilizado, como aconteceu nos casos em que o STA se pronunciou, mas nos seus activos circulantes, tendo sido contabilizados, justamente, pela Requerente como Mercadorias, e tratados como tal no RIT, que os tratou como Mercadorias Vendidas.

                Não obstante o exposto, julga-se ser possível retirar da jurisprudência exposta, relativa a IRC, ensinamentos suficientes para a decisão a proferir nos presentes autos.

                Assim, e como se referiu no Acórdão do STA de 29-10-2003, proferido no processo 01079/03, em termos acolhidos na jurisprudência subsequente, a haver lugar a tributação não podiam deixar de deduzir-se os prejuízos fiscais anteriores à data da dissolução e com referência a todo o período de liquidação, tendo em mente que a declaração de insolvência pressupõe uma situação claramente deficitária em que o sujeito passivo se encontra, à partida, numa situação economicamente inviável.

                Por outro lado, e como se refere, nos mesmos termos, no mesmo acórdão, a tributação em IRC incide sobre o rendimento global da empresa, para cujo cômputo terão de ser considerados tanto os proveitos como os custos ou perdas.

                No caso, o que se verifica é que a AT liquidou o imposto, exclusivamente, tendo em conta o Custo das Mercadorias Vendidas e das Matéria Consumidas, não tendo considerado, ponderado, ou feito qualquer menção a outras componentes relevantes para o cômputo do rendimento global da Requerente e, designadamente, à valoração dos prejuízos fiscais que, nos termos da Lei, seriam susceptíveis de influir, negativamente, no referido cômputo.

                Ora, na situação sub iudice, o ónus da prova dos factos que justificam as liquidações oficiosas ora sindicadas, impende sobre a Autoridade Tributária, já que nos termos do art.º 74.º/1 da LGT, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

                Efectivamente, como se refere no Acórdão do TCA-Norte de 26-04-2018, proferido no processo 01762/11.5BEPRT, “Sobre a administração tributária recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à liquidação adicional e sobre o sujeito passivo recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à anulação dessa liquidação – artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária.”.

                A esta luz, e tendo presente o previamente exposto, não se poderá concluir de outra forma, julga-se, que não a verificação de uma fundada dúvida sobre a existência e quantificação dos factos tributários subjacentes às liquidações sub iudice.

                Com efeito, e como se apontou no sobre-citado Acórdão do STA de 29-10-2003, proferido no processo 01079/03, a declaração de insolvência pressupõe uma situação claramente deficitária em que o sujeito passivo se encontra, à partida, numa situação economicamente inviável.

                Deste modo, incumbiria à Autoridade Tributária “indagar sobre a verificação do facto tributário que afirma ter existido, através da realização de todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material” , designadamente, apurando da existência, ou não, de prejuízos fiscais reportáveis e procedendo à respectiva quantificação, de forma directa, se possível, ou indirecta, se necessária.

                Não o tendo feito, não é possível afirmar, para lá da dúvida razoável, a existência dos factos tributários subjacentes às liquidações ora sindicadas, nem, muito menos, o acerto da sua quantificação.

                Desse modo, por imposição do art. 100.º/1 do CPPT , deverão ser anuladas as referidas liquidações, procedendo, por isso, o pedido arbitral e ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerente.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular os actos de liquidação de IRC n.º 2019... e n.º 2019..., referentes aos exercícios de 2014 e 2015 da Requerente, e respectivas liquidações de juros compensatórios;

b)           Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 512.569,12, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 7.956,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Jorge Bacelar Gouveia)

 

O Árbitro Vogal

(José Nunes Barata)