Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 854/2021-T
Data da decisão: 2022-10-31  IRC  
Valor do pedido: € 1.200.193,42
Tema: IRC – Encargos de financiamento na reorganização societária. Artigo 23.º do CIRC.
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Sumário:

I - O artigo 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, artigo 73.º, n.º 10 do CIRC ou artigo 63.º do CIRC.

II - Admitindo então que o art.º 23.º n.º 1 alínea c) do CIRC tem que ter em conta a atividade do conjunto da empresa que participa na operação de reorganização e não apenas a beneficiária da mesma (a Requerente), caberia de seguida averiguar se as motivações para a reorganização foram essenciais ou principalmente fiscais, aplicando-se o art.º 38.º n.º 2 da LGT quanto à dedutibilidade dos encargos financeiros.

III - Caberia assim averiguar, nos termos do art.º 38.º n.º 2 da LGT se os negócios foram artificiosos, se as finalidades da reorganização societária[1] foram essenciais ou principalmente fiscais e se havia outros negócios jurídicos que dessem origem a idênticas vantagens fiscais, isto é, se a dedutibilidade dos custos teria sido alcançada por outros meios: art.º 38.º n.º 2 da LGT. 

IV - Deveria desta forma ter sido aplicado o procedimento previsto no ex-artigo 63.º n.º 1 do CPPT, o qual estipulava que “[a] … liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio”.

 

Os Árbitros Guilherme W. d´Oliveira Martins, Henrique Nogueira Nunes e Rita Guerra Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte: 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.     A Requerente A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., doravante designada por “Requerente”, com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., solicita na presente impugnação que o Tribunal Arbitral aprecie a legalidade (i) da liquidação adicional de IRC do exercício de 2017, com o n.º 2021..., (ii) das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2021... e 2021... e (iii) da respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2021..., a qual incorpora o montante total a pagar de EUR 1.200.193,42 (cf. Documento 1 que se junta e se dá por reproduzido), nos seguintes termos e fundamentos:

a.     Até 2007, a B..., sociedade residente para efeitos fiscais na Alemanha, detinha a 100% a C... mbH (C...) e a D... S.a.r.l (D...), que não são mais do que as sociedades gestoras de dois fundos de investimento independentes entre si – o E... e o F...–, com diferentes investidores: o primeiro, um fundo aberto destinado ao público em geral e, o segundo, um fundo destinado a investidores institucionais.

b.     A E... é um fundo de investimento imobiliário aberto, com décadas de existência e com milhares de investidores, na sua maioria particulares (http://E...). 

c.     De acordo com a lei alemã, que é bastante singular na matéria, a referida C... detinha, até àquela data, a “propriedade legal” (ou jurídica) da G..., sendo que os investidores, através do fundo, detinham a respetiva “propriedade económica”, por dela serem os últimos beneficiários.

d.     Em todo o caso, os fundos de investimento imobiliário constituídos de acordo com a lei alemã são semelhantes aos constituídos segundo a lei portuguesa, sendo ambos patrimónios autónomos desprovidos de personalidade jurídica, cuja participação se faz através da detenção de títulos (unidades de participação) e cuja gestão está confiada a uma terceira entidade (sociedade gestora).

e.     O património dos fundos encontra-se, portanto, representado por unidades de participação, os quais são detidos, consoante o caso, por uma pluralidade de pessoas singulares ou coletivas (participantes do fundo), cabendo, em todo o caso, a administração e gestão dos fundos de investimento imobiliário, quer na Alemanha, quer em Portugal, a uma sociedade gestora, sendo os valores que constituem o património do fundo confiados a uma entidade depositária, distinta da sociedade gestora do fundo.

f.      Deste modo, e descendo ao caso concreto, embora a propriedade económica da G... comandita pertencesse aos participantes do fundo, pois eram estes os titulares dos valores que constituíam o património do fundo e que serviram para adquirir a G..., a C... teve necessariamente de intervir na sua compra, ficando com a propriedade legal (jurídica) da sociedade, uma vez que o fundo não tinha personalidade, nem capacidade jurídica para a prática de quaisquer atos, incluindo a aquisição de participações sociais/imóveis. 

g.     Para além da detenção da G..., o E.../C... constituiu a Requerente para gerir o H..., de modo a evitar que os riscos operacionais da gestão do imóvel/centro comercial pudessem ter impacto direto no valor económico do próprio imóvel, sendo a estrutura a seguinte:

 

 

h.     Assim, foi celebrado um contrato de arrendamento de “paredes nuas” do H... entre a G... comandita e a Requerente, sendo que esta última tinha como principal atividade gerir o negócio para que o imóvel estava vocacionado – centro comercial – através da celebração de contratos de uso de loja com os lojistas.

i.      Na verdade, o rendimento da Requerente não advém apenas da matéria coletável que lhe é imputada da G... comandita, mas também (e essencialmente, diga-se) das rendas que recebe dos lojistas do centro comercial H..., sendo que este rendimento é, sem margem para dúvidas, diz, obtido de entidades não relacionadas.

j.      Importa ainda referir que, uma vez que a única atividade da G... comandita era a de mera administração/fruição de imóveis, designadamente o arrendamento do H..., esta ficou forçosamente abrangida pelo regime de transparência fiscal previsto no artigo 6.º do Código do IRC.

k.     Em consequência, e uma vez que o sócio da G... comandita era uma entidade não residente para efeitos fiscais em Portugal – E.../C... – houve a necessidade de implementar um estabelecimento estável em Portugal desta entidade, apenas para efeitos de imputação do rendimento da G..., nos termos do n.º 9 artigo 5.º do Código do IRC, de modo a assegurar que tal rendimento fosse tributado em Portugal.

l.      Em momento posterior, em 31 de outubro de 2007, a C... vendeu, na qualidade de sociedade gestora do fundo de investimento imobiliário alemão E..., a totalidade do capital social da Requerente e da G... comandita (complexo comercial H...), ao acima referido fundo de investimento imobiliário F..., o qual tem como sociedade gestora a D..., entidade residente para efeitos fiscais no Luxemburgo.

m.   O fundo F..., constituído e regulado pelas leis do Luxemburgo, destina-se, ao contrário do E..., apenas a poucos investidores institucionais, tais como fundos de pensões. 

n.     Sucede que os investidores do fundo F... entenderam que seria mais vantajoso adquirir parte do complexo comercial H..., incluindo 70% do capital social da G..., através de recurso a financiamento.

o.     Com efeito, à data seria esta a decisão mais racional já que (i) a transação ocorreu em 2007, ano em que os ativos imobiliários atingiram valores muito altos face aos praticados posteriormente em resultado da crise económico-financeira subsequente, (ii) o complexo comercial H... foi comprado ao preço de mercado, e que (ii) em 2007, havia uma grande facilidade de acesso ao crédito dada a disponibilidade de capital existente.

p.     Em 2007, ainda na fase pré-crise económica, portanto, os mercados estavam animados, havia disponibilidade de dinheiro e os bancos ofereciam dinheiro a valores baixos e competitivos, com proporções de reinvestimento muito alto, pelo que o recurso ao crédito foi também uma questão de gestão financeira, atendendo aos fins prosseguidos pelo fundo. 

q.     A título ilustrativo, note-se que tendo uma determinada sociedade negócios com rentabilidades superiores às taxas de juro cobradas num financiamento, esta seria uma forma de otimizar capitais se a sociedade se financiasse junto de terceiras entidades: se, por exemplo, a sociedade tivesse um negócio com rentabilidade de 7%, 8% ou 9% e o banco cobrasse 3% ou 4% de juros, o respetivo leverage gerado tornaria racional a opção pelo financiamento.

r.      Contudo, a concessão do financiamento, ficou dependente de este ficar alocado à Requerente ou à G..., uma vez que eram estas as entidades que detinham os ativos do complexo comercial H...– imóveis e lucros operacionais resultantes da exploração do H...– e que, por esse motivo, se encontravam em condições de prestar garantias.

s.     A necessidade de nivelar o financiamento com os bens dados em garantia, fossem eles os próprios imóveis ou quotas de sociedades, resultou de imposições decorrentes da negociação do financiamento com o banco, o qual queria garantir que o financiamento se encontrava registado na sociedade que libertava maiores níveis de cash-flow e que, portanto, se encontrava em melhores condições para satisfazer as obrigações financeiras inerentes ao passivo.

t.      Assim, a Requerente optou por contrair financiamentos bancários a fim de financiar a sua atividade, os quais foram garantidos não só com os lucros operacionais resultantes da exploração do H..., a variável não controlada, mas também com o penhor da quota correspondente a 70% do capital social da G..., a variável controlada, mas sujeita às flutuações do valor da participação, a qual se encontrava diretamente relacionada com as variações do valor de mercado do imóvel propriedade da G... comandita . 

u.     Na verdade, uma vez que a operação de venda do complexo comercial H... iria ser efetuada com recurso ao crédito e os ativos suscetíveis de constituírem garantia, como o imóvel, o penhor das ações e o penhor das rendas pagas pelos lojistas, se encontravam em Portugal, a concretização do recurso ao financiamento apenas foi possível através das sociedades residentes em Portugal.

v.     Com efeito, foi condição essencial para obter o financiamento o facto de este ser alocado o mais próximo possível do ativo e da fonte de rendimento, a libertação de cash-flow necessário ao cumprimento das obrigações financeiras.

w.   Por outro lado, a G... comandita já tinha um financiamento garantido com hipoteca do imóvel, pelo que apenas a Requerente se encontrava em condições de contrair tal financiamento, uma vez que podia prestar garantias adicionais como o penhor (i) das ações da G... comandita e (ii) dos lucros operacionais resultantes da exploração do H... .

x.     Assim, em virtude de ser tratar de uma operação realizada em condições de mercado, quer em relação ao preço de aquisição das participações sociais, quer quanto aos financiamentos contraídos, a operação de aquisição do complexo comercial H... por parte do F... teve necessariamente de ser estruturada com a Requerente a deter 70% da G... comandita pois, caso contrário, diz, não seria possível obter o financiamento necessário para aquisição do complexo comercial H... . 

y.     De notar que, o fundo de investimento E... não poderia, por si só, proceder à venda do complexo comercial H..., já que é desprovido de capacidade jurídica, pelo que necessitou da intervenção da sua sociedade gestora, a C..., para concretizar a venda. 

z.     De notar, ainda, que a C... atuou sempre no interesse dos investidores do fundo e não, por exemplo, no interesse da B... AG.

aa.  Acresce que, apesar de as sociedades gestoras c...  e D... serem ambas detidas pela sociedade alemã B... e, nesta medida, serem qualificadas como entidades relacionadas para efeitos de preços de transferência, a sua atuação, como a de qualquer sociedade gestora de fundos de investimento, de resto, foi e é sempre no interesse do(s) fundo(s) de investimento que gerem e dos respetivos participantes a quem prestam contas. 

bb.  Aliás, ambas as sociedades gestoras acima referidas são entidades sujeitas a supervisão pela autoridade competente no seu país de residência, equivalente à congénere portuguesa “CMVM”, pelo que a sua atuação está limitada por um estrito enquadramento legal e regulatório do qual não se podem afastar e que é a todo o tempo sujeito a rigoroso escrutínio.

cc.  Na verdade, considerando que cada uma das sociedades gestoras está a gerir um fundo de investimento com diferentes tipos de investidores (titulares das unidades de participação) e que a sua atividade é regulada, dificilmente, vem dizer, se concebe que estas sociedades possam atuar numa “lógica de grupo” empresarial ou multinacional (leia-se do grupo B...), uma vez que a sua atuação sempre foi no interesse do fundo de investimento que gerem e dos respetivos participantes.

dd.  Ora, quando o complexo comercial H... foi assim indiretamente adquirido pelo fundo de investimento F..., o qual tem como sociedade gestora a D..., entidade residente para efeitos fiscais no Luxemburgo, a estrutura passou, então, a ser a seguinte:

ee.  Para além da alteração de estrutura das entidades residentes em Portugal, nada mais mudou na estrutura do complexo comercial H..., com aquisição deste por parte do F... .

ff.    Com efeito, a G... comandita continuou a explorar de forma passiva o imóvel, designadamente mantendo um contrato de arrendamento com a Requerente, e esta continuou a gerir o complexo comercial H... através da celebração de contratos de uso de loja.

gg.  Em consequência, o enquadramento fiscal de ambas as entidades residentes em Portugal também não sofreu qualquer alteração, na medida em que estas entidades continuavam a desenvolver a mesma atividade.

hh.  Aqui chegados, nunca será demais salientar que a G... comandita permaneceu no regime de transparência fiscal, no qual já se encontrava enquadrada desde 2001, uma vez que a sua atividade, conforme referido, permaneceu inalterada após a aquisição do complexo comercial H... pelo F... .

ii.    Ademais, cumpre sublinhar que, do ponto de vista económico, facilmente se entende a ratio da referida estrutura, uma vez que os riscos económicos da operação e os fluxos de rendimento se concentram na mesma entidade, a Requerente.

jj.    Constata-se, portanto, segundo alega, que a aquisição de 70% do capital social da G... comandita e os financiamentos contratados não visaram obter uma poupança fiscal ao nível da Requerente, tendo apenas as motivações puramente económicas de obter financiamento e prestar as garantias necessárias para pagar o preço de mercado da referida participação social da G...;

kk.  sendo, reitere-se, lógico e natural concentrar na mesma entidade os riscos da operação e os fluxos de rendimento gerados ao nível da Requerente.

ll.    Adicionalmente, a presente operação teve ainda como finalidade a criação de uma unidade de negócio em Portugal, na qual se concentraram o conjunto de atividades económicas diretamente relacionadas com o H..., nomeadamente a gestão do imóvel propriamente dito e, bem assim, a gestão das atividades comerciais nele desenvolvidas.

mm.               Efetivamente, o facto de a Requerente ter adquirido 70% do capital social da G... comandita permitiu-lhe, alega, ter um maior controlo sobre o seu negócio a montante, na medida em que passou a ser a proprietária maioritária, ainda que indiretamente, porque através da G..., do imóvel de que a sua atividade dependia integralmente.

nn.  Assim, jamais poderá aceitar-se qualquer afirmação, como a que é feita pela AT e adiante se analisará, sobre a inexistência de razões económicas válidas na aquisição de 70% da G... comandita pela Requerente. 

oo.  Na verdade, afirmar a inexistência de razões económicas válidas para que a aquisição se efetuasse nos moldes em que ocorreu, com recurso ao financiamento, equivale a dizer que um arrendatário de um imóvel que o explora mediante cedência de espaço a terceiros, conjuntamente com serviços associados, não tem qualquer razão económica válida para adquirir, direta ou indiretamente, a propriedade do imóvel que lhe permite exercer a sua atividade empresarial, o que é, no mínimo, absurdo.

pp.  O facto de a Requerente estar a pagar uma renda à G... comandita e esta, por sua vez, imputar 70% da sua matéria coletável à Requerente, por aplicação do regime da transparência fiscal, ao qual esteve desde sempre sujeita, por imposição legal e não por opção, não foi o motivo para aquisição da referida participação social da G... comandita .

qq.  Na verdade, num cenário em que a Requerente tivesse adquirido a propriedade do imóvel com o respetivo empréstimo hipotecário e não tivesse, assim, de pagar rendas pela utilização do imóvel, nem houvesse imputação do rendimento em virtude da transparência fiscal, o resultado seria praticamente o mesmo que o atual, pois a totalidade do rendimento gerado pela exploração do centro comercial, embora permanecesse ao nível da Requerente, não seria tributado em virtude dos encargos que esta teria de suportar com os financiamentos para aquisição da propriedade do imóvel e respetivo passivo financeiro associado.

rr.    Aliás, não pode deixar de se reparar que os dois empréstimos existentes foram contraídos por duas pessoas jurídicas distintas e para a aquisição de ativos diferentes: a Requerente comprou as participações sociais da G... comandita e esta comprou um imóvel, não havendo, por isso, qualquer duplicação de encargos.

ss.   Além disso, é, ainda, de salientar que o facto de a Requerente ter estado em situação de reporte de prejuízo fiscal até 2010 não deriva da concretização de qualquer planeamento fiscal gizado para tal, mas tão-somente de uma conjugação de vários fatores relacionados com a crise económico-financeira que se iniciou em 2008 e que teve particular impacto no mercado imobiliário e com o montante de financiamentos e respetivos encargos que, numa primeira fase, foi necessário contrair para pagar o preço de 70% da participação social da G... comandita .

tt.    E tanto assim é que apenas em 2008, 2009 e 2010, a fase inicial após a compra, a empresa se encontrou em situação de prejuízo fiscal.

uu.  Todavia, em virtude dos naturais efeitos do financiamento, desde 2011 que a Requerente se encontra apresenta lucro tributável, o qual tem vindo a aumentar.

vv.  Assim, o aumento do lucro tributável da Requerente contraria a tese sufragada pela AT no Relatório de Inspeção de que a aquisição de 70% da participação social da G... comandita não teve qualquer motivação económica, pois, se assim fosse, e seguindo a lógica de raciocínio da AT segundo a qual a empresa controla todas as variáveis do seu negócio, facilmente a Requerente, querendo, se manteria em prejuízo fiscal de modo a não pagar imposto.

ww.      Ora, como se viu e é facilmente comprovável, a realidade demonstra precisamente que tal não aconteceu e que desde 2011 a Requerente passou a estar em situação de lucro, anualmente sujeito a tributação.

xx.  Porém, existe uma variável que não é, nunca foi, nem poderia ser controlada pela Requerente que é a que resulta da sua atividade, a exploração do centro comercial através da celebração de contratos de uso de loja com os lojistas do H... . 

yy.  Deste modo, a compra de 70% do capital social da G... comandita por parte da Requerente não poderá ser analisada de forma isolada, invoca, como uma mera aquisição de uma “empresa do grupo”, mas sim como parte de uma transação, a transmissão do complexo comercial H... ocorrida entre fundos de investimento com diferentes tipos de investidores, portfolio de ativos e perfil de risco, com a finalidade única de manter o referido negócio saudável e gerador de lucros, independentemente da conformação jurídica do dito negócio.

zz.  Isolar a operação de aquisição, por parte da Requerente, de 70% do capital social da G... comandita da operação global, a transmissão de um património, o complexo comercial H..., de um fundo de investimento alemão para um fundo de investimento luxemburguês, é redutor e desvirtua, claramente, o racional económico que subjazeu à operação.

aaa.      A este respeito, note-se que, embora questione agora o interesse económico da operação em causa, a AT já reconheceu esse mesmo interesse económico com o deferimento do pedido de manutenção de prejuízos fiscais, apresentado pela Requerente ao abrigo do artigo 47.º do Código do IRC (à data dos factos) – processo n.º …/07 (cf. Documento 3 que se junta e se dá como reproduzido).

bbb.                Em face do exposto terá necessariamente de se concluir que:

                                               i.     a operação de aquisição de participação financeira da G... comandita e da Requerente não foi uma operação efetuada entre sociedades do “mesmo grupo”, mas sim entre fundos de investimento com diferentes investidores, não relacionados entre si, independentes na sua gestão em face das imposições legais e regulatórias;

                                             ii.     apenas as sociedades gestoras dos referidos fundos de investimento pertencem ao grupo B..., as quais necessariamente tiveram de intervir na operação, uma vez que estes fundos não poderiam atuar por si só, à semelhança dos fundos de investimento portugueses; e que

                                           iii.     a operação foi única e exclusivamente motivada por interesses económicos, uma vez que o complexo comercial H... foi comprado ao preço de mercado e com recurso a financiamento e que a concessão deste ficou dependente de o mesmo ficar alocado à Requerente, já que passaria a ser esta entidade a detentora da quase totalidade dos ativos do complexo comercial H... e aquela que libertava e libertaria maiores níveis de cash-flow e lucros operacionais resultantes da exploração do H..., sendo, por esse motivo, a que se encontrava em condições de prestar garantias. 

ccc.          Ainda a propósito da questão decidenda, cumpre referir que a Requerente, por não se conformar com a liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2010 cujos fundamentos eram essencialmente os mesmos subjacentes aos atos sub judice, apresentou oportunamente um Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral, que correu termos sob o n.º 614/2015-T do CAAD[2]_[3], o qual foi julgado totalmente procedente, tendo já transitado em julgado, e em consequência do qual se ordenou a “anulação da correção à matéria coletável de IRC de 2010, no montante de € 11.194.291,77 (onze milhões cento e noventa e quatro mil duzentos e noventa e um euros e setenta e sete cêntimos), por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito e de facto, consubstanciada na errada interpretação e aplicação do artigo 23.º do Código do IRC”.

ddd.     Também por não se conformar com a liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2012 – cujos fundamentos eram, uma vez mais, essencialmente os mesmos subjacentes aos atos sub judice –, a Requerente apresentou um Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral, que correu seus termos sob o n.º 680/2016-T[4]_[5], o qual foi julgado totalmente procedente.

eee.      Assim, a correção efetuada ao abrigo do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC e as liquidações de IRC e juros compensatórios com base nela efetuada, enfermam de vícios de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, que justificam a sua anulação [artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT]” (cf. citado Documento 5).

fff.  Por fim, também as liquidações de IRC respeitantes a 2014 (Processo n.º 407/2019-T), 2015 e 2016 (Processo n.º 827/2019-T) foram oportunamente contestadas em sede arbitral, tendo a Requerente impugnado as correspondentes decisões desfavoráveis e contra as mesmas interposto recurso por oposição de acórdãos.

ggg.                Ora, também nestes casos, as decisões, para além de não serem, de modo algum, definitivas na ordem jurídica, serão, muito provavelmente, revertidas, por ser ininteligível e injustificada a diferença entre as mesmas e as obtidas em processos como o referente a 2010.

hhh.                Retomando a cronologia dos acontecimentos relevantes in casu, e com interesse para a compreensão da estrutura do grupo, cumpre referir que, em julho de 2015, a I..., S.à.r.l. (I...) adquiriu a totalidade das unidades de participação do B..., o qual foi posteriormente liquidado, tendo ocorrido, por essa razão, a alteração da denominação das sociedades J... S.à.r.l, K... S.à.r.l e L... S.à.r.l, para, M... Sarl (M...), N..., S.à.r.l. (N...) e a O..., S.à.r.l. (“O...”), respetivamente.

iii.   Por conseguinte, a partir de 2015, a I... (adquirente da B...), residente para efeitos fiscais no Luxemburgo, fundo que funciona como um organismo de investimento coletivo, passou a ter três holdings luxemburguesas: a M... (ex- J... S.à.r.l.) – sub-fundo que gere investimentos imobiliários através de subsidiárias – e as então detidas por este sub-fundo, N... (ex- K... S.à.r.l.) e a O... (ex- L... S.à.r.l.).

jjj.   Através destas sociedades luxemburguesas, a I... passou a deter indiretamente quatro empresas portuguesas: (i) A..., Sociedade Unipessoal, Lda. (Requerente), (ii) P..., Lda. (P...), (iii) G... comandita Lda. (G...) e (iv) Q..., S.A..

kkk.     Ora, tal como se verificava na estrutura societária do grupo anterior a 2015, neste novo cenário, a Requerente e o P... detinham 70% e 30%, respetivamente, do capital do G..., que por sua vez detinha 100% do capital social do complexo comercial conhecido como “H...”, de modo a evitar que os riscos operacionais da gestão do imóvel/centro comercial pudessem ter impacto direto no valor económico do próprio imóvel, sendo a estrutura a seguinte:

 

lll.   Ante o exposto, por não se conformar com os atos tributários acima devidamente identificados, vem a Requerente apresentar o presente Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral.

 

2.     A Autoridade Tributária, na sua resposta, defende a legalidade dos atos tributários praticados e alega, em síntese, o seguinte:

a.     Conforme consta do relatório de inspeção tributária (RIT) a ora requerente reveste a forma jurídica de sociedade por quotas (unipessoal). O seu capital social é de 5.000,00€. À data a que se referem os factos do procedimento inspetivo (2017), o capital da sociedade era detido em 100% pela empresa N..., ex K... SARL. 8º A A... foi constituída por escritura pública no dia 29 de Maio de 2000. 

b.     Iniciou a atividade (em termos fiscais) no dia 19 de Junho de 2000 e tem por objeto o arrendamento, exploração e gestão do Centro Comercial designado por H.... 

c.     Para prossecução do seu objeto social a requerente tomou de arrendamento em 1/11/2002 à G... comandita um complexo comercial conhecido como H... . 

d.     Na data de constituição da sociedade era a mesma detida pela sócia única R... MBH. 

e.     Em 31 de Julho de 2007 o sujeito passivo passou a ser detido pela sociedade K... S.À.R.L. (sócia única), com sede no Luxemburgo. 

f.      Em Julho de 2015 esta sociedade mudou a sua designação social para N... S.À.R.L..

g.     Assim, a requerente seria um “fund investments”, da F... . 

h.     Este, por seu turno era um sub-fundo da S..., um fundo comum aberto especializado na colocação de investimentos em fundos, lançado pela B... Group em 4 de junho de 2007. 

i.      O referido fundo é uma forma contratual de investimento coletivo que opera sob as leis do Grão-Ducado do Luxemburgo e que aprovou uma estrutura umbrella destinada a gerir conjuntos diferentes de ativos e passivos, no interesse dos seus co-proprietários, por uma empresa gestora comum, a D... S. À.R.L.

j.      O único sub-fundo existente é a F..., sendo o mesmo dirigido a investidores institucionais europeus, com o objetivo de criação de uma carteira de retalho pan-europeia diversificada. O referido sub-fundo investiu em imóveis, em Espanha e em Portugal, através das suas subsidiárias que eram: a) J..., SARL (sociedade que detém em 100% as sociedades posteriores); b) K... SARL, c) L... SARL. 

k.     Assim, a partir da D... SARL, empresa gestora de fundos, os investimentos organizavam-se da seguinte forma: 

                                               i.     A D... SARL, detinha a 100% a J... SARL, que por seu turno detém a 100% a K... e a L... . 

                                             ii.     A K... detém a 100% a A... Unipessoal que por seu turno detém a 70% a G... comandita . 

                                           iii.     A L... detém a 30% a G..., a 100% a P... que, por seu turno, detém a 100% a Q...– Soc. Imobiliária.

l.      A T... era uma empresa relacionada do sujeito passivo, conforme consta no relatório de preços de transferência. Através de pesquisas na internet apurou-se que a T... era detida em 100% pela  U... AG.

m.   Em julho de 2015 ocorre uma alteração na estrutura societária do Grupo, pois a sociedade residente para efeitos fiscais no Luxemburgo, a I... S.à.r.l., criada em 9 janeiro 2015, adquiriu a totalidade das unidades de participação do fundo F... (que foi entretanto liquidado) tendo ainda alterado a denominação das sociedades que passou a deter a 100% (direta ou indiretamente conforme esquema supra) residentes para efeitos fiscais no Luxemburgo: De J... S.à.r.l., K... S.à.r.l. e L... S.à.r.l. para M... S.à.r.l., N...  S.à.r.l. e O... S.à.r.l., respetivamente. 

n.     A A... Unipessoal foi constituída por escritura pública no dia 29 de maio de 2000 e iniciou a sua atividade no dia 19 de Junho de 2000. 

o.     A atividade desenvolvida pelo sujeito passivo foi a exploração e gestão do Centro Comercial H... e do V..., doravante designado por Complexo Comercial. 

p.     Efetivamente, de acordo com a certidão permanente, a A... Unipessoal é uma sociedade por quotas, unipessoal e tem como objeto social: “a compra e venda do imóvel do centro comercial designado como H..., bem como o arrendamento, exploração e gestão do H..., bem como quaisquer outros atos ou transações diretamente relacionadas com a supra mencionada atividade.” 

q.     O Complexo Comercial é detido pela G... comandita que, através de um contrato de arrendamento, o arrendou à A... Unipessoal.

r.      O contrato foi firmado pela primeira vez em 01 de novembro de 2002 e tem vindo a sofrer renovações sucessivas. O referido contrato foi alterado no exercício de 2012, apresentando uma revogação da cláusula seis (Renda) por um período de 2 anos, com início em 01 de março de 2012 e término a 28 de fevereiro de 2014. A partir desta última data a referida cláusula passaria a ter a redação anterior (montante mensal da renda 1.400.000,00€). Como o contexto económico não apresentou alterações significativas durante 2013, as partes acordaram, a 25 de fevereiro de 2014, em prolongar esse período intercalar até 30 de junho de 2015.

s.     A 25 de maio de 2016, pelas mesmas razões, este período intercalar foi prolongado até 31 de dezembro de 2016. Em 15 de junho, também pelas mesmas razões este período intercalar foi prolongado até 31 de dezembro de 2017. 

t.      Durante o exercício de 2017 a renda mensal para as 35 frações autônomas arrendadas no Centro Comercial foi de 830.000,00€, enquanto para o V... a renda foi de 40.000,00€. 

u.     No exercício de 2017 encontram-se registados na conta de gastos "626111 - Rendas - Edifícios" o montante de 10.440.000,00 em que o montante de 9.960.000,00€ diz respeito às rendas do Centro Comercial e o montante de 480.000,00€ é relativo às rendas do V... . 

v.     O valor das rendas pago, no ano 2017, à G..., pelo arrendamento do Complexo Comercial, totalizou assim o montante de 10.440.000,00€. 

w.   Quanto ao G... comandita, o objeto social da G... comandita é a “compra e venda de imóveis, bem como a simples ou mera administração do seu imóvel próprio mantido para fruição e destinado ao Centro Comercial “H...”, neste se incluindo designadamente o seu arrendamento, bem como quaisquer outros atos ou transações diretamente relacionados com a supramencionada atividade”. No que respeita ao seu capital, verifica-se que é de 10.000.000,00€, estando dividido da seguinte forma, tendo em conta o espaço temporal: 

·      Na data de constituição (29/05/2000): Ø 9.999.995,00€ (99,99995%), na posse do sócio Comanditário R... MBH, com sede na Alemanha, tendo este sócio responsabilidade limitada;

·      5,00€ (0,00005%), na posse do sócio Comanditado A... UNIPESSOAL Após a divisão e transmissão da quota do sócio R... MBH;

·      3.000.000,00€ (30%), na posse do sócio Comanditário L... S.À.R.L5, com sede no Luxemburgo, sendo este sócio de responsabilidade limitada; 

·      7.000.000,00€ (70%), na posse do sócio Comanditado A... UNIPESSOAL, Lda., com sede em ..., sendo este o sócio com responsabilidade ilimitada; 

x.     Esta sociedade é simplesmente a mera detentora dos ativos (lojas) do Centro Comercial H... e do V..., sendo o seu objeto social, de facto, o arrendamento desse imóvel à A... Unipessoal.

y.     Verificaram os serviços de IT que a A... Unipessoal é a responsável direta pela administração quotidiana do Centro Comercial H... . Desenvolve a promoção e comercialização das lojas assim como a promoção estratégica do Centro Comercial. 

z.     A empresa em análise é a responsável pela angariação e celebração de “contratos de utilização de loja” com os clientes. Estes clientes geralmente fazem parte de marcas que possuem cadeias, nacionais e internacionais, de lojas, existindo, no entanto, também outro tipo de utilizadores individuais. 

aa.  Estes “contratos de utilização de loja” enumeram os direitos e obrigações de ambos os contraentes. Entre outras obrigações, estabelecem os valores a pagar pelos lojistas. Essas remunerações são geralmente mensais e são constituídas pela soma de duas parcelas, uma fixa (remuneração mínima) e outra variável. Acresce a esta remuneração a comparticipação nas despesas e nos encargos de funcionamento e utilização do Centro Comercial. Estes valores (retribuição mensal fixa, variável e outras despesas), faturados pela A... Unipessoal a cada um dos lojistas, são registados na demonstração de resultados por natureza na rubrica de “rendas e serviços prestados”.

bb.  Da análise à rubrica de investimentos financeiros foi possível verificar que em 31 de dezembro de 2017, a A... Unipessoal detinha uma participação de 70% na sociedade G... em Comandita, adquirida em 31 de outubro de 2007. Sendo esta empresa abrangida pelo regime da transparência fiscal, nos termos do artigo 6° do CIRC, imputa aos seus sócios a matéria coletável que apura anualmente. Neste caso é imputada 70% da sua matéria tributável à sociedade A... Unipessoal.

cc.  Para financiamento desta operação de aquisição da participação social, no montante de cerca de 175,3 milhões de euros, a requerente recorreu a três operações de financiamento junto de três empresas do Grupo onde está inserido: · K... (casa – mãe) atualmente designada N..., S.à.R.I; 

· P... Unipessoal; 

· T... AG. 

dd.  De acordo com a informação retirada do dossier de preços de transferência de 2017, cfr.anexo 1 ao RIT, é referido que “Em outubro de 2007 o Grupo decidiu que a A... iria adquirir a participação na W...», por cerca de 175,3 milhões de euros. Constata-se assim que esta aquisição teve apenas como fundamento a "estratégia de Grupo". 

ee.  Com esta decisão, o sujeito passivo passou a deter uma participação de 70% no capital social da G... Comandita, sociedade com a qual detém um contrato de arrendamento do Centro Comercial H..., ficando os restantes 30% na posse da sociedade L..., empresa igualmente integrada no mesmo Grupo.

ff.    O empréstimo obtido junto da K..., atualmente N... S.à.R.L., foi no valor de cerca de 96,8 milhões de euros. O contrato de financiamento foi celebrado em 31 de Outubro de 2007 e o empréstimo tem um prazo de 10 anos, ou seja, com vencimento em 31 de Outubro de 2017. As partes acordaram o pagamento de uma taxa de juro anual fixa de 7,25%, calculados de forma diária e numa base de 360 dias/ano. 

gg.  Em 2013 a K... e a A... Unipessoal acordaram uma redução de taxa de juro fixando-a em 0,5% ao ano, com efeitos a partir de 01 de janeiro de 2013 e até o acordo atingir a sua maturidade. Os juros são devidos trimestralmente. As condições de taxa de juro não foram alteradas durante o exercício de 2017. Importa ainda referir que o financiamento obtido junto da N... sofreu uma prorrogação (extensão de prazo).

hh.  O empréstimo obtido junto da P... foi de 42,6 milhões de euros, por um prazo de 10 anos. 

ii.    O contrato de financiamento foi celebrado em 31 de Outubro de 2007. As condições de financiamento que vigoraram até ao final do 1º semestre de 2009 previam o pagamento de uma taxa de juro variável determinada com base na taxa Euribor a 6 meses acrescida de um spread de 0,15%. A partir do 2º semestre de 2009 a taxa de juro passou a ser fixa. 

jj.    Foi estabelecido entre as partes que a taxa de juro seria determinada com base na taxa swap a 8 anos, à data de 01 de julho de 2009 publicada pela Bloomberg, que se situou nos 3,40%, acrescida de um spread de 1,6%, ou seja uma taxa de 5% ao ano. Tal como no caso anterior, os juros são calculados de forma diária e numa base de 360 dias/ano. O seu pagamento é devido mensalmente. As condições de taxa de juro deste empréstimo não foram alteradas durante o exercício de 2017. Importa ainda referir que o financiamento obtido junto da P... sofreu uma prorrogação (extensão de prazo) até 31 de dezembro de 2017. 

kk.  Quanto ao empréstimo contraído junto do T... AG, o empréstimo obtido junto do mesmo foi no montante de 35,8 milhões de euros. O referido financiamento foi realizado em 25 de Outubro de 2007 por um prazo de 10 anos. De modo a remunerar o capital cedido pela T.... as partes acordaram no pagamento de uma taxa de juro correspondente à Euro swap rate a sete anos acrescida de um spread de 50 p.b. (0,5%). 

ll.    No ano de 2014 o empréstimo venceu juros à taxa de 5,078%. Os juros são calculados de forma diária e numa base de 360 dias/ano. O seu pagamento é devido trimestralmente. As condições de taxa de juro deste empréstimo alteraram-se durante o exercício de 2017. 

mm.               Em 17/10/2017 foi efetuada a 4ª adenda ao contrato de financiamento com o T... . Relativamente à taxa de juro, e conforme previsto na cláusula 7ª da adenda efetuada ao contrato de financiamento com o T..., esta foi alterada para a Euribor a um mês, acrescida de: 

• 3,5% ao ano para os períodos de 24 de outubro de 2017 a 31 de dezembro de 2017; e 

• 5,0% ao ano a partir de janeiro de 2018. O financiamento junto do X... AG (antes T...) sofreu uma prorrogação (extensão de prazo) até 30 de março de 2018. 

nn.  Da análise à contabilidade no exercício de 2017, verificou-se que os encargos financeiros (juros e imposto de selo) relacionados com estes empréstimos foram contabilizados nas contas de gastos, mais propriamente nas contas "681222 - impostos ind. imposto do selo - Juros de empréstimos bancários", "681223 - impostos ind. imposto do selo - Desembolsos empréstimos bancários","691116 - Juros de financiamento obtidos.- Bancos - Asset loan", "691151 – Juros de financiamento obtidos - Grupo" e "698116 - Comissões de financiamentos obtidos – Bancos Asset ioan".

oo.  Saliente-se, desde já, as elevadas taxas de juros acordadas naqueles financiamentos, em relação ao risco de incumprimento, o qual, atendendo às relações especiais entre as sociedades em presença, seria zero ou muito próximo do zero. 

pp.  Foi solicitado ao sujeito passivo, relativamente aos juros suportados com os empréstimos, e despesas associadas, para que fossem disponibilizados os respetivos documentos de suporte (faturas, recibos, notas de débito, etc.), assim como os seus meios de pagamento. 

qq.  Da análise aos documentos disponibilizados, verificou-se que existem na contabilidade documentos emitidos pelos titulares dos rendimentos (fatura e ou /notas de débito) relativos aos empréstimos efetuados pelas sociedades K..., P... Unipessoal e pelo X... AG (ex T... AG).

rr.    Para os três empréstimos foram apresentados os mapas/planos de pagamentos com a calendarização dos juros devidos pelo sujeito passivo.

ss.   Da análise do quadro conclui-se que a partir do ano de 2007 (contrato de financiamento celebrado em 25/10/2007) a A... Unipessoal suporta elevados encargos financeiros, registados nas suas demonstrações financeiras na rubrica de juros suportados, resultantes do financiamento contraído para a compra de (cerca de) 70% da participação no capital social da G... em Comandita. Durante o mesmo período verifica-se que a aquisição da participação social em nada veio acrescentar ao seu volume de negócios, visto que este sofre flutuações mínimas ao longo destes últimos 11 anos, tanto positivas como negativas. De forma direta, e fruto do que foi apontado, constata-se que o resultado apurado pela empresa em cada exercício é fortemente penalizado pelos encargos financeiros que suporta e que foram atenuados a partir de 2013 com a renegociação do contrato de empréstimo contraído à K... e a descida na taxa de juro praticada.

tt.    Por outro lado, da análise aos dados recolhidos na IES do sujeito passivo G... Comandita, foi possível verificar que esta sociedade apresenta também elevados encargos financeiros, resultantes de financiamentos contraídos (empréstimo no montante de 135.175 milhões de euros) para a construção/aquisição do Complexo Comercial designado por “H...”, da qual é detentora. 

uu.  Assim, alega que estamos na presença de aquisições e operações de financiamento que ocorrem no "seio" do próprio grupo, motivo pelo qual são merecedoras de uma especial atenção, no sentido de afastar eventuais situações de planeamento fiscal, que desvirtua as normais relações entre os contribuintes e a igualdade de tratamento, situação que o legislador pretendeu acautelar ao conferir ao artigo 23º do CIRC, a natureza de cláusula geral. 

vv.  Atendendo a que a sociedade G... Comandita está abrangida pelo regime da Transparência Fiscal, e que como tal imputa o resultado apurado, aos respetivos associados na percentagem correspondente a cada um, este facto dá origem a que ocorra uma "duplicação" de encargos no seio da sociedade A... Unipessoal, o que subverte os princípios subjacentes à criação deste regime, nomeadamente o da neutralidade e do combate à evasão fiscal. Efetivamente, um dos objetivos prosseguidos pelo regime da transparência fiscal é o de evitar que possam ocorrer duplas deduções de encargos com idêntica natureza, na esfera da sociedade transparente e ao nível dos associados, tal como se provou ter ocorrido no caso em apreço.”, cfr. RIT págs. 42 e 43.

ww.                Face aos factos enunciados a considerar como provados, salientam-se as seguintes ilações no que toca à matéria de facto: 

                                               i.     Invoca a requerente que a operação de aquisição de participação financeira (70% no capital da sociedade G... Comandita) não foi uma operação realizada entre sociedades do mesmo grupo, mas sim, entre fundos de investimento com diferentes investidores não relacionados entre si e que apenas as sociedades gestoras de fundos de investimento pertencem ao Grupo B..., as quais tiveram de intervir na operação em virtude de esses fundos não poderem actuar por si só. 

                                             ii.     Ora, quanto a esta alegação de que não estamos perante uma operação realizada entre sociedades do mesmo grupo, refira-se que ambas as sociedades incluídas na operação eram detidas a 100% indirectamente pelo fundo F... e dependem deste e da sociedade gestora do mesmo, a D... SARL que se integra num grupo maior o do B... AG que domina a 100% as sociedades detidas pela sua participada D... SÀRL (D...). A B... é uma sociedade residente na Alemanha que detém a 100% também a C... MBH (C...). 

                                           iii.     O capital social da A... Unipessoal era detido inicialmente pela C... MBH (C...) e em 31/10/07 a mesma vende a totalidade do capital social da A... e da G... Comandita ao fundo de investimento F..., o qual tem como entidade gestora a D..., SARL (D...). 

                                            iv.     Assim, como o confessa a requerente, as entidades gestoras dos dois fundos eram ambas detidas pela B... AG e, das três entidades concedentes do empréstimo, a P... e a K..., SARL dependem em 100% do fundo F... e da sociedade gestora D... SARL(D...) e o banco T... também pertence ao grupo da U..., tal como a B... AG. 61º E, a aquisição da totalidade das unidades de participação do fundo F... pela sociedade I... S.à.r.l, em nada alterou a natureza do financiamento em causa nos presentes autos.

                                             v.     Donde, não colhe a argumentação da requerente de que as entidades C... (C... mbH) e D... (D... S.A.R.L.) não são mais do que as sociedades gestoras de dois fundos independentes entre si, questionando-se onde está a independência entre dois fundos de investimento que são geridos por sociedades que eram dominadas a 100% pela mesma sociedade que se situa no topo do grupo.

xx.  Ao que acresce que não ficou claro porque é que se passou de um fundo regulado pela lei alemã para um fundo luxemburguês com poucos investidores como a própria requerente admite, nada se sabendo sobre quem eram estes investidores, o que investiram e se ou quais os dividendos que obtiveram da operação. O que se sabe, seguramente, é que a operação de aquisição de 70% da participação social da G... Comandita pela requerente foi uma decisão tomada no âmbito do grupo onde se inserem as entidades gestoras dos mesmos fundos

yy.  Efetivamente, de acordo com a informação retirada do dossier de preços de transferência é referido que “em outubro de 2007 o grupo decidiu que a A... a iria adquirir a participação na G... Comandita” por cerca de 175,3 milhões de euros, donde, os motivos que determinaram a alocação à requerente da participação no capital da G... Comandita, relevam de um processo de decisão, imputado aos “investidores do fundo F...” ou seja, em última instância, coube à sociedade gestora do mesmo – a D..., que entendeu por vantajoso incumbir a Requerente de adquirir parte do complexo comercial H..., incluindo 70% do capital social da G... Comandita, através de recurso a financiamento. 

zz.  Donde, a gestora do fundo não atuou sempre no interesse dos investidores do fundo. Tal “ideia” é, de facto, expressamente contrariada pelo referido dossier dos preços de transferência onde o grupo admite ter havido uma estratégia delineada pelo mesmo no sentido de adquirir tal participação.

aaa.                 Por outro lado, se antes das operações realizadas, em 2007, a C.../E... dispunha de um estabelecimento estável em Portugal, por força do disposto no n.º 9 do art.º 5.º do Código do IRC, para efeito de imputação da matéria coletável da sociedade G... Comandita, qualificada como sociedade de simples administração de bens, cfr. alínea c) do n.º 1 do art.º 6.º do mesmo Código, abrangida pelo regime de transparência fiscal, a partir de 2008, o estabelecimento estável passou a pertencer à L..., na qualidade de detentora de 30% do capital daquela sociedade, porquanto a titularidade dos restantes 70% passaram para a requerente.

bbb.                Realce-se que conforme resulta provado, diz, os financiadores da operação, não foram instituições de crédito independentes do grupo em que se integram a Requerente e a G... Comandita, uma vez que a titular do empréstimo de maior montante foi a própria sociedade mãe (K..., detida pela J...), no valor de €96,84M, logo seguida da sociedade P..., detida a 100% pela L..., no montante de €42,6M, cuja sociedade mãe é a J... e mesmo o banco T..., que efetuou um empréstimo de €35,8M participa na Sociedade B... . 

ccc.                 Ou seja, como efeito de contracção do empréstimo pela requerente gerou-se dívida intragrupo, pelo que, mais uma vez, questiona-se: onde é que está o interesse próprio da requerente em adquirir 70% da participação social da G... Comandita?!

ddd.                É que também não consegue a requerente demonstrar que, por deter 70% do capital social da G... Comandita e por passar a ter um maior controlo do seu negócio a montante, sobre o imóvel de cuja atividade dependia integralmente, isso tivesse constituído uma vantagem, uma vez que a proprietária do imóvel se limitava a fazer uma exploração “de forma passiva” (“paredes nuas”)”, por isso, não se descortina onde reside a aludida vantagem.

eee.                 O que se retira das explicações fornecidas para que a requerente tivesse sido selecionada para adquirir 70% da G... Comandita é que as principais motivações que presidiram a essa decisão foram, por um lado, razões de natureza financeira, i.e., a colocação dos financiamentos junto da fonte dos rendimentos (o imóvel) que permitiram fazer face aos respetivos encargos e garantir as responsabilidades financeiras, a par da evidente vantagem fiscal propiciada pela redução do respetivo lucro tributável à custa da dedução dos encargos financeiros.

fff.  Não é, pois, diz, válido o argumento utilizado pela requerente, de que aquela opção não visou obter uma poupança fiscal ao nível da Requerente porque ela impõe-se pela evidência dos valores apurados. 

ggg.                Pelo que, é evidente que a decisão do grupo de alocar à requerente a participação no G... Comandita e o financiamento associado à respetiva aquisição, bem como a concomitante alteração da estrutura de propriedade do A..., do ponto de vista tributário, teve uma forte repercussão na esfera jurídica da requerente decorrente dos gastos financeiros que passou a suportar, daí poder afirmar-se que o fator fiscal não esteve, certamente, ausente no processo de decisão.

hhh.                Assim, não se pode dar relevo à construção artificiosa feita pela requerente com base numa suposta avaliação do imóvel a preços de mercado em detrimento dos dados concretos apurados pela AT. Efetivamente, se analisarmos, como o fizeram os Serviços de Inspeção Tributária da AT, as declarações Mod. 22 e IES das duas empresas (A... Unipessoal e G... Comandita), constata-se que ambas suportam elevados encargos financeiros com os empréstimos contraídos. 

iii.   Donde a requerente está, efetivamente, a suportar os valores dos encargos de dois empréstimos contraídos para a aquisição do mesmo imóvel. 

jjj.   A questão da “duplicação de encargos” tem de ser vista segundo a perspetiva em que a mesma foi analisada pela AT. E, assim, este efeito decorre do facto de por força do contrato de empréstimo contraído pela requerente para a aquisição de 70% da participação social se ter constatado que a partir do ano de 2007 a A... Unipessoal suporta elevados encargos financeiros, registados nas suas demonstrações financeiras na rubrica de juros suportados. Durante o mesmo período verifica-se que a aquisição da participação social em nada veio acrescentar ao seu volume de negócios, visto que este sofre flutuações mínimas ao longo destes últimos anos, tanto positivas como negativas. 

kkk.                Constatando-se, igualmente, da análise aos dados recolhidos na IES do sujeito passivo G... Comandita, que esta sociedade apresenta também elevados encargos financeiros, resultantes de financiamentos contraídos (empréstimo no montante de 135.175 milhões de euros) para a construção/aquisição do Complexo Comercial designado por “H...”, da qual é detentora.

lll.   Assim, vista em conjunto toda a operação tal como delineada pelo grupo onde a requerente se insere os juros contraídos foram-no não no interesse da requerente, mas de terceiros, do grupo em que o mesmo se insere.

mmm.           Pelo que conclui pela improcedência do pedido.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 23-12-2021, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27-12-2020. Em 10-02-2022, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

 

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 10-02-2020, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 02-03-2022, tendo sido proferido despacho arbitral em 03-03-2022 em cumprimento do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

A AT apresentou a sua Resposta, em tempo, em 06-04-2022.

 

Em 25-05-2022 foi proferido Despacho arbitral com o seguinte teor:

«1. Designa-se o dia 8 de junho de 2022, pelas 9h30 horas, nas instalações do CAAD, para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word. Notifiquem-se as partes do presente despacho.»

 

Em 07-06-2022 foi proferido o seguinte Despacho Arbitral, na sequência de pedido do Requerente:

«1. Atendendo ao pedido efetuado pelo Requerente, designa-se nova data para realização da audiência para produção de prova testemunhal: 23 de junho de 2022, pelas 10 horas, nas instalações do CAAD.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.»

Em 21-06-2022 foi proferido o seguinte Despacho Arbitral, na sequência de pedido do Requerida, com acordo da Requerente:

«1. Designa-se o dia 6 de julho de 2022, pelas 10h00 horas, nas instalações do CAAD, para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

2. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.»

 

            A inquirição foi realizada no dia 06-07-2022 conforme ata junta ao processo, que prorrogou a data limite da prolação da decisão, em cumprimento do disposto no artigo 18.º, n.º 2 do RJAT, até 02-11-2022.

 

Na sequência da inquirição, foram apresentadas as alegações das partes.

 

POSTO ISTO:

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades. 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

Tudo visto, cumpre decidir.

 

II. DECISÃO

A.   MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

a)     A Requerente tem como objeto social a compra e venda do imóvel do centro comercial designado como “H...”, bem como o arrendamento, exploração e gestão do H... e quaisquer outros atos ou transações diretamente relacionadas com a mencionada atividade.

b)    Por referência ao exercício de 2017, a Requerente foi alvo de uma ação de inspeção fiscal, em cumprimento da Ordem de Serviço n.ºs OI20109..., de 22 de novembro de 2019, no âmbito da qual a AT veio alterar o lucro tributável declarado pela Requerente de EUR 9.411.713,88 para EUR 13.327.487,09 (cf. Documento 2 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

c)     Em consequência das conclusões retiradas pelos Serviços de Inspeção Tributária da AT, e como se referiu supra, a Requerente foi notificada (i) da liquidação adicional de IRC do exercício de 2017, com o n.º 2021..., (ii) das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2021 ... e 2021 ... e (iii) da respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., a qual incorpora o montante total a pagar de EUR 1.200.193,42.

d)    Resulta, assim, da referida demonstração de acerto de contas (i) a anulação do estorno de liquidação relativo ao exercício de 2017, no montante de EUR 496.568,13, (ii) um acerto de liquidação relativo ao referido exercício, no montante de EUR 581.630,07, (iii) a liquidação de juros compensatórios por retardamento da liquidação no montante de EUR 70.624,23, (iv) a liquidação de juros compensatórios por recebimento indevido no montante de EUR 51.370,99, o que totaliza, assim, o valor de EUR 1.200.193,42 a pagar.

e)     As referidas liquidações adicionais de imposto têm origem em correções à matéria tributável de IRC efetuadas pelos Serviços de Inspeção Tributária da AT, ao exercício de 2017, no valor de EUR 3.915.773,21, as quais têm por base a desconsideração, para efeitos de apuramento do lucro tributável em sede de IRC, do gasto correspondente aos juros suportados pela Requerente com empréstimos contratados, considerando, no essencial, que tais encargos não são indispensáveis para a realização de proveitos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, conforme consta do Relatório de Inspeção Fiscal (Relatório).

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[6], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

 

B. DO DIREITO

 

B.1. QUANTO AO MÉRITO

 

Em suma, este Tribunal é chamado a apreciar se a reorganização (operação de aquisição de participação financeira – 70% no capital da sociedade G... Comandita datada de 2015) altera a dedutibilidade dos encargos financeiros suportados nos empréstimos identificados. Ou seja, se os encargos financeiros (que incluem juros e imposto do selo), outrora aceites em termos fiscais (de forma pacífica), deixam de o ser após a reorganização, por incumprimento superveniente dos requisitos do art.º. 23.º, do CIRC (requisito geral da indispensabilidade e especial de aplicação na exploração).

Inclinamo-nos claramente no sentido da dedução fiscal desses encargos financeiros (juros e imposto do selo), mesmo após a reorganização, agora na esfera da Requerente, por três principais argumentos, a seguir explanados – e tendo presente as considerações anteriores.

 

a)    Aplicação dos capitais alheios na exploração - O primeiro prende-se com a análise do teor literal art. 23.º, n.º 1 do CIRC [e, nomeadamente o art. 23.º, n.º 2, al. c)]: a dedução dos encargos natureza financeira exige que os “juros de capitais alheios sejam aplicados na exploração”. 

Importa analisa no presente caso se a operação de aquisição de participação financeira (70% no capital da sociedade G... Comandita) foi ou não uma operação realizada entre sociedades do mesmo grupo, com impacto nos gastos da Requerente para efeitos do artigo 23.º do CIRC.

Na verdade, da análise à contabilidade no exercício de 2017, verificou-se que os encargos financeiros (juros e imposto de selo) relacionados com estes empréstimos foram contabilizados nas contas de gastos da Requerente.

Assim, importa apurar se estamos na presença de aquisições e operações de financiamento que ocorrem no "seio" do próprio grupo, motivo pelo qual são merecedoras de uma especial atenção, no sentido de afastar eventuais situações de planeamento fiscal, que desvirtua as normais relações entre os contribuintes e a igualdade de tratamento, situação que o legislador pretendeu acautelar ao conferir ao artigo 23º do CIRC, a natureza de cláusula geral. 

 

A resposta aqui é clara - na composição do grupo há fundos de investimento com diferentes investidores não relacionados entre si e que apenas as sociedades gestoras de fundos de investimento pertencem ao Grupo B..., as quais tiveram de intervir na operação em virtude de esses fundos não poderem actuar por si só – o que afasta o planeamento de grupo que a Requerida alega.

 

Assim, com essa operação realizada em 2015, não se pode dizer que os capitais alheios deixaram de ser aplicados (os financiamentos continuaram) e mantêm-se afetos à exploração, agora reestruturada por efeitos legais da reorganização (transmissão dos direitos e obrigações para a Requerente, num quadro de gestão de grupo). 

Ora, neste novo cenário, a Requerente e o P... detinham 70% e 30%, respetivamente, do capital do G... Comandita, que por sua vez detinha 100% do capital social do complexo comercial conhecido como “H...”, de modo a evitar que os riscos operacionais da gestão do imóvel/centro comercial pudessem ter impacto direto no valor económico do próprio imóvel – e isso está perfeitamente explícito no historial do grupo.

 

Não ocorre assim um desvio do financiamento, num intuito abusivo, no sentido que se serve agora o favorecimento de interesses extra empresariais, p. ex., em benefício de um sócio. O que ocorre é apenas a produção dos normais efeitos económicos da reorganização do capital[7] para a Requerente, consentidos pelo direito comercial, e é impossível concluir que os efeitos dessa operação, seguindo os estritos ditames do direito comercial, redundam na tutela de interesses alheios ao interesse societário, apenas para beneficiar abusivamente terceiros da reorganiozação. Este resultado interpretativo seria uma verdadeira contradição nos seus termos, porque equivaleria a admitir que o direito comercial, ao regular operações de reorganização societária permitiria resultados que violariam a tutela dos interesses acautelados por essa disciplina jurídica.

Assim, se os juros eram fiscalmente aceites previamente à 2015 (porque os capitais alheios estavam aplicados para um fim específico), então também o serão após a reorganização de 2015, que se limitou a seguir as regras do direito comercial, de transmissão de todos os direitos e obrigações para a Requerente numa lógica comercial de gestão de grupo e de minimização do risco, porque após a reorganização, continuam a ser considerados juros de capitais alheios aplicados na exploração.

 

b)    Inexistência de uma decisão de desinvestimento - O segundo argumento pondera a situação paralela a reorganização societária (como seja uma fusão permitida pelo direito comercial) em que a Requerente decidisse abdicar do objeto do investimento (por não ser rentável ou por não evidenciar poupanças evidentes), mas tivesse evidentemente de manter o financiamento que proporcionou os meios financeiros para o investimento.

Somos assim sensíveis aos argumentos expostos no Acórdão datado de 4/2/2020, emitido no processo 191/2019, deste Centro[8]:

«Ora, aqueles encargos manter-se-ão dedutíveis, não obstante o desaparecimento – por via de uma decisão empresarial – do objeto em que os capitais alheios que remuneram foram aplicados. O capital alheio foi aplicado na exploração no momento inicial – dando origem ao investimento produtivo. E isso é suficiente e bastante para legitimar a dedução fiscal dos juros daí decorrentes, independentemente das vicissitudes empresariais futuras desse investimento. Os encargos financeiros continuam a ser dedutíveis, ainda que o investimento se tenha gorado ou se tenha revelado como um mau negócio ou uma decisão empresarial infrutífera – pois, e é isso que importa, os capitais alheios estiveram ligados a um investimento que no momento inicial foi aplicado na exploração.»

 

c)     O artigo 23.º do CIRC não é uma norma antiabuso - As considerações anteriores poderiam ser confrontadas – em termos fiscais – e este é o terceiro argumento, com a existência de um encadeamento de operações para propositadamente proporcionar um resultado fiscal indesejado, de abusiva poupança de impostos, traduzindo reorganização societária com reutilização de financiamento, com o propósito de diminuir abusivamente os impostos a pagar nos anos seguintes pela Requerente. 

A AT, na fundamentação do ato tributário, não convocou esse arsenal argumentativo para justificar a liquidação, em substituição ou cumulativamente com o art. 23.º do CIRC. 

Apesar de desconfiar do encadeamento temporal e cronológico das operações e da “poupança fiscal” assegurada com a dedução dos juros do financiamento da aquisição da requerente sobre os proveitos operacionais das mesmas empresas (pós 2015), não sustentou a correção fiscal no art. 38.º, n.º 2, da LGT ou no art. 73.º, n.º 10, do CIRC ou sequer no art. 63.º do CIRC (invocando uma quantificação excessiva dos juros entre sociedades em relações especiais). E o julgador, no contencioso fiscal, tem de se debruçar sobre o objeto do processo, tal como recortado pela fundamentação, sob pena de ilegal fundamentação a posteriori e intromissão no poder dever do poder executivo.

Assim, o art. 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do art. 38.º, n.º 2, da LGT, art. 73.º, n.º 10 do CIRC ou art. 63.º do CIRC. Cada norma tem um conteúdo prescritivo diverso – e o art. 23.º do CIRC não funciona como uma norma anti abuso substitutiva daqueles outros preceitos. 

Continuando na mesma linha de raciocínio do Acórdão datado de 4/2/2020, emitido no processo 191/2019, deste Centro[9]:

“O art. 23.º do CIRC limita o seu raio de ação à não dedução fiscal dos gastos assim contabilizados, mas que, quando contraídos (ou os investimentos efetuados) não se inserem no interesse económico da Sociedade, mas servem interesses extra societários, dos administradores ou de terceiros. Suponhamos que uma Sociedade suporta os juros de um financiamento por si contraído para efetuar um investimento apenas em benefício privado de um sócio ou administrador (e isso não é reconduzido a um rendimento em espécie da pessoa singular). Ou que se financia na banca para entregar essa quantia financeira a terceiro, sem qualquer contrapartida, fora do grupo ou fora do seu objeto social. Nesses casos, os juros que vier a suportar com esses fundos não são fiscalmente dedutíveis porque não foram (ab initio e para sempre) aplicados na exploração da Sociedade.”

O caso dos autos é totalmente diverso. Os capitais alheios foram aplicados para um fim específico; e caso se pretendesse invocar que todas as operações se reconduziriam a um abusivo esquema de encadeamento de operações, ainda que lícitas sob o ponto de vista civil, para obter-se um ganho fiscal – o que nalguns passos da inspeção é isso o que fica subentendido – então a fundamentação não se teria de socorrer do instituto do art. 23.º do CIRC mas sim do artigo 38.º, n.º 2 da LGT.

Ora, admitindo então que o art.º 23.º n.º 1 alínea c) do CIRC tem que ter em conta a atividade do conjunto da empresa que participa na reorganização societária[10], caberia de seguida averiguar se as motivações para esta reorganização societária foram essenciais ou principalmente fiscais, aplicando-se o art.º 38.º n.º 2 da LGT quanto à dedutibilidade dos encargos em causa.

Caberia assim averiguar, nos termos do art.º 38.º n.º 2 da LGT se os negócios foram artificiosos, se as finalidades da reorganização no pós 2015 foram essencial ou principalmente fiscais e se havia outros negócios jurídicos que dessem origem a idênticas vantagens fiscais, isto é, se a dedutibilidade dos custos teria sido alcançada por outros meios: art.º 38.º n.º 2 da LGT. 

Deveria, desta forma, ter sido aplicado o procedimento previsto no ex-artigo 63.º n.º 1 do CPPT, o qual estipulava que “[a] … liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio”.

A argumentação exposta basta para se proceder à anulação da liquidação impugnada, com as demais legais consequências. Não é, assim, necessário explorar os demais argumentos expostos pela Requerente.

 

C. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de anulação da liquidação adicional de IRC do exercício de 2017, com o n.º 2021..., das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2021 ... e 2021 ... e da respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., a qual incorpora o montante total a pagar de EUR 1.200.193,42;

E em consequência:

b)    Ordenar a devolução à requerente dos referidos montantes, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em  1.200.193,42, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €16.524,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi julgado procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 31 de outubro de 2022

 

O Árbitro Presidente,

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Henrique Nogueira Nunes)

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Rita Guerra Alves)

 

 

 



[1] Retificado por despacho de 30 de novembro de 2022

[2]   A AT interpôs recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo, com base em Oposição de Julgados, o qual veio a ser julgado improcedente.

 

[3]   Em que foram árbitros José Baeta Queiroz (árbitro presidente), Nuno Cunha Rodrigues e Ricardo Rodrigues Pereira.

 

[4]    A AT apresentou impugnação da decisão arbitral n.º 680/2016-T, a qual correu termos junto do Tribunal Central Administrativo Sul, sob o n.º de processo 91/17.5BCLSB, no entanto, em acórdão de 17.10.2019, este Tribunal veio confirmar o entendimento proferido pelo Tribunal Arbitral, julgando improcedente a impugnação deduzida pela AT (disponível em www.dgsi.pt).

 

[5]    Em que foram árbitros Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Luís M. S. Oliveira e Diogo Feio.

[6] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[7] Retificado por despacho arbitral de 30 de novembro de 2022

[10] Retificado por despacho arbitral de 30 de novembro de 2022