Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 94/2019-T
Data da decisão: 2019-06-25  IRC  
Valor do pedido: € 1.357.516,26
Tema: IRC - Mais-valias e menos-valias. Dedutibilidade. Mensuração de acordo com o justo valor.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Paulo Jorge Varela Lopes Dias e Prof.ª Doutora Rita Calçada Pires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23-04-2019, acordam no seguinte:

               

                1. Relatório

 

A...,  S.A.,  com  o  número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede na ..., n.º..., em Lisboa, doravante designada por “Requerente,  apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação  da  decisão  de  indeferimento  expresso  do  Recurso  Hierárquico  n.º ...2016...  (processo n.º...),  apresentado  com  vista  à  anulação  da  decisão  de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada, por seu turno, contra os actos de liquidação de Imposto  sobre  o  Rendimento das Pessoas  Coletivas  (“IRC”)  com  os  n.ºs 2015... e 2015..., referentes aos exercícios de 2012 e 2013.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 13-02-2019.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 02-04-2019 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 23-04-2019.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente.

 

Por despacho de 05-06-2019 foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

 

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

                 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

A)           A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma acção inspectiva à Requerente, relativa a IRC dos exercícios de 2011, 2012 e 2013;

 

B)           Relativamente aos exercícios de 2012 e 2013, a que se reportam as liquidações impugnadas no presente processo arbitral, foram efectuadas, entre outras, correcções nos montantes de € 328.099,59 e de € 1.029.416,67, respectivamente, relativamente a perdas por reduções de justo valor em instrumentos financeiros;

 

C)           No Relatório da Inspecção Tributária, que consta do documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

 

III.1.1. Perdas por reduções de justo valor de investimentos financeiros

III.1.1.1.  As perdas por reduções de justo valor de investimentos financeiros nos exercícios de 2011 a 2013 encontram-se registadas na conta "662 - Perdas por reduções de justo valor -Investimentos financeiros" e ascenderam aos montantes indicados no quadro seguinte:

 

III.1.1.2. As perdas por reduções de justo valor respeitam à variação negativa na cotação das ações detidas pelo sujeito passivo na sociedade cotada B... (B...) com sede no Koweit.

O número de ações detidas pelo sujeito passivo na B... representa uma participação social de cerca de 1% do capital social ou direitos de voto dessa sociedade, nos exercícios de 2011 e 2012 e inferior a 1% do capital social) ou direitos de voto dessa sociedade, no exercício de 2013, conforme se evidencia no quadro seguinte:

 

O investimento financeiro na sociedade B... está mensurado pelo método do justo valor através de resultados, em conformidade com a NCRF 27, uma vez que corresponde a um instrumento de capital próprio com cotações divulgadas publicamente, concretamente na Kuwait ... .

III. 1.1.3. Nos termos do disposto na alínea a) do número 9 do artigo 18° do Código do IRC, "Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, exceto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social".

Nos termos do disposto na alínea a) do referido artigo, as perdas incorridas nos exercícios da 2011 a 2013 concorrem para a formação do lucro tributável, pois o investimento financeiro em apreço preenche todos os requisitos estabelecidos nessa alínea.

Porém, o número 3 do artigo 45° do Código do IRC, na redação à data dos factos, estabelece que "A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor. " (sublinhado nosso)

Assim, da conjugação da alínea a) do número 9 do artigo 18° com o número 3 do artigo 45° (na redação à data dos factos), ambos do Código do IRC, apenas 50% da perda por redução do justo valor, concorre para a formação do lucro tributável.

III. 1.1,4. O sujeito passivo considerou que a totalidade da perda concorria para a formação do lucro tributável, não tendo por isso efetuado qualquer acréscimo no quadro 07 da Declaração de Rendimentos Mnd.22/IRC, para efeitos de apuramento do lucro tributável dos exercícios de 2011 a 2013, conforme se pode verificar nas correspondentes declarações de rendimentos que se juntam em Anexo 3.

A Ficha Doutrinária relativa ao Processo n.º 39/2011, com despacho de 24/02/2011 do Diretor-Geral dos Impostos, sobre uma sociedade que detém ações de sociedades cotadas na Bolsa da Valores, representativas de menos de 5% do respetivo capital social, cuja evolução da correspondente cotação foi negativa, nos seus pontos 5. e 6. vem referir o seguinte:

«S. No caso de ser apurada uma perda por reduções de justo valor, o artigo 45°, nº 3 do CIRC, estabelece que "...outras perdas ...relativas a partes de capital ,... concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor."

6. Sendo as reduções de justo valor destas partes de capital qualificadas como perdas deverão ser consideradas, nos termos do referido artigo 45°, n° 3, do CIRC, em 50% do seu valor.»

Tendo em conta que a Administração Tributária, nos termos do número 1 do artigo 68°-A da LGT e do artigo 55° do CPPT, se encontra vinculada ao entendimento vertido nesta Ficha Doutrinária, propõe-se a correção de 50% das perdas por redução do justo valor suportadas nos exercícios de 2011 a 2013, nos termos conjugados da alínea a) do número 9 do artigo 18° com o número 3 do artigo 45° do Código do IRC, para efeitos de apuramento do lucro tributável dos correspondentes exercícios, conforme se resume no quadro seguinte:

 

 

D)           Na sequência da inspecção, em 21-09-2015, a Requerente foi notificada da Liquidação de IRC n.º 2015..., referente ao exercício de 2012, bem como a Demonstração de acero de conta n.º 2015..., em que se apura o prejuízo fiscal de € 6.587.427,73 (ao invés do prejuízo de € 6.915.527,32 declarado pela Requerente) (Documentos n.ºs 7 e 9, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

E)            Na mesma data, a Requerente foi notificada da Liquidação de IRC n.º 2015...,  referente ao exercício de 2013, bem como da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2015..., em que apura o prejuízo fiscal de € 607.005,94 (ao invés do prejuízo de € 1.636.422,61 declarado pela Requerente) (documentos n.ºs 8 e 10 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

F)            Por não se conformar com as liquidações de IRC referentes aos exercícios de 2012 e 2013, a Requerente apresentou, em 18 de Janeiro de 2016, uma  Reclamação  Graciosa  com  vista  à  anulação  dos  actos  tributários referidos (documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

G)           A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 26-07-2016, que manifesta concordância com uma informação que consta do documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

 

H)           A Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa (documento n.º 16 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

 

I)             Na  sequência  da  prolação  da  decisão  arbitral  no  âmbito  do  processo  arbitral  n.º  77/2016-T, que teve por objecto a correcção relativa ao exercício de 2011, que foi julgada procedente, em 29 de Novembro de 2016 a Requerente juntou ao procedimento de recurso hierárquico essa mesma decisão (documento n.º 17 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

J)            A Senhora Sub-directora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu o recurso hierárquico, por despacho de 14-11-2018, manifestando concordância com uma informação, que consta do documento n.º 18, cujo teor se dá como reproduzido;

 

K)           Em 12-02-2019, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não existem factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham por provados.

 

2.3. Factos provados e fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.

 

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

3. Matéria de direito

 

A Requerente imputa às liquidações impugnadas, relativas aos exercícios de 2012 e 2013, bem como à decisão do recurso hierárquico, vício por violação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

 

Cumulativamente, quanto à decisão do recurso hierárquico, a Requerente imputa vício por preterição do direito de audiência.

 

O artigo 124.º do CPPT estabelece regras sobre a ordem de conhecimento de vícios em processo de impugnação judicial, que são subsidiariamente aplicáveis ao processo arbitral, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

 No caso de vícios geradores de anulabilidade, a alínea a) do n.º 2 daquele artigo 124.º estabelece que se deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

O vício de preterição do direito de audiência é de natureza procedimental que, em caso de anulação, não obsta necessariamente à renovação do acto anulado, com supressão do vício.

 

 Assim, no caso em apreço, aquele artigo 124.º do CPPT impõe o conhecimento prioritário do vício de violação de lei.

 

3.1. Questão da aplicação da percentagem 50% prevista no artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (na redacção vigente em 2012 e 2013) às perdas por reduções de justo valor de investimentos financeiros

 

3.1.1. Identificação do objecto concreto de análise

 

Estão em causa no presente processo correcções à matéria tributável de IRC dos exercícios de 2012 e 2013, efectuadas por a Requerente não ter aplicado a redução a 50% prevista no então n.º 3 do artigo 45.º do CIRC, no que concerne à dedutibilidade fiscal de perdas por reduções de justo valor que «respeitam à variação negativa na cotação das ações detidas pelo sujeito passivo na sociedade cotada B... (B...) com sede no Koweit».

 

A questão a apreciar é a de saber se o n.º 3 do art.º 45.º do Código do IRC é ou não aplicável às variações negativas do justo valor apuradas no exercício, nos termos da alínea a) do n.º 9 do art.º 18.º do mesmo Código.

 

Não é controvertido pelas Partes que as participações financeiras em questão deverão ser contabilizadas de acordo com o critério do justo valor, que os ajustamentos foram reconhecidos através de resultados e a sua quantificação, pelo que se verificam os requisitos referidos no n.º 9 do artigo 18.º do CIRC.

 

Na análise desta questão seguir-se-á de perto a fundamentação do acórdão arbitral de 25-11-2013, proferido no processo n.º 108/2013-T. (   )

 

3.1.2. Da identificação do quadro normativo relevante

 

Para o caso em apreço relevam as seguintes normas:

 

O artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, estabelecia o seguinte:

 

3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.

 

A norma geral sobre a determinação do lucro tributável de IRC é o artigo 17.º do CIRC que estabelece o seguinte:

 

1 – O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

               

Relativamente aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, o n.º 9 do artigo 18.º do mesmo Código dispõe que:

 

9 – Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou

b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.

 

O artigo 20.º, n.º 1, do CIRC concretiza o conceito de “rendimentos” estabelecendo, no que aqui interessa, o seguinte:

 

“Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:

                (...)

f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

h) Mais-valias realizadas;”.

               

O artigo 23.º, n.º 1, do CIRC define o conceito de “gastos”, estabelecendo o seguinte:

 

“1 – Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(...)

i)             Gastas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

l) Menos-valias realizadas;”.

 

Relativamente às variações patrimoniais positivas, o artigo 21.º, n.º 1, do CIRC dispõe que:

 

“Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

 (...)

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;”.

 

No que concerne às variações patrimoniais negativas, o artigo 24.º, n.º 1 do CIRC refere que:

“Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:

(...)

b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;”.

 

No que diz respeito às mais e menos-valias, dispõe o artigo 46.º, n.º 1 do mesmo Código que:

 

“1 – Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:

 (...)

b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.;”º

 

3.1.3. Das sucessivas alterações legislativas e o seu impacto nas normas em análise

 

O referido artigo 45.º, n.º 3 do CIRC decorre da renumeração do anterior artigo 42.º, n.º 3, efectuada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho.

 

Este n.º 3 do artigo 42.º, por sua vez, foi introduzido pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, com a seguinte redacção:

 

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

               

De acordo com o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de Estado de 2003 (p. 33), a intervenção legislativa na área em causa (IRC) guiou-se por “duas prioridades, a saber, o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável”, enquadrando-se a alteração que aqui interessa no âmbito do “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (p. 51).

 

A redacção final da norma em análise resultou já da alteração implementada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que nos termos do correspondente Relatório do Ministério das Finanças (página 31), a medida em causa se enquadrou no âmbito do “Combate À Evasão E Fraude Fiscais E Outras Medidas Direccionadas À Consolidação Orçamental”.

 

Já o n.º 9 do artigo 18.º do CIRC obtém directamente a sua justificação no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, que o introduziu no referido Código, onde se pode ler:

 

“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados. (...)

No mesmo sentido, identificam-se como activos abrangidos pelo regime das mais-valias e menos-valias fiscais os activos fixos tangíveis, os activos intangíveis, as propriedades de investimento, os instrumentos financeiros, com excepção daqueles em que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável no período de tributação.

               

Estas intenções expressas têm correspondência naquela norma do n.º 9 do artigo 18.º, bem como na introdução, pelo mesmo diploma legal, das alíneas f) e i) do n.º 1 dos artigos 20.º e 24.º do CIRC, bem como da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º.

 

Dentro do conjunto de alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, cumpre ainda salientar que onde até aí se falava de proveitos e ganhos (artigo 20.º), passou-se a falar de rendimentos, e onde antes se falava de custos ou perdas (artigo 23.º), passou-se a falar de gastos.

 

Previamente à adopção do justo valor para acções com as características do caso sub judice, por efeito do início de vigência do SNC, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, que estabelecia que não concorriam para a formação do lucro tributável «as mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reabilitação legalmente autorizadas». Apenas no momento da realização da mais ou menos-valia é que assumia relevância fiscal a variação patrimonial verificada.

 

Este enquadramento fiscal, que reconduzia a uma tributação única (que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros), dependente de uma actuação voluntária do sujeito passivo (na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo alienasse os activos) e em que a valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária propiciavam um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia procurar desencadear a relevância tributária no momento e nos termos em que tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

 

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis, que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

 

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º, n.º 3 do CIRC que precede o então artigo 45.º, n.º 3, do mesmo.

 

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

 

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

 

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

 

Já relativamente a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5 % do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

 

Em consonância com esta intenção legislativa, o artigo 18.º, n.º 9 do CIRC veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, o que consubstancia um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

 

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a excepção a este regime, «quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social;”.

 

Ou seja, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, tais “concorrem para a formação do lucro tributável”, “desde que”:

 

             Sejam reconhecidos “através de resultados”;

             Se trate “de instrumentos do capital próprio”;

             “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e

             “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”.

 

Cumpridas estas condições:

 

             consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), do CIRC]; e

             consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC].

 

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única, aquando da transacção daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC] do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas as condições atrás referidas a propósito do artigo 18.º, n.º 9, do CIRC.

 

Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada, havendo espaço para a concretização do comando constitucional da tributação empresarial fundamentalmente pelo seu lucro real.

 

Não obstante as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, renumerado então para artigo 45.º, n.º 3, manteve a respectiva vigência, com a sua redacção inalterada.

 

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às depreciações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC.

 

3.1.4. A função e o valor da interpretação: da importância da hermenêutica, da interpretação sistemática e da interpretação teleológica das normas fiscais em análise

 

Numa primeira análise, baseada exclusivamente no teor literal do n.º 3 do artigo 45.º do CIRC é sugerida uma resposta afirmativa a esta questão, em face da abrangência de previsão desta norma.

 

Mas, uma interpretação atenta e sistemática dos normativos relevantes para a análise da questão, que se indicaram, conduz a uma conclusão diferente. Veja-se.

 

O artigo 45.º, n.º 3, do CIRC refere que:

 

A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.

 

A análise do texto normativo revela com clareza, em função da presunção de boa técnica legislativa, que o legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, por distintas, a saber:

 

a)            “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;

b)           “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;

c)            “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

 

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das elencadas situações.

 

A situação aludida sob a alínea a) supra, será manifestamente inaplicável, não só porque não houve qualquer realização operada mediante transmissão onerosa, mas também porque o artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do CIRC exclui as situações descritas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do conceito de mais-valias realizadas.

 

Deste modo, restam as possibilidades de integração da situação dos autos em alguma das supra situações elencadas nas alíneas b) e c).

 

A aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada atentando que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas” serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

 

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho.

 

Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respectivamente, que:

 

– “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

– “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.

 

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redacção do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC vigente em 2013, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

 

a)            Custos;

b)           Perdas;

c)            Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

 

A previsão do artigo então 42.º, n.º 3 do CIRC (predecessor do artigo 45.º, n.º 3, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho), dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redacções anteriores a este Decreto-Lei.

 

Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes.

 

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” utilizada no artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção vigente em 2012, não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigos 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregado a mesma distinção.

 

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respectivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável e, consequentemente, trata-se de uma interpretação a rejeitar, por força da regra do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, que impõe que se presuma que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.

 

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC, inclusivamente na sua versão actual, continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h)). Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 12 de Julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

 

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC se reportará a:

 

a)            diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

b)           outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

c)            outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

Sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC, e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

 

Atendendo a este retrato fiel das normas e sua evolução, não se incluirão, deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22” (   ), a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”. Não surge a invocação da expressão gastos. E atenda-se que o artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorrecta a sua inscrição no campo em causa.

 

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, pretendesse incluir, no âmbito do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, as situações elencadas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, teria tido o cuidado de incluir expressamente a terminologia “gastos”, i.e., teria introduzido uma alínea específica, contendo “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC (   ).

 

Tenha-se ainda em consideração que, caso o legislador pretendendo assumir que tais situações seriam perdas e não gastos, teria referido expressamente nos artigos 18.º, n.º 9 e 23.º, n.º 1, alínea i), ambos do CIRC, tais situações como sendo “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não as qualificando como “gastos”, o que aconteceu.

 

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objectividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

 

Esta circunstância não é, face à redacção do CIRC resultante do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, susceptível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redacção dos artigos 20.º, n.º 1, alíneas f) e h), 23.º, n.º 1, alíneas i) e l), e, em especial 46.º, n.º 1, alínea b), todos do CIRC. Esses artigos evidenciam, de uma forma clara, a intenção de o legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais-valias e menos-valias.

 

Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º, n.º 3, e 46.º do CIRC, apenas faz sentido na perspectiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização. É que, estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transacção, haverá sempre um factor voluntário em relação àquela.

 

Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º, n.º 3, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma actuação susceptível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objectivamente, a condicionar as actuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

 

Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objectivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas, teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

 

Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão, ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo, passando a ser relevantes fiscalmente no momento em que realmente ocorrem.

 

Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico.

 

É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente injustificada, só se daria por força da excepção das situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC ao regime do princípio da realização. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º, n.º 9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal, ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa ou, até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário Público.

 

A excepção da alínea a), ao retirar as situações aí previstas do âmbito do princípio da realização, justifica o novo regime de relevância para o lucro tributável.

 

3.1.5. Da necessidade da análise do impacto efectivo das normas no exercício da interpretação. O dever de exigir a qualidade da norma fiscal

 

O juiz, em nome da efetiva protecção dos interesses trazidos a juízo, não se pode limitar a uma interpretação meramente literal, desprendida do elemento sistemático e, muito relevante, igualmente, o teleológico. Ou seja, é competência do juiz, através do seu olhar e da sua análise, garantir uma análise completa da situação. Garantindo a protecção prática e efectiva do direito de propriedade individual, não assumindo tal protecção uma componente meramente teórica e ilusória.

 

Por forma a conseguir este tipo de protecção, equilibrada e efectiva dos dois interesses em presença, é fundamental o juiz atender a interpretação e a aplicação integradas. Ou seja, há que ter em consideração a interpretação sistemática e a teleológica. Tal implica que as questões devem ser analisadas em todas as suas vertentes, por forma a garantir que o impacto real da aplicação da norma fiscal é considerado, tanto para o contribuinte como para a Administração Tributária. A consistência da intervenção pública é exigida e essa é devida, tanto pela via administrativa como pela via judicial.

 

A este propósito, tenha-se em atenção que a qualidade da norma fiscal é exigência determinante para garantir quer uma protecção adequada do contribuinte quer uma aplicação correcta da norma. Por isso, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em múltipla jurisprudência persistente ao longo do tempo ( ), a propósito da análise da legalidade das normas fiscais, afirma a necessidade de a norma fiscal ter qualidade. Este conceito é aferido, no TEDH, considerando a acessibilidade, a precisão e a previsibilidade, promovendo a inexistência de inconsistências. O objectivo é não resultar da norma fiscal a possibilidade de interpretação ambígua, mas antes gerar-se interpretação una.

 

Com base nesta construção, o tribunal deve ter em consideração que o legislador buscou a qualidade da norma fiscal. Ou seja, o tribunal tem de ter em consideração que a letra da lei é efectivamente o que o legislador pretendeu, promovendo uma interacção equilibrada entre a letra da lei e o seu espírito.

 

Importante forma de concretizar tal desígnio, após leitura integrada dos normativos em causa é a averiguar qual o impacto da aplicação da norma na esfera dos envolvidos na aplicação.

 

Este exercício necessário e garante da adequada protecção jurídica é ainda mais necessário no caso de serem invocadas divergências interpretativas pelos sujeitos envolvidos na relação jurídica fiscal, como no caso em apreço. Deve, então, o Tribunal proceder a análise comparada entre a aplicação da norma do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) isoladamente e a aplicação da norma do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) em conjugação com o artigo 45.º, n.º 3, por forma a apurar, em termos de resultado, se ocorre algum dado novo que possa fazer modificar a construção interpretativa até agora apresentada.

 

Tenha-se em atenção os dados apresentados no quadro seguinte - e que tem sido recorrentemente utilizado pela jurisprudência do CAAD nesta matéria:

 

Ano       Valor Inv. Financeiro      Variação anual de justo valor     Aplicação do artigo 45.º/3 do CIRC

0             Valor de aquisição (V.A.)             0             0

1             V.A.+ 40               + 40       +40

2             V.A.+ 20               -20         -10

3             V.A        -20          -10

4             V.A.-40 -40          -20

5             V.A.       +40         +40

6             V.A. -20 -20          -10

 

Explique-se.

 

A não aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC aos gastos, e concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, - valores contidos na coluna intermédia “variação anual do justo valor” - leva a uma coerência da tributação, qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de alienação.

 

Já se se aplicasse a norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, como pretende a Autoridade Tributária e Aduaneira – exposto nos valores obtidos na última coluna -, a partir do momento em que se verificasse uma alteração patrimonial negativa, haveria uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objectiva e independente da actuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se, ao fim do segundo ano, o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização), teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pagado imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efectiva de -20, que, ao abrigo do princípio da realização consagrado no CIRC, seria atendível, ainda que em apenas 50% do respectivo valor (-10). Ora, tais resultados, além de injustos afastar-se-iam do imperativo constitucional do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, que promove a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

 

Do exposto resulta a irrazoabilidade da aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC às situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do mesmo Código.

 

Nos termos do exposto, o desacerto de uma hipotética solução legislativa a que conduz uma determinada interpretação é, seguramente, um argumento decisivo para rejeitar essa interpretação, pois, em boa hermenêutica, tem de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada para uma determinada situação jurídica e não uma solução insensata e sem fundamento lógico, como aliás determina o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil.

 

Para além disso, o Direito Tributário tem especificidades interpretativas e uma delas é a de que, a estar-se perante uma situação de dúvida terá de se atender «à substância económica dos factos tributários» (por imposição do artigo 11.º, n.º 3, da LGT). Ora, no caso em apreço, mesmo que se afirmasse existirem dúvidas quanto ao alcance do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC - como algumas decisões arbitrais minoritárias o fazem quanto a este aspecto – esta regra interpretativa teria de ser atendida. Veja-se que, nas situações em que, findo o período de detenção de partes de capital, não ocorreu realização mais-valias ou até houve realização de menos-valias, o artigo 11.º, n.º 3 da LGT conduz inexoravelmente à interpretação que afasta a incidência de imposto sobre o rendimento e não à que se reconduz a tributar o prejuízo como se fosse um rendimento. Atenda-se ainda a que o Direito Tributário é marcado por uma abordagem principialista que justifica igualmente esta solução.

 

 

O agora apresentado justifica a afirmação de que os Tribunais, ao analisarem os casos, também têm de atender ao impacto efectivo das normas que aplicam, pelo menos, na seguinte dupla acepção:

 

             não podem ser aceites interpretações que conduzam a soluções desacertadas, por que a tal se opõe o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil;

 

             nem são admissíveis interpretações que se reconduzam à tributação de rendimentos inexistentes.

 

Este elemento é essencial, tendo em atenção, como visto, as directrizes teleológicas que emanam do referido artigo 11.º, n.º 3  da LGT, mas principalmente porque é decorrência inevitável dos princípios que lhe estão subjacentes, i.e., da justiça material, da igualdade e da tributação fundamentalmente com base na capacidade contributiva (artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2 da LGT), todos princípios com suporte constitucional, concretizadores dos princípio basilar do Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP). Ou seja, a matriz principialista atrás mencionada.

 

É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra apresentado, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) de opção pelo critério do justo valor, poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas terão relevância fiscal, independentemente da sua efectiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objectivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes.

 

3.1.6. Referência suplementar aos aspectos teleológicos

 

A ausência de margem significativa para manipulações fiscalmente convenientes agora invocada é deveras relevante. Aliás, como já foi defendido na presente decisão e já o havia sido na citada decisão arbitral no âmbito do Processo n.º 108/2013-T, de 25-11-2013, base da argumentação aqui apresentada. Mas merece ainda uma suplementar reflexão.

 

Pode ser afirmado que “a certeza e objectividade do valor encontrado no mercado, ainda que regulado, não é de todo imune a manipulações, como é comprovado por episódios de que a imprensa internacional tem feito eco”( ). Porém, tal argumento não vinga. É relevante reconhecer que, não apenas o justo valor é um referencial de valorização internacional e nacionalmente aceite como adequado e desejado, revelador de um critério de justiça e de realismo económico, como também a ligação a um mercado regulado é aquilo que hoje se assume como referência pacificadora de equilíbrio de interesses públicos, colectivos e individuais. O facto de o funcionamento do mercado ser marcado pela volatilidade e constantes alterações na mensuração dos activos e passivos é fruto do tipo de sociedade e de organização económica dominantes que, independentemente da concordância ou de juízos de valor, é a base da construção do sistema fiscal existente. Ou seja, o sistema fiscal contemporâneo é desenhado e aplicado para as realidades existentes.  Caso haja discordância da base organizativa e funcional do mercado, tal deve ser burilado pelos poderes públicos, de forma a reorientarem os mecanismos existentes, tendo de ser revelada na legislação de forma adequada. Ora, mesmo com as potenciais críticas existentes, a base actual de acção e regulamentação pública é a da regulação dos mercados, não havendo nenhuma indicação, até ao momento, de alterações genéricas ou de alterações que estejam reflectidas no quadro fiscal. Por tal, assumindo-se legalmente como relevante a determinação do valor nos termos do mercado regulado, tendo essa regra sido também absorvida pela norma fiscal, é por essa regra que o aplicador do Direito se deve nortear, independentemente de dela concordar ou discordar. Está-se no domínio do ser e não do dever-ser.

 

Tendo por base este contexto, compreende-se que, como se havia adiantado já, não se verificam como válidas para uma posição contrária, as razões de combate à fraude e evasão fiscal que, demonstradamente, estiveram na génese da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

 

Insiste-se. No caso em apreço, a vontade do sujeito passivo não é relevante, não podendo planear hipotéticas e indevidas reduções de imposto a pagar. As alterações ao valor dos instrumentos financeiros em causa não dependem de um acto de vontade, mas do funcionamento livre e regulado do mercado, onde múltiplos e dispersos são os agentes e os factores a serem considerados. Acrescente-se ainda que em causa estão participações iguais ou inferiores a 5% do capital social. Tal demonstra que a influência económica na decisão da entidade valorada tende a ser muito reduzida, não constituindo, sem mais, influência dominante. E acrescente-se. Não se está seguro que o objectivo do legislador tenha sido o de apenas proteger os muito pequenos investimentos. Mesmo que a percentagem até aos 5% do capital social possam representar, em casos de grandes sociedades, quantias significativas, tal não é elemento relevante. O que se julga estar em causa na opção do legislador é a ausência de influência nas alterações de valor dos instrumentos financeiros, o que tende a acontecer quando a participação no capital social é de reduzida.

 

Outro aspecto que merece igualmente nota para a ausência de justificação de uma posição diferente da defendida na presente decisão arbitral, são as razões de consolidação orçamental, que também estiveram na génese da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

 

Ainda que tal necessidade de consolidação das finanças públicas tenha sido, como visto, parte da justificação para as alterações efectuadas ao CIRC, note-se que, em nenhum momento, tal objectivo pode condicionar a letra da lei e o que dela resulta. Colocando-o de forma mais clara.

 

Ainda que o espírito do legislador tenha de enformar a interpretação da norma, não bastando à interpretação o elemento literal (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil), note-se que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.  Como visto, em face da diversidade de conceitos utilizados, em face das sucessivas alterações legislativas e seu reflexo conceptual, bem como em face da análise comparativa resultante da aplicação diferenciada das normas em questão, tal não acontece.

 

Em face do exposto, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”. (   ). A necessidade de equilíbrio entre a letra da lei e o espírito do legislador criador é imprescindível e deve ocorrer de forma adequada e motivada por uma aplicação racional e objectiva da norma. Por isso, há muito se afirmou que “o método teleológico tem-se vindo a deslocar cada vez mais para um primeiro plano em relação à interpretação literal. Segundo o princípio de há longa data conhecido: cessante ratione legis, cessat lex ipsa, deve importar mais o fim e a razão de ser que o respectivo sentido literal. A ratio deve impor-se, não apenas dentro dos limites de um teor literal muitas vezes equívoco, mas ainda rompendo as amarras desse teor literal ou restringindo uma fórmula legal com alcance demasiado amplo”. (   ) Não pode ser olvidado que o sistema fiscal e, consequentemente, as normas que também o compõem, é assente em princípios norteadores que têm de ser considerados na interpretação, tendo a unidade desse sistema de ser salvaguardada.

 

3.1.7. A não aplicação ao caso do Acórdão do Tribunal Constitucional 85/2010

 

Afirma a requerida: “Como nota, referimos que também o Tribunal Constitucional17 já teve oportunidade de se pronunciar julgando constitucional a norma do n.º 3 do art.º 42.º do CIRC (norma que precedeu o n.º 3 do art.º 45.º resultante da renumeração efetuada pelo art.7.º do Decreto-Lei n.º 159/2009 de 13 de Julho), na redação modificada pelo n.º 1 do artigo 44º da Lei n.º 60- A/2005, de 30 de Dezembro quando esta passou a estabelecer que a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

Efectivamente, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 85/2010, de 3 de Março de 2010, no âmbito do Processo n.º 653/09, declarou não violar a Constituição “um regime fiscal que se traduza numa menor ponderação, para efeitos tributários, de determinadas menos valias contabilizadas pelas empresas. Aliás, a impossibilidade de dedução integral de alguns custos ou perdas, como tal contabilizados pelos contribuintes, para efeitos de determinação da base tributável, não só resulta de diversos números do actual artigo 45.º do CIRC, como já tem sido objecto de recurso para este Tribunal, nomeadamente nos processos decididos pelos Acórdãos n.ºs 418/2000 e 451/2002 (disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/), os quais não julgaram inconstitucional a solução encontrada. Jurisprudência que se entende dever agora igualmente reiterar.”

 

Salvo o devido respeito, tal caso não tem valia para a situação em análise. Não está em causa, como visto, a negação da aplicação do artigo 45.º do CIRC, mas antes saber se, à luz da letra da lei e atendendo aos elementos teleológicos e sistemáticos, deve a regra estabelecida no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do mesmo Código ser complementada com o previsto no então artigo 45.º, n.º 3.º do CIRC. Ou seja, não está em causa nenhum problema de constitucionalidade, tão só um problema de interpretação conforme a letra e o espírito da lei.

 

Insiste-se. Ao se assumir que deve o Tribunal atender ao impacto efectivo da aplicação da norma – cfr. ponto 3.1.5. da presente decisão – não se está, com tal, a proceder a nenhuma correcção da norma, nem a extravasar as competências judiciais. Antes está-se a atender a que a realidade de uma norma fiscal está integrada no sistema fiscal, gerando a necessidade de equilíbrio dos interesses em presença. A garantia desse equilíbrio tem de passar também pelo apuramento do quadro normativo existente e aplicável. E para tal é devida a utilização de instrumentos interpretativos, sejam os existentes em termos gerais (Código Civil, via artigo 11.º, n.º 1 da LGT) sejam os específicos fiscais (artigo 11.º, n.º 3 da LGT). Ou seja, não está em causa um problema de constitucionalidade nem de desconsideração indevida de opção expressa pelo legislador.

 

3.1. 8. Conclusão

 

Deste modo, e em suma, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código Civil, segundo as quais “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”(n.º 3), é de interpretar o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável, nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º. Equivale a considerar-se que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, impõe a concorrência “para a formação do lucro tributável”, sem reservas ou limitações, dos “rendimentos ou gastos” que “(...) respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “desde que” sejam reconhecidos “através de resultados”; se tratem “de instrumentos do capital próprio”; “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”, não se aplicando, nestes casos, o artigo 45.º, n.º 3, do referido Código, na medida em que não estão abrangidos pela previsão normativa do mesmo.

 

Em face do exposto, entende-se que merece provimento o pedido.

 

Consequentemente, as correcções efectuadas quanto aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor são ilegais.

 

A decisão do recurso hierárquico, que manteve as liquidações, enferma do mesmo vício, pelo que se justifica também a sua anulação, de harmonia com o artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável, nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.2. Aplicação Uniforme do Direito

Inexiste em Portugal a regra do precedente. Contudo, merece ser tido em consideração o exposto pelo legislador no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil. Aí é expresso que “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. Assim, em nome da certeza e da segurança jurídicas, bem como em nome da unidade do sistema jurídico e, igualmente, e não de menos importância, em nome da equidade fiscal, devem ser consideradas as decisões existentes sobre os factos em causa, a sua argumentação e a fundamentação.

Neste domínio, tenha-se em atenção que, desde a já citada Decisão Arbitral de 25-11-2013, proferida no Processo n.º 108/2013-T, a jurisprudência desenvolvida no CAAD, sobre casos equiparados, tem dado origem a uma linha jurisprudencial maioritária. Como o Supremo Tribunal Administrativo (STA) afirma, existe jurisprudência arbitral firme quanto a esta matéria.(  ) A título de exemplo refiram-se as seguintes decisões arbitrais: 25-9-2015, Processo n.º 208/2015-T; 5-10-2015, Processo n.º 59/2015-T; 9-12-2015, Processo n.º 231/2015; 11-1-2016, Processo n.º 396/2015-T; 1-2-2016 Processo n.º 126/2015-T; 22-4-2016, Processo n.º 563/2015-T; 17-6-2016, Processo n.º 738/2015-T; 14-10-2016, Processo n.º 89/2016-T; 14-12-2016, Processo n.º 393/2016-T; 8-3-2017, Processo n.º 556/2016-T; 20-3-2017, Processo n.º 437/2016-T; 12-1-2018, Processo n.º 155/2017-T. Não sendo unitária, é largamente maioritária.

Por outro lado, considerando a posição do sujeito passivo em questão neste caso em análise, deve ser referido que, a propósito da mesma realidade económica, mas sobre o ano fiscal diferente – o de 2011 -, já houve decisão arbitral – em 28-10-2016, no âmbito do Processo n.º 77/2016-T - cuja orientação segue o sentido da decisão expressa por este tribunal arbitral.

 

Refira-se ainda que também o STA expressamente se pronunciou sobre a matéria.  Assume o Tribunal Superior que “a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC não é aplicável quando ocorre a determinação – ao Justo Valor – do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação, o valor dos activos – a posição financeira – acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo» (Acórdão de 06-06-2018, Processo n.º 0582/17).

 

No mesmo sentido, sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, ainda que a propósito de outra questão, pronunciou-se ainda o acórdão do STA de 17-02-2016, proferido no Processo n.º 01401/14.

 

Pelo exposto, em sintonia com a jurisprudência maioritária, quer do STA quer de vários tribunais arbitrais fiscais, reforça-se que as liquidações impugnadas enfermam de vício de violação de lei, por errada interpretação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, pelo que se justifica declaração da sua ilegalidade.

 

3.3. Questão de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações que são objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado o conhecimento do vício de preterição do direito de audiência invocado pela Requerente, por ser inútil, de harmonia com os artigos 130.º e 508.º, n.º 2, do Código do Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

 

Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente aos actos cuja declaração de ilegalidade pediram.

 

 

4. Decisão

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Anular as liquidações de IRC n.ºs 2015... e 2015..., referentes aos exercícios de 2012 e 2013;

c)            Anular o despacho de despacho de 14-11-2018 que indeferiu o recurso hierárquico.

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.357.516,26.

 

6. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 18.360,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 25 de Junho de 2019

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Paulo Jorge Varela Lopes Dias)

(Rita Calçada Pires)