Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 106/2021-T
Data da decisão: 2021-10-18  IRC  
Valor do pedido: € 2.296.613,60
Tema: IRC - Tributação autónoma: Remunerações variáveis. Dedução à coleta de benefícios fiscais.
Versão em PDF

Sumário:

I – A tributação autónoma a que se refere a alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do Código do IRC respeita à totalidade dos gastos relativos a remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes, quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500, e não apenas ao montante das remunerações que excede esses limites;

II – Esta interpretação normativa não viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade;

III – A segunda parte da alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do Código do IRC limita-se a estabelecer um segundo requisito excludente da tributação autónoma sobre remunerações variáveis que respeita ao caso em que se verifique cumulativamente o diferimento de uma parte não inferior a 50 % por um período mínimo de três anos e o desempenho positivo da sociedade nesse mesmo período do tempo;

IV - O agravamento da taxa de tributação em 10 pontos percentuais, previsto no n.º 14 do artigo 88.º do Código do IRC, aplica-se às situações em que o sujeito passivo apresente prejuízo fiscal, determinável segundo as regras gerais do artigo 17.º desse diploma, independentemente de quaisquer considerações sobre o desempenho económico da atividade.

V – A norma do n.º 14 do artigo 88.º do Código do IRC não viola o princípio da igualdade tributária;

VI - Os benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) e Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI), não são dedutíveis à coleta resultante das tributações autónomas.

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., SGPS, S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, sociedade dominante de grupo B..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de autoliquidação de tributações autónomas relativa ao período de tributação de 2013, e operada através da declaração de substituição apresentada em 26 de outubro de 2016, e, bem assim, do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e do despacho de indeferimento do subsequente recurso hierárquico contra eles deduzido, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 25 de maio de 2021.

 

3. A Requerente fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS) que, na declaração agregada de IRC referente ao exercício de 2013, enquanto sociedade dominante do Grupo Fiscal, procedeu à autoliquidação de tributação autónoma sobre remunerações variáveis de administradores, no montante de € 2.125.893,15, a que acresceram outros valores de tributação autónoma num total € 2.296.613,60.

 

A parcela da tributação autónoma sobre remunerações variáveis de administradores, no montante de € 2.125.893,15, é indevida por inverificação de lesão do bem jurídico tutelado a que acrescem os seguintes motivos adicionais: (a) na medida em que o montante se contém no limiar de salvaguarda a que se refere a alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, as remunerações variáveis não devem ser sujeitas a tributação autónoma, sob pena de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade; (b) correspondendo este limiar de salvaguarda, nas circunstâncias do caso, a € 7.019.233,62, e tendo sido pagas remunerações variáveis no montante de € 4.724.207,00, é ilegal que a tributação autónoma incida sobre a totalidade das remunerações variáveis, no montante de € 2.125.893,15; (c) por razões qualitativamente idênticas, a sub-parcela da tributação autónoma de € 1.062.946,57, incidente sobre remunerações variáveis de administradores, é indevida por constituir tributação sobre a parcela da remuneração variável (50%) que se encontra salvaguardada à luz do disposto na alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, ainda que se tenham verificado resultados negativos nos três anos seguintes; (d) a sub-parcela de € 472.420,70 da tributação autónoma sobre remunerações variáveis de administradores, respeitante ao agravamento em 10 pontos percentuais da taxa (artigo 88.º, n.º 14 do CIRC) é indevida por não corresponderem os prejuízos fiscais do Grupo B... a qualquer resultado económico negativo.

 

No que respeita ao total da tributação autónoma liquidada (incluindo a respeitante a remunerações variáveis), o agravamento em 10 pontos percentuais da taxa, no montante de € 536.747,50, é indevido por não corresponderem os prejuízos fiscais do Grupo B... a qualquer resultado económico negativo.

 

Subsidiariamente, a Requerente alega que a tributação autónoma ainda subsistente até ao montante dos créditos de IRC por benefícios fiscais, no valor de € 1.568.823,51, é ilegal na medida em que resulta da não aceitação da dedução à coleta de IRC desse tipo de créditos.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por referir que a tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 13, alínea b), do CIRC visa evitar as despesas excessivas e promover a racionalidade de comportamentos das empresas, incluindo no que respeita a gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500.

 

O legislador não teve o propósito de fazer incidir a tributação somente sobre o excesso do valor de € 27.500 ou do limite de 25% da remuneração anual, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período, como consta da parte final da norma, e, assim, a verificarem-se os requisitos de sujeição e não se aplicando a condição de exclusão, a tributação deverá incidir sobre os bónus ou as remunerações variáveis pagas na sua totalidade aos administradores e gerentes. E, nesse sentido, a norma tem apenas o alcance de uma isenção fiscal, excluindo da tributação as despesas que se mantêm dentro de limites aceitáveis.

 

Por outro lado, as inconstitucionalidades invocadas pela Requerente foram já analisadas, em sentido negativo, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, na sequência da decisão arbitral proferida no Processo n.º 659/2014-T, que, em situação idêntica, julgou improcedente o pedido da Requerente relativamente ao exercício de 2011.

 

Subsidiariamente, a Requerente alega que a tributação autónoma é ilegal na medida em que não tem em conta a dedução à coleta de créditos resultantes de benefícios fiscais, quando é certo que o STA, no acórdão de 8 de Julho de 2020 (Processo n.º 10/20), já fixou jurisprudência no sentido de que não são admitidas deduções à coleta das tributações autónomas relativas aos montantes apurados a título do benefício fiscal.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

4. No seguimento do processo, o tribunal, por despacho de 21 de Julho de 2021, dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas por considerar não existirem quaisquer novos elementos sobre que as partes se devessem pronunciar.

 

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

5. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS) e sociedade dominante de Grupo B..., sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, que exerce atividade económica essencialmente de forma indireta através das sociedades suas participadas;

B)           Em 26 de Outubro de 2016, a Requerente entregou a declaração agregada de IRC Modelo 22 do Grupo Fiscal, referente ao exercício de 2013, em que procedeu à autoliquidação de tributação autónoma sobre remunerações variáveis de administradores, no montante de € 2.125.893,15;

C)           Na mesma declaração acresceu outros valores de tributação autónoma que originaram um total de tributação autónoma autoliquidada de € 2.296.613,60;

D)           Em 25 de Outubro de 2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra este segmento do ato tributário de autoliquidação de IRC do Grupo Fiscal, que foi indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), de 6 de fevereiro de 2019, notificado em 8 de fevereiro seguinte;

E)            A decisão de indeferimento da reclamação graciosa baseou-se na informação n.º 23-AIR 1/2019, que integra o documento n.º 7 junto ao pedido arbitral e que aqui se dá como reproduzido;

F)            Em 8 de março de 2019, a Requerente apresentou recurso hierárquico contra o indeferimento da reclamação graciosa, que foi indeferido por despacho da Subdirectora-Geral, de 12 de novembro de 2020, notificado em 30 de novembro seguinte;

G)           A decisão de indeferimento do recurso hierárquico baseou-se na informação dos serviços que integra o documento n.º 9 junto ao pedido arbitral e que aqui se dá como reproduzido;

H)           Em 20 de dezembro de 2016, a Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de imposto.

I) O pedido arbitral deu entrada em 19 de fevereiro de 2021.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

 

                Matéria de direito

 

6.  A Requerente impugna a autoliquidação em IRC em sede de tributações autónomas com base em diferentes linhas de argumentação.

 

Considera, primeiramente, que a tributação autónoma sobre remunerações variáveis de administradores no valor de € 2.125.893,60 é ilegal por inverificação de lesão do bem jurídico tutelado e inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, na medida em que incide sobre a totalidade das remunerações e, por isso, também sobre a parte que se contenha dentro de um dos dois limites excludentes dessa tributação, que se encontra previsto no artigo 88.º, n.º 1, alínea b), do CIRC (valor relativo igual ou inferior a 25% da remuneração anual do administrador).

 

Por outro lado, a parcela da tributação autónoma correspondente a 50% do total das e remunerações variáveis (€ 1.062.946,57) é indevida, pela mesma ordem de considerações, atendendo a que essa parte das remunerações se encontra salvaguardada pela referida disposição da alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, ainda que se tenham verificado resultados negativos nos três anos seguintes àquele a que respeitam as remunerações.

 

A parcela de € 472.420,70 da tributação autónoma sobre remunerações variáveis de administradores, bem como a parcela € 536.747,50 respeitante ao total das tributações autónomas liquidadas, que resultam do agravamento em 10 pontos percentuais da taxa aplicável, em aplicação do disposto no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, é igualmente ilegal uma vez que os prejuízos fiscais apurados pelo grupo de sociedades não correspondem a um efectivo resultado negativo.

 

A tributação autónoma ainda subsistente, no valor de € 1.568.823,51, é ilegal na medida em que corresponde a créditos fiscais derivados de benefícios fiscais (SIFIDE, RFAI e CFEI) que deveriam ser objeto de dedução à coleta de IRC.

 

São estas as questões que cabe dilucidar.

 

As normas em causa têm a seguinte redação:

 

Artigo 88º

Taxas de tributação autónoma

(…)

13 - São tributados autonomamente, à taxa de 35 %:

(…)

b) Os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a (euro) 27 500, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50 % por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período.

14 - As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.

 

Como tem sido frequentemente assinalado, a tributação autónoma começou por se reportar a despesas confidenciais e não documentadas (artigo 4.º do DL 192/90, de 9 de junho), passando depois a abranger os encargos com viaturas, as importâncias pagas a pessoas com regime fiscal mais favorável e as despesas de representação, e, mais tarde, os encargos com ajudas de custo ou despesas de deslocação.

 

Com a Lei do Orçamento do Estado de 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), a tributação autónoma veio ainda a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes por virtude de cessação de funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500. Entretanto, a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 14 ao artigo 88.º, prevendo a elevação das taxas de tributação autónoma previstas nesse artigo em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores. 

A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, pág. 407).

 

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento, mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

 

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.

 

Neste contexto, analisando a questão da tributação autónoma à luz do princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real e do princípio da capacidade contributiva, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, subscreveu o seguinte entendimento.

 

“(…) o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC – segundo a própria jurisprudência constitucional –, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular.

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa”.

 

Em idêntico sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012 chamou a atenção para a natureza materialmente distinta da tributação autónoma em relação ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, ainda que essa imposição fiscal se encontre formalmente inserida no Código de IRC.

Entende-se, nos termos acabados de expor, que a base de incidência da tributação autónoma se não traduz num rendimento líquido, mas num custo dedutível transformado excecionalmente em objeto de tributação, correspondendo a uma sanção legal que se destina a reduzir a vantagem fiscal que poderia resultar de despesas injustificadas ou excessivas.

As taxas de tributação autónoma têm a natureza de normas anti-abuso e destinam-se a desencorajar certas situações especiais que visem obter uma diminuição da carga fiscal mediante a dedução de custos que se presume não serem determinados por uma causa empresarial. Além disso, o sistema normativo do imposto tem uma natureza dualista na medida em que integra, de um lado, a matéria coletável baseada no lucro tributável, e, de outro lado, a matéria coletável resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma incidente sobre certo tipo de despesas.

7. Revertendo ao caso concreto, a primeira questão que se coloca é a de saber se os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes, quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500, respeita apenas ao montante das remunerações que excedem esses limites, e, em especial, em atenção à situação em presença, às que excedem o limite de 25% da remuneração anual.

 

Tal como se decidiu no acórdão proferido no Processo n.º 259/2014-T, o elemento literal de interpretação é no sentido de que a tributação incide sobre os gastos que sejam superiores àqueles limites e não apenas na parte excedente. O que vem também ao encontro da teleologia da norma, que, como se esclareceu, é uma norma anti-abuso que visa incentivar as empresas a não praticar procedimentos que impliquem gastos excessivos e afetem a receita fiscal. De facto, a lei pretende dissuadir os contribuintes a efetuar certo tipo de despesas a partir de certo montante, e esse efeito dissuasor não poderia ser obtido se se limitasse a tributar o volume de despesa que situa acima do valor que se entendeu ser o razoável.

 

A Requerente alega que, na parte em que o pagamento de remunerações variáveis ultrapasse o limiar de 25 % da remuneração anual, não se verifica a lesão do bem jurídico que se pretende tutelar. Mas essa é uma perspetiva que decorre de uma errónea interpretação da lei, visto que o legislador não pretendeu erigir como bem jurídico tutelado as remunerações que excedam o limiar de 25%, mas antes as remunerações que se tornem excessivas por ultrapassarem esse limite, assim se compreendendo que a tributação autónoma incida sobre a totalidade da remuneração e não apenas sobre uma parte dela.

 

A recorrente também invoca, ainda que sem qualquer desenvolvimento justificativo, que uma interpretação normativa do artigo 88.º, n.º 1, alínea b), que considere que a tributação autónoma é aplicável em relação à totalidade das remunerações que excedam o limite de 25% da remuneração anual, e não apenas quanto à parte que ultrapasse esse limite, viola o princípio da igualdade tributária e o princípio da proporcionalidade.

 

Ora, como se argumentou no já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, o legislador identificou um conjunto de despesas que são passíveis de tributação autónoma e o regime é aplicável a todos os contribuintes que se encontrem na situação legalmente descrita. E, por conseguinte, não existe uma qualquer discriminação em relação a classes profissionais, e o que unicamente sucede é que o legislador, através da inclusão no regime da tributação autónoma de certas remunerações variáveis pagas pelas empresas, enquadrou fiscalmente uma situação específica que traz consequências negativas para o apuramento do lucro tributável sujeito a IRC, sendo inteiramente indiferente, do ponto de vista da finalidade que se pretende atingir com a lei, a qualidade ou o estatuto profissional das pessoas que são beneficiárias das indemnizações.

 

E sendo assim, é também claro que a medida não é arbitrária e encontra fundamento material bastante na finalidade de desincentivar as empresas a realizar despesas relativas a indemnizações ou a remunerações variáveis que, sendo excessivas e não justificadas do ponto de vista empresarial, têm efeitos desfavoráveis para a obtenção da receita fiscal.

 

Do ponto de vista do princípio da proporcionalidade, a opção legislativa de tributar a totalidade da despesa, quando ultrapasse aqueles limiares, também não coloca um qualquer problema de constitucionalidade.

 

Como se afirmou, a norma visa penalizar certo tipo de despesas que, sendo excessivas, não se encontram justificadas por razões empresariais, tendo ainda em linha de conta que se trata de despesas que afetam o lucro tributável das empresas. Sendo esse o objetivo, a norma, ao fixar um limite relativo de 25% da remuneração anual do beneficiário e um limite absoluto de € 27.500, tem o alcance de uma norma de isenção fiscal, excluindo da tributação as despesas que se mantêm dentro de certos patamares de razoabilidade.

 

Não pode, por isso, dizer-se que a norma é desnecessária com base no argumento de que seria possível atingir a mesma finalidade através de um outro meio tão idóneo ou eficaz e com uma consequência mais favorável para o contribuinte. No contexto legislativo em que a norma se insere, não é possível sequer estabelecer um termo de comparação entre meios igualmente idóneos em relação ao fim que se pretende atingir. De facto, a lei pretende dissuadir os contribuintes a efetuar certo tipo de despesas a partir de certo montante e esse efeito dissuasor não poderia ser obtido se se limitasse a tributar o volume de despesa que situa acima do valor que se entendeu ser o razoável.

 

Por identidade de razão, não pode dizer-se que a medida é excessiva ou desproporcionada. Na ponderação feita pelo legislador, havia que fixar um limite para a realização de certas despesas em vista a evitar um prejuízo para a arrecadação do imposto. O sacrifício que é imposto ao contribuinte destina-se a realizar o benefício que se pretende obter para o sistema fiscal, na medida em que se trata de compensar o resultado prejudicial que, por via da redução do lucro tributável, a despesa acarreta para o erário público.

 

8. Uma outra questão que vem colocada refere-se à violação dos mesmos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade no ponto em que a norma do artigo 88.º, n.º 13, alínea b), do CIRC faz incidir a tributação autónoma sobre a parcela correspondente a 50% do total das remunerações variáveis.

 

A Requerente parece partir do pressuposto que o segmento final da norma estabelece igualmente um limiar a partir do qual não se verifica a incidência objetiva da tributação, que seria constituído pela parte das remunerações variáveis que não excedem 50% do seu total.

 

Uma tal interpretação não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

 

A segunda parte da norma limita-se a estabelecer um segundo requisito excludente da tributação autónoma sobre remunerações variáveis que respeita ao caso em que as remunerações, ainda que representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500, não são tributáveis se o “seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período”.

 

Ou seja, a lei exceciona da tributação autónoma as situações elencadas na primeira parte da norma quando se verificarem cumulativamente duas outras condições:  o diferimento de uma parte não inferior a 50 % por um período mínimo de três anos e o desempenho positivo da sociedade nesse mesmo período do tempo.

 

Não tem qualquer fundamento considerar que a tributação autónoma se encontra excluída em relação a 50% das remunerações variáveis. Em primeiro lugar, por tudo o que já se referiu no antecedente ponto 6., em que se esclarece que a tributação é aplicável em relação à totalidade das remunerações que excedam o limite de 25 % da remuneração anual, e não apenas quanto a uma parte dela. Em segundo lugar, porque a condição estabelecida na segunda parte da norma respeita ao diferimento do pagamento de uma parte não inferior a 50% por um período de três anos, a que acresce, para que se verifique a exclusão da incidência do imposto, que se verifique no mesmo período um desempenho positivo.

 

Sendo esta a única interpretação possível da norma, é claro que não se lhe pode imputar a violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

 

9. Em análise estão ainda as parcelas de tributações autónomas que resultam do agravamento em 10 pontos percentuais da taxa aplicável por efeito do disposto no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, alegando a Requerente a este propósito que a norma não é aplicável quando os prejuízos fiscais apurados pelo grupo de sociedades não correspondem a um efetivo resultado negativo do grupo de sociedades.

 

A norma agora em causa, já antes transcrita, prevê que o agravamento em 10 pontos percentuais da taxa de tributação autónoma quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no exercício em que ocorramos factos tributários que originam a tributação.

 

A questão foi já decidida no já citado acórdão proferido no Processo n.º 659/2014 em termos que não merecem qualquer discordância.

 

A norma não suscita nenhuma especial dificuldade interpretativa. Prevê-se um agrava-mento da taxa de tributação quanto às empresas que, tendo incorrido nos gastos sujeitos a tributação autónoma, apresentem prejuízo fiscal no período de tributação. A lei refere-se ao prejuízo fiscal e não ao resultado económico, financeiro ou contabilístico, e, por conseguinte, o prejuízo fiscal será apurado de acordo com as regras de determinação do lucro tributável que constam dos artigos 15.º a 17.º do CIRC, sendo que o prejuízo fiscal ocorre quando a quantia residual resultante da contabilização dos gastos e dos rendimentos é negativa.

 

Por outro lado, como se esclareceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, não há aqui qualquer discriminação arbitrária: a diferenciação de tratamento baseia-se numa distinção objetiva de situações. A lei, através da tributação autónoma, e especialmente em relação à tributação prevista no n.º 13 do artigo 88.º, pretende estimular os contribuintes a evitar a realização de despesas excessivas que, injustificadamente, possam afetar os resultados económicos e provocar uma diminuição da receita fiscal. O n.º 14 o que prevê é o agravamento da taxa quando a empresa incorre nesse tipo de despesas apesar de vir a apresentar, no respetivo período de tributação, um prejuízo fiscal.

 

A diferenciação encontra-se suficientemente justificada, visto que, se é censurável, do ponto de vista fiscal, a realização de despesas que determinam desnecessariamente uma redução do rendimento tributável, mais o será se a empresa realiza essas despesas apesar de não conseguir sequer apurar um lucro tributável.

 

. Por fim, coloca-se a questão de saber se há lugar em sede de IRC à dedução à coleta produzida pelas taxas de tributação autónoma dos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) e Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI).

 

Esta questão tem sido já decidida pela jurisprudência arbitral de forma divergente.

 

No sentido da admissibilidade da dedução, argumenta-se que a coleta proporcionada pela tributação autónoma constitui coleta de IRC e a dedução dos benefícios fiscais é efetuada em relação ao montante que for apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC, levando a concluir que o processamento da liquidação do imposto, tal como resulta do falado artigo 90.º, se aplica a todas as situações previstas no Código, incluindo no tocante às tributações autónomas. Partindo desta ideia central, conclui-se que a autonomia deste tipo de tributação se restringe às taxas aplicáveis e à respetiva matéria coletável, não havendo suporte legal, face ao disposto no artigo 90.º, para distinguir entre a coleta proveniente da tributação autónoma e a que resulta dos rendimentos sujeitos a IRC.

Em sentido oposto, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos proferidos nos Processos n.ºs  19/2016-T, 575/2016-T, 628/2016-T, 641/2017-T, 7/2018-T, 402/2018-T, 492/2018-T, 591/2018-T, 580/2018-T, 655/2018-T, 349/2019, 275/2020, partindo essencialmente da ideia de que, face a específica natureza das taxas de tributação autónoma como normas anti-abuso, não se justifica que à matéria coletável resultante da aplicação dessas taxas sejam dedutíveis os benefícios fiscais.

E é este último entendimento que foi reiterado pelo STA, no acórdão de 8 de julho de 2020 (Processo n.º 010/20), em recurso para uniformização de jurisprudência, em que formularam as seguintes conclusões:

 

I – As tributações autónomas, embora liquidadas no âmbito do IRC, constituem uma imposição fiscal material e estruturalmente distinta deste.

II – Para não frustrar os objetivos tributários prosseguidos com a tributação através de tributações autónomas não são admitidas deduções à respetiva coleta que não estejam expressamente previstas na lei, designadamente, está excluída a possibilidade de dedução dos montantes apurados a título do benefício fiscal SIFIDE II, aprovado pelo artigo 133.º da Lei n.º 55-A/2010.

III – Esta interpretação normativo-legal dos preceitos tributários do CIRC e do Regime legal do SIFIDE II não foi alterada com a introdução do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC por efeito da aprovação da Lei n.º 7-A/2016, uma vez que já resultava, implicitamente, da redação anterior daquele preceito legal.

 

E não pode deixar de seguir-se esta jurisprudência fixada em recurso por oposição de julgados entre decisões arbitrais.

Ainda que a liquidação do IRC seja efetuada de forma agregada, integrando, de um lado, a matéria coletável baseada no lucro tributável, e, de outro lado, a matéria coletável resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma incidente sobre certo tipo de despesas, não faz sentido que as deduções gerais a efetuar relativamente ao montante apurado de imposto incidam sobre a coleta devida pela aplicação das taxas de tributação autónoma. De facto, as deduções à coleta constituem uma das formas de dar corpo ao princípio da capacidade da contributiva que tem como um dos seus corolários a tributação segundo o rendimento real. Tratando-se de impostos sobre o rendimento, as deduções objetivas a contemplar são as correspondentes às despesas que possam razoavelmente considerar-se necessárias à angariação do rendimento e que se adequem à natureza de cada categoria de rendimentos, havendo de entender-se, no caso das atividades empresariais, os gastos ou perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 299).

Certo é que a lei admite ainda deduções ao lucro tributável e, entre elas, as relativas a benefícios fiscais (artigo 90.º, n.º 2, alínea c)). Não tem cabimento, no entanto, que essas deduções possam ocorrer em relação à coleta da tributação autónoma.

Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.

Admitir que os créditos fiscais resultantes de situações de incentivo ou benefício fiscal pudessem neutralizar o efeito sancionatório da tributação autónoma seria desvirtuar o próprio conceito de benefício fiscal e os princípios da capacidade contributiva e da justa repartição da carga fiscal.

Pela sua própria natureza, os benefícios fiscais são medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem, correspondendo a situações em que o legislador fiscal desagrava, por razões técnicas ou de política fiscal, certas manifestações de riqueza que pretende afastar da tributação normal (artigo 2.º, n.º 1, do EBF). O benefício fiscal é considerado, por outro lado, como uma despesa fiscal na medida em que incide sobre uma situação sujeita a tributação e equivale, em termos quantitativos, a uma receita fiscal não arrecadada.

 

Não faz qualquer sentido, neste condicionalismo, que as deduções à coleta do imposto que resultem de benefícios fiscais incidam não apenas sobre o lucro tributável, mas sobre despesas que o legislador pretendeu tributar por razões de transparência fiscal. O que conduziria a permitir que o benefício fiscal fosse utilizado para frustrar o objetivo que se pretende atingir com a tributação autónoma que é justamente o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.

 

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

 

10. Sendo de julgar improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade do ato tributário de autoliquidação e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e de recurso hierárquico, fica necessariamente prejudicada a apreciação do pedido de reembolso do imposto e do pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

a)            Julgar improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade do ato tributário de autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2013, e manter a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico contra ele deduzidos;

b)           Julgar prejudicado o pedido de reembolso do imposto pago e de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 2.296.613,60, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 29.682,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 18 de Outubro de 2021,

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Manuel Lopes Faustino

 

O Árbitro vogal

Marcolino Pisão Pedreiro