Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 491/2021-T
Data da decisão: 2021-12-23  IRC  
Valor do pedido: € 1.179.164,95
Tema: IRC. Regime especial de tributação dos grupos de sociedades. Inspecção tributária. Princípio da irrepetibilidade.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

            Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelos outros Árbitros), Dr. José Fernando Morais Carreira de Araújo e Prof. Doutor Jónatas Machado, designados pela Requerente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 10-11-2021, acordam no seguinte:

 

        

         1. Relatório

 

            A..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número, com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, doravante designada por “A... SGPS” ou “Requerente”, veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2018 ... e das correspondentes liquidações de juros compensatórios com os n.ºs 2018 ... e 2018 ..., na parte ainda subsistente após o deferimento parcial de recurso hierárquico, que ascende ao montante, juros compensatórios incluídos, de € 1.179.164,95, relativo ao exercício de 2014 do Grupo Fiscal B... .

            A Requerente pede ainda indemnização pelos prejuízos decorrentes de prestação de garantia indevida, calculada com base nos custos incorridos com a prestação da mesma até ao seu levantamento.

 

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 16-08-2021.

Os signatários comunicaram a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.

Em 22-10-2021, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 10-11-2021.

A AT apresentou Resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 20-12-2021 foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não há nulidades.

 

1.1. Pronúncia parcial

 

São imputados aos actos impugnados vários vícios, designadamente um vício procedimental por duplicação ilegal de procedimentos de inspecção externa, e vícios de violação de lei relativos a correcções em matéria de preços de transferência, dedução fiscal de donativos, dedução fiscal majorada de quotizações para associações empresariais e apuramento de tributação autónoma  sobre remuneração variável. 

O vício relativo à inspecção tributária efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço OI2017..., que está subjacente às liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas, por «duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (A... SGPS e seu Grupo Fiscal)», tem potencialidade de afectar a validade de todas as correcções efectuadas, pois repercute-se na totalidade da actividade da AT baseada nessa inspecção.

Por isso, o Tribunal Arbitral opta, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 22.º do RJAT, por decompor a decisão em pronúncias parciais, sendo a uma sobre aquela questão da duplicação de procedimentos de inspecção e outra sobre as restantes questões de legitimidade das liquidações, se o conhecimento destas não ficar prejudicado pela solução dada àquela primeira questão.

 

 

2. Pronúncia sobre a questão da «duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (A... SGPS e seu Grupo Fiscal)» (artigos 18.º a 29.º do pedido de pronúncia arbitral)

 

2.1. Matéria de facto

 

2.1.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para apreciação desta questão:

  1. A Requerente é a sociedade dominante do grupo B..., tributado pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS), , nos termos do artigo 69.º do CIRC, demonstrando o quadro abaixo, o perímetro fiscal do grupo, no período de tributação de 2014:

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

 

  1. Foram efectuadas à Requerente, relativamente ao exercício de 2014, em sede de IRC, duas inspecção externas, ao abrigo das Ordens de Serviço n.º OI2017... e OI2017..., e uma inspecção interna, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º O2018...;
  2. Relativamente à inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2017...:
  1. Em 26-05-2017 foi emitida a Ordem de Serviço n.º OI2017... para inspecção externa à Requerente, de âmbito parcial, em sede de IRC, referente ao exercício de 2014 (Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. Em 30-05-2017, foi enviada à Requerente a carta-aviso cuja cópia consta do documento n.º 7, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais, se refere que é enviada «nos termos da alínea I) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)»;
  3. A Ordem de Serviço n.º OI2017... foi notificada pessoalmente à Requerente em 06-06-2017 (documento n.º 5);
  4. A Requerente foi notificada pessoalmente para entregar documentos e prestar esclarecimentos, nos termos que constam do documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
  5.  Essa inspecção terminou em 31-10-2017 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  6. Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, que foi notificado à Requerente por ofício datado de 22-12-2017;
  7. Na sequência da inspecção foi emitida em nome da Requerente a liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2014, com o n.º 2017..., bem como as respectivas liquidações de juros compensatórios n.ºs 2018 ... e 2018... (documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

  1. Relativamente à inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2017...:
  1. Em 25-09-2017, foi emitida a ordem de serviço n.º OI2017... para inspecção externa à Requerente, de âmbito parcial, em sede de IRC, ao exercício de 2014 (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. Em 27-09-2017, foi enviada à Requerente a carta-aviso cuja cópia consta do documento n.º 8, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere que é enviada «nos termos da alínea I) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)»;
  3. A Ordem de Serviço n. º OI2017... foi notificada pessoalmente à Requerente em 17-10-2017 (documento n.º 6);
  4. Nessa inspecção, a Requerente foi notificada pessoalmente para entregar documentos e prestar esclarecimentos, nos termos que constam do documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
  5. Essa inspecção terminou em 27-06-2018 (documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  6. Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 4 (como anexo A) e 16 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, Relatório esse que foi notificado pessoalmente à Requerente em 27-06-2018;

 

  1. Relativamente à inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º O2018...:
  1. Em 20-02-2018, foi emitida a Ordem de Serviço n.º O2018..., para uma inspecção à Requerente, de âmbito parcial, relativa ao período de 2014, que visou «refletir na declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC (DRM22) do grupo as correções efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), decorrentes da ação de inspeção realizada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2017... da Unidade dos Grande Contribuintes (UGC), ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. na esfera individual da sociedade dominante A... SGPS, SA, nos termos do n.º 1 do artigo 70.º do Código do IRC (CIRC), bem como as subsequentes modificações ao apuramento da matéria coletável e ao cálculo de imposto a pagar pelo grupo, nos termos do artigo 115.º do mesmo diploma legal» (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

  1. Na sequência desta inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º O2018... foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º 2018 ... e as respectivas liquidações de juros compensatórios n.ºs 2018 ... e 2018 ... (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. A Requerente reagiu contra estes actos de liquidação apresentando reclamação graciosa, que teve o n.º ...2018... e foi totalmente indeferida (Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. A Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que teve o n.º ...2019... e foi deferido parcialmente, sendo mantidas as correcções efectuadas, com excepção da relativa ao ponto “Donativos”, em que foi corrigido o montante de € 35.054,25 a favor da ora Requerente (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. Não foi proferido qualquer despacho invocando a existência de «factos novos» como fundamento da Ordem de Serviço n.º OI2017... (facto afirmado pela Requerente no artigo 23.º do pedido de pronúncia arbitral, que  não é questionado pela Autoridade Tributária e Aduaneira);
  5. Em 17-10-2018, a Requerente prestou garantia bancária n.º ... do Banco C... (Banco C..., S.A.) para suspender a execução fiscal n.º ...2018..., instaurada para cobrança coerciva das quantias liquidadas (documento n.º 62 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  6. Com a garantia bancária referida, a Requerente suportou, até 11-07-2021, despesas no valor global de € 16.765,67 (documentos n.ºs 63 e 64 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);  
  7. Em 13-08-2021, as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.1.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente, e que parcialmente constam também do processo administrativo.,

Não há factos relevantes para decisão da questão da duplicação de procedimentos de inspecção a causa que não se tenham provado.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Questão da duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (A... SGPS e seu Grupo Fiscal)»

 

3.1.1. Posições das Partes

 

A Requerente defende o seguinte, em suma, sobre esta questão:

– a AT iniciou e concluiu uma primeira inspecção externa ao IRC de 2014, ao abrigo da OI2017... e suportado nela emitiu uma liquidação adicional de IRC ao Grupo B..., tendo então pedido e analisado tudo o que entendeu ser de pedir e de analisar;

– subsequentemente a AT iniciou uma segunda inspecção externa ao IRC de 2014, ao abrigo da Ordem de Serviço OI2017..., que terminou também após aquela primeira, e que desencadeou também uma (segunda e posterior) liquidação adicional de IRC ao Grupo B...;

– esta duplicação de inspecções viola o n.º 4 do artigo 63.º da LGT, que prescreve que só pode haver “mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço”;

–  a segunda inspecção externa ao IRC de 2014 não se fundamenta em quaisquer factos novos (os factos apreciados já lá estavam desde pelo menos 31-12-2014), nem tão-pouco a AT tal alegou ou invocou, e nem tão-pouco houve despacho fundamentado algum do dirigente máximo do serviço a decidir sobre a realização desta segunda inspecção externa.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende o seguinte, em suma,  sobre esta questão:

 

– analisado o RIT relativo a inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2017...0, verifica-se que reflete no Grupo de sociedades «a correção efetuada a título individual à sociedade dominada D..., SA – ..., no âmbito da OI2017..., relacionada com perdas por imparidade»;

– analisado o RIT relativo à inspecção efectuada ao abrigo da OI2017..., constata-se que as correcções foram efetuadas a título individual à Requerente e posteriormente foram consolidadas na esfera fiscal do grupo, através da OI2018...;

– no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) as sociedades que o compõem poderão ser sujeitas a correções, a nível individual, que irão alterar o seu resultado fiscal, e como tal terão que ser materializadas na declaração do grupo abrangido pelo RETGS, a qual gera a liquidação do imposto a pagar/receber do grupo fiscal;

– deste modo, poderá existir uma OI no âmbito de procedimento inspetivo à sociedade, a título individual e simultaneamente existir outra OI à mesma sociedade, mas na qualidade de sociedade dominante do grupo;

– assim sendo, havendo uma declaração única de imposto e existindo correções /alterações aos resultados fiscais declarados pelas sociedades pertencentes ao grupo, o lucro tributável deste terá de ser ajustado em conformidade com tais correções/alterações;

– na situação em análise, embora as duas OI sejam de âmbito externo, ao mesmo exercício – 2014, à mesma sociedade –A..., SGPS. SA e ambas de âmbito parcial- IRC, retratam realidades distintas, pois na OI2017... foi  refletida no Grupo a correção efetuada à sociedade individual D..., SA – ... ( [1] ) e, na OI2017..., o que está em causa são correções a título individual nesta sociedade A..., SGPS, SA, com o NIPC nº ... .

 

 

3.1.2. Apreciação da questão

 

O n.º 4 do artigo 63.º da LGT estabelece o seguinte:

 

4. O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.

 

O âmbito e extensão de cada uma das inspecções são os que se indicam na respectiva ordem de serviço, como decorre da alínea c) do n.º 3 do artigo 46.º do RCPITA.

Neste caso, os âmbitos e extensões das duas Ordens de Serviço n.ºs Ol2017... e Ol2017..., definidos nos respectivos Campos 4, são absolutamente iguais (documentos 5 e 6):

 

O mesmo se passa com o âmbito e extensão indicados nas cartas-aviso enviadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira à Requerente «nos termos da alínea I) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)», que contêm os respectivos campos 4, com teores absolutamente idênticos aos que consta da Ordens de Serviço (documentos n.ºs 7 e 8).

O âmbito e a extensão da inspecção têm de ser notificados aos sujeitos passivos, por força do disposto no artigo 49.º, n.º 2, alínea b), do RCPITA e na alínea l) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT, pelo que as ordens de serviço produzem efeitos em relação aos sujeitos passivos, nos termos que delas constam e que foram notificados.

Assim, sendo absolutamente idênticos os âmbitos e extensões das inspecções  notificados à Requerente, com base nas ordens de serviço OI2017... e OI2017..., a AT podia efectuar em qualquer das inspecções parciais o que fez na outra e, por isso, na 1.ª podia fazer também todas as correcções que fez na 2.ª.

É certo que a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do RCPITA estabelece  que, quanto ao âmbito, o procedimento de inspecção pode ser «parcial ou univalente, quando abranja apenas algum ou alguns tributos ou algum ou alguns deveres dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários», pelo que os âmbitos parciais das inspecções referidas, para além de serem definidos pelo tributo (como foram), também poderiam sê-lo com restrição a apenas a «algum ou alguns deveres dos sujeitos passivos».

Assim, abstractamente, podia o âmbito parcial ser definido como abrangendo apenas as obrigações da Requerente a nível do grupo.

Mas, neste caso, as hipotéticas restrições a apenas algum ou alguns deveres não constam de qualquer das Ordens de Serviço, nem das respectivas notificações, pelo que não pode com base nelas definir-se o âmbito parcial de cada uma das inspecções, sendo, por isso, esse âmbito parcial apenas definido pelo tipo de imposto.

Na verdade, em ambas as ordens de serviço e respectivas notificações faz-se apenas referência a que o âmbito é parcial e se restringe a IRC de 2014, não havendo qualquer alusão a que o âmbito da 1.ª se restringisse a correcções a nível do grupo ou a que o âmbito da 2.ª se reportasse à sociedade dominante a título individual.

De qualquer modo,  os diferentes objectivos e a restrição do âmbito da inspecção parcial dentro do mesmo imposto não têm qualquer relevância a nível de possibilidade de repetição de inspecções.

Com efeito, o artigo 63.º, n.º 4, da LGT proíbe a repetição desde que sejam respeitantes «ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação», independentemente dos objectivos visados e de eventuais restrições do âmbito dentro do mesmo  tipo de imposto.

Só são excepções a esta regra da irrepetibilidade as situações previstas nesse n.º 4, que são as de ser proferido um despacho fundamentado invocando a existência de «factos novos» e a de a nova inspecção «visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas», situações estas que não ocorrem no caso dos autos.     

Assim, a hipotética restrição que se fizesse do âmbito da inspecção dentro do mesmo tipo de imposto, não afastaria a aplicação do princípio da irrepetibilidade, que o n.º 4 do artigo 63.º da LGT consagra, não sendo, designadamente, admissível a realização de mais que uma inspecção relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, mesmo que tenham âmbitos e objectivos diferentes, inclusivamente os de apuramento do cumprimento por uma sociedade dominante dos deveres fiscais a nível de grupo e a nível individual.

O que, aliás, tem razoabilidade evidente, pois destinando-se o princípio da irrepetibilidade das inspecções a evitar incómodos desproporcionados e dispensáveis ao sujeito passivo, para além de satisfazerem o seu direito à segurança jurídica, não seria aceitável que a AT pudesse realizar plúrimas inspecções sucessivas, definindo para cada uma delas um âmbito reduzido: por exemplo, como no caso dos autos, uma inspecção para correcção com base em preços de transferência, outra relativa a dedução fiscal de donativos, outra relativa a dedução fiscal majorada de quotizações para associações empresariais, outra relativa a tributações autónomas sobre remunerações variáveis, ou muitas outras, como uma para apurar correcções a nível de despesas de financiamento, outra para amortizações, outra para cada um dos benefícios fiscais, outras para cada um dos tipos de gastos etc..

Num imposto tão complexo como o IRC, os motivos diversos que poderiam em abstracto invocar-se para justificar novas inspecções externas seriam potencialmente infindáveis, tantas são as questões jurídicas que podem suscitar-se a propósito do cumprimento dos deveres que o mesmo encerra.

Ora, o telos da norma do n.º 4 do artigo 63.º da LGT seria muito facilmente frustrado se a AT pudesse fazer sucessivas inspecções externas dirigidas ao mesmo sujeito passivo e versando sobre o mesmo imposto, embora invocando motivos diversos, o que se reconduziria a deixar entrar pela janela a repetição de inspecções que n.º 4 do artigo 63.º da LGT fez sair pela porta.

Mesmo descontando o perigo acrescido de abuso de poder,  o risco de  banalização de inspecções externas – à margem da ocorrência devidamente fundamentada de factos novos – poderia pôr em causa o equilíbrio razoável e proporcional que a referida disposição da LGT pretendeu alcançar, a saber, entre a defesa do interesse público de preservação da base tributária do Estado, por um lado, e o interesse privado (também com uma inegável dimensão político-económica) de permitir às empresas o normal desenvolvimento da sua atividade económica, por outro lado.

 Adoptando a metódica de ponderação de bens inerente ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, o n.º 4 do artigo 63.º da LGT permite à AT proceder ao escrutínio fiscal que considere legalmente devido, adequado e necessário, ainda que não de uma forma desproporcionalmente invasiva e intrusiva, susceptível de afectar a normal operação das empresas no mercado e, por essa via, restringir o direito fundamental de livre iniciativa económica privada constitucionalmente consagrado.

 Por isso, cabe à AT programar e articular devidamente as suas inspecções internas e externas tendo em vista aproveitar e maximizar todas as suas virtualidades de fiscalização tributária e regulação de maneira eficiente e eficaz.

Por isso, se é certo que, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no artigo 25.º da sua Resposta, «poderá existir uma OI no âmbito de procedimento inspetivo à sociedade, a título individual e simultaneamente existir outra OI à mesma sociedade, mas na qualidade de sociedade dominante do grupo», terá de se concluir que, tratando-se do mesmo sujeito passivo, relativamente ao mesmo tipo de imposto e período de tributação, terá de se efectuada uma única inspecção externa, cumulando os âmbitos definidos nas duas ordens de serviço, ou então, como é usual, a segunda inspecção ser de natureza interna, limitando-se a reproduzir para efeitos de liquidação de imposto na sociedade dominante as correcções decorrentes dos RIT das empresas individualmente consideradas, incluindo a própria sociedade dominante, com base numa análise formal e de coerência de documentos que estão já na disponibilidade da AT (como, aliás, sucedeu com a 3.ª inspecção efectuada à Requerente relativamente ao período de 2014, efectuada ao abrigo da O2018..., que teve natureza interna).

Este entendimento do princípio da irrepetibilidade das inspecções, que considera irrelevante o fim das inspecções, tem sido afirmado, uniformemente, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, como se sintetiza no acórdão do TCAS de 23/04/2015, proc. n.º 06182/12, em sintonia com jurisprudência que se indica:

«Sublinhe-se ainda que a proibição sancionada no n.º 3 do art. 63.º do LGT encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização (por oposição ao procedimento interno) e diz respeito à classificação do procedimento quanto ao lugar do procedimento (art. 13.º do RCPIT), independentemente da sua classificação quanto ao fim (art. 12.º do RCPIT), âmbito e extensão (art. 14.º do RCPIT) – nesse sentido, v. acórdão do TCAS de 23/04/2015, proc. n.º 06182/12 (Relatora Cristina Flora), secundado pelos acórdãos do TCAS de 14/03/2019, proc. n.º 1028/12.3BELRA, de 13/12/2019, proc. n.º 132/08.7BELRA, e de 20/02/2020, proc. n.º 134/08.3BELRA, e proc. n.º 133/08.5BELRA.»

 

Ainda na mesma linha refere-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14-04-2015, processo n.º 05674/12, em que se concluiu pela violação do princípio da irrepetibilidade das inspecções: 

«A essa conclusão não obsta o facto de os objectivos visados serem distintos uma vez que a restrição prevista no n.º 4 do artigo 63.° da Lei Geral Tributária – imposta pela necessidade de impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspecção visa prosseguir – não se encontra estabelecida em função do tipo ou fim do procedimento mas do local onde o mesmo deva ocorrer».

 

Na mesma linha, refere-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de  
 de 17-09-2020, processo n.º 402/10.4BELRS,

 «A regra da proibição em presença veda a repetição da realização de acção inspectiva assente na tripa identidade do acto inspectivo, pelo que o seu âmbito normativo estará preenchido, uma vez demonstrada a tripla identidade referida em relação a ambos os procedimentos inspectivos».


            No caso em apreço, não se está perante a excepção prevista na parte final do n.º 4 do artigo 63.º da LGT (a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária) e verifica-se a tripla identidade em que assenta a proibição de repetição da inspecção: foram realizadas duas inspecções externas, relativamente ao mesmo sujeito passivo, mesmo imposto e período de tributação, pelo que a 2.ª só seria legalmente admissível se fosse proferido um despacho com fundamento em factos novos, o que não sucedeu.

Por outro lado, não é sequer objecto de controvérsia que as inspecções foram externas: a Autoridade Tributária e Aduaneira deu-lhes essa qualificação nas ordens de serviço e nos relatórios das inspecções tributárias e que reafirma tal qualificação no presente processo, nos artigos 13.º, 16.º, 18.º, 21.º e 28.º da sua Resposta; por sua vez, a Requerente, no pedido de pronúncia arbitral, também lhes dá essa qualificação. Por isso, desde logo por não haver controvérsia, tem de se considerar processualmente assente essa qualificação, não havendo, nesse ponto, qualquer litígio que seja pedido ao tribunal que dirima.

Para além disso, a Autoridade Tributária e Aduaneira adoptou efectivamente nas inspecções efectuadas ao abrigo das Ordens de Serviço Ol2017... e Ol2017... o procedimento próprio das inspecção externas, desde logo quanto à notificação pessoal da Requerente e pediu-lhe esclarecimentos e apresentação de documentos, que não tinha em seu poder.

E, por outro lado, a 1.ª inspecção, baseada na Ordem de Serviço Ol2017..., embora acabasse por ter como resultado apenas a repercussão na matéria tributável do Grupo de uma correcção efectuada a título individual à sociedade dominada D..., SA –..., foi efectivamente externa, pois, além dessa repercussão, a Autoridade Tributária e Aduaneira pediu à Requerente esclarecimentos e apresentação de documentos, inclusive relativamente a matérias de outras sociedades subsidiárias, que não teria necessidade de questionar se elas próprias tivessem sido objecto de procedimento de inspeção específico, aqui evidenciando de que não estava na sua disponibilidade essa informação.

Pelo exposto, o pedido de pronúncia arbitral procede quanto ao vício de violação dos  princípio  da irrepetibilidade das inspecções externas, que emana do n.º 4 do artigo 63.º da LGT, que constitui vício de violação de lei, com potencialidade para anular a inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço OI2017..., bem como os actos subsequentes que a tiveram por pressuposto, designadamente as liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas.

 

 

3.2. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações que são objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

 Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

 Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente.

 

 

            4. Indemnização por garantia indevida

 

 

            Em 17-10-2018, a Requerente prestou garantia bancária para suspender a execução fiscal n.º ...2018..., instaurada para cobrança coerciva das quantias liquidadas e pede indemnização pelas despesas suportadas, no montante de € 16.765,67 até 11-07-2021, para além das que forem suportadas após esta data.

O art. 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

 

Artigo 53.º

 

Garantia em caso de prestação indevida

 

   1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

   2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

 

 

No caso em apreço, é manifesto que o erro subjacente que justifica anulação das liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois a inspecção ilegal e as liquidações foram de sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que essa ilegalidade.

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada.

Não havendo elementos que permitam determinar o montante exacto da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência à quantia que já se provou ter suportada pela Requerente (€ 16.765,67) e, quanto a despesas posteriores, ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão, de harmonia com o preceituado no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

 

 

5. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1.  Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2.  Anular a liquidação adicional de IRC n.º 2018 ... e as correspondentes liquidações de juros compensatórios com os n.ºs 2018 ... e 2018 ..., na parte ainda subsistente após o deferimento parcial de recurso hierárquico, que ascende ao montante, juros compensatórios incluídos, de € 1.179.164,95, relativo ao exercício de 2014 do Grupo Fiscal B...;
  3.  Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a esse título a quantia de € 16.765,67, bem como despesas com a prestação da garantia bancária n.º ... suportadas após 11-07-2021 e até ao seu levantamento.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.179.164,95, valor indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

 

Lisboa, 23-12-2021

Os Árbitros

 

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

(José Fernando Morais Carreira de Araújo)

 

(Jónatas Machado)

 

 

 

 



[1] A Autoridade Tributária e Aduaneira por lapso evidente, refere a A..., SGPS, SA, com o NIPC nº ... .