Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 701/2014-T
Data da decisão: 2015-05-08  IVA  
Valor do pedido: € 38.437,17
Tema: IVA - Perdas em inventários e Presunção de transmissão onerosa
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AS PARTES

 

Requerente:  «A», NIPC …, com sede social na …

Requerida:    Autoridade Tributária e Aduaneira

Tema:            IVA - Perdas em inventários e Presunção de transmissão onerosa

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I -      Objecto do pedido e tramitação processual

 

Em 1 de Outubro de 2014, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, requerendo:

 

i)          A declaração de ilegalidade das seguintes notas de liquidação de IVA, no valor total de 38.437,17 €, referentes a 2011:

Período

Liquidação adicional (n.º)

Valor (€)

Janeiro

2.566,02

Fevereiro

2.724,12

Março

2.692,99

Abril

4.139,23

Maio

2.722,02

Junho

2.789,03

Julho

2.763,30

Agosto

2.767,77

Setembro

5.537,77

Outubro

4.174,41

Novembro

. …

2.794,39

Dezembro

. …

2.766,13

 

 

38.437,17

 

ii)        A consequente anulação das respectivas notas de liquidação de juros compensatórios.

 

 

 

 

Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico (n.º 1 do artigo 6.º do RJAT) foi designado como árbitro único o signatário. O tribunal arbitral singular foi constituído em 3 de Dezembro de 2014.

 

A Administração Tributária e Aduaneira (doravante a designar, abreviadamente, por AT) apresentou a sua Resposta em 14 de Janeiro de 2015.

 

A reunião arbitral (artigo 18.º do RJAT) foi realizada em 9 de Fevereiro. A inquirição das 3 testemunhas arroladas pela Requerente realizou-se em 12 de Março.

As partes apresentaram alegações escritas e sucessivas.

 

O Tribunal notificou as partes que a decisão arbitral seria preparada até 11 de Maio.

 

As partes gozam de capacidade e legitimidade jurídicas.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não padece de qualquer nulidade. Não foram suscitadas pelas partes quaisquer excepções que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

 

II -    Enquadramento fáctico e inquirição de testemunhas

 

A.      Factos considerados provados em face da documentação

Em face dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:

a)             A actividade comercial da Requerente consiste na produção e venda, no mercado grossita, de produtos de pastelaria. Os produtos acabados são, na sua quase totalidade, embalados para posterior comercialização. A grande maioria dos seus clientes opera nos mercados de catering e comércio retalhista de produtos alimentares;

b)             A Requerente reconhece perdas e quebras em inventários (matérias-primas e produtos acabados), que são objecto de registo contabilístico mediante autonomização nas contas «#38 - Regularização de inventário» e «#684 - Perdas em inventários»;

c)             A Requerente submeteu um requerimento à AT (datado de 15 de Setembro de 2012, mas recepcionado em 8 de Outubro), no qual identificou a referida causalidade inerente ao registo destas desvalorizações excepcionais. Expôs ainda os constrangimentos resultantes da natureza perecível desses bens do seu inventário, nos planos da saúde pública e da salvaguarda do regular funcionamento das instalações fabris;

d)            E, em face da obrigatoriedade de comunicação prévia e com antecedência mínima de 15 dias de tais desvalorizações excepcionais, solicitou (a) a redução desse prazo para 5 dias e (b) a realização dos abates ao Sábado, dia da recolha realizada pelos Serviços Municipalizados de ...;

e)             A AT não solicitou esclarecimentos e não respondeu a esse requerimento;

f)              No exercício de 2011, a Requerente registou contabilisticamente um gasto de 298.627,23 € a título de regularização de existências, o qual representa 21,72% do total das existenciais iniciais acrescidas das compras no exercício;

g)             As regularizações de existências reportam-se, no valor de 284.719,25 €, a perdas em inventários e abates de mercadorias. O diferencial corresponde a ofertas de mercadorias a diversas instituições de solidariedade social;

h)             Com base na ordem de serviço DI…, a AT realizou uma acção inspectiva em 13 de Outubro de 2012, pelas 11:00, na instalação fabril da Requerente;

i)               Tal acção inspectiva surgiu na sequência do requerimento apresentado pela Requerente em 15 de Setembro de 2009, “comunicando que iria proceder à destruição de resíduos industriais / alimentares não utilizáveis e/ou à inutilização de bens de consumo, nos termos do artigo 80.º do CIVA e em respeito pelo ofício circulado n.º … dos Serviços do IVA”;

j)               Pretendeu-se “conferir a inutilização dos produtos de pastelaria que deixaram de ter validade, que possuíam defeitos de fabrico ou que se encontravam em deficientes condições”;

k)             Os dois inspectores da AT verificaram “a existência no local de vários caixotes de lixo”, no qual se encontravam produtos “indistintamente misturados, impossibilitando, deste modo, o confronto dos produtos e respectivas quantidades existentes dentro dos contentores de plástico”;

l)               Respondendo à junção indiscriminada dos bens em contentores, impossibilitando a “contagem física” dos bens, o sócio gerente que acompanhou a acção inspectiva referiu “ser essa a forma como habitualmente junta os resíduos de forma a poderem ser recolhidos pelos Serviços Municipalizados, em contentores de 1.000 litros”;

m)           Referem os inspectores que “na data e hora indicada na comunicação do abate, o camião dos Serviços Municipalizados de... que deveria transportar os resíduos industriais não utilizáveis para o aterro sanitário, não se encontrava na sede da empresa”;

n)             Inquirido o mesmo sócio gerente, este respondeu que “a situação se devia ao facto de o mesmo não poder controlar o horário do camião dos Serviços Municipalizados, mais referindo que o mesmo estaria possivelmente atrasado”;

o)             Nas suas conclusões, a AT refere o normativo do CIVA, que estatui a presunção de transmissão dos bens que não se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua actividade;

p)             Salientando que “apesar de não existir obrigação legal de solicitar autorização / comunicar previamente à Administração Fiscal que se vai proceder a essa destruição ou inutilização, é recomendável proceder à prévia comunicação desses factos - com a indicação do dia e hora - para que possa ser exercido o devido controlo

q)             E por não ter “assistido à efectiva destruição dos bens”, nem ter “assistido à sua posterior remoção e deslocação pelos Serviços Municipalizados até ao aterro sanitário”, fica “inviabilizada a aferição concreta do número e natureza dos bens objecto de destruição / inutilização”.

r)              Concluem os inspectores que o acto a que assistiram (ou a ausência do mesmo) não pôde ser considerado como um abate. O que acarreta a sua “não consideração como custo fiscal”;

s)              Dessa ordem de serviço resultou a realização de uma inspecção externa ao exercício de 2011, a qual decorreu entre 14 de Março e 16 de Abril de 2014;

t)              O relatório de inspecção tributária relata que “o sujeito passivo enviou as correspondentes comunicações de abate ao Serviço de Finanças da área onde os abates iriam ocorrer, juntando as relações discriminativas com as quantidades e valorização dos bens a abater”;

u)             “Porém, comprovou-se que estes requerimentos não foram efectuados com o período mínimo de antecedência de 15 dias, conforme estipulado no artigo 38.º do CIRC, nem integram o processo de documentação fiscal nos termos do artigo 130.º do CIRC”;

v)             No relatório refere-se ainda que a Requerente “efectuou em média dois abates por mês, enviando as respectivas comunicações com uma antecedência mínima de 5 dias”. Logo, ficou impossibilitada a comprovação dos correspondentes abates, bem assim como a efectiva destruição / inutilização dos bens”;

w)           Concluindo a AT no seu relatório final que “atendendo a que não foram cumpridos os requisitos estipulados no artigo 38.º do CIRC, para que tais desvalorizações sejam consideradas como gasto do período de tributação, estas terão de ser acrescidas ao resultado tributável do exercício”, no valor total de 284.719,25 €;

x)             O relatório acrescenta que “consequentemente, dado que nos termos do artigo 38.º do CIRC as mencionadas desvalorizações de mercadorias não podem ser consideradas gasto do período, deverá ser liquidado o correspondente IVA, nos termos do artigo 86.º do CIVA”.

O qual dispõe que “salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua actividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer desses locais”;

y)             O relatório de inspecção identificou, no exercício de 2011, uma margem de lucro bruta de 64,8%, “margem esta que julgamos corresponder à realidade, atendendo a que é ligeiramente superior à margem constante dos rácios nacionais para o sector de actividade do sujeito passivo”;

z)             A Requerente não exerceu o direito de audição prévia;

aa)          A AT emitiu notas de liquidação adicional de IVA no valor de 38.437,17 €, correspondente ao “imposto que deveria ter sido liquidado relativamente às desvalorizações de mercadorias / abates (…) nos termos dos artigos 19.º a 27.º, 41.º e 78.º do CIVA”.

 

B.      Inquirição de testemunhas

A Requerente arrolou três testemunhas, que prestaram o seu depoimento em 12 de Março de 2015.

 

 

 

A testemunha ... exerce funções de advocacia numa associação empresarial do sector da agro-indústria, que inclui os sectores de pastelaria e confeitaria em que a Requerente exerce a sua actividade económica.

 

Referiu que:

-    As perdas de inventário nesta indústria superam 20%, por estarmos perante produtos frescos (não havendo comercialização de produtos congelados);

-    Os produtos acabados apresentam prazos de validade especialmente curtos, sendo as empresas objecto de frequentes inspecções fitossanitárias e de segurança alimentar;

-    Estas perdas são de ocorrência normal e previsível, sem natureza excepcional e com reduzido efeito sazonal.

 

A testemunha ... é, há 6 anos, trabalhadora da Requerente, sendo responsável pelo departamento de qualidade. Esclareceu que:

-    A fábrica labora continuamente em 3 turnos. E todos os dias há desperdícios e produtos eliminados como consequência do regular funcionamento do processo produtivo;

-    Em cada turno, o responsável pela produção elabora a listagem dos desperdícios e o motivo da sua ocorrência. A lista é assinada e enviada para os serviços centrais, que diariamente coligem a informação dos 3 turnos;

-    Os clientes são regulares e a produção estável ao longo do ano;

-    Os desperdícios são colocados em contentores, localizados no recinto da fábrica, mas segregados da produção;

-    Trabalha aos Sábados de manhã, tendo assistido a vários processos de remoção dos contentores pelos Serviços Municipalizados. Idealmente, esses bens deveriam ser eliminados 2 vezes por semana, devido à sua rápida degradação. Todavia, os Serviços Municipalizados apenas asseguram a remoção quinzenalmente;

 

A testemunha caracterizou o processo produtivo de forma clara e objectiva. Identificando, com exemplos concretos, os motivos inerentes às perdas da matéria-prima, a par do abate do material de embalagem.

 

Referiu ainda que, para além das perdas ínsitas ao processo produtivo, a Requerente labora com base em mapas de planeamento de produção, de forma a assegurar o preenchimento das encomendas dos clientes.

 

Todavia, essas encomendas não são firmes, podendo apenas ser previstas com base no histórico do cliente ou na maior expectativa de comercialização no retalho. Facto que sujeita a Requerente ao risco de não escoamento total da produção programada e realizada, com a consequente inutilização dos bens produzidos em excesso.

 

Por último, também ficou esclarecida a razão pela qual são abatidas matérias-primas (e. g. ovos e natas). Trata-se de bens envolvidos na confecção dos produtos finais (e. g. semifrios) e que, em resultado da não confirmação da encomenda pelo cliente, são inutilizados. Pelo que o produto final não chega a ser objecto de contabilização no inventário de produtos acabados (e, logo, aptos a comercialização).

 

A testemunha ... é trabalhadora da Requerente há 17 anos, exercendo funções na área administrativa. Esclareceu que:

-    Os responsáveis pelos turnos de trabalho preparam listagens com os bens inutilizados, o mesmo sucedendo com os motoristas que efectuam a entrega dos bens e a recolha dos bens entregues em viagens anteriores e que não foram comercializados no retalho (bem como aqueles cuja entrega não é, por diversos motivos, aceite pelo cliente);

-    Diariamente, a testemunha colige essas listagens e envia-as para aprovação da gestão. Trata-se de uma inevitável rotina do dia-a-dia;

-    Os Serviços Municipalizados de ... recolhem o lixo à terça-feira, quinta-feira e Sábado. Neste último dia também recolhem os bens inutilizados, que, contrariamente ao lixo, exigem o acesso à fábrica;

-    Prepara a carta de comunicações prévia dos abates à AT, que remete nos 5 dias anteriores a cada Sábado (quinzenalmente). As perdas registadas no período que medeia entre a comunicação e o Sábado seguinte, são consideradas na comunicação e abates a realizados na quinzena seguinte;

-    Uma vez efectuado o abate (recolha dos contentores pelos Serviços Municipalizados), efectua-se uma nova comunicação à AT;

-    A testemunha referiu que nem sempre foi capaz de assegurar a comunicação prévia ao abate, o que justificou com o tempo necessário à realização de outras tarefas e ao facto de ter temporariamente acumulado as funções de uma colega.

 

 

C.      Factos considerados provados, pela conjugação entre os elementos documental e testemunhal

Da conjugação entre a documentação processual e a inquirição das testemunhas, Os factos considerados como provados devem ser expandidos nos seguintes termos:

i)               A Requerente produz 30 mil bolos e pães, laborando diariamente;

ii)             A perda de matérias-primas é ínsita ao processo produtivo, pelo que a respectiva ocorrência é normal e frequente;

iii)           Tais perdas decorrem ainda da natureza dos bens alimentares produzidos (frescos e de rápido deperecimento), a par do planeamento produtivo destinado a assegurar um nível mínimo de oferta, de modo a preencher as encomendas dos clientes (dado que estas nem sempre são antecipáveis);

iv)           A origem das perdas das matérias-primas radica nas sobras e restos, no seu depósito nos tabuleiros e tapetes rolantes, nos erros e defeitos da produção e na divergência entre os bens produzidos e as encomendas firmes dos clientes;

v)             As perdas verificadas nos produtos acabados resultam das devoluções de clientes, na medida em que os bens são adquiridos à Requerente em regime de conta-consignação. Pelo que a Requerente suporta o risco de não escoamento da sua produção no mercado de retalho em que operam os seus clientes;

 

 

 

vi)           As matérias-primas e produtos acabados, bem como os materiais em que os mesmos são embalados (e. g. filmes, cartão e formas) são rápida e facilmente perecíveis, não permitindo um aproveitamento económico alternativo;

vii)         As perdas são identificadas mediante listagens e folhas de serviço preenchidas pelos responsáveis de turno (matérias-primas) e motoristas (produtos acabados). As listagens são sujeitas a uma cadeia de aprovação pelos órgãos de gestão, seguindo-se-lhe o abate dos bens;

viii)       O abate ocorre mediante recolha pelos Serviços Municipalizados, realizada quinzenalmente e aos Sábados;

ix)           Há vários anos que a Requerente instituiu um procedimento de comunicação prévia desses abates à AT. Fá-lo mediante comunicação postal e com antecedência mínima de 5 dias, descrevendo os bens a inutilizar e o respectivo gasto contabilístico;

x)             No exercício de 2011 as perdas situam-se em 20% do valor correspondente à soma das existências inicias e compras. Embora o valor pareça elevado em termos absolutos, a margem de lucro bruta da Requerente supera média nacional das empresas que operam neste sector. Pelo que os abates realizados pela Requerente são consentâneos com a realidade do sector e o seu valor não é irrazoável;

xi)           Por fim, as matérias-primas e os produtos acabados constituem bens do inventário da Requerente, estando como tal reflectidos na sua contabilidade.

 

D.      Factos não provados

A Requerente não provou que a totalidade dos abates realizados em 2011 respeitou o prazo prévio de 5 dias.

 

Efectuado o confronto entre as datas constantes das cópias dos registos e avisos de recepção postal e o calendário de abates verificados ao longo do exercício, verificou-se a existência de diversas discrepâncias entre tais datas. Concluindo-se que, em diversos momentos, a comunicação à AT foi enviada posteriormente à realização do abate.

 

 

III - Síntese dos fundamentos de direito invocados pelas partes e das alegações finais escritas

 

A.      O entendimento da Requerente

As mercadorias em apreço, matérias-primas e produtos acabados, foram objecto de real e efectiva destruição. O que impossibilita a sua posterior comercialização, não existindo, por esse motivo, qualquer IVA passível de liquidação.

 

 

 

A destruição dessas mercadorias é comunicada previamente à AT, conforme a mesma admite no relatório de inspecção. Por seu turno, a Requerente aceita que essa comunicação prévia não cumpre com o prazo de 15 dias estabelecido na alínea c) do n.º 3 do artigo 38.º do CIRC. Antes se realizando num prazo antecedente de 5 dias.

 

A inobservância do prazo legal de 15 dias não conduz, automática e necessariamente, à consideração dos abates como configurando um custo fiscalmente não dedutível em sede de IRC.

E dessa consideração em sede de IRC não pode, sem mais, fluir a presunção de transmissibilidade dos bens prevista no artigo 86.º do CIVA.

 

Essa presunção é ilidível pelo facto de as mercadorias terem sido objecto de destruição, conforme testemunhado presencialmente e plasmado em autos de abate do qual consta a relação dos respectivos bens inutilizados.

Este facto não é abalado pelo desrespeito da comunicação prévia de 15 dias, cujo encurtamento para 5 dias se explica pela natureza dos bens. Trata-se de produtos alimentares frescos, facilmente perecíveis e sem subsequente aproveitamento económico. O que não se coaduna com um compasso de espera prévio de 15 dias.

 

A comunicação prévia de 5 dias é adoptada há vários anos. A verificação desta prática é do conhecimento da AT e reconhecida no relatório de inspecção. Tanto assim, que foi objecto de um pedido dirigido à AT em 15 de Setembro de 2009, o qual nunca foi respondido.

Mas ainda que a AT tivesse mantido a exigência da comunicação prévia de 15 dias, a Requerente sempre se veria impossibilitada de cumprir essa exigência legal. Sob pena de incorrer na prática reiterada de infracções por desobediência às obrigações legais no plano da saúde pública.

 

No seu Ofício Circulado n.º 35264, sob a epígrafe “Destruição de bens inutilizados, deteriorados ou obsoletos”, a Direcção de Serviços do IVA considera não existir uma obrigatoriedade legal de prévia diligência ou participação à AT, no que respeita à justificação das “faltas nas suas existência de bens destruídos ou inutilizados”.

 

E na falta dessa obrigação, a AT recomenda a prévia comunicação dessa destruição ou inutilização, de forma a permitir a verificação da integridade desses factos. E os sujeitos passivos podem “elaborar e conservar um auto de destruição ou inutilização dos bens objecto de abate, testemunhado pelas pessoas estranhas ou não à empresa que presenciaram aquele acto”.

 

Em suma, a realidade económica e substantiva (a destruição) sobrepõe-se ao mero formalismo do prazo mínimo de comunicação prévia. Sendo que o incumprimento das regras de IRC quanto à verificação desse prazo, não é extensível à presunção de transmissibilidade dos bens. Dado que, cumprido ou não esse prazo de 15 dias, os foram destruídos.

 

 

 

B.      O entendimento da Requerida

A inspecção externa realizou-se pelo facto de, no âmbito do despacho DI…, aberto para verificação da destruição de mercadorias, se ter constatado a “impossibilidade de aferição concreta do número e natureza dos bens objecto de destruição/inutilização e por não ter sido possível assistir ao abate dos mesmos”.

 

Entre 2008 e 2011 a Requerente declarou regularizações de existências cujos valores oscilam, em cada um desses exercícios, entre 270.000 € e 320.000 €. O que representa entre 17% a 24,79% das existências iniciais acrescidas das compras.

 

No exercício de 2011, as “contas #38 e #684” das demonstrações financeiras da Requerente registam “perdas em inventários /regularização de existências” - abates - no valor de 284.719,25 €. A diferença para o saldo das referidas contas reporta-se a donativos de mercadorias a instituições de solidariedade social.

 

Tais abates não observaram o disposto no artigo 38.º do CIRC, “normativo que disciplina as formalidades prévias a observar num abate”. Facto que impossibilitou a comprovação dos correspondentes abates, a par da efectiva destruição ou inutilização dos bens.

E tendo-se concluído que as desvalorizações excepcionais de mercadorias não podem ser considerados como gasto dedutível em sede de IRC, será de liquidar o correspondente IVA conforme estatuído no artigo 86.º do CIVA.

 

A Requerente labora numa incorrecta interpretação das referidas normas do CIRC e do CIVA.

A alínea c) do n.º 3 do artigo 38.º exige, expressamente, que o abate seja comunicado com uma antecedência mínima de 15 dias, indicando-se a hora e local da sua realização.

À letra da lei alia-se a subjacente ratio legis, assente na possibilidade de comprovação efectiva do abate pela AT. Retirar a exigência do prazo de 15 dias implica a subversão do sentido e alcance da norma, contrariando as regras de hermenêutica vertidas no artigo 11.º da LGT e 9.º do Código Civil.

 

No caso em apreço, não existe uma declaração ou auto de uma qualquer entidade independente, susceptível de atestar o fim do prazo de validade dos produtos alimentares e, nessa medida, comprovar que os mesmos não eram passíveis de comercialização. Assim se justificando a inutilização desses bens.

 

Neste sentido, há que realçar o facto de a comunicação dos abates ser efectuada pelo cônjuge de um dos sócios gerentes e as testemunhas que assinam os autos de abate são, invariavelmente, os dois sócios gerentes.

 

Acresce que os abates se realizam com a mesma cadência (2 abates por mês) e ocorrem sempre num dia não útil (Sábado).

 

 

 

Focando a atenção nos bens que constam dos autos de abate, verifica-se que (i) as quantidades e valores não se alteram significativamente, (ii) são inutilizadas matérias-primas como açucares, amêndoas e farinhas, cujo prazo de validade é tipicamente superior a 1 ano e (iii) são destruídos bens utilizados para acondicionar e embalar os produtos alimentares, como caixas de cartão e formas de alumínio.

 

Para mais, é de estranhar que a constância desses abates, na medida em que as quantidades e valor dos bens abatidos não flutua ao longo do ano, i. e. é indiferente aos efeitos da sazonalidade económica.

 

Não menos fácil de entender é a ausência de medidas de gestão tendentes à redução destas perdas.

 

Certo é que que o artigo 38.º do CIRC enquadra normativamente as situações de “desvalorização excepcional”, pelo que a frequência quinzenal dos abates realizados pela Requerente evoluiu de excepção para regra.

 

E, conforme anteriormente salientado, o procedimento adoptado pela Requerente levanta sérias dúvidas quanto à respectiva veracidade. Porquanto (i) os abates se realizam sempre em dia não útil, (ii) são elaborados na segunda-feira precedente, (iii) sem presença de qualquer entidade externa e independente e (iv) sempre assinadas pelas mesmas duas testemunhas (sem variar com férias ou eventuais motivos de saúde, pessoais ou familiares).

 

Acresce que os 5 dias úteis prévios que a Requerente diz observar, não permitem comprovação através dos registos dos CTT. Conforme se verifica nos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Junho, Julho, Outubro e Novembro.

 

Exemplificativamente, na primeira comunicação de Janeiro, não foi apresentada cópia do aviso de recepção postal assinado.

Na segunda comunicação de Janeiro, a carta foi expedido em 25 de Janeiro e recebida no dia seguinte, mas informando de um abate realizado em 23 de Janeiro. Ou seja, a comunicação foi posterior e não prévia ao abate.

 

Retomando o acto inspectivo realizado em Outubro de 2012, sobressai do mesmo que não pôde comprovar-se (i) a natureza e quantidade dos bens destruídos, (ii) a impossibilidade de comercialização dos mesmos e (iii) a efectiva destruição por falta de comparência, à data e hora marcadas, do camião dos Serviços Municipalizados.

 

E quando estamos perante a destruição de produtos alimentares como resíduo ou subproduto, o processo de abate implica a emissão, respectivamente, da guia de acompanhamento de resíduos modelo A e guia modelo 376 da DGAV. Pelo que a prova testemunhal não pode substituir o elemento documental.

 

 

 

 

C.      Alegações finais

Foram apresentadas alegações finais, escritas e sucessivas, em que as Partes mantiveram o essencial dos fundamentos que suportam as suas posições.

 

Requerente

Referiu não estarmos perante o conceito de “desvalorizações excepcionais” previsto no artigo 38.º do Código do IRC, antes se tratando de perdas normais de mercadorias.

 

Do depoimento das testemunhas ficou vincado que a Requerente carece, regularmente, de abater e destruir matérias-primas e produtos acabados. Facto que, por não se reconduzir a acontecimentos anómalos e esporádicos, justifica a inevitabilidade das consequentes perdas registadas como gasto de cada exercício.

 

Tais perdas foram reconhecidas através de abates presencialmente testemunhados e comunicados ao Serviço de Finanças competente.

 

As notas de liquidação controvertidas decorrem da não observância do prazo de comunicação prévia de 15 dias. Sucede que, não estando estas perdas sob a alçada do regime contido no artigo 38.º do Código do IRC, fica prejudicada a aplicabilidade desse prazo.

 

Sem prescindir, salienta a inexequibilidade do cumprimento desse prazo de 15 dias, devido à perecibilidade dos bens e à necessidade de observar regras de segurança alimentar.

 

Quanto à presunção iuris tantum consagrada no artigo 86.º do Código do IVA, a mesma cai por terra na medida em que a sua aplicação flui do referido artigo 38.º do Código do IRC.

Dado que da inobservância do prazo de 15 dias não pode decorrer, automática e sem mais, a presunção de transmissibilidade dos bens. Havendo que operar uma clara destrinça entre os regimes do IRC e do IVA.

 

Essa presunção não procede em face do real e efectivo abate dos bens. Aloca à AT um “artificiosismo formal” (o prazo de 15 dias) para lograr a incidência de IVA sobre transmissões que nunca existiram, convocando em seu apoio o ofício circulado 35264 da Direcção de Serviços do IVA.

 

Requerida

As alegações finais da Requerente nada de novo acrescentam, não suscitando qualquer alteração substancial aos fundamentos aduzidos pela AT na sua Resposta ao pedido de pronúncia arbitral.

 

 

 

Ainda assim, sublinha uma incongruência no raciocínio argumentativo da Requerente, atento o facto de esta inicialmente suportar o seu procedimento de abate no artigo 38.º do Código do IRC, para, em sede de alegações, pugnar pela inaplicabilidade deste regime.

 

Recorda que a origem dos actos tributários controvertidos reporta-se à acção inspectiva realizada ao abrigo da ordem de serviço OI…, na qual se constatou a impossibilidade de aferição concreta do número e natureza dos bens abatidos. Além de não ter sido possível assistir à operação de abate.

 

Tendo os Serviços de Inspecção Tributária concluído que, nos termos do artigo 38.º do Código do IRC, as desvalorizações excepcionais de mercadorias não poderiam ser consideradas como gasto do exercício. Sendo de liquidar o correspondente IVA, conforme estatuído no artigo 86.º do Código do IVA.

 

É irrefutável, da letra da lei, a imposição de um prazo mínimo e prévio de 15 dias. Devendo ser comunicada a data e hora do abate e apresentada uma relação dos bens a abater.

 

Mantém a inexistência da comprovação dos factos que determinaram o abate, mormente que “não existe uma declaração / auto de uma qualquer entidade independente a atestar que aqueles alimentos, naquelas quantidades, não poderiam ser comercializados ou utilizados no processo produtivo”.

Acresce a falta de comprovação de procedimentos de controlo interno na elaboração das listagens em que se identificam os bens a inutilizar.

 

Quanto às comunicações de abate, volta a salientar a sua elaboração pelas mesmas pessoas (os dois sócios gerentes e o cônjuge de um deles), a realização dos abates ao Sábado e com a mesma frequência temporal, a par da falta de controlo por entidades externas.

 

Retoma o facto de a perecibilidade não ser susceptível de aplicação a todos os bens constantes das listagens de abate. Para além de as mesmas incluírem materiais de embalagem, como a película que envolve os alimentos e cujo consumo deve ser contabilizado como custo de produção (e não como existência a abater).

 

Volta a identificar que, da análise dos documentos que a Requerente juntou aos autos, inúmeras comunicações foram notificadas à AT após a realização dos respectivos abates. Sem que tenha sido observado o prazo de 5 dias que a Requerente diz observar.

 

Por fim, regista que as facturas emitidas pelos Serviços Municipalizados não abarcam a totalidade dos abates realizados, além de as datas nas mesmas indicadas não corresponder aos Sábados.

 

 

 

Em suma, os bens a inutilizar são amontoados em contentores. Não permitindo a sua identificação e quantificação, nos termos em que tal consta das listagens de bens abatidos. E não foi emitida qualquer guia de transporte ou auto de diligência por parte dos Serviços Municipalizados.

Pelo que a destruição dos bens não se pode dar por provada.

 

 

IV -   Do direito

O cerne da questão controvertida pode ser encerrado na seguinte pergunta: qual o enquadramento jurídico-tributário aplicável à inutilização e abate de bens pertencentes ao inventário do sujeito passivo?

 

O que implica a análise de um conjunto de questões prévias e concorrentes:

i)     Os bens inutilizados e abatidos configuram, para efeitos contabilísticos, elementos do inventário (activo corrente) ou do activo fixo (activo não corrente)?

ii)    O regime fiscal aplicável ao abate de bens do inventário rege-se por uma norma fiscal autónoma em face do regime contabilístico?

iii)   O artigo 38.º do Código do IRC consagra o regime fiscal da referida inutilização de bens do inventário?

iv)   Da não consideração de um abate de bens do inventário como configurando um gasto dedutível no plano do IRC, decorre o estabelecimento da presunção de transmissibilidade prevista no artigo 86.º do Código do IVA?

v)    Quais os requisitos a observar no registo de perdas de bens do inventário (matérias-primas e/ou produtos acabados), de modo a provar a sua existência?

vi)   O que pode constituir prova suficiente para ilidir a presunção do artigo 86.º do Código do IVA?

 

Na perspectiva da Requerente, a perda de mercadorias é indissociável do seu sector de actividade, bem como das suas condições de laboração e produção. De frequência regular, essas perdas são identificadas no seu processo de gestão, documentadas e testemunhadas, sendo os bens removidos por uma entidade terceira.

O incumprimento do prazo de comunicação prévia não permite concluir pela presunção de transmissibilidade das existências. Posto que estas foram efectivamente perdidas e abatidas.

 

Já para a Requerida o normativo fiscal é claro ao exigir a comunicação prévia de 15 dias, não podendo o sujeito passivo eximir-se ao cumprimento deste requisito. As perdas surgem com especial estabilidade quanto ao valor e frequência temporal, não preenchendo o conceito de excepcionalidade que a norma fiscal acolhe.

E a documentação e testemunho, sem aferição e controlo de entidades externas, aliam-se no sentido de não evidenciar a efectividade das perdas e subsequentes abates.

 

 

 

 

Enquadramento contabilístico e fiscal dos bens do inventário

Ao longo do processo abundam as referências, efectuadas indistintamente pela Requerente e pela Requerida, a “mercadorias”, “inventário” e “existências”.

 

Paralelamente, as Partes oferecem uma diferente interpretação e leitura do regime plasmado no artigo 38.º do Código do IRC (entretanto revogado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro), mormente quanto à observância do prazo mínimo e prévio de 15 dias e à excepcionalidade ou não das perdas.

 

Ora, a origem do artigo 38.º do Código do IRC remonta ao Decreto-Regulamentar n.º 2/90, de 12 de Janeiro, que consagrou o regime de reintegração e amortização de elementos do activo imobilizado.

Esta legislação consagrou os métodos e critérios de reconhecimento do custo fiscal decorrente da utilização de bens do activo imobilizado, afectos pelo sujeito passivo à geração de proveitos tributáveis.

 

A reintegração e amortização, respectivamente, dos bens tangíveis e intangíveis opera mediante o apuramento de uma quota anual. Cujo montante poderá variar em função do método escolhido pelo sujeito passivo (e. g. quotas constantes ou degressivas) ou consoante a maior ou menor intensidade de utilização do bem ao longo do período de vida útil elencado em diversas tabelas específicas por sector de actividade e uma tabela de âmbito geral.

 

A este quadro de relativa constância dos métodos e critérios de reconhecimento do custo de aquisição de bens do activo imobilizado, o legislador adicionou um regime excepcional.

Destinado ao reconhecimento de determinados factos ou ocorrências que, pela sua excepcionalidade, provocavam a diminuição ou eliminação do valor líquido contabilístico (e fiscal) de um dado elemento do activo imobilizado.

 

Falamos do artigo 10.º do referido diploma. Que, sob a epígrafe “desvalorizações excepcionais de elementos do activo imobilizado”, facultava ao sujeito passivo o reconhecimento de uma reintegração ou amortização excepcional, i. e. fora do âmbito da quota anual resultante da aplicação das demais normas.

 

Esta excepcionalidade dependia da verificação de “causas anormais devidamente comprovadas”, designadamente, “desastres, fenómenos naturais e inovações técnicas excepcionalmente rápidas”. Devendo o sujeito passivo obter a aceitação da AT, através da submissão de um pedido devidamente fundamentado.

 

A título exemplificativo, poderíamos apresentar o caso submetido à apreciação do Supremo Tribunal Administrativo (acórdão de 2 de Novembro de 2011), em que o sujeito passivo realizou benfeitorias num edifício arrendado, cujo valor é objecto de reintegração anual. Todavia, a não renovação do contrato de arrendamento conduz à perda dessas benfeitorias. Uma desvalorização excepcional, cuja dedutibilidade fiscal ficaria condicionada à aceitação da AT, mediante pedido a formular para o efeito (conforme acórdão de 2 de Novembro de 2011 do Supremo Tribunal Administrativo).

 

Esta norma foi objecto de substanciais alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 211/2005, de 7 de Dezembro, de entre as quais se destaca a flexibilização do requisito de aceitação pela AT.

 

Concretamente, a aceitação mantém-se quando as causas excepcionais ocorrem num exercício diferente daquele em que se realiza o “abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens”.

Mas nos casos em que o exercício fiscal é coincidente com o da referida causalidade, a aceitação da AT é substituída por um novo regime de comunicação prévia. Efectuada com uma antecedência mínima de 15 dias e identificando “o local, a data e a hora do abate, desmantelamento ou inutilização e o total do valor líquido fiscal dos bens”.

 

À comunicação segue-se, para que “seja comprovado o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens”, a elaboração de um “auto assinado por duas testemunhas”. O auto é acompanhado de uma “relação discriminativa dos elementos do imobilizado corpóreo em causa, contendo, relativamente a cada bem, a descrição, o ano e o valor de aquisição, bem como o valor contabilístico e o valor líquido fiscal”.

 

E como pano de fundo destes requisitos, devem ser “identificados e comprovados os factos que originaram as desvalorizações excepcionais”. Sendo que todos estes requisitos devem ser inserido no processo de documentação fiscal previsto no Código do IRC.

 

O Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, que adaptou o Código do IRC às normais internacionais de contabilidade e ao Sistema de Normalização Contabilística Nacional, transportou o referido regime para o Código do IRC, por via da adição do artigo 35.º-B (com vigência para os exercícios fiscais iniciados após 1 de Janeiro de 2010).

 

Esta adaptação legal culmina com o Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro, que, entrando também em vigor nos exercícios iniciados após 1 de Janeiro de 2010, revoga o Decreto-Regulamentar n.º 2/90.

Pelo que a desvalorização excepcional de elementos do activo fixo tangível e intangível (terminologia que substituiu o “activo imobilizado corpóreo e incorpóreo”) passa a constar do artigo 35.º-B do Código do IRC. Posteriormente republicado para o actual artigo 38.º.

 

Importa apenas salientar que, se dúvidas houvesse, o artigo 38.º do Código do IRC, vigente a partir dos exercícios de 2010, é aplicável à desvalorização excepcional dos activos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 35.º do Código do IRC.

 

 

O qual permite a consideração como gasto fiscalmente dedutível das “desvalorizações excepcionais verificadas em activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento”.

 

A entrada em vigor da denominada Reforma do IRC confirma este âmbito de aplicabilidade, na medida em que mantém as desvalorizações excepcionais (agora enquadradas como perdas por imparidade) circunscritas ao valor recuperável de bens do activo fixo.

 

Tanto assim, que o actual artigo 31.ºB do Código do IRC (por revogação do artigo 38.º) tem por epígrafe “perdas por imparidade em activos não correntes”.

 

Certo é que ao longo das alterações ao regime das desvalorizações excepcionais, o legislador manteve o regime consagrado em 2005: (i) a identificação e comprovação das causas anormais, (ii) a comunicação com 15 dias de antecedência e (iii) o auto de abate dos bens assinado por duas testemunhas e acompanhado de uma relação discriminada desses bens.

 

E é neste quadro que a Requerente, em 2011, submete à AT um pedido de redução do prazo de comunicação prévia, de 15 para 5 dias.

Fá-lo, indubitavelmente, ao abrigo do regime de desvalorização excepcional plasmado no Código do IRC. Todavia, descreve bens da “produção diária”, que sobram “por defeito de fabrico” e pela devolução “por não venda de produtos de consignação”.

 

Mas chegados aqui, e após uma relativamente alongada descrição do regime de desvalorização excepcional, cumpre perguntar se o tema se encontra correctamente enquadrado do ponto de vista fiscal. Isto é, saber se as perdas e abates realizados sobre bens do inventário se regem pelo disposto no artigo 38.º do Código do IRC.

 

A resposta é claramente negativa.

 

É que no caso sub iudice, estamos - sem margem para dúvidas - perante a inutilização de bens do activo corrente. Bens afectos ao inventário da Requerente.

Matéria-prima destinada à produção de bens. E produtos acabados que não foram comercializados.

 

Não estamos perante bens do activo fixo tangível da Requerente. Bens do activo não corrente. E relativamente aos quais, agora sim, o Código do IRC consagra um regime especial de reconhecimento de gastos decorrentes de eventos anormais ou excepcionais.

 

 

 

Ora, em 2011 a Requerente enquadra o seu procedimento de abate de bens do inventário no “regime de desvalorização excepcional consagrado no artigo 38.º do Código do IRC” e os posteriores actos praticados - tanto pela Requerente como pela Requerida - enfermaram do mesmo pensamento.

 

Assim, o relatório de inspecção tributária - que fundamenta os actos tributários controvertidos - salienta que os “requerimentos não foram efectuados com o período mínimo de antecedência de 15 dias”.

No pedido de pronúncia arbitral a Requerente reconhece que “não observou o prazo de quinze dias estabelecido no artigo 38.º n.º 3 alínea c)”.

Na resposta que apresenta, a AT transcreve o artigo 38.º.

 

Nas alegações escritas Requerente e Requerida mantêm o artigo 38.º do Código do IRC como enquadramento e sustento da fundamentação das suas posições.

 

Mas importa não deixar qualquer réstia de dúvida: o artigo 38.º do Código do IRC não é, de todo, aplicável ao abate de bens do inventário.

E é desses bens que tratamos no processo em apreço.

 

Conforme decorre da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 18, que classifica o inventário como bens “detidos para venda no decurso ordinário da actividade empresarial ou no processo de produção para tal venda”.

Constituem ainda inventário os “materiais ou consumíveis a serem aplicados nos processos de produção ou na prestação de serviços”.

 

Facto que tanto a Requerente como a Requerida não ignoram, porquanto as perdas económicas são registadas nas contas «#38 - Regularização de inventário» e «#684 - Perdas em inventários».

Acresce que os termos “mercadorias” e “existências” permeiam todos os documentos carreados pelas Partes para os autos. Como é o caso dos relatórios dos actos inspectivos de 2012 e 2014, do pedido de pronúncia arbitral e subsequente resposta da AT e as alegações finais.

 

Acresce que a NCRF 1 classifica tais bens como activo corrente, na medida em que os mesmos são detidos com a finalidade de negociação num ciclo económico de até 12 meses.

 

Este enquadramento contabilístico é plenamente aceite pelo Código do IRC. Que, no seu artigo 17.º, identificada a contabilidade do sujeito passivo como ponto de partida para o apuramento da base tributável do exercício, esclarecendo que a mesma deve ser organizada de acordo com as regras de normalização contabilística.

A inserção sistemática do regime de desvalorização excepcional do artigo 38.º e a sua referência à dedução das perdas em imparidades dos “activos fixos tangíveis e intangíveis” constantes do artigo 35.º, complementa este enquadramento.

 

 

 

Permitindo-nos concluir que:

-    O Código do IRC não contém (agora e à data da prática dos factos) um regime específico de reconhecimento de perdas em bens do inventário;

-    O regime previsto no artigo 38.º do Código do IRC é estritamente aplicável a bens do activo fixo, afastando da sua previsão os bens do inventário; e

-    O artigo 38.º não é convocável no que tange à identificação e comprovação dos factos que originaram as perdas económicas nos bens do inventário.

 

Naturalmente que o abate dos bens do inventário há-de, forçosa e necessariamente, assentar em critérios que permitam aferir da sua existência. Comprovando a sua concreta verificação. E ilidindo (ou não) a presunção de transmissibilidade.

 

Mas esses critérios não carecem de uma observação, estrita e monopolística, do regime contido no artigo 38.º do Código do IRC.

Dito de outra forma, há que identificar o motivo das perdas de existências e comprovar o seu quantitativo e subsequente abate. Mas tal não passa, necessariamente, pela observância de um prazo de mínimo e prévio de 15 dias. Ou pela assinatura de um auto por duas testemunhas.

 

Note-se que ambas as Partes citam o ofício n.º 35 264 da Direcção de Serviços do IVA. Ora esta interpretação administrativa, independentemente de cingir a sua vinculação à AT, identifica, correctamente, a ausência de um enquadramento normativo autónomo e específico às perdas de bens do inventário.

Indicando um procedimento que poderá ser adoptado no sentido de comprovar as perdas e abates, tendo por base a comunicação prévia e a identificação dos bens num auto assinado por duas pessoas.

 

 

Da fundamentação dos actos tributários controvertidos com base no regime enunciado no artigo 38.º do Código do IRC

Não percamos de vista o caso controvertido: a presunção de transmissibilidade estatuída no artigo 86.º do Código do IVA.

 

Já vimos que este artigo 38.º - para o que no caso controvertido nos interessa - não rege os termos e condições a observar no abate de bens do inventário.

 

O relatório de inspecção tributária - que fundamenta o acto tributário cuja anulação é solicitada pela Requerente - começa por identificar o motivo da realização desse acto inspectivo: por “se ter constatado a impossibilidade de aferição concreta do número e natureza dos bens objecto de destruição / inutilização e por não ter sido possível assistir ao abate dos mesmos”.

 

Todavia, é notório que o acto inspectivo não curou de analisar a efectividade das perdas e respectivo abate. Tendo-se bastado pela constatação que “os requerimentos não foram efectuados com o período mínimo de 15 dias”.

 

Requerimentos que mais não eram que as “comunicações de abate ao Serviço de Finanças”.

 

Pelo que “ficou impossibilitada a comprovação dos correspondentes abates, bem assim como a efectiva destruição / inutilização dos bens constantes das relações discriminativas dos bens em causa”.

 

Partindo do incumprimento do artigo 38.º, o relatório de inspecção conclui que “dado que nos termos do artigo 38.º do Código do IRC as mencionadas desvalorizações de mercadorias não podem ser consideradas gasto do período, deverá ser liquidado o correspondente IVA, nos termos do artigo 86.º do Código do IVA”.

 

Em suma, apesar de reconhecer os bens como mercadorias, o relatório de inspecção funda tanto a falta de comprovação dos abates como a efectiva inutilização dos bens, no regime do artigo 38.º do Código do IRC. O qual, sem mais, faz nascer a presunção de transmissibilidade.

Tudo por incumprimento do prazo prévio e mínimo de 15 dias.

 

Mas, como vimos, o abate de bens do inventário não se rege pelo artigo 38.º do Código do IRC. Não existindo, consequentemente, qualquer normativo tributário que exija a comunicação prévia dos abates. Ou sequer que esse acto prévio observe um determinado número mínimo de dias.

 

Concluímos, assim, que o fundamento do relatório de inspecção, que suporta o acto tributário controvertido, não possui aderência normativa. Porquanto se baseia num regime aplicável ao abate de bens do activo fixo, quando estamos, outrossim, perante elementos do inventário.

 

É certo que, no exercício da sua Resposta, a AT adiciona outros elementos. A estabilidade dos valores que resultam dos abates quinzenais, a constância de as comunicações serem preparadas pelo cônjuge de um sócio-gerente, o facto de estes actuarem invariavelmente como testemunhas ou ainda a circunstância de o procedimento de abate não ser validado por uma entidade externa.

 

Será admissível esta fundamentação complementar e a posteriori do acto tributário?

 

Mais uma vez, a resposta é negativa, porquanto os elementos que fundamentam o acto tributário praticado pela AT integram a notificação efectuada ao sujeito passivo. Suportando (e circunscrevendo) o acto lesivo contra o qual este poderá reagir.

 

No sentido desta não admissibilidade da fundamentação após a prática do acto administrativo, atente-se no acórdão do TCAN de 6 de Janeiro de 2005 (processo n.º 00439/04) ou no acórdão do TCAS de 19 de Março de 2015 (processo n.º 06720/13).

 

Ainda assim, a questão não fica integralmente encerrada, porquanto o caso em apreço - apesar de fundamentado no incumprimento do artigo 38.º do Código do IRC - versa sobre a presunção de transmissibilidade dos bens.

O que nos conduz à próxima consideração.

 

 

Da doutrina da AT

O n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT vincula a AT às “orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e aplicação das normas tributárias”.

 

Esta norma surge no contexto dos deveres de actuação uniforme e paritária da AT perante o universo dos sujeitos passivos. Vinculando-a a uma actuação com parâmetros de estabilidade, assente na publicitação das suas interpretações. De modo a proporcionar pautas de actuação aos demais sujeitos passivos cujas operações decorrem num quadro de identidade factual.

 

O que é reforçado pela publicitação dos pedidos de informação vinculativa (n.º 17 do artigo 68.º da LGT), indo ao encontro de uma segunda necessidade: a salvaguarda da certeza e segurança jurídicas. Relevante tanto para a AT como para os sujeitos passivos.

 

No processo A509 2009009, de 29 de Junho de 2009, a AT pronunciou-se sobre o tema das “quebras anormais de existências”, no contexto de um pedido de informação vinculativa. E que aborda - directamente - a questão controvertida, mormente o afastamento da presunção de transmissibilidade dos bens do inventário.

 

O quadro factual a que se reporta o referido pedido, pode resumir-se da seguinte forma:

-    O sujeito passivo exerce uma actividade de retalho (comércio de produtos de consumo corrente, não produzindo qualquer dos produtos comercializados);

-    Regista diversas diferenças de inventário, em resultado de (i) devolução de mercadorias, (ii) mercadorias danificadas, (iii) retirada de mercadorias por questões de qualidade, (iv) bens com data de fim de venda definida ou que sejam invendáveis, (v) danos ocorridos na loja ou no transporte e manuseamento e (vi) furtos praticados por funcionários e/ou clientes;

-    Existem mecanismos de controlo e aferição destas quebras;

-    Há desvios não identificados, que se devem a furtos de clientes (42%), furtos de empregados (35,2%), falhas internas e administrativas (16,5%) e furtos ou fraudes cometidos por fornecedores (6,3%);

-    Trata-se de uma realidade intrínseca ao sector da distribuição, cuja resolução não está ao alcance das empresas, que apenas a podem minimizar; e

 

 

 

-    As quebras estão dentro dos limites de razoabilidade observados para este sector de actividade e são indispensáveis (inevitáveis) para a geração de proveitos tributáveis.

 

Na sua interpretação a AT, naturalmente, não menciona o artigo 38.º do Código do IRC (ou a norma equivalente à data do pedido de informação), antes identificando que “o cerne da questão consiste em saber, relativamente às quebras de existências, designadas por quebras normais e/ou anormais na acepção do POC, quais as condições que constituem prova suficiente para ilidir a presunção estabelecida no citado artigo 86.º”.

Saber se as quebras de existências “consubstanciam operações sujeitas a imposto ou não, atendendo à situação factual das circunstâncias inerentes”.

 

E também aqui a AT parte de um pedido de informação anteriormente apresentado em sede de IRC (despacho do Director-Geral dos Impostos relativo a um pedido apresentado em 2008, com interpretação espelhada na Informação 986/2008).

 

Nos termos do qual, “para as quebras não identificadas deve ser elaborado um documento de inventário com as diferenças de stock, devendo ser assinado pelos analistas de inventário e pelo gerente da loja”. Este documento serve de “suporte aos lançamentos contabilísticos de quebras de existências”.

Pelo que “deverá dispensar a elaboração de autos de destruição e de abate”. Não sendo de exigir “participações à polícia por furto contra desconhecidos”. Ou sequer a contratação de apólices de seguro, por tratar-se de furtos “que resultam do exercício normal da actividade, não revestindo uma natureza extraordinária e imprevisível”.

 

Tendo a AT concluído que as quebras comportam gastos dedutíveis em sede de IRC, atenta (i) a existência de sistemas de controlo, (ii) a elaboração de listagens para as quebras identificadas e não identificadas, (iii) a preparação de documentos internos que suportam os registos contabilísticos e (iv) o facto de as quebras não se afastarem dos limites razoáveis para o sector da distribuição.

 

E “sendo consideradas um custo elegível para efeitos de IRC, por conseguinte afigura-se que os mesmos poderão ser tomados em consideração em sede do IVA”.

Embora se trate de impostos vincadamente diferentes, tal “não impossibilita o recurso a procedimentos comuns, nomeadamente de controlo interno e para prevenir a evasão fiscal, conducentes à tomada de decisões convergentes nas duas cédulas tributárias”.

Assim se concluindo pelo afastamento da presunção estatuída no artigo 86.º do Código do IVA.

 

 

 

Recordemos então que a AT remove a referida presunção de transmissibilidade dos bens, mesmo nos casos em que a quebra não é identificada. Ou seja, nos casos em que não há qualquer inutilização e abate dos bens. Mas tão-somente a constatação do seu desaparecimento.

Contanto que exista um sistema de controlo interno. E sejam preparados documentos internos de identificação das quebras, assinados pelos órgãos de gestão. Não sendo de exigir qualquer monitorização ou validação a cargo de entidades externas.

 

Tudo isto num quadro de quebras inerentes à actividade e que se encontram dentro dos limites observáveis no sector de actividade económica em que actua o sujeito passivo.

 

Da adequação e suficiência do probatório apresentado pela Requerente

Passemos à questão final: saber se o processo adoptado pela Requerente e a documentação produzida, é susceptível de ilidir a presunção fixada no artigo 86.º.

 

Antecipamos que a resposta é positiva.

 

Primeiro, na medida em que a Requerente demonstrou, de forma objectiva e concreta, que as quebras constituem uma consequência normal, inevitável e inerente à sua actividade produtiva.

Designadamente, pela necessidade de manter um nível estável de produção, que lhe permita gerir as necessidades dos seus clientes, como é o caso das grandes superfícies comerciais de retalho.

Determinando um nível de produção de produtos acabados, sem garantia do respectivo escoamento.

 

Segundo, dado que o processo produtivo envolve, pela natureza dos bens produzidos e pela matéria-prima utilizada no processo de confecção, o registo de perdas. Tendo a testemunha ... referenciado diversos exemplos de perdas tanto de matéria-prima (como farinha e canela) como de produtos acabados e materiais de embalagem.

 

Terceiro, porquanto o modelo de negócio assenta em regime de consignação, assumindo a Requerente o retorno dos produtos que os seus clientes (canal de retalho) não foram capazes de comercializar junto dos consumidores finais.

 

Quarto, na medida em que a Requerente documenta e regista as perdas no processo produtivo e nas devoluções de clientes. Mediante documentos assinados pelos chefes de turno e pelos motoristas, os quais são aprovados pelo órgão de gestão. Originando o lançamento contabilístico das perdas e o envio dos bens para abate.

 

 

 

Na verdade, em qualquer sector de actividade económica, o registo de uma quebra de existências - com origem conhecida ou não - é demonstrativo da existência de mecanismos de controlo, aferição e contagem dos bens perecidos. Sob pena de o nível de existências ser anormalmente elevado, traduzindo uma situação não suportada pela realidade (stock inexistente) por manifesta ausência de controlo por parte dos sujeitos passivos.

 

Naturalmente que o simples registo de perdas pode indiciar situações de evasão ou fraude. Nada impedindo que alguns sujeitos passivos lancem mão de registos falsos e/ou fantasiosos, de modo a abater bens e lograr a dedução dos respectivos custos. Apagando o rasto de anteriores vendas (não declaradas e registadas) desses mesmos bens.

 

Todavia, nada indicia a ocorrência destes factos no processo em apreço.

 

Até, porque, em quinto lugar, o relatório de inspecção não alega ou identifica factos susceptíveis de indiciar a prática de factos evasivos ou fraudulentos. Limitando-se a constatar que as comunicações prévias não eram comunicadas com uma antecedência mínima de 15 dias.

 

Como sexto fundamento, importa destacar os dois motivos alegados no acto inspectivo praticado em Outubro de 2012: (i) a impossibilidade de contagem física pelo facto de os bens serem indistintamente colocados em contentores de 1.000 litros e (ii) o facto de o camião dos Serviços Municipalizados não ter aparecido no horário identificado na comunicação ao Serviço de Finanças.

 

Trata-se da “aferição concreta dos bens objecto de destruição e não ter sido possível assistir ao abate dos mesmos”.

Mas tal indicia, na verdade, um défice instrutório. Que a AT procurou colmatar no decurso do actual processo, mormente pela referência à estabilidade dos valores ao longo do ano, à identidade das testemunhas, à ausência de controlo externo e pela constatação que parte dos abates não foi previamente comunicada.

 

Importa recordar que os bens constituem produtos alimentares, acabados ou matéria-prima. Produtos recolhidos da produção ou devolvidos pelos clientes.

Não sendo razoável impor ao sujeito passivo a adopção de um processo de etiquetagem ou isolamento de cada bem acabado, de cada matéria-prima ou até a separação das embalagens e alimentos. Tudo com o propósito de efectuar algum tipo de contagem ou pesagem. Enquanto condição única de “aferição concreta dos bens”.

 

Não é razoável que a verificação das quebras assente na identificação de bens frescos e perecíveis, por não ser expectável que estes se possam manter em perfeito estado de verificação e identificação. A natureza dos bens e a sua origem (produção e recolha dos clientes) tem de ser tido em conta no processo de verificação do abate, sob pena de ao sujeito ser imposto um excessivo ónus probatório.

 

Na verdade, os produtos vão sendo colocados em contentores ao longo de duas semanas. Sendo sujeitos a processos de decomposição. Tendo as testemunhas referido tratar-se de “lixo”, com a particularidade de não poder ser misturado com os demais bens a que usualmente atribuímos tal definição.

 

E quanto à falta de comparência dos camiões dos Serviços Municipalizados, o acto inspectivo de 2012 não foi além do constatar o atraso face à hora constante da comunicação enviada pela Requerente.

Não tendo investigado se o camião efectuou ou não a recolha dos bens. Naquele dia ou em outro qualquer.

 

Tendo a Requerente apresentado facturas emitidas pelos Serviços Municipalizados. Um simples juízo de experiência permite concluir que os bens colocados em contentores têm, forçosamente, de ser objecto de remoção. E que a remoção destes e outros resíduos industriais é, nos termos legais, uma incumbência acometida aos Serviços Municipalizados.

 

Recorde-se, ainda, que a Requerente comunicou a adopção deste procedimento em 2009. Tendo a AT realizado, a este procedimento, um único acto inspectivo em 2012. Isto, na medida em que o acto inspectivo realizado em 2014 se bastou pela constatação do incumprimento do prazo de 15 dias.

 

Uma investigação insuficiente no tempo e na profundidade de análise. Que contrasta com a recorrência quinzenal do abate dos bens e descrição da origem das quebras de inventário, em virtude da laboração contínua do processo produtivo da Requerente.

 

Em sétimo lugar, a presunção de transmissibilidade dos bens não se coaduna com a natureza dos bens abatidos. Produtos alimentares que resultam de resíduos do processo produtivo e recolha junto do canal de retalho.

Cuja especial perecibilidade e reduzidos períodos de validade para consumo alimentar não permitem a posterior revenda.

 

Acresce que todo este processo de identificação e posterior abate dos bens se encaixa, sem margem para dúvidas, no entendimento administrativo da AT.

Na verdade, em 2009 a AT comunicou a sua interpretação quanto ao processo de abate de bens decorrente de furtos. Uma ocorrência em que o bem não é sequer susceptível de apresentação para abate.

Ao contrário do que sucede no caso vertente, em que os bens são identificados e isolados para posterior abate.

 

E não exigindo a AT a monitorização externa das quebras resultantes de furtos, idêntica posição há-de aplicar-se à quebra de matéria-prima e produtos acabados no caso em apreço.

 

 

 

Na verdade, a exigência de comprovação - por uma entidade externa - da destruição dos bens e verificação das respectivas quantidades, representa um ónus probatório especialmente excessivo. Principalmente quando a lei não o impõe, nem a AT o exige no caso dos bens objecto de furto. Onde o ónus da prova deveria inclusive ser mais exigente, atenta a manifesta inexistência (física) dos bens abatidos.

 

Em oitavo lugar, embora surjam várias referências à percentagem representada pelas quebras no valor das existências iniciais e compras (entre 17% e 24,79%), não é menos verdade que o relatório de inspecção da AT, após análise da margem bruta de 2011 (64.8%), conclui que esta é “ligeiramente superior à margem constante dos rácios nacionais para o sector de actividade do sujeito passivo”.

 

Indo ao encontro da interpretação da AT de 2009, na qual se reflectia a preocupação em verificar se as quebras por furtos se encontravam dentro dos limites e percentagens do respectivo sector económico.

 

Por fim, os avisos de recepção das comunicações efectuadas pela Requerente permitem concluir que, aproximadamente, um terço das mesmas foi enviada à AT após o abate.

Todavia, tal facto não permite concluir pela inexistência de bens inutilizados e posteriormente abatidos.

 

De facto, não está em causa cada um dos abates individualmente realizados. Antes se tratando da credibilidade de todo o procedimento adoptado pela Requerente. No sentido de identificar e documentar os bens abatidos, obter a aprovação do órgão de gestão e contratualizar a recolha junto dos Serviços Municipalizados.

 

Tudo numa envolvente de produção industrial contínua, quebras inerentes a essa actividade e regime de consignação na venda de produtos acabados.

E num quadro de cumprimento da doutrina administrativa formulada pela AT em 2009, no que tange ao afastamento da presunção de transmissibilidade dos bens em situações de furto. Em que, recordemos, nem sequer há qualquer registo ou evidência física dos bens, sendo todas as quebras integralmente documentadas com base em documentos internos.

 

Acresce que em 2009 a Requerente antecipou este procedimento à AT. Que lhe dedicou um único acto inspectivo em 2012.

 

 

V -    Decisão

Aplicando-se as considerações supra ao caso sub juditio, logo se evidencia a ilegalidade das liquidações de IVA com fundamento na presunção de transmissibilidade dos bens abatidos pela Requerente.

 

 

 

O procedimento de registo, documentação, aprovação e comunicação dos abates é adequado à correspondente evidenciação. Insere-se na doutrina administrativa aplicável a furtos. Os custos económicos dos bens abatidos respeitam os valores observados no sector económico em que a Requerente exerce a sua actividade.

E, regra geral o sujeito passivo efectua a comunicação em momento prévio ao abate, através de um procedimento levado ao conhecimento da AT em 2009.

 

Termos em que, o Tribunal Arbitral decide:

a)    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral; e

b)    Anular os actos tributários de liquidação de IVA e respectivos juros compensatórios.

 

Fixa-se o valor do processo em 38.437,17 €.

Custas pela Requerida no valor de 1.836 €.

 

Notifique-se as partes.

 

Lisboa, 8 de Maio de 2015

O Tribunal Arbitral Singular

 

 

 

 

 

 

José Luís Ferreira