Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 333/2014-T
Data da decisão: 2014-11-14  IUC  
Valor do pedido: € 420,22
Tema: Incidência subjetiva; Presunções legais
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Decisão Arbitral

 

 

 

I.                   RELATÓRIO

 

A, Requerente com o NIF …, com domicílio na …, veio, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT ou Requerida, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação do Imposto Único de Circulação (IUC) do ano 2011 respeitante ao veículo automóvel com a matrícula ....

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 15 de Abril de 2014 e notificado à AT em 16 de Maio de 2014.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 23 de Junho de 2014.

A AT respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

No dia 31 de Outubro de 2014, realizou-se, com as Partes, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junta aos autos, tendo sido decidido que, em face do teor da matéria contida nos autos, prescinde-se da produção de prova testemunhal e da realização de alegações finais, com o que as partes manifestaram o seu acordo.

 

 

 

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

 

Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa.

 

 

II.                MATÉRIA DE FACTO

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

 

A)     O Requerente foi notificado pela AT (sob o documento n.º 2011 …, de que se junta cópia – Documento 1), no âmbito da liquidação de imposto (datado de 18 de Dezembro de 2013), para proceder ao pagamento do Imposto Único de Circulação (doravante IUC) do ano de 2011, com referência à viatura com a matrícula..., bem como dos juros compensatórios correspondentes ao atraso na entrega da prestação tributária, no montante total de €420,22;

 

B)     A AT considerou que o agora Requerente foi, relativamente no ano em causa, o sujeito passivo e devedor do imposto;

 

C)     O veículo referenciado em A) foi transaccionado pelo Requerente, em meados de Outubro de 2010, para a sociedade B (NIPC – …);

 

D)     A sociedade B vendeu subsequentemente a mesma viatura, em 30 de Dezembro de 2010, à sociedade C (NIPC – …);

 

E)      A AT deu prévio conhecimento ao Requerente da intenção de proceder à liquidação oficiosa do mesmo IUC, para o que foi fornecido pelo Requerente, em resposta, esclarecimento da situação, por correio electrónico, no dia 9 de Abril de 2013 (Documento 2);

 

F)      O Requerente alegou, através da documentação que juntou à referida resposta, que não deveria ser considerado sujeito passivo do imposto em causa;

 

G)     A AT nada respondendo, promoveu a liquidação oficiosa do IUC;

 

H)     O Requerente apresentou, no dia 30 de Janeiro de 2014, Reclamação Graciosa, manifestando a sua discordância com a liquidação imposta;

 

I)        Em resposta, a AT notificou o Requerente do indeferimento da Reclamação Graciosa (v. cópia da notificação datada de 25 de Março de 2014 e recebida pelo Requerente no dia 28 de Março de 2014 – (Documento 3);

 

J)        Na decisão de indeferimento, a AT concluiu que o Requerente foi proprietário do veículo em causa (…) até 13.04.2011.

 

 

Não existem factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

Este tribunal firmou a sua convicção na consideração dos documentos juntos aos autos, que não foram alvo de contestação pela AT.

 

 

III.             MATÉRIA DE DIREITO

 

A principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se o Requerente deve ser qualificado como sujeito passivo do IUC, em relação ao ano 2011, quanto ao veículo ....

 

A este propósito, o Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral o seguinte:

 

1.      A liquidação oficiosa de IUC referente ao ano de 2011 é manifestamente ilegal, na medida em que a propriedade do veículo com a matrícula ... foi transmitida pelo Requerente anteriormente à data de constituição do facto tributário relevante e de vencimento do respectivo IUC;

 

2.      A propriedade jurídica da viatura não estava na esfera do Requerente, desde o momento em que ocorreu a sua transmissão pelo Requerente, em meados de Outubro de 2010, para a sociedade B (NIF – …);

 

3.      O veículo foi subsequentemente transmitido, como se comprova através da factura de venda emitida pela sociedade B;

 

4.      Da referida factura de venda (Documento 4) resulta que o Requerente não pode ser considerado o proprietário do veículo no período de tributação correspondente ao ano em questão (2011);

 

5.      A apólice de seguro automóvel pertencente ao Requerente e associada à viatura em causa foi cancelada no âmbito da transacção mencionada supra, conforme se demonstra através do pedido do Requerente, de 23 de Novembro de 2010 e confirmação da Seguradora de 3 de Dezembro de 2010;

 

6.      Merece reparo a Administração Fiscal, cuja actuação neste caso suscita, pelo menos, violação de deveres que regem a sua actuação enquanto pessoa de Direito Público e de princípios que governam o procedimento tributário, como sejam o princípio da cooperação e colaboração (artigoº 48.º do Código do Processo e do Procedimento Tributário e artigoº 59.º da LGT), o princípio do inquisitório (artigoº 59.º da LGT), senão vejamos;

 

7.      Num primeiro momento, a Administração Fiscal manifestou a sua intenção de imputar a liquidação do imposto ao ora Requerente. Dentro da normalidade, o visado teve oportunidade de esclarecer a situação. Não obstante, a Autoridade Tributária avançou com a liquidação. Uma vez mais, o visado explicou e alertou a Administração de que não era proprietário do veículo no período relevante. Tal deveria ter sido suficiente para, em prossecução da verdade material (princípio do inquisitório), fazer a Administração apurar os factos;

 

8.      Este trabalho teria ficado facilitado, uma vez que o ora Requerente juntou documentação comprovativa de que não era proprietário da viatura. Estando estes documentos devidamente identificados no poder da Administração, passa a caber-lhe, conforme o disposto no artigoº 74.º, n.º 2 da LGT, a prova de que o Requerente era proprietário, para o que teve de impugnar os documentos – meios de prova entregues pelo Requerente;

 

9.      Ao contrário, a Autoridade Tributário limitou-se a reiterar que o Requerente foi proprietário do veículo até 2011.04.13 (Documento 3), invocando para tal os “elementos juntos aos outros nomeadamente o Histórico de Matrícula” (que o Requerente desconhece), ignorando, por completo os vários elementos trazidos para os “autos” pelo Requerente;

 

10.  O Requerente compreende a pertinência do uso de expedientes massificados para um imposto, em si, “massificado”, nomeadamente com recurso a informação de carácter registral. Todavia, após o primeiro impulso, e face ao sinal contraditório do Requerente, exigir-se-ia uma confirmação da validade da informação registral face ao caso concreto, quando, inclusivamente, é apresentada prova documental que contraria a informação registral;

 

11.  De acordo com o Artigo 6.º, n.º 3 do Código do IUC, o imposto considera-se exigível ao proprietário no primeiro dia do período de tributação do veículo, o qual, de acordo com o Artigo 4.º, n.º2 do mesmo Código, tem lugar na data em que a matrícula é atribuída (no caso, a data da primeira matrícula do veículo é de 21 de Novembro de 1988);

 

12.  Desse modo, nos termos desse preceito, resulta que na data de vencimento do imposto, o Requerente já não era proprietário do veículo, pelo que o sujeito passivo deverá ser o novo proprietário, ou outro detentor equiparável nos termos do Artigo 3.º, n.º2 do Código o IUC, que só este último estará em condições de identificar;

 

13.  O Requerente desconhece se a propriedade deste veículo foi inscrita no registo automóvel a favor do transmissário (ou se transmissão subsequente foi também ela objecto de registo), facto que à luz do regime jurídico actualmente em vigor, lhe é alheio, na medida em que só o adquirente do veículo, munido do respectivo certificado de matrícula, tem legitimidade para requerer tal inscrição;

 

14.  No entanto, mesmo que não tivesse sido dada publicidade à transmissão da propriedade sobre o veículo através do registo automóvel, tal não obstaria a que o IUC incidisse sobre o real proprietário do veículo, uma vez demonstrada a respectiva transmissão.

 

15.  Com efeito, embora o Artigo3.º, n.º 1 do Código do IUC preveja que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas (…) em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”, a expressão “considerando-se” deve ser entendida como uma presunção legal ilidível, mediante prova em contrário por parte do transmitente do veículo, prova esta que o Requerente vem fornecendo à Autoridade Tributária desde o início da fase procedimental graciosa.

 

16.  A possibilidade de elisão das presunções encontra-se expressamente consagrada no Artigo 73.º da Lei Geral Tributária, nos termos do qual as “presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”;

 

17.  Neste âmbito, quaisquer argumentos de natureza hermenêutica com vista a apor um sentido diferente à expressão “considerando-se” conduziriam necessariamente a uma interpretação do Artigo 3.º, n.º 1. Do Código do IUC incompatível com o princípio da capacidade contributiva vertido na Constituição da República Portuguesa;

 

18.  Com efeito, tendo em conta que o IUC obedece ao “princípio da equivalência”, procurando onerar os Requerentes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam” (Artigo1.º do Código do IUC), uma interpretação segundo a qual a expressão “considerando-se” constitui uma presunção inilidível de propriedade com base no registo, chocaria frontalmente com aquele princípio, por possibilitar que o novo proprietário, e consequente causador do “custo ambiental e viário” inerente, ficasse dispensado do pagamento do IUC, continuando a ser onerado o proprietário que o vendeu, e relativamente ao qual o mencionado “pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto” deixou de se verificar;

 

19.  Esta interpretação do Artigo 3.º, n.º 2 do IUC, foi confirmada em decisões proferidas pelo Centro de Arbitragem Administrativa, no âmbito do Processos n.º 26/2013-T e n.º 27/2013-T, de 19-07-2013 e de 10-09-2013, respectivamente. Indirectamente, mas também em abono da posição presentemente defendida, atende-se à decisão do mesmo Centro de Arbitragem Administrativa ao processo n.º 14/2013-T, de 15-10-2013;

 

20.  Neste sentido, conforme se comprova pelo Documento 4 junto ao presente (e que deve ser presumido como verdadeiro pelas Finanças, nos termos do Artigo 75.º da LGT), o veículo em causa já não era propriedade do Requerente em momento anterior à verificação do facto gerador e consequente exigibilidade do imposto;

 

21.  Conclui-se, portanto, à luz do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, que o imposto referente ao período em apreço incide subjectivamente sobre o efectivo proprietário do veículo, não sobre o Requerente, como pretende a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:

 

22.  O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

23.  Note-se que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

24.  Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

 

25.  No que concerne ao elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado, qualquer apoio na lei.

 

26.  Ã não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do Sujeito Passivo do IUC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste Imposto.

 

27.  Importa ainda demonstrar que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pelo Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel (a este propósito, note-se, desde logo, que os casos taxativamente tipificados no artigo 3.º do CIUC, tanto no seu n.º 1, como no n.º 2, correspondem exactamente aos casos de registo automóvel obrigatório, nos termos do Código do Registo automóvel (CRA)).

 

28.  Ora, a interpretação proposta pelo Requerente, uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insusceptível de um controlo mínimo por parte da AT, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.

 

29.  Paralelamente, a interpretação dada pelo Requerente é ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à AT, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, de que quer a Requerente quer a AT fazem parte.

 

30.  Não obstante, pese embora o alegado no artigo 24.º do pedido arbitral, o Requerente ao ser notificado do documento 2 que juntou aos autos arbitrais, teve conhecimento da “intenção” da AT em proceder à liquidação oficiosa do IUC ora impugnado.

 

31.  Tanto assim foi, que tentou demonstrar junto da AT que já não era o proprietário do veículo em apreço, tentando ilidir junto da AT o que considera ser uma presunção.

 

32.  Porém, ao invés de tentar ilidir a presunção junto da AT, poderia (e deveria) confirmar junto das entidades registrais competentes se o veículo em questão ainda se encontrava registado em seu nome.

 

33.  Por palavras mais simples, se o Requerente pretende reagir contra a presunção de propriedade que lhe é atribuída, então forçosamente terá de reagir pelos meios próprios previstos no Regulamento do Registo Automóvel e nas leis registais subsidiariamente aplicáveis e contra o próprio teor do registo automóvel, pois que seguramente não é pela impugnação das liquidações de IUC que se ilide a informação registal.

 

Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se o Requerente deve ser qualificado como sujeito passivo do IUC, em relação ao ano 2011, quanto ao veículo..., será necessário verificar:

 

a)      Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC estabelece ou não uma presunção;

 

b)      Quem é o sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, quando na data da ocorrência do facto gerador do imposto o direito de propriedade continue registado em nome do anterior proprietário, apesar do veículo já ter sido alienado.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

a)      Interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC

 

Estabelece o artigo 3.º do Código do IUC o seguinte:

 

“1-São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

 

Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

 

 

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

Estabelece-se, assim, que são três os elementos de interpretação da Lei, a saber: o elemento literal, o elemento histórico e racional e o elemento sistemático.

 

Atendendo ao elemento literal da norma aqui em discussão, importará, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei. Diz-se no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

 

De acordo com a AT, a expressão “considerando-se” não constitui uma presunção legal, sendo intenção do legislador estabelecer expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

 

Sucede que, do ponto de vista literal, constata-se que a expressão “considerando-se” ou “considera-se” é muitas vezes utilizada com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”.

 

Assim, a título exemplificativo, veja-se o artigo 191.º, n.º 6, do CPPT, entre outros artigos assinalados nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T ou 170/2013-T.

 

Deste modo, pode dizer-se que a expressão “considerando-se” tem “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, devendo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo (Vide decisão arbitral proferida, no âmbito do processo n.º 286/2013-T.

 

Não obstante, e tal como é salientado pela AT, o vocábulo “considerando” também é utilizado fora de contextos presuntivos – Vide artigo 12.º da sua resposta.

 

Por isso, importa submeter ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.

 

Assim, atendendo ao elemento histórico de interpretação, importa considerar que a proposta de lei n.º 118/X, de 7.03.2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007, de 29.06 consagra “como elemento estruturante e unificador (…) o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os Requerentes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária.”

 

Neste contexto, parece-nos claro que o legislador pretendeu tributar o sujeito passivo real e efectivo causador de danos viários e ambientais e não um qualquer detentor de registo automóvel.

 

Tal como já foi por diversas vezes salientado em várias decisões arbitrais, o princípio da equivalência visa internalizar as externalidades ambientais negativas, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, e foi erigido em princípio fundamental da tributação dos veículos automóveis em circulação.

 

Como defende Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “(…) dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto (…)”.

 

Tendo em conta os fundamentos subjacentes à criação do actual Código do IUC, em especial, a erupção do princípio da equivalência em princípio estruturante e unificador da tributação dos veículos em circulação, parece-nos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não pode ser interpretado como um comando fechado, mas antes como uma presunção ilidível, que tem por base a assunção de que na realidade o agente responsável pelos danos ambientais é, em regra, o proprietário registado do automóvel. Assunção essa que não poderá deixar de ser desconsiderada, caso na realidade seja outro o agente responsável, isto é, o sujeito passivo de IUC.

 

 

Do ponto de vista sistemático, importará reforçar novamente que logo no artigo 1.º do Código do IUC se estabelece que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os Requerentes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”

 

Como defende A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes, in Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Códigos Anotados, pp. pag. 183, “o legislador procura legitimar a tributação dos veículos automóveis com base nas externalidades negativas por eles causadas (na saúde pública, no ambiente, na segurança rodoviária, no congestionamento das vias de comunicação e na paisagem urbana) desmistificando a ideia de que a tributação auto é muito elevada em Portugal.”

 

 

Segundo Batista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, o elemento sistemático “compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda ao lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”

 

Esta é, aliás, a solução mais justa se considerarmos que a unidade do sistema fiscal não pode deixar de ser encontrada no princípio da verdade material e no princípio da proporcionalidade (Vide Saldanha Sanches, in Princípios do Contencioso Tributário, pp. pág. 21, e Alberto Xavier, in Conceito e Natureza do Acto Tributário, pp. 147 e seg.).

 

Pelo exposto não procedem os argumentos da AT, no sentido de que a interpretação proposta pelo Requerente é “uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insusceptível de um controlo mínimo por parte da AT, (…) ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.”

 

Na verdade, a interpretação aqui defendida é não só aquela que melhor de coaduna com o princípio da verdade material, como também a única que serve os propósitos de justiça fiscal.

 

De igual modo, contrariamente ao defendido pela AT, não nos parece defensável, à luz dos princípios constitucionais vigentes, a predominância do princípio da eficiência do sistema tributário sobre o princípio da justiça material. Embora não se possam deixar de compreender as dificuldades práticas que a elisão da presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC possa provocar em termos de cobrança imediata de receitas pela AT, a interpretação da Lei não poderá ser ajustada a essas necessidades, antes devendo ser alterados de forma eficiente e em conformidade com a Lei, os procedimentos associados à cobrança deste imposto.

 

Considerando-se que o direito tributário existe para regular os conflitos de interesses entre as pretensões do Estado de prosseguir o interesse público de obter receitas e as pretensões dos Requerentes de manterem a integridade do seu património, não deverá, em regra, servir como critério interpretativo da norma tributária, a salvaguarda do interesse patrimonial ou financeiro do Estado.

 

Em suma: com base no artigo 9.º do CC, considera-se que todos os elementos de interpretação (literal, histórico e sistemático) apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível. Tal significa que os sujeitos passivos de IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, afinal, ser outros, se forem efectivamente outros os provocadores dos danos ambientais, enquanto utilizadores dos veículos em circulação.

 

 

b)      Sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, quando na data da ocorrência do facto gerador do imposto o direito de propriedade continue registado em nome do anterior proprietário, apesar do veículo já ter sido alienado

 

Tendo em conta o exposto em a) supra, entende-se que a disposição em análise estabelece uma presunção de propriedade em favor das pessoas em nome de quem se encontrem registados os veículos.

 

Nos termos do artigo 73.º da LGT, “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”

 

Como defendem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, pp. pág. 652, 4.ª Edição, “o que se pretende “sempre” é tributar rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer sempre tributar valores reais, que o artigo 73.º da LGT permite “sempre” ilidir presunções.

 

É esta a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11.º, n.º 3, da LGT de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias "deve atender-se à substância económica dos factos tributários” e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários e não se compagina com a existência de casos especiais de tributação com base em valores fictícios em situações em que é conhecido ou é apurável o valor real dos factos tributários.

                

No caso em análise, o Requerente manteve-se, no registo, como proprietário do veículo ... até 13 de Abril de 2011, pretendendo, por isso, a AT imputar-lhe a responsabilidade pelo pagamento do IUC relativo ao ano 2011, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC.

 

Alega, contudo, o Requerente que, na verdade, apenas foi o proprietário real e efectivo do veículo até Outubro de 2010, tendo sido o veículo em causa transmitido posteriormente pela Sociedade B, em 30 de Dezembro de 2010, para a sociedade C.

 

Com base nos documentos juntos, o Requerente defende que no momento da constituição do facto tributário relevante para efeitos de vencimento do respectivo IUC, isto é, no ano 2011, a propriedade jurídica da viatura já não estava na esfera do Requerente, uma vez que o veículo foi transmitido em Outubro de 2010 e, posteriormente, em Dezembro de 2010. Em consequência, à data do facto gerador do IUC, o proprietário efectivo do IUC seria a sociedade C.

 

Uma vez que não é legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, isto é, por via testemunhal ou documental.

 

No caso dos autos, os documentos juntos pelo Requerente demonstram que o veículo foi, de facto, transmitido pelo Requerente e, posteriormente, pela sociedade B, não sendo da sua propriedade no ano a que respeita a liquidação de IUC objecto da presente petição arbitral.

 

Os factos atestados pelos documentos juntos aos autos com os n.ºs 4 e 5 não foram contestados pela AT e gozam da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do artigo 75.º da LGT.

 

Está, por isso, este Tribunal convencido pela prova produzida pelo Requerente e pela não contestação dos factos, nem dos documentos pela AT que, em 2011, o Requerente já não era o sujeito passivo do IUC relativamente ao veículo ....

 

Entende-se, assim, que de acordo com os factos alegados em 1.º a 10.º da petição do Requerente, não contestados pela AT, e que resultam dos documentos juntos aos autos, o Requerente apenas foi proprietário real e efectivo do veículo até ao ano 2010.

 

À data da verificação do facto gerador do IUC, o veículo já havia sido transmitido pelo Requerente, sendo, portanto, o acto de liquidação de IUC ilegal.

 

 

IV.             DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

A)    Julgar procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência declarar ilegal e anular o acto de liquidação do Imposto Único de Circulação e de juros compensatórios relativos do ano 2011, no valor total de €420,22;

 

B)    Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida e ter dado causa ao presente processo, ao não ter considerado, em sede administrativa, os documentos de prova dos factos em causa invocados pelo Requerente.

 

 

V.                VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária o valor do pedido é fixado em € 420,22.

 

VI.             CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €306, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência integral do pedido.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de Novembro de 2014.

 

A Árbitro

 

Magda Feliciano

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)