Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 233/2014-T
Data da decisão: 2014-07-30  IUC  
Valor do pedido: € 2.052,01
Tema: IUC – Incidência subjetiva – Locação financeira
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Processo n.º 233/2014-T

 

            I – Relatório

 

            1.1. A..., S.A., tendo sido notificada de 53 actos de liquidação adicional de IUC (devidamente identificados na listagem junta como "Anexo A"), relativos a 36 veículos e referentes aos anos de 2010 a 2012, apresentou, a 6/3/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 99.º do CPPT e 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º e ss. do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista “a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos 53 actos de liquidação relativos ao IUC respeitantes aos 36 veículos identificados [...], o reembolso do montante de €2.052,01, respeitante ao imposto indevidamente pago pela Requerente [e] o pagamento de juros indemnizatórios, pela privação do referido montante de €2.052,01, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária”.

 

            1.2. Em 12/5/2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 11/6/2014, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da requerente. Em 6/7/2014 foi junto aos autos o Processo Administrativo.

 

            1.4. Por despacho de 14/7/2014, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. As partes foram notificadas do referido despacho, tendo em vista pronunciarem-se, no prazo estabelecido, se assim o entendessem.

 

            1.5. A 22/7/2014, a ora requerente concordou com a referida dispensa, tendo, ainda, solicitado ao Tribunal a junção aos autos de alguns extractos contabilísticos, retirados do seu sistema informático e relativos ao pagamento de facturas por si juntas ao pedido de pronúncia arbitral. Este requerimento foi junto aos autos em 23/7/2014.

           

            1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

            2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) "[o IUC] é o tributo que visa onerar os contribuintes pelo custo ambiental e viário que lhes está associado, numa lógica de equivalência e igualdade tributária (art. 1.º do Código do IUC). Assim, quanto a este imposto, o legislador optou por onerar o sujeito passivo não de acordo com (e na medida da) sua riqueza - afastando o princípio da capacidade contributiva -, mas sim na justa medida do custo para o ambiente e para as infra-estruturas viárias que aquele sujeito passivo, através da utilização de veículos automóveis, pode gerar"; b) "[nos] casos de locação financeira, aquisição com reserva de propriedade, etc., o legislador optou, [...], e (na opinião da Requerente) bem, por onerar com a obrigação de imposto não os proprietários, mas os indivíduos a quem cabe o gozo (potencial de utilização) exclusivo dos automóveis: os locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade ou locatário com opção de compra. I.e., não os seus proprietários jurídicos, mas aqueles a quem compete a sua propriedade económica"; c) "num contrato de locação financeira, dúvidas não restam de que o direito de utilizar o bem é subtraído ao respectivo proprietário - que, nesta sede, se assume como locador - para integrar na esfera do locatário. [Logo] em contratos de locação financeira [...] é o locatário que tem o gozo exclusivo do bem locado. [...]. Este detém a propriedade económica do bem, por assim dizer, não competindo ao locador mais do que a sua propriedade jurídica"; d) "ainda que se devesse considerar que, nos anos (ou meses) cujo IUC está em apreço, vigoravam ainda contratos de locação financeira, seria aos locatários que competiria liquidar o IUC, e não ao locador".

 

            2.2. Conclui a ora requerente que: a) deve ser declarada a "ilegalidade e consequente anulação dos 53 actos de liquidação relativos ao IUC respeitantes aos 36 veículos identificados pelo respectivo número de matrícula na listagem junta como Anexo A"; b) deve ser reconhecido o direito ao "reembolso do montante de €2.052,01, respeitante ao imposto indevidamente pago pela Requerente [e] o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do referido montante [...], nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária."  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que há "enviesada leitura da lei" por parte da requerente; b) que a interpretação desta "não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC"; c) que a interpretação da requerente "ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC"; d) que, "em matéria de locação financeira, a Requerente só se poderia exonerar do imposto caso tivesse dado cumprimento à obrigação específica prevista no art. 19.º do CIUC, o que não sucedeu. [...]. [...] nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação [...] pelo que necessariamente terá de improceder a pretendida elisão do artigo 3.º aqui em causa"; e) que há, da parte da requerente, uma "interpretação [...] contrária à Constituição"; f) que "não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços [pelo que] não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos peticionados juros indemnizatórios." Conclui a Requerida, em conclusão, que "deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido."

            2.4. Consideram-se provados os seguintes factos:

           

            i) Os actos de liquidação ora em causa foram dirigidos à "A... de Crédito S.A. Sucursal em Portugal" (A...), com o NIPC …, anteriormente designada por "B... S.A."

 

            ii) Tratava-se de uma sucursal em Portugal que, como resulta da respectiva certidão comercial (vd. Anexo B junto aos presentes autos) foi extinta, e cuja matrícula foi cancelada em 10/1/2007.

 

            iii) O conjunto de activos e passivos que era detido por esta sucursal foi, porém, antes da sua extinção, incorporado na aqui Requerente que assim assumiu a posição de locadora em todos os contratos de leasing que se encontravam na esfera jurídica da A.... Assim sendo, os contratos de locação financeira identificados na lista identificada como "Anexo A", que foi junta aos autos, passaram a integrar a carteira de activos da ora requerente.

 

            iv) Uma parte substancial da actividade da ora requerente reconduz-se à celebração de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e por particulares, de veículos automóveis.             

 

            v) Os veículos automóveis identificados na lista do "Anexo A" (cujas matrículas constam da coluna C) foram dados em locação financeira, pela ora requerente, aos clientes também aí identificados (vd. coluna K do mesmo "Anexo").

 

            vi) Na data do termo dos mencionados contratos, os locatários dos referidos veículos decidiram exercer a sua opção de compra, tal como legal e contratualmente previsto. Como se prova pela análise das facturas de venda juntas como docs. 34 a 66 e 70 a 72, os locatários tornaram-se proprietários dos veículos, e procederam ao pagamento do valor residual.

 

            vii) Em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da requerente, conforme se pode ver pela coluna K da tabela junta como "Anexo A". Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas.

 

            viii) A requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os actos de liquidação adicional identificados na tabela constante do "Anexo A", tendo sido pagas as verbas em causa, no valor global de €2052,01, como se atesta pelos comprovativos de pagamento juntos como docs. 1 a 33.           

 

            2.5. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            III – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se, como conclui a AT, há, no caso em análise, “enviesada leitura da lei" por parte da requerente; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da requerente “não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC”, e ainda se tal interpretação “ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC”; 3) saber se, "em matéria de locação financeira, a Requerente só se poderia exonerar do imposto caso tivesse dado cumprimento à obrigação específica prevista no art. 19.º do CIUC"; 4) saber se, no presente caso, são devidos juros indemnizatórios à requerente. 

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.

           

            a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

           

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (vd. Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-652).

            b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente “ignora o elemento teleológico de interpretação da lei: a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC”.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA n.º 73/2013-T, de 5/12/2013: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação.

 

            O registo gera, portanto, apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada mediante prova em contrário (prova de que o registo já não traduz, no momento da obrigação de imposto, a verdade material que lhe teria dado origem).

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de "prova bastante" das vendas alegadas) foi realizada (vd. facturas de venda juntas aos presentes autos como docs. 34 a 66 e 70 a 72).

 

            A Requerida procurou refutar as facturas apresentadas, argumentando, em síntese, que as mesmas não se substituem aos "contratos de locação financeira [que não foram juntos aos autos e] que estão na génese das aludidas facturas", que não há "prova documental do recebimento do preço", e que é exigível, para provar a "inequívoca declaração de vontade dos pretensos adquirentes, [...] [juntar] cópia do [...] modelo oficial para registo da propriedade automóvel".

 

            O presente Tribunal, contudo, não vê razão para questionar as referidas facturas (nem foram apresentados elementos objectivos - i.e., para lá das dúvidas expostas pela AT quanto à inexistência de "um descritivo uniforme" nas facturas - que permitam, fundadamente, duvidar da sua veracidade), e entende que as mesmas constituem prova suficiente para demonstrar que a requerente não era, à data do imposto, a proprietária dos veículos em causa. Como assinala a DA n.º 27/2013-T, de 10/9/2013, "os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [...] [dos] veículos atrás referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT."

 

            3) Alega, ainda, a AT que, "em matéria de locação financeira, a Requerente só se poderia exonerar do imposto caso tivesse dado cumprimento à obrigação específica prevista no art. 19.º do CIUC".

           

            Não procede a conclusão da AT, dado que, como bem se referiu na já citada DA n.º 14/2013-T, de 15/10/2013, "o locatário financeiro é equiparado a proprietário para efeitos do nº 1 do artigo 3.º do CIUC, o mesmo é dizer para ser sujeito passivo do IUC (Cfr. n.º 2 do art. 3.º). [...] não dispondo o locador, por imposição legal e contratual, do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, reafirmamos a conclusão a que já tínhamos chegado de que [...] manda a ratio legis do CIUC que, nos termos do referido n.º 2 do artigo 3.º deste Código, seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes. À mesma conclusão se chega quando se verifica a importância dada aos utilizadores dos veículos locados no artigo 19.º do CIUC. Com efeito, nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos ficam obrigadas a fornecer à AT (ex-DGCI), a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3.º do CIUC (incidência subjectiva), bem como do n.º 1 do artigo 3.º da Lei da respectiva aprovação, uma vez que nos termos desta norma da Lei n.º 22-A/2007, se a receita gerada pelo IUC for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador (sublinhados nossos). [...] [Mas, apesar dessa obrigação, tal não impede que,] na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigor[e] um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nºs. 1 e 2, do CIUC, [sendo que o] sujeito passivo do IUC é o locatário mesmo que o registo do direito de propriedade do veículo se encontre feito em nome da entidade locadora, desde que esta faça prova da existência do referido contrato." (Itálicos nossos).

 

            Em síntese: ainda que não tenham sido juntos aos autos os contratos, decorre da leitura das facturas de venda juntas como docs. 34 a 66 e 70 a 72 que, em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas em causa já tinham sido objecto de venda a terceiros, pelo que já não eram propriedade da requerente (conforme se pode ver pela coluna K da tabela junta como "Anexo A"); por outro lado, também não procede a alegação da AT relativa ao art. 19.º do CIUC, dado que a mesma visa sobrepor uma obrigação de cariz formal a uma realidade substancial que é inequivocamente demonstrativa da condição da requerente como entidade locadora nos contratos subjacentes.

 

            4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).

 

            A este respeito, lembrou a DA n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação muito semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.  [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”

 

            Atendendo a esta justificação, com a qual se concorda, conclui-se, também no presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.  

 

***

 

            IV – Decisão

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados e o reembolso das importâncias indevidamente pagas;

            - Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

 

Fixa-se o valor do processo em €2052,01 (dois mil e cinquenta e dois euros e um cêntimo), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de Julho de 2014.

 

O Árbitro

 

 

 

     

 

(Miguel Patrício)

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.