Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 670/2017-T
Data da decisão: 2018-11-09  IRC  
Valor do pedido: € 191.795,66
Tema: IRC – Amortizações; Activos intangíveis; Autoliquidação; Ónus da prova.
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Nuno Maldonado Sousa e Sérgio Pontes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 22 de Dezembro de 2017, A..., S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ... andar, ..., ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação de IRC n.º 2015..., no valor de €191.795,66, bem como da decisão de indeferimento do recurso hierárquico que teve aquele como objecto.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
    1. Vício de violação de lei por manifesta insuficiência da fundamentação das decisões da reclamação graciosa e recurso hierárquico;
    2. A ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC n.º 2015... e demonstração de liquidação n.º 2015..., por erro de facto e de direito relativo à dedutibilidade dos gastos com as depreciações/amortizações referentes ao activo intangível “B...”.

 

  1. No dia 27-12-2017 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 14-02-2018, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-03-2018.

 

  1. No dia 17-04-2018 a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.

 

  1. Por despacho de 09-05-2018, ao abrigo do disposto no artigo 421.º do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 29.º/1/e) do RJAT, determinou-se o aproveitamento do depoimento das testemunhas C... e D..., prestado no processo n.º 543/2017T do CAAD.

 

  1. No dia 05-09-2018 realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foi inquirida a testemunha, no acto, apresentada pela Requerente, e prorrogado o prazo a que alude o art.º 21.º/1 do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi prorrogado, uma segunda vez, o prazo a que alude o art.º 21.º/1 do RJAT.

 

  1. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, devidamente prorrogado.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente era, no exercício de 2014, a sociedade dominante de um grupo de sociedades que opera no sector farmacêutico, produzindo e comercializando produtos nesta área e detendo várias marcas que operam no sector dos cuidados de saúde em geral.
  2. À data dos factos, a Requerente estava enquadrada no Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades.
  3. O grupo de sociedades a que pertence a Requerente era composto, entre outras, pela E..., Lda. (doravante, E...).
  4. Em 23-12-2009, a Requerente e a F..., S.A. celebraram um “Asset Purchase Agreement” através do qual a primeira adquiriu à segunda, pelo valor de €15.600.000,00, os activos “B...” relacionados com a actividade de produção, desenvolvimento, marketing e comercialização de produtos farmacêuticos e dermoestéticos desta marca.
  5. Nos termos da Cláusula 2 do referido contrato, a aquisição em causa incluía:
  1. “Manufacturing Technology and Know-How”, compreendendo o know-how relativo à formulação dos produtos, métodos de produção e tecnologia utilizada;
  2. “Registrations”, compreendendo os dossiers de registo dos produtos e autorizações de comercialização;
  3. “Trademarks”, compreendendo a marca “B...”, mas também as marcas “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...” e os registos actualizados;
  4. “Marketing and Promotional Documents”, compreendendo a lista de clientes, os planos de marketing e promoção, manuais de formação da força de vendas, entre outros, existentes à data da transacção.
  1. No âmbito do referido contrato foram transmitidas diversas realidades para além da marca “B...”.
  2. No contrato não foi feita qualquer referência à data limite ou restrição de utilização exclusiva da marca.
  3. Através do “Asset Purchase Agreement”, a F..., S.A. comprometeu-se a garantir, sem qualquer custo acrescido, a cedência de posição em todos os contratos de distribuição que havia celebrado, bem como os contratos de fornecimento ao Grupo G... e Grupo H... e ainda, no âmbito dos contratos de fornecimento e de fabrico celebrados com os laboratórios I... e J... .
  4. Em simultâneo com este contrato, foi celebrado entre as partes um “Toll Manufacter Agreement” (“TMA”) mediante o qual foi concedido à F..., S.A. o direito de produção exclusiva de alguns produtos por um período máximo de 24 meses, após o qual passaria a ser directamente fabricada pela E... a totalidade dos produtos.
  5. A aquisição dos activos “B...” tiveram por objectivo reforçar a posição de liderança no mercado OTC, numa área em que não tinha presença e maximizar a utilização da capacidade produtiva disponível no Grupo, potenciando a inovação tecnológica e a consequente angariação de contratos de produção de terceiros com melhores margens.
  6. Em 31-08-2018, a Requerente subscreveu um aumento do capital social da E..., em espécie, no valor de €990.000,00, consubstanciado na transferência, para esta, “dos bens que constituem a totalidade do património afecto ao ramo de actividade da sociedade contribuidora, (…) de importação, exportação, produção e comercialização de Medicamentos não sujeitos a receita médica e de cosméticos”, entre os quais se incluíam os activos previamente adquiridos à F..., S.A., com o valor líquido de €14.518.555,43.
  7. A Requerente notificou a Autoridade da Concorrência a respeito desta operação.
  8. Tanto a Requerente como, posteriormente, a E... procederam à contabilização dos activos em questão como activos intangíveis, tendo efectuado as respectivas amortizações e considerado as mesmas como dedutíveis para efeitos fiscais.
  9. Ambas procederam à contabilização de tais activos como um todo, ou seja, como se se tratasse de um único activo sem qualificar cada uma das componentes como activos identificáveis, passíveis de gerar benefícios económicos de forma separada e inscreveram-nos nos mapas de depreciações e amortizações sob designação “Marca/Direitos”.
  10. O período de vida útil do activo foi estimado, inicialmente, em 6 anos e, posteriormente, em 10 anos, tendo sido determinado com base nos seguintes critérios:
  • ciclos de vida típicos dos activos;
  • obsolescência técnica, tecnológica e comercial;
  • concorrência;
  • nível de dispêndio da manutenção exigido para obter os benefícios económicos futuros esperados pelos activos.
  1. A Requerente estimou que, findo o período de 6 anos, posteriormente reavaliado para 10, caso não existissem investimentos e desenvolvimentos significativos não seria possível manter os influxos de caixa líquidos gerados aquando da aquisição.
  2. As amortizações dos activos “B...” foram calculadas com base no método das quotas constantes contabilizadas como gastos do exercício desde o período de tributação de 2010.
  3. A marca “B...” e os seus produtos, bem como os restantes activos intangíveis em questão, incluem-se num sector marcadamente atingido por uma necessidade de constante evolução, no qual, quase diariamente, são lançados novos produtos, com novas propriedades e com uma maior abrangência de utilização, pelo que se verifica a necessidade constante de investir na tecnologia e imagem associada a cada um dos produtos.
  4. Tais produtos, juntamente com a marca “B...” tornar-se-iam técnica, tecnológica e comercialmente obsoletos, caso não fossem objecto de um investimento regular.
  5. Os produtos associados à marca “B...” foram objecto de várias actualizações e modificações ao longo do tempo, por imposição de requisitos regulamentares e por força da concorrência, sendo que alguns foram descontinuados por não apresentarem a rentabilidade desejada.
  6. Em 2014, foi publicado um novo regulamento (Regulamento EU n.º 358/2014 da Comissão, de 9 de Abril de 2014) onde foi proibido o uso de uma matéria-prima denominada Phenonip a partir de 16 de Outubro de 2014 e escoamento até 15 de Julho de 2015.
  7. Este regulamento obrigou à reformulação dos produtos ... e ... .
  8. Ainda em 2014, foram publicados dois novos regulamentos (Regulamento EU n.º 1003/2014 e 1004/2014 da Comissão, de 18 de Setembro de 2014) sobre alterações aos anexos das substâncias permitidas nos cosméticos, suas concentrações e condições.
  9. No âmbito desses regulamentos passa a ser proibido o uso de Propilparabeno e Butilparabeno, entre outros, em produtos não enxaguados, concebidos para aplicação na zona coberta pelas fraldas em crianças de idade inferior a 3 anos, sendo que tais regulamentos se aplicam ao ..., o que levou à necessidade da sua reformulação.
  10. Até ao exercício de 2013, inclusive, os gastos referentes às amortizações foram deduzidos para efeitos de apuramento da matéria colectável.
  11. Os Serviços de Inspecção Tributária nas acções de inspecção a empresas do grupo a que pertence a Requerente, corrigiram valores às rubricas de depreciações e amortizações do activo intangível “Marca B...”, nos exercícios de 2010 a 2013.
  12. No exercício de 2014, a E... procedeu à contabilização das respectivas amortizações, no valor de €1.061.296,13.
  13. Contudo, atendendo às correcções à matéria colectável realizadas nos exercícios de 2010 a 2013, a E... não deduziu o custo em questão para efeitos de apuramento da matéria colectável, tendo optado por acrescer, no quadro 07, Campo 719 da Declaração Periódica de Rendimentos Modelo 22 individual, o montante de €1.061.296,13, apurado mediante a aplicação da taxa de 6,803% ao custo de aquisição de activos identificados como Marca/Direitos B... .
  14. Esta situação resultou no apuramento de um lucro tributável no montante de €1.195.827,51.
  15. Consequentemente, aquando da entrega da declaração periódica de rendimentos modelo 22 do Grupo, a Requerente veio a apurar um total de IRC a pagar no montante de €285.900,54.
  16. A Requerente procedeu ao pagamento da autoliquidação de imposto.
  17. A Requerente não se conformou com a autoliquidação de IRC efectuada, considerando que a E... não deveria ter acrescido, no Quadro 07, Campo 719 – “Perdas por imparidade de activos correntes e depreciações e amortizações, não aceites como gastos”, o montante de €1.061.296,13.
  18.  Na qualidade de sociedade dominante sujeita ao RETGS, a Requerente apresentou em 17-12-2015 a reclamação graciosa n.º ...2015..., do acto de autoliquidação de IRC.
  19. Em 13-07-2016, a Requerente foi notificada do projecto de decisão da reclamação graciosa.
  20. Em 29-07-2016, a Requerente exerceu o seu direito de audição.
  21. Em 31-08-2016, a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa.
  22. Em 29-09-2016, a Requerente apresentou recurso hierárquico n.º ...2016... da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
  23. Em 26-09-2017, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do recurso hierárquico.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e testemunhal, e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

            A matéria em questão na presente acção arbitral foi já objecto de apreciação no âmbito do processo arbitral n.º 543/2017T do CAAD[2], relativo ao exercício de 2010 da ora Requerente.

            Sendo as mesmas as questões suscitadas pela Requerente, a situação de facto subjacente àquelas é distinta, pelo que distinta terá de ser a solução a dar às mesmas.

            Com efeito, enquanto que no referido processo arbitral n.º 543/2017T estava em causa a apreciação da legalidade da liquidação oficiosa promovida pela AT, na sequência de correcções operadas em sede de inspecção tributária e no presente caso está em causa a apreciação da legalidade do acto de autoliquidação praticado pela própria Requerente, que foi objecto de reclamação graciosa necessária, seguida de recurso hierárquico, reclamação e recurso estes que foram indeferidos pela AT.

            Esta circunstância tem desde logo repercussões significativas quer ao nível do ónus da prova, quer ao nível da apreciação do vício de falta de fundamentação invocado pela Requerente.

            Assim, e como a própria Requerente reconhece, este vício restringe-se às decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, não se estendendo à autoliquidação, cuja anulação a Requerente pretende, porquanto esta foi efectuada pela própria Requerente.

            Ora, como refere Carla Castelo Trindade[3], “Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral é o acto de (...) autoliquidação”.

            Prossegue a mesma Autora, esclarecendo que “os actos de segundo ou terceiro grau poderão sempre ser arbitráveis, na medida em que comportem, e só nessa medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa”.

            Decorrência do quanto se vem de expor, é que “não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do acto tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária.[4].

            Como exemplifica ainda a mesma Autora[5], integram-se nesses vícios próprios dos actos de segundo e terceiro grau, os vícios formais que os inquinem, incluindo a sua falta de fundamentação.

            Ou seja, e em suma, o artigo 2.º do RJAT toma como objecto da competência dos tribunais arbitrais, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como elementos proporcionadores da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º, n.º  1, al. a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            Daí que, em primeira linha, se esteja no presente processo a sindicar a legalidade do acto de autoliquidação de IRC da Requerente (objecto directo da competência dos tribunais arbitrais), sendo a legalidade do acto secundário de reclamação graciosa – cuja função principal é garantir a tempestividade da Requerente para a impugnação arbitral do acto primário – meramente reflexa ou derivada da legalidade daquele, questão que se abordará adiante.

Efectivamente, a eventual anulação do acto de decisão da reclamação graciosa, por fundamentação errada, quando – como é o caso – se conclui pela não verificação das ilegalidades arguidas ao acto primário, sempre redundaria num acto inútil, e como tal proibido, já que, vinculada pelo caso julgado, a Autoridade Tributária nada mais faria no novo acto do que, obrigatoriamente, confirmar o decidido em sede jurisdicional, o que, de resto, tem reflexo no regime da al. c) do n.º 5 do artigo 163.º do novo CPA, que se tem por aplicável nesse caso.

Com efeito, não se concluindo, como adiante se verá, pela anulação do acto de (auto)liquidação objecto dos presentes autos arbitrais, ter-se-á forçosamente de concluir que os actos de segundo grau, face aos factos apurados, teriam sido praticados com o mesmo conteúdo (indeferimento).

            Deste modo, e pelo exposto, sendo o objecto da presente acção arbitral o acto de autoliquidação, e os actos de decisão da reclamação graciosa e do recurso hierárquico apenas e na medida em que incorporem a (i)legalidade daquele primeiro acto, não se incluindo aí, portanto, os vícios próprios de tais actos, incluindo o seu défice de fundamentação, não poderá este Tribunal pronunciar-se sobre esse vício arguido pela Requerente, improcedendo, por isso, o pedido arbitral nessa parte.

 

***

Aqui chegados, cumpre abordar a segunda linha de divergência entre a situação sub iudice e aquela que foi objecto de apreciação no processo arbitral n.º 543/2017T.

Assim, estando naquele outro processo em causa a apreciação da legalidade de um acto de liquidação oficiosa, praticado pela AT corrigindo liquidação anterior baseada na declaração do contribuinte, o ónus da prova da legalidade das correcções operadas assistiria, em primeira linha, à AT o ónus da prova dos pressupostos legais da correcção que operou[6].

No presente caso, é a Requerente que se apresenta em juízo a peticionar a ilegalidade da liquidação operada com base na sua própria declaração.

Neste caso, não só não usufrui a Requerente da presunção da veracidade da sua declaração, consagrada no art.º 75.º/1 da LGT (uma vez que vem a juízo, justamente, contra o teor da declaração que apresentou nos termos da lei), como é a ela própria que assiste o ónus da prova da ilegalidade do acto cuja anulação pretende[7].

Face ao exposto, e à vista da pretensão da Requerente, em causa na presente acção arbitral está não só a questão de saber se se demonstram factos idóneos a concluir que a marca B... e os activos a ela associados deverão, ou não, ser considerados um activo intangível com duração finita e limitada e, portanto, sujeitos a amortizações que poderão ser reconhecidas como custo fiscalmente relevante, como, ainda ao contrário do que ocorria no supra-citado processo arbitral 543-2017T, a questão de saber se se demonstram factos idóneos a concluir que os prazos de amortização deverão ser os indicados pela Requerente.

Sendo que, pelo quanto se disse, o ónus de tais demonstrações assistirá, no presente caso, à Requerente.

 

*

            Dispõe o referido artigo 34.º/1/a) do CIRC, na versão aplicável, que “Não são aceites como gastos: a) As depreciações e amortizações de elementos do ativo não sujeitos a deperecimento”.

O Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro dispõe no seu artigo 16.º/1 que “Os activos intangíveis são amortizáveis quando sujeitos a deperecimento, designadamente por terem uma vigência temporal/limitada.”.

            No caso concreto, pretende a Requerente que seja reconhecido um decréscimo ao seu lucro tributável, assente na consideração no campo 719, do quadro 07 da declaração modelo 22 individual da E..., Lda., das amortizações/depreciações, no montante de €1.061.296,13

            As referidas amortizações/depreciações referem-se ao seguinte grupo de activos, adquiridos pela Requerente, em 23-12-2009, pelo valor de €15.600.000,00 e mais tarde transmitidos à E..., Lda, na sequência da subscrição de um aumento de capital em espécie:

  • “Manufacturing technology and know-how”: compreendendo todo o know-how relativo à formulação dos produtos, controlo de qualidade, acondicionamento, fórmulas, registo de reclamações, avaliações, processos, tecnologia utilizada;
  • “Registrations”: compreendendo os dossiers de registo dos produtos e autorizações de comercialização;
  • “Trademarks”: compreendendo a marca “B...”, mas também as marcas “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...”, “...” e os registos actualizados;
  • “Marketing and promotional documents”: compreendendo a lista de clientes, os planos de marketing e promoção, manuais de formação da força de vendas, existentes à data da transacção.
  • A cedência de posição contratual em todos os contratos de distribuição que a alienante do activos havia celebrado, incluindo contratos de fornecimento ao Grupo G... e Grupo H...;
  •  A cedência de posição contratual da alienante dos activos no âmbito dos contratos de fornecimento e de fabrico celebrados com os Laboratórios I... e J... .

Como se vê, o activo em questão compreende realidades muito diversas como sejam, para além de várias marcas comerciais, propriamente ditas, técnicas e conhecimentos de manufactura e fabrico, registos dos produtos e autorizações de comercialização, lista de clientes, planos de marketing e promoção, manuais de formação da força de vendas, e cedências de várias posições contratuais em contratos de distribuição e fornecimento.

É todo este grupo de activos, que a Requerente adquiriu em 23-12-2009 à F... S.A, pelo valor de €15.600.000,00, e que posteriormente foram transferidos para a E... na sequência de um aumento de capital, que a Requerente pretende amortizar in totum, no exercício de 2014, tendo por referência o período de vida útil de 10 anos.

            Ora, compulsada a matéria de facto dada como provada, não se crê ser isento de dúvida razoável que a maioria dos activos aqui em análise, e supra-referidos, sejam susceptíveis de se conter num período de vida útil definido. O mesmo raciocínio se pode fazer relativamente aos activos correspondentes às marcas comerciais.

            Com efeito, e desde logo, nesta matéria, como no mais (conforme se verá adiante), a Requerente mistura 21 marcas, igualizando-as, não se apurando qualquer distinção entre as mesmas e não se compreendendo, se, e porquê, deverão ser as mesmas objecto do mesmo tratamento ao nível dos pressupostos e condições da sua amortização fiscal.

            Por outro lado, e um pouco em consequência da abordagem adoptada, a argumentação da Requerente relativamente ao cumprimento dos pressupostos da respectiva amortização fiscal pelas marcas comerciais em questão, tal como está reflectida na matéria de facto provada, reconduzem-se a circunstâncias genéricas, aplicáveis, por natureza, à generalidade das marcas comerciais.

            Ora, conforme é consabido, as marcas comerciais, não obstante os factores indicados pela Requerente (e dados como provados), como sejam a necessidade de investimentos ao nível do mercado e da tecnologia, são, por princípio, activos sem uma duração definida, como de resto veio o legislador a reconhecer, ao introduzir na revisão do CIRC de 2014, o art.º 45.º-A do CIRC, onde previu, ao contrário do que acontecia até aí, que “É aceite como gasto fiscal, em partes iguais, durante os primeiros 20 períodos de tributação após o reconhecimento inicial, o custo de aquisição dos seguintes ativos intangíveis quando reconhecidos autonomamente, nos termos da normalização contabilística, nas contas individuais do sujeito passivo: a) Elementos da propriedade industrial tais como marcas, (...) adquiridos a título oneroso e que não tenham vigência temporal limitada;”.

            Por outro lado, a referida tendência para a duração indefinida das marcas não colide com a normal e natural, ao longo do tempo, descontinuação de (linhas) de produtos abrangidos pela mesma marca comercial, bem como o lançamento de novas (linhas) de produtos abrangidos por tal marca, em virtude de alterações regulamentares ou das condições do mercado, que não afectarão o uso e a intenção do uso por período indeterminado da marca, mas, antes, o período de uso de itens associados como "técnicas e conhecimentos de manufactura e fabrico, os registos dos produtos e autorizações de comercialização, as listas de clientes, os planos de marketing e promoção, os manuais de formação da força de vendas, e as cedências de várias posições contratuais em contratos de distribuição e fornecimento".

Deste modo, os dispêndios subsequentes à aquisição efetuados com aqueles itens associados à marca comercial, não afectarão, à partida, a vida útil indefinida do activo intangível (conforme parágrafos 89 f) e 90 da NCRF6) e não amortizável, e não deverão ser, à partida, considerados como adições ao activo intangível que é a marca comercial ou substituições de parte do mesmo (conforme parágrafo 20 da NCRF6, e remissão deste para o tratamento previsto no parágrafo 62 da NCRF6).

Note-se que a circunstância de a marca comercial, enquanto  activo intangível, ter vida útil indefinida, não impede que este possa sofrer perdas de valor, mas o tratamento contabilístico destas perdas não se enquadrará pela consideração de uma vida útil finita e o pelo consequente registo de amortizações, mas pelo registo de perdas de imparidade (conforme admitido pelo parágrafo 107 da NCRF6); e que também, as perdas por imparidade em activos intangíveis poderiam ser aceites fiscalmente como gastos, nos termos dos artigos 35.° e 38.º do CIRC (versão anterior à da Lei n° 2/2004), pelo que a legislação fiscal, nesta matéria, não colocava em causa a aplicação do princípio constitucional da tributação pelo lucro real, o que sucederia no caso em que não admitindo fiscalmente as amortizações, não admitisse fiscalmente perdas por imparidade (perdas de valor) naqueles activos intangíveis.

            À luz do exposto, e em suma, julga-se que não resulta, no caso, provado para além de qualquer dúvida razoável que as 21 marcas que integram os activos ora em apreço tenham, todas elas, um período de vida útil definido, e que, como tal, devam ser considerados um activo intangível com duração finita e limitada, sujeito a amortizações e depreciações, que possam ser reconhecidas como custo fiscalmente relevante.

            Relativamente aos restantes elementos integrantes do activo B..., acima discriminados, designadamente as técnicas e conhecimentos de manufactura e fabrico, os registos dos produtos e autorizações de comercialização, as listas de clientes, os planos de marketing e promoção, os manuais de formação da força de vendas, e as cedências de várias posições contratuais em contratos de distribuição e fornecimento, crê-se, como se adiantou já, que se indicia para lá do razoável da dúvida que integram activos de duração definida, sendo desde logo notório que, pelo menos alguns desses activos terão, efectivamente e por natureza, um período de duração finito.

            Assim, e, e por exemplo, as técnicas e conhecimentos de manufactura e fabrico estarão sujeitos a obsolescência, designadamente, e como a matéria de facto apurada indicia, em função de alterações regulamentares.

            Por outro lado, os registos dos produtos e autorizações de comercialização, têm, face às respectivas regulamentações legais, prazos de vigência, ainda que sujeitos a renovação, e as listas de clientes, os planos de marketing e promoção e os manuais de formação da força de vendas, não serão, em princípio utilizáveis indefinidamente, sobretudo tendo em conta que a maior parte dos produtos que estão em causa se destinam uma faixa de mercado transitória (pais de recém-nascidos e crianças muito jovens).

            Por fim, também os contratos de distribuição e fornecimento cuja posição foi adquirida pela Requerente à F... têm, também eles, um prazo de vigência, ainda que sujeito a renovação.

Nada indiciando que tais activos sejam desprovidos de valor (sendo, pelo contrário, notório que tais activos incorporam, efectivamente, um valor económico para o seu titular), ou que o respectivo valor não esteja abrangido no montante de €15.600.000,00 pago pela Requerente à B..., e a que se referem as amortizações/depreciações que a Requerente pretende fazer valer, não restarão dúvidas razoáveis de que estaremos perante activos fiscalmente elegíveis para efeitos de depreciação/amortização.

Todavia, estamos perante activos de natureza heterogénea, e não foram coligidos elementos suficientes que permitam concluir que, para todos e cada um deles, é adequado o prazo de amortização que a Requerente ora pretende fazer valer.

Efectivamente, não obstante estar provado que para fixação dos prazos de amortização que sustenta, a Requerente ponderou os ciclos de vida típicos dos activos, a obsolescência técnica, tecnológica e comercial, a concorrência, e o nível de dispêndio da manutenção exigido, para obter os benefícios económicos futuros, esperados pelos activos, o certo é que é impossível a este Tribunal verificar se, e em que medida, os referidos factores se aplicam a cada um dos diversos tipos de activos que estão em causa.

Conclui-se, assim e em suma, que a Requerente não demonstrou com fiabilidade, activo a activo, qual a vida útil dos intangíveis adquiridos em questão, reconhecendo que são diversos os activos que adquiriu através do contrato, que têm vida úteis distintas, mas tendo optado por amortizar tudo a uma taxa média, sem que se descortine fundamento material e legal que valide tal opção.

Ora, a contabilidade para ser fiável, deve ser verificável, ou seja deve permitir o seu recálculo, sendo que nenhum dos elementos constantes do processo, julga-se, permite recalcular a vida útil dos activos em questão, pelo que, ainda que se admita que a vida útil dos activos ora em apreço seja finita, julga-se não ter sido cabalmente demonstrada a concreta determinação da respectiva vida útil.

Neste quadro, e à luz do disposto no art.º 74.º/1 da LGT, nada mais cabe a este Tribunal que julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Absolver a Requerida do pedido; e
  2. Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado, tendo-se em conta o que já foi pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 191.795,66, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de Novembro de 2018

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Nuno Maldonado Sousa)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Sérgio Pontes)



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[3]Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, Almedina, 2016, p. 69.

[4] Idem, p. 70.

[5] Idem, p. 71.

[6] Cfr., nesse sentido, p. ex., o Ac. do TCA-N de 15-11-2013, proferido no processo 00201/06.8BEPNF.

[7] Cfr., neste sentido, o Ac. do STA de 27-06-2012, proferido no processo 0982/11.