Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 60/2019-T
Data da decisão: 2019-06-17  IRC  
Valor do pedido: € 99.730,17
Tema: IRC – Anulação administrativa do ato. Extinção da instância
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

                               1. A..., S.A., com sede na Rua ... n.º ..., ..., ...-..., Lisboa, titular do número de identificação fiscal ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IVA, no valor de € 86.968,20 e de liquidação de juros compensatórios, no valor de € 12.761,97, referentes ao período de dezembro de 2014, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

                               O mandatário judicial da Requerente veio, entretanto, requerer que fosse declarada caducidade do mandato judicial por efeito do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência.

                               Notificado o administrador da insolvência para constituir novo mandatário judicial, foi junta aos autos procuração forense que constitui mandatário judicial o advogado B... .

                               A Autoridade Tributária foi notificada para responder por despacho de 10 de Abril de 2019, e ainda dentro do prazo fixado para a apresentação da resposta, veio comunicar que os actos tributários impugnados foram revogados por despacho do Subdirector-Geral do IVA.

                               A solicitação do Tribunal, foi ulteriormente junto o teor integral do despacho revogatório e a informação dos serviços em que se fundamenta.

Por despacho de 13 de maio de 2019, a Requerente foi notificada para se pronunciar sobre o acto revogatório e as suas consequências para o prosseguimento do processo, nada tendo sido requerido dentro do prazo cominado.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 9 de Abril de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades, tendo sido invocada excepção de incompetência do tribunal arbitral para conhecer do perdido de condenação de juros indemnizatórios, na sequência da revogação dos actos impugnados.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

3. No âmbito de uma acção inspectiva que teve por objecto a análise da situação tributária da Requerente, foram promovidas correcções em sede de IVA, no montante de € 86.968,20, acrescida de juros compensatórios no montante de € 12.761,97, por não ter procedido à regularização do imposto na última declaração periódica referente ao ano de 2014 relativamente a fracções de imóveis que permaneceram desocupadas durante um ou mais anos civis. A regularização considerou-se justificada, ao abrigo do disposto no artigo 26.º do Código do IVA, por se entender que o sujeito passivo poderia exercer o direito à dedução do IVA suportado na construção do empreendimento com base na sua ulterior utilização em operações tributadas, mas seria exigível a regularização anual de 1/20 da dedução efectuada em relação às fracções que não tivessem sido utilizadas.

A Requerente deduziu um pedido de pronúncia arbitral para apreciar a legalidade dos actos de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios, alegando que deduziu o imposto incorrido a montante ao imposto liquidado nas prestações de serviços de disponibilização de espaços e em relação às fracções desocupadas sempre procurou proactivamente celebrar contratos de cedência dos espaços em conjunto com outros serviços conexos com a sua utilização. E, baseando-se em jurisprudência do TJUE, sustenta que o sujeito passivo poderá deduzir o imposto incorrido em trabalhos de investimento mesmo quando por razões conjunturais ou de mercado alheias à sua vontade não tenha feito uso dos bens ou serviços para realizar operações tributadas.

 

Ainda dentro do prazo para apresentar a resposta, a Administração Tributária veio comunicar a revogação dos actos tributários impugnados por despacho do Subdirector-Geral do IVA.

 

O despacho de revogação, datado de 2 de maio de 2019, é do seguinte teor: “Concordo. Revogo os actos tributários impugnados. Proceda-se ao pagamento dos juros indemnizatórios conforme proposto”. O mesmo foi exarado sobre uma informação da Direcção dos Serviços de IVA, pela qual se entende ser de revogar os actos em causa em face da jurisprudência do TJUE que se pronuncia no sentido de se manter o direito à dedução de IVA, mesmo que posteriormente em razão de circunstâncias estranhas à sua vontade, o sujeito passivo não faça uso dos bens ou serviços que deram origem à dedução no âmbito das operações tributadas.

 

Neste contexto, cabe analisar os efeitos processuais do dito acto revogatório.

 

4. A esse propósito, importa preliminarmente referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º do CPA, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto que a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação do mundo jurídico de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

No caso vertente, a Autoridade Tributária entendeu ser de seguir o sentido decisório da jurisprudência do TJUE, pelo que praticou, segundo a nova terminologia, um acto de anulação administrativa, isto é, um acto que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o falado despacho de 2 de maio de 2019, embora adopte a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro acto anulatório.

A questão que primeiramente poderia colocar-se é a de saber - atendendo ao disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT - se é possível proceder, na pendência do processo arbitral, à anulação administrativa dos actos tributários impugnados.

O citado artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, sob a epígrafe “Efeitos do pedido de constituição do tribunal arbitral”, dispõe o seguinte:

Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º

O prazo previsto a alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º a que essa disposição se refere é o que respeita à comunicação às partes da constituição do tribunal arbitral, o que permite concluir que esse é um prazo procedimental, inserido no procedimento de constituição do tribunal, e que decorre ainda antes de ter início o processo arbitral (cfr. artigo 15.º).

Tal não significa, no entanto, que à Administração esteja vedado a anulação administrativa do acto impugnado já na pendência do processo arbitral.

A Autoridade Tributária, enquanto entidade administrativa, encontra-se subordinada às disposições do Código de Procedimento Administrativo (artigo 2.º, n.º 1), e, por outro lado, como resulta do disposto no artigo 29.º do RJAT, são de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza do caso omisso, entre outras, as normas sobre o processo nos tribunais administrativos.

O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objecto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.

Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o acto tenha sido objecto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.

Seja como for, nada obsta a que a Administração, ao abrigo do citado artigo 168.º, n.º 3, possa anular o acto tributário impugnado na pendência do processo, desde que dentro do limite temporal definido nessa disposição, e essa faculdade nada tem a ver com o regime específico a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, que confere a possibilidade de a Administração anular o acto impugnado ainda no âmbito do procedimento de constituição do tribunal arbitral.

 Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária praticou o acto anulatório ainda dentro prazo para a apresentação da resposta, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.

No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o ato impugnado é objeto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objecto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o acto impugnado praticando um novo acto em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir.

 É patente, no entanto, que não é essa a situação do caso.

A Administração anulou os actos sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica, limitando-se a determinar o pagamento de juros indemnizatórios. Essa é, no entanto, uma consequência da anulação administrativa, tal como resulta do disposto no artigo 172.º do CPA, que impõe à Administração o dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse praticado, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

Ora, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

 

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 99.730,17, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

 

Notifique.

 

Lisboa, 17 de junho de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Catarina Belim

 

O Árbitro vogal

João Marques Pinto