Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 625/2018-T
Data da decisão: 2019-06-28  IVA  
Valor do pedido: € 29.900,00
Tema: IVA – Cessão definitiva de créditos
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., S.A. (NIF/NIPC ..., com sede no ..., ..., ..., ..., ...-... ... (“REQUERENTE”), veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º, n.os 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar, em 10/12/2018, pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA com o n.º 2018..., com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o presente signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o presente Tribunal Arbitral ficou constituído em 25 de Fevereiro de 2019.

 

3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

 

a)            A ora Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA com o n.º 2018..., com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018 (Doc. 1), devendo o mesmo ser anulado com as devidas consequências legais decorrentes dessa anulação, incluindo a respectiva integração no valor a reembolsar à mesma, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, por tal acto tributário assentar em ilegal correcção de IVA, no montante de €29.900, efectuada no âmbito de acção inspectiva da AT.

 

b)           No caso concreto, importa determinar se a cessão definitiva de créditos em análise constitui, ou não, uma operação sujeita a IVA – i.e., se constitui uma transmissão de bens ou prestação de serviços sujeita a este imposto.

 

c)            A cessão definitiva de créditos tem sido enquadrada como uma operação não sujeita a IVA, não constituindo prestação de serviços para efeitos deste imposto, segundo a interpretação conferida à figura jurídica em apreço pela jurisprudência do TJUE e pela própria doutrina administrativa da AT. Neste sentido, o TJUE já se pronunciou pela não sujeição de venda de créditos ao IVA, no Acórdão GFKL Financial Services AG, de 27 de Outubro de 2011, no processo C-93/10.

 

d)           Concluiu o TJUE que «um operador que adquire, por sua conta e risco, créditos duvidosos, a um preço inferior ao seu valor nominal, não efectua uma prestação de serviços a título oneroso, na acepção do dito artigo 2.º, ponto 1, e não exerce uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação desta directiva, quando a diferença entre o valor nominal dos referidos créditos e o seu preço de aquisição reflecte o valor económico dos créditos em causa no momento da sua cessão».

e)           Ademais, é igualmente este o entendimento vertido pelo Comité do IVA («VAT Committee») constituído no seio da Direcção Geral da Fiscalidade e da União Aduaneira, direcção geral da Comissão Europeia competente em matérias de tributação da União Europeia, no «Working Paper no. 917», relativo ao «VAT treatment of transactions involving non-performing loans (NPLs)», emitido em 9 de Fevereiro de 2017 (Doc. 7).

 

f)            Atendendo ao entendimento vertido pela AT nas respostas aos pedidos de informação vinculativa referentes aos processo n.º 12692, de 7 de Março de 2018, e n.º 12798, de 5 de Fevereiro de 2018, é inequívoco que uma cedência de créditos a título definitivo em que o cessionário adquire, por sua conta e risco e sem direito de regresso, créditos ao cedente, a um preço inferior ao valor nominal total dos mesmos créditos cedidos, constitui uma operação económica não sujeita a IVA, nunca podendo ser considerada uma prestação de serviços tributada em sede deste imposto.

 

g)            Não obstante o seu próprio entendimento vertido nas Informações Vinculativas, uma das quais invocada no direito de audição exercido pela Requerente, a AT, surpreendentemente, alegou, para fundamentar as correcções concretizadas através da demonstração de liquidação de IVA em crise, que «a operação de transmissão dos direitos de créditos subjacentes à factura n.º SMI/3576 e respectivo contrato, configura uma prestação de serviços porque os direitos que estão a ser transmitidos pela A... à B..., S.A., resultam de créditos relativos a contratos de aluguer operacional de veículos, que constitui a actividade económica desenvolvida pela A..., pelo que a transmissão destes créditos constitui uma operação decorrente do desenvolvimento dessa mesma actividade» (Doc. 2).

 

h)           A AT invoca «o Acórdão C-93/10 (First National Bank of Chicago) do TJUE, em que se verificou a cessão de créditos a título definitivo, por um banco a uma empresa, a um determinado valor acordado abaixo do valor nominal da carteira». Contudo, a AT parece confundir o supra exposto Acórdão GFKL Financial Services AG (processo C-93/10), relativo efectivamente a uma cessão definitiva de créditos, com o Acórdão First National Bank of Chicago, de 14 de Julho de 1998, proferido no processo C-172/96, referente a operações de câmbio.

 

i)             Ora, é inequívoco que o entendimento da AT é, desde logo, contraditório à jurisprudência do TJUE presente no Acórdão GFKL Financial Services AG (processo C-93/10), à posição assumida pelo Comité de IVA da Comissão Europeia, e ao seu próprio entendimento nas duas Informações Vinculativas acima expostas (entre outras). A contradição assenta numa afirmação frontalmente contrária face à decisão tomada pelo TJUE no Acórdão acima referido – no Relatório de Inspecção Tributária, a AT afirma que neste Acórdão, o TJUE «entendeu que na situação em que um cedente, no caso concreto, o banco, cede um crédito a um cessionário (a empresa), o cedente presta um serviço ao cessionário» (Doc. 2). Ora, a real conclusão resultante da decisão do TJUE acima invocada, é de que a cessão definitiva de créditos é uma operação não sujeita a IVA.

 

j)             Ademais, e ao contrário do que é argumentado pela AT, a definição de um preço da cessão inferior ao valor nominal dos créditos cedidos não pode ser considerado uma verdadeira contrapartida de uma prestação de serviços, conforme também explanado no Acórdão do TJUE invocado e no entendimento da AT exposto nas duas Informações Vinculativas acima identificadas.

 

k)            Mesmo que se considerasse a existência de uma prestação de serviços na operação sub judice, o prestador do serviço seria o adquirente/cessionário dos créditos cedidos, já que é ele que adquire créditos de cobrança duvidosa a um preço inferior ao valor nominal dos mesmos ao cedente, em contrapartida do pagamento de um determinado preço ao cedente, o que justifica, em parte, as referências do TJUE quanto à posição do aquirente no Acórdão GFKL Financial Services AG.

 

l)             Contudo, o TJUE é claro [quando afirma] que a cessão definitiva de créditos não é uma operação económica per se, já que não há prestações recíprocas entre o cedente e o cessionário – «o cessionário de créditos não recebe nenhuma contrapartida por parte do cedente» – logo, não pode existir verdadeiramente uma prestação de serviços a título oneroso. 

 

m)          Conforme referido pelo TJUE, «a diferença entre o valor nominal dos créditos cedidos e o preço de aquisição desses créditos não constitui a contrapartida de um tal serviço, mas o reflexo do valor económico dos referidos créditos no momento da sua cessão, que é tributário do seu carácter duvidoso e de um risco de incumprimento dos devedores». I.e., quando na cessão definitiva de créditos o preço corresponde ao valor económico dos respectivos créditos, mesmo que este valor económico não corresponda (como será expectável) ao valor meramente nominal dos mesmos, não existe verdadeira onerosidade na operação em apreço e, consequentemente, não há prestação de serviços. A contrario, se o preço for inferior ao real valor económico atribuído aos créditos, então, segundo o TJUE, importa aferir se a diferença entre o valor nominal e o preço constitui uma contrapartida/remuneração «destinada a retribuir directamente um serviço fornecido pelo adquirente dos créditos cedidos». Mas, a existir uma operação tributável, o que não se concebe no caso sub judice, a mesma sempre seria prestada pelo adquirente dos créditos, e nunca pela Requerente.  

 

n)           Seguindo a jurisprudência do TJUE e o próprio entendimento da AT supra expostos, a Requerente, e bem, não procedeu a qualquer liquidação de IVA na emissão de factura referente ao preço a pagar pela Cessionária pela cessão de créditos (€130.000). Com efeito, o contrato celebrado entre a Requerente e a Cessionária titula uma cedência de créditos a título definitivo em que o cessionário adquire, por sua conta e risco («sem recurso») e sem direito de regresso, créditos ao cedente, a um preço inferior ao valor nominal total dos mesmos créditos cedidos, o que constitui uma operação não tributada a IVA.

 

o)           Face ao supra exposto, a correcção no montante de €29.900, notificada e fundamentada no Relatório de Inspecção Tributária como sendo resultante de uma alegada falta de liquidação de IVA na operação de cessão definitiva de créditos sub judice, assenta em erros em pressupostos de facto e de direito, sendo tal correcção ilegal por ser esta operação efectivamente não sujeita a IVA e, consequentemente, nestes termos, deve a demonstração de liquidação de IVA sub judice ser anulada, por concretizar a correcção ilegal acima exposta, com todos os efeitos legais.

 

p)           Sem prejuízo do supra exposto, e na medida em que não seja claro para o Tribunal Arbitral, não obstante a jurisprudência comunitária já produzida sobre a matéria, o alcance da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 24.º, ambos da Diretiva IVA, ou de qualquer outra norma da Directiva IVA que possa interferir com a boa solução deste caso, deverá então este Tribunal Arbitral promover o reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar para o TJUE.

 

q)           Se a demonstração de liquidação de IVA for anulada pelo douto Tribunal Arbitral, a AT deverá ser condenada a proceder ao reembolso da totalidade do montante solicitado pela Requerente, incluindo o montante de €29.900 objecto de correcção e não incluído no montante de crédito de imposto/reembolso concedido pela AT através do acto tributário sub judice. Sem prejuízo do supra exposto, a mero título subsidiário, e caso o Tribunal Arbitral se considere materialmente incompetente para apreciar o pedido de condenação ao reembolso do montante de IVA acima identificado, a Requerente requer a condenação da AT à restituição do montante de IVA corrigido na sua conta corrente de IVA com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018.

 

r)            Sendo procedente o presente pedido, a Requerente requer, igualmente, que sejam pagos os respectivos juros indemnizatórios pelo retardamento no recebimento do montante de €29.900 correspondente ao montante não concedido pela AT face ao reembolso solicitado pela Requerente, nos termos previstos nos artigos 43.º e 100.º da LGT.

3.1. A Requerente termina pedindo: a) a anulação do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA que constitui o seu objecto, porque contrário à lei, por padecer de erro nos pressupostos de facto e de direito; b) a condenação da AT à concessão do reembolso à Requerente do montante de €29.900, referente ao valor de IVA ilegalmente corrigido; c) a título subsidiário, e caso o Tribunal Arbitral se considere materialmente incompetente para apreciar o pedido de condenação ao reembolso do montante de IVA acima identificado, a Requerente requer a condenação da AT à restituição do montante de IVA ilegalmente corrigido de €29.900 na sua conta corrente de IVA; d) a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (daqui em diante será abreviadamente designada por “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:

 

a)            Em causa nos presentes autos está o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2018..., referente ao período de Janeiro de 2018, requerendo-se ainda que a AT seja condenada à concessão do reembolso ou, em alternativa, à consideração desse montante na conta corrente e, bem assim, ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

b)           No pedido formulado a final requer-se, para além da anulação do acto de liquidação de IVA, a condenação da AT à concessão do reembolso do valor de IVA corrigido ou, subsidiariamente, à inclusão desse montante na conta corrente da Requerente. Sendo o processo arbitral previsto no RJAT um meio contencioso de anulação, que tem por objectivo declarar a ilegalidade de actos do tipo dos indicados no seu artigo 2.º, o pedido, nos termos formulados na al. b), implica a incompetência do Tribunal. Por conseguinte, está vedada a este tribunal a competência material para condenar a AT à concessão de um qualquer tipo de reembolso, devendo apenas limitar-se a uma declaração de (não) conformidade da liquidação em causa com as normas legais vigentes, sendo este pedido conexo com matéria de execução de julgados.

 

c)            A Requerente assaca à liquidação o vício de violação de lei, considerando, sumariamente, que a AT interpretou erradamente a lei, ao arrepio da jurisprudência comunitária, e mesmo em sentido contrário ao de informações vinculativas prestadas anteriormente pela própria AT. Contudo não lhe assiste razão.

 

d)           No pedido de pronúncia arbitral (ppa) apresentado, a Requerente centra a sua defesa na submissão ao caso vertente da jurisprudência vertida no acórdão GFKL, de 27.10.2011, processo C-93/10, do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e na doutrina administrativa expendida no âmbito dos processos n.º 12692 e n.º 12798. Ora, como já refutado pelos SIT, em sede de resposta ao direito de audição, o decidido no referido acórdão do TJUE ou nas informações vinculativas citadas não são sobreponíveis ao caso em apreço, uma vez que nestas nem o tribunal nem a AT procederam à análise de operações de cessão de créditos na perspetiva da aquisição por parte das adquirentes/cessionárias (e com um enquadramento concreto distinto daquele que ora temos) no sentido da prestação de um serviço de cobrança de dívidas.

 

e)           Não obstante [o pedido efetuado pelo STA, correspondente ao processo C-692/17, se encontrar ainda pendente de decisão no TJUE], é possível concluir que não surgiram quaisquer dúvidas aos tribunais superiores, no seio dos arestos referidos, quanto à sujeição a IVA da operação de cessão de créditos. Com efeito, perante a abrangência do conceito de prestação de serviços e atendendo ao caráter residual que o mesmo assume em sede de IVA, não é possível excluir a cessão de créditos da qualificação, para efeitos deste imposto, como uma prestação de serviços. Consequentemente, verificado o requisito da onerosidade por existência de um nexo direto entre a contrapartida e o serviço prestado, no contexto da atividade económica da Requerente, como ficou demonstrado no RIT, tal prestação tem de ser sujeita a imposto.

 

f)            Dúvidas parecem existir sim, nos tribunais superiores, quanto ao âmbito de aplicação da isenção da al. a) do n.º 27 do art. 9.º do CIVA, que isenta do imposto as operações de «concessão e a negociação de créditos, sob qualquer forma, compreendendo operações de desconto e redesconto, bem como a sua administração ou gestão efectuada por quem os concedeu». (sublinhado nosso). As incertezas quanto à aplicação dessa isenção prendem-se com a jurisprudência do TJUE que sustenta que a isenção em causa abrange quaisquer operações através das quais opere a transmissão de um crédito ou direito de crédito.

 

g)            No entanto, como resulta do recente acórdão de 10.11.2018, caso Volkswagen Financial Services (UK), processo C 153/17, o TJUE refere-se a «mutuante ou do mutuário», pelo que se afigura que a concessão de créditos a que se reporta a isenção provém, necessariamente, de um contrato de mútuo. Precisamente, a ratio da isenção da al. a) do n.º 27 do art. 9.º do CIVA (que transpôs a al. b) do n.º 1 do art. 135.º da Diretiva IVA), relativa à expressão «concessão», visa abranger as operações de concessão de crédito fornecido quer por bancos quer por qualquer outro tipo de fornecedor, numa óptica financeira, na acepção de um serviço de empréstimo/mútuo, e não no sentido de transmissão de dívida/serviço de cobrança de dívidas.

 

h)           A concessão de créditos implica uma relação creditícia continuada entre as partes, durante um certo período de tempo, até que o crédito seja pago – o que é característico do contrato de mútuo. Assim, e retornando ao caso dos presentes autos, a haver alguma isenção – no que se não concede – a norma em causa seria a do artigo 9.º, n.º 27, al. a), e nunca a que é mencionada na factura em causa, a qual mencionava, recorda-se, o artigo 16.º, n.º 6, al. c), do Código do IVA.

 

i)             Porém, na situação vertente, não se considera viável defender que a Requerente concede um crédito à cessionária, uma vez que não existe nenhuma relação creditícia continuada posterior à venda da carteira de contencioso. Os créditos cedidos são litigiosos, encontram-se em mora por falta de pagamento dos clientes da Requerente, são referentes aos contratos de aluguer de automóveis, e o objetivo da adquirente é proceder à cobrança das dívidas, pelo que se conclui pela inaplicabilidade da norma de isenção ao caso.

j)             Em suma, não se pode concordar com as alegações da Requerente, afigurando-se que a venda de carteira de contencioso, realizada no âmbito do contrato de cessão de créditos, configura uma operação sujeita a IVA e dele não isenta, daí resultando que a correção que deu origem à demonstração de liquidação contestada não enferma de qualquer ilegalidade.

 

k)            Sem prejuízo do exposto, caso não seja claro para o Tribunal Arbitral o âmbito de aplicação da isenção da al. a) do n.º 27 do art. 9.º do CIVA à situação em apreço, concorda-se com a Requerente quanto a dever ser promovido o reenvio prejudicial acerca da interpretação da al. b) do n.º 1 do art. 135.º da Directiva IVA. 

 

4.1. A AT conclui pedindo que seja julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida, tudo com as devidas e legais consequências.

 

5. Não tendo sido invocadas excepções e não havendo matéria de facto controvertida, por as questões a decidir serem de direito, o Tribunal Arbitral, através de despacho de 17/6/2019, prescindiu da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e tendo em vista promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Foi, também, fixado o dia 28/6/2019 para a prolação da decisão arbitral.

 

II. Saneamento

 

6. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

 

7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

8. Pelo supra exposto, e não se verificando nulidades, impõe-se o conhecimento, em seguida, do mérito do pedido.

 

III. Questão a decidir

 

9. Na sua petição, a Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA com o n.º 2018..., com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018, por entender que tal acto assenta em ilegal correcção de IVA, no montante de €29.900, efectuada no âmbito de acção inspectiva da AT.

 

IV. Mérito

 

IV.1. Matéria de facto

 

10. Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

A. A Requerente é uma entidade sediada em Portugal, cujo objecto social inclui a compra e venda e aluguer de bens, equipamentos e veículos automóveis com e sem condutor, a prestação de serviços de gestão de frotas automóveis, bem como o exercício de qualquer actividade acessória ou com esta relacionada.

B. O aluguer operacional de veículos automóveis é a principal actividade desenvolvida pela Requerente desde o início da sua actividade em 1994.

C. A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal em sede de IVA.

D. No âmbito da sua actividade, e com referência a vários contratos de aluguer operacional de veículos com diversos clientes e por diferentes quantias, a Requerente era titular de créditos em mora por falta de pagamento dos seus clientes/locatários devedores, tendo estes mesmos contratos cessado por incumprimento.

E. A 10/1/2018, a Requerente celebrou um contrato de cessão de créditos com a B..., S.A., enquanto cessionária, através do qual a Requerente cedeu à cessionária “que aceita a cessão, os créditos e direitos de que a primeira das referidas sociedades é titular, à data da assinatura do presente contrato, emergentes dos contratos cuja lista está junta como Anexo I ao presente contrato, do qual faz parte integrante” (Cláusula Primeira, n.º 1, do referido contrato; vd. Doc. 3 apenso).

F. Segundo o supra referido contrato, “o valor nominal dos créditos cedidos corresponde ao valor que consta na lista anexa como Anexo I” (Cláusula Primeira, n.º 2; vd. Doc. 3), valor este que foi fixado, à data de celebração do contrato, em €2.367.840,29 (vd. Anexo I).

G. Nos termos da Cláusula Primeira, n.º 3, do supra referido contrato, “a cessão acordada constitui uma transmissão definitiva dos créditos com transferência para a cessionária dos créditos, incluindo suas garantias e direitos acessórios quando existam”.

H. Nos termos da Cláusula Terceira, n.º 2, do supra referido contrato, a cessão “é definitiva e não envolve qualquer promessa de futura restituição do preço (ou de parte dele) pelo que a cessionária não goza do direito de regresso sobre a C... quando não consiga cobrar os créditos dos devedores, seus fiadores ou avalistas”.

I. Nos termos da Cláusula Primeira, n.º 4, do supra referido contrato, a cessão “compreende quer o direito da cessionária à cobrança dos créditos que a C... possui nesta data sobre os titulares dos contratos, em razão das operações realizadas pelos devedores, quer a assunção pela cessionária dos demais direitos que a C... possui em virtude dos mencionados contratos objecto de cessão”.

J. Pela cessão definitiva de créditos efectuada pela Requerente à cessionária foi acordado um preço global de €130.000, valor correspondente a 5% do valor nominal total da carteira de contratos a ceder (vd. Cláusula Segunda, n.º 2).

L. A 31/1/2018, a Requerente emitiu factura à cessionária (factura n.º SMI/3576), com o descritivo “Venda de carteira de contencioso (contrato de cessão de créditos)”, com o valor de €130.000, não liquidando IVA na mesma (v. Doc. 4 apenso). Posteriormente, a Requerente solicitou, na sua declaração periódica de IVA, relativa ao período de tributação de Janeiro de 2018, o reembolso integral do montante de crédito a seu favor neste mesmo período, no montante de €713.517,15.

M. A ora Requerente foi objecto de uma acção de inspecção, de âmbito parcial, em sede de IVA, tendo a análise incidido sobre os períodos de tributação de Novembro e Dezembro de 2017 e de Janeiro de 2018, levada a cabo pelos SIT no âmbito da Ordem de Serviço n.º OI2018... .

N. A ora Requerente foi notificada do Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, através do Ofício n.º..., de 29/6/2018, no âmbito do qual a AT propôs o deferimento parcial do pedido de reembolso solicitado pela Requerente, em face da alegada falta de liquidação de IVA na operação de cessão de créditos supra referida, propondo, em consequência, uma correcção de imposto no montante global de €29.900 – valor este correspondente ao montante de IVA entendido como a liquidar nesta operação, à taxa de 23%, incidente sobre o preço da cessão no montante de €130.000 (vd. Doc. 5 apenso).

O. A ora Requerente exerceu atempadamente o seu direito de audição face às correcções propostas no Projecto acima mencionado, defendendo que a operação de cessão de créditos em causa não constitui uma operação sujeita a IVA, conforme o entendimento veiculado pelo TJUE e pela própria AT relativamente a este tipo de operações (vd. Doc. 6 apenso).

P. A 27/8/2018, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção, no âmbito do qual a AT consolidou o entendimento prévio acima exposto, mantendo a correcção de IVA no montante de €29.900. Consequentemente, a 12/9/2018 a Requerente é notificada do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA em causa nos presente autos (vd. Doc. 1 apenso)

Q. Em resultado das correcções efectuadas e da referida demonstração de liquidação de IVA, o montante de crédito de imposto reportado/reembolso solicitado (€713.517,15) na declaração periódica em causa foi reduzido para o montante de €683.617,15.

R. A Requerente interpôs o seu pedido de constituição de tribunal arbitral em 10/12/2018.               

 

IV.2. Factos não provados

 

11. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

 

IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

12. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

14. A convicção do presente Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes, bem como na análise do processo administrativo que foi anexado pela Requerida.

 

IV.4. Questão prévia: a apreciação do pedido de reembolso de quantia paga

 

15. Justifica-se, aqui, uma nota prévia para assinalar que, em linha com a doutrina (e.g., Carla Castelo Trindade e Jorge Lopes de Sousa) e com o que bem se afirmou na Decisão Arbitral de 15/1/2015, proferida no processo 587/2014-T – também reproduzida e seguida, por ex., pelo Acórdão do TCAS de 28/4/2016 (proc. 09286/16) –, deve ter-se presente que, “à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal Arbitral é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios. [...]. O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda» [...]. Mas, na falta de qualquer disposição legal que permita concluir em contrário, o âmbito do processo de impugnação judicial e dos processos arbitrais restringe-se às questões da legalidade dos actos dos tipos referidos no artigo 2.º que são abrangidos pela vinculação que foi feita na Portaria n.º 112-A/2011, não podendo, designadamente, definir os termos em que devem ser executados julgados anulatórios que vierem a ser proferidos. Na verdade, como bem refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, a competência para executar os julgados proferidos pelos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD cabe, em primeira linha, à própria Autoridade Tributária e Aduaneira, como resulta do teor expresso do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta...». Por outro lado, a haver discordância entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e os sujeitos passivos sobre a forma de execução de julgados, são os tribunais tributários os competentes para a sua apreciação, já que não são atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências em processos de execução de julgados e os tribunais arbitrais dissolvem-se na sequência da decisão arbitral, como decorre do artigo 23.º do RJAT.»” (destaques nossos).

 

16. Nestes termos, aos quais se adere inteiramente, o presente Tribunal declara-se competente para conhecer do pedido de reembolso, enquanto consequência da eventual anulação do acto tributário ora em causa, e para condenar, se for caso disso, a Administração ao pagamento de juros indemnizatórios – contudo, e como se assinalou, não compete ao presente Tribunal, mas antes à referida Administração, apurar o valor certo daquele reembolso ou daquele pagamento (caso exista decisão de anulação ou de condenação). 

 

IV.5. Matéria de direito

 

17. A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA com o n.º 2018..., com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018 (Doc. 1), devendo o mesmo ser anulado com as devidas consequências legais decorrentes dessa anulação, incluindo a respectiva integração no valor a reembolsar à mesma, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, por tal acto tributário assentar em ilegal correcção de IVA, no montante de €29.900, efectuada no âmbito de acção inspectiva da AT.

 

18. Entende a Requerente que a cessão definitiva de créditos tem sido enquadrada como uma operação não sujeita a IVA, não constituindo prestação de serviços para efeitos deste imposto, segundo a interpretação conferida à figura jurídica em apreço pela jurisprudência do TJUE e pela própria doutrina administrativa da AT.

 

19. Por seu lado, a Requerida entende que não assiste razão à Requerente, afirmando que “no pedido de pronúncia arbitral (ppa) apresentado, a Requerente centra a sua defesa na submissão ao caso vertente da jurisprudência vertida no acórdão GFKL, de 27.10.2011, processo C-93/10, do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e na doutrina administrativa expendida no âmbito dos processos n.º 12692 e n.º 12798. Ora, como já refutado pelos SIT, em sede de resposta ao direito de audição, o decidido no referido acórdão do TJUE ou nas informações vinculativas citadas não são sobreponíveis ao caso em apreço, uma vez que nestas nem o tribunal nem a AT procederam à análise de operações de cessão de créditos na perspetiva da aquisição por parte das adquirentes/cessionárias (e com um enquadramento concreto distinto daquele que ora temos) no sentido da prestação de um serviço de cobrança de dívidas.”

20. Acrescenta, ainda, a Requerida que, no “caso dos presentes autos, a haver alguma isenção – no que se não concede – a norma em causa seria a do artigo 9.º, n.º 27, al. a), e nunca a que é mencionada na factura em causa, a qual mencionava, recorda-se, o artigo 16.º, n.º 6, al. c), do Código do IVA.”

 

21. Vejamos, então.

 

22. No caso dos presentes autos, a questão essencial em causa é a seguinte: a cessão definitiva de créditos ora em análise constitui, ou não, uma operação sujeita a IVA (i.e., constitui, ou não, uma transmissão de bens ou prestação de serviços sujeita a este imposto)?

 

23. Antes do mais, mostra-se pertinente a análise do conteúdo do Acórdão GFKL Financial Services AG (proc. C-93/10), invocado pela Requerente, e que, efectivamente, ilustra, de uma forma clara, a posição da jurisprudência do TJUE relativamente à supra referida questão.

 

24. No seu Acórdão datado de 27/10/2011, o TJUE começa por afirmar que “uma prestação de serviços só é efectuada «a título oneroso», na acepção do artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Directiva, e só é assim tributável, se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são realizadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efectivo do serviço fornecido ao beneficiário (acórdão MKG-Kraftfahrzeuge-Factoring)”.

 

25. Acrescenta que “segundo jurisprudência assente, o conceito de «prestações de serviços efectuadas a título oneroso», na acepção do artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Directiva, pressupõe a existência de uma ligação directa entre o serviço prestado e o contravalor recebido (acórdão de 29 de Julho de 2010, Astra Zeneca UK, C-40/09, Colect, p. I-7505, n.o 27 e jurisprudência referida).”

 

26. Salienta, ainda, que, no casos desses autos, e ao invés do que sucedia no Acórdão MKG-Kraftfahrzeuge-Factoring (em “que, no âmbito da operação de cessão de créditos em causa no processo que deu origem a esse acórdão, o cessionário de créditos obrigava-se a prestar serviços de factoring ao cedente, em contrapartida dos quais recebia uma remuneração, a saber, uma comissão de factoring e uma comissão de garantia de pagamento”), “o cessionário de créditos não recebe nenhuma contrapartida por parte do cedente, de modo que não exerce uma actividade económica na acepção do artigo 4.º da Sexta Directiva, nem efectua uma prestação de serviços na acepção do artigo 2.º, ponto 1, desta directiva.”

 

27. E faz notar, também, que nem mesmo o facto de existir “uma diferença entre o valor nominal dos créditos adquiridos e o preço de aquisição desses créditos” altera a conclusão do Tribunal, uma vez que “contrariamente à comissão de factoring e à comissão de garantia de pagamento que, no litígio que deu origem ao acórdão MKG-Kraftfahrzeuge-Factoring, já referido, eram recebidas pelo factor, esta diferença não constitui, no litígio em causa no processo principal, uma remuneração destinada a retribuir directamente um serviço fornecido pelo adquirente dos créditos cedidos.”

 

28. Nesse sentido, conclui o TJUE que “a diferença entre o valor nominal dos créditos cedidos e o preço de aquisição desses créditos não constitui a contrapartida de um tal serviço, mas o reflexo do valor económico efectivo dos referidos créditos no momento da sua cessão, que é tributário do seu carácter duvidoso e de um risco acrescido de incumprimento dos devedores.”

 

29. Este Acórdão GFKL Financial Services AG (proc. C-93/10) é aquele que mais se ajusta à situação aqui em análise. Cabe, ainda, notar que, ao contrário do que alega a Requerida, ao fazer menção, no ponto 23.º da sua resposta, à posição do Advogado-Geral Nilo Jääskinen nesse processo, é o próprio Advogado-Geral que reconhece que:

 

29.1. Quando se trata de “matéria de cessão de um bem incorpóreo”, há dois acórdãos do TJUE relevantes (e qualquer deles versa situações que não se confundem com o caso ora em análise ): “No acórdão Swiss Re [Acórdão de 22/10/2009, proc. C 242/08], o Tribunal de Justiça declarou que a cessão a título oneroso de uma carteira de contratos de resseguro do ramo vida constitui uma prestação de serviços, visto tratar se da cessão de um bem incorpóreo. No acórdão First National Bank of Chicago [Acórdão de 14/7/1998, proc. C 172/96], o Tribunal de Justiça devia pronunciar se sobre operações relativas à compra de um montante acordado numa dada divisa contra a venda de um montante acordado noutra divisa e cujos detalhes (como o tipo de divisa, o montante e a data valor) tinham sido acordados entre as partes. O Tribunal considerou que estas operações eram prestações de serviços pelo facto de se tratar de cessões de bens incorpóreos, consistindo o serviço na disponibilidade do banco para concluir tais operações.”

 

29.2. Apesar de, no seu entendimento, “a cessão de um bem incorpóreo prevista no artigo 6.º, n.º 1, da Sexta Directiva IVA, diz[er] respeito a uma situação em que o cedente (no caso em apreço, o Banco) cede um crédito ao cessionário (GFKL) [e, assim], o cedente presta um serviço ao cessionário [, no entanto, o] processo em apreço refere se, todavia, à questão de saber se se pode considerar que o cessionário presta um serviço ao cedente. [...]. [...] na minha opinião, não se pode considerar que qualquer venda de créditos corresponda à prestação de um serviço de cobrança de créditos pelo comprador. [...]. [...] é necessário algo mais do que uma simples transferência dos créditos para que exista uma prestação de serviços de cobrança de dívidas e para poder, portanto, invocar a aplicação do acórdão MKG.”

 

29.3. Em linha com o que viria a decidir o TJUE no Acórdão GFKL, também o Advogado-Geral nesse processo conclui que, “para estar abrangido pelo âmbito de aplicação da Sexta Directiva IVA, um serviço deve ser prestado mediante uma contrapartida. [...]. Para que exista uma contrapartida na acepção da Sexta Directiva IVA, é preciso que exista uma relação jurídica entre as partes da qual decorram prestações recíprocas. Noutros termos, a retribuição recebida deve corresponder ao contravalor efectivo do serviço. Esta condição também é conhecida como a exigência de um «nexo directo». No acórdão MKG, o Tribunal de Justiça decidiu que existia um nexo directo entre a actividade do factor e a importância que este recebeu em contrapartida sob a forma de um pagamento, na medida em que este aplicava uma comissão de factoring e uma taxa del credere, pela actividade que realizava. [Mas,] No processo em apreço, não foi expressamente acordada uma comissão entre as partes. Por conseguinte, coloca se a questão de saber qual é a contrapartida.”

 

29.4. Tal contrapartida não se vislumbra no caso analisado no Acórdão GFKL. Como assinala o Advogado-Geral nesse processo: “Em termos económicos, o Banco não concede efectivamente nenhuma dedução mas aceita simplesmente o preço que o comprador está disposto a pagar pela carteira. Todavia, mesmo que o Tribunal de Justiça considere que esta é a contrapartida prestada pelo Banco, não é certo que exista um nexo directo entre a dedução efectuada e o serviço prestado. [...]. [...] não se pode, portanto, afirmar que a dedução é acordada em contrapartida do valor dos serviços prestados pela GFKL ao Banco. Assim, não existe um nexo directo entre o serviço prestado e a contrapartida. Mesmo se se considerasse que a contrapartida corresponde à possibilidade de a GFKL tirar proveito da compra dos créditos, penso que não existe um nexo directo. [...]. Por conseguinte, o caso em apreço não está abrangido pelo âmbito de aplicação da Sexta Directiva IVA, na medida em que não se demonstrou que existe um nexo directo entre a contrapartida e o serviço.”

 

30. Em síntese: A) no Acórdão MKG, o TJUE conclui pela existência de um «nexo directo» entre a actividade do factor e a importância que este recebeu em contrapartida sob a forma de um pagamento (uma comissão de factoring e uma taxa del credere) – contudo, no caso ora em análise, está demonstrado que nenhuma comissão ou contrapartida por um serviço prestado (ou a prestar) foi (requerida ou) recebida pela Requerente na sequência da cessão de créditos; B) no Acórdão GFKL, o TJUE – ainda que analisando a questão aí em causa pelo lado do adquirente dos créditos cedidos – conclui que “o cessionário de créditos não recebe nenhuma contrapartida por parte do cedente, de modo que não exerce uma actividade económica na acepção do artigo 4.º da Sexta Directiva, nem efectua uma prestação de serviços na acepção do artigo 2.º, ponto 1, desta directiva”, salientando, ainda, que “uma prestação de serviços só é efectuada «a título oneroso», na acepção do artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Directiva, e só é assim tributável, se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são realizadas prestações recíprocas”.

 

31. Sabendo-se que, como se disse acima, o conceito de «prestações de serviços efectuadas a título oneroso», na acepção do artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Directiva, pressupõe a existência de uma «ligação directa» entre o serviço prestado e o contravalor recebido (e que tal ligação, no caso dos presentes autos, não existe, porque ao valor recebido não se demonstrou estar associada a prestação de qualquer serviço), e que, mesmo que ocorra uma diferença entre o valor nominal dos créditos adquiridos e o preço de aquisição dos mesmos, tal diferença não constitui, necessariamente, “uma remuneração destinada a retribuir directamente um serviço fornecido pelo adquirente dos créditos cedidos” (veja-se Acórdão GFKL, §24) – assim se demonstrando que inexiste, entre os (alegados) prestador e beneficiário, uma relação jurídica durante a qual são realizadas prestações recíprocas, dado que a (alegada) retribuição recebida pelo prestador (seja esta entendida como o preço pago ou “apurada” pela mera diferença entre o valor nominal dos créditos adquiridos e o preço de aquisição dos mesmos) não pode ser vista como sendo contravalor por um serviço (que, como se disse, no caso destes autos não se demonstrou ter sido realizado) fornecido ao beneficiário –, conclui-se que assiste razão à ora Requerente.

 

32. Mesmo tendo presente que as respostas da AT a pedidos de informação vinculativa só a vinculam obrigatoriamente a mesma perante os contribuintes que solicitam tais pedidos, ainda assim deve assinalar-se que o entendimento aqui exposto não é diferente daquele que aparece, por ex., na resposta ao pedido de informação vinculativa solicitado no âmbito do processo n.º 12692 (assunto: Regularizações – A cedência de créditos, a título definitivo – Operações realizadas no domínio do cedente) e que foi emitida por despacho de 7/3/2018 da Directora de Serviços do IVA: “a prestação de serviços só será tributável em sede de IVA se existir um nexo direto entre o serviço prestado e a contrapartida recebida, de acordo com a teoria das contraprestações recíprocas (cfr. acórdão TJCE de 29/2/1996, Proc. C-110/94, Caso INZO; acórdão TJCE de 15/1/1998, Proc. C-37/95, Caso «Ghent Coal»; acórdão TCASul-2ª.Secção, 08/01/2015, proc. 8165/14). No caso em concreto, as cessões de créditos em causa implicam a transferência a título definitivo e sem direito de regresso para o cessionário, de todos e quaisquer direitos emergentes dos créditos em causa [precisamente como sucede no caso dos presentes autos]. No acórdão do Tribunal de Justiça, de 2011-10-27, proc. n.º C-93/10 [Acórdão GFKL], conclui que «(...) os artigos 2.º, ponto 1, e 4.º da Sexta Directiva devem ser interpretados no sentido de que um operador que adquire, por sua conta e risco, créditos duvidosos, a um preço inferior ao seu valor nominal, não efectua uma prestação de serviços a título oneroso, na acepção do dito artigo 2.º, ponto 1, e não exerce uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação desta directiva». Deste modo, afigura-se-nos que a situação apresentada, a cedência de créditos, a título definitivo, se encontra abrangida pelo acórdão citado, não chegando por isso a considerar-se uma atividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva, ficando, portanto, excluída do campo do imposto. [...]. Pelos motivos expostos, conclui-se que: [...] [a] cedência de créditos não constitui uma operação sujeita a IVA”.

 

33. Idêntico entendimento pode também ser observado na resposta ao pedido de informação vinculativa solicitado no âmbito do processo n.º 12798 (assunto: Exclusão do campo de incidência do IVA) e que foi emitida por despacho de 5/2/2018 da Directora de Serviços do IVA: “No caso em concreto, pelos dados fornecidos pela ora requerente, afigura-se-nos que o contrato de cessão de créditos em causa não contempla cláusulas em que se estipule um valor que corresponda à contrapartida de uma remuneração de serviços (vd. figura do «factoring», regulamentada no Decreto-lei n.º 171/95, de 18 de julho), porquanto se trata de uma cessão que implica a transferência a título definitivo e sem direito de regresso para a cessionária de todos e quaisquer direitos emergente do crédito a que respeita, bem como das suas respetivas garantias e acessórios, caso existam. [...]. [Assim, e atendendo ao teor do acórdão do Tribunal de Justiça, de 2011-10-27, proc. n.º C-93/10,] afigura-se-nos que a situação apresentada, a cedência de créditos, a título definitivo, a uma sociedade comercial, [...] se encontra abrangida pelo acórdão citado, pelo que, não chega a considerar-se uma atividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva, ficando, portanto, excluída do campo do imposto (n.º 1 do art. 1.º, a contrario, do CIVA).”

 

34. Cabe notar, ainda, que a AT nunca questionou, no âmbito da acção inspectiva e no RIT, (nem a Requerida o fez na sua resposta), que o preço da cessão definitiva de créditos ora em causa não correspondia ao valor económico ou efectivo dos referidos créditos (o preço foi inferior ao valor nominal desses créditos mas tal, por si, não obsta, como se viu acima, a que se considere que se trata de uma operação não sujeita a IVA). Por outras palavras: nunca foi levantada dúvida sobre se tal preço era a tradução do valor económico dos créditos cedidos. Com efeito, nada nos presentes autos permite presumir o contrário e, assim sendo, conclui-se, em face dos argumentos supra expostos, que a operação em apreço não constitui prestação de serviços e, como tal, não deve ser sujeita a IVA.

 

Juros Indemnizatórios

 

35. À luz do disposto no n.º 5 do artigo 24.º do RJAT – na parte em que se diz que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” –, tem-se entendido que tal norma permite o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios em processos arbitrais.

 

36. Justifica-se, pelo exposto, a análise do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

   

37. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou em impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. artigo 43.º, n.º 1, da LGT).

 

38. É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vd., por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Acórdão do STA de 30/5/2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Acórdão do STA de 10/4/2013, proc. 1215/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT, derivado de anulação de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro – sobre os pressupostos de facto ou de direito – imputável aos serviços, de que tenha resultado pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (Acórdão do STA de 28/11/2018, proc. 087/18.0BALSB).

 

39. Ora, tendo havido, como decorre do que se disse acima, erro imputável aos serviços – o que determina a anulação do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA em causa e a devolução do valor pago em excesso –, conclui-se, em conformidade, pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios à Requerente.

 

 

V. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, decide-se:

 

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular o acto tributário de demonstração de liquidação de IVA com o n.º 2018..., com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018.

b) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar a Requerente da quantia paga em excesso pela Requerente, a determinar em execução de julgado.

c) Julgar procedente o pedido também na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente.

 

VI. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €29.900,00 (vinte e nove mil e novecentos euros), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 1530,00 (mil quinhentos e trinta euros), a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 28 de Junho de 2019.

 

O Árbitro

 

(Miguel Patrício)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.