Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 522/2018-T
Data da decisão: 2019-06-03  IUC  
Valor do pedido: € 51,41
Tema: IUC – Locação Financeira.
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DECISÃO ARBITRAL

 

A – RELATÓRIO

 

1. A..., SA., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou, em 22-10-2018, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida, ou ATA).

 

2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação, relativos aos anos 2013, no valor de 19,11 €, e 2018, no valor de 32,30 €, com referência aos veículos automóveis com as matrículas ... e ..., respectivamente, bem como do acto de indeferimento de reclamação graciosa respeitante ao primeiro, e do respectivo reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-10-2018.

 

3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.

 

3.2. Em 12-12-2018 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

 

3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 03-01-2019.

 

3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.

 

4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

                A Requerente é uma instituição de crédito em que, de entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel, parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira (“LSG”) destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.

                Os veículos automóveis a que se referem as liquidações objecto do pedido arbitral foram dados em locação financeira.

                Tais contratos encontravam invariavelmente em vigor no ano (ou, mais concretamente, no mês relevante do ano) em que se venceram as obrigações tributárias associadas a cada viatura.

                Nos meses relevantes dos anos a que reportam os actos tributários em análise a Requerente não pode ser responsável pelo pagamento do IUC, pois, atendendo à celebração dos aludidos contratos de locação financeira, era locadora dos veículos a que se reportam as liquidações de imposto.

                O IUC é o tributo que visa onerar os contribuintes pelo custo ambiental e viário que está associado à utilização dos veículos automóveis, numa lógica de equivalência e de igualdade tributária (cfr. artigo 1º do CIUC), sendo fortemente marcado por uma lógica ambiental, pretendendo-se que seja cobrado em função do potencial de poluição a que um determinado veículo automóvel se presta.

                Daí que o encargo do imposto compita, em primeiro lugar, à pessoa ou à entidade que tem o potencial de utilização do veículo automóvel em questão; i.e., que tenha o potencial de produção da poluição que se pretende, precisamente, desincentivar.

                Nos casos de locação financeira ou, por exemplo, aquisição com reserva de propriedade, o legislador optou por onerar com a obrigação de imposto não os proprietários, mas os indivíduos a quem cabe o gozo (potencial de utilização) exclusivo dos veículos automóveis: os locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade ou locatário com opção de compra que é equiparado, nesses casos, ao proprietário do veículo automóvel em questão, para os efeitos do n.  1 do artigo 3º do CIUC, i.e., para ser considerado sujeito passivo do IUC.

                Daí que, vigorando um contrato de locação financeira no momento em que se torna exigível o IUC, é ao locatário – e não ao locador (ainda que seja este que detém a propriedade jurídica do veículo) –, que compete liquidá-lo, por ser o sujeito passivo do imposto.

                Considerando que os veículos automóveis em apreço já se encontravam na posse dos respectivos locatários no termo do mês da matrícula –, sem excepção, dever-se-á necessariamente concluir que a responsabilidade tributária pertencia não à entidade locadora, aqui Requerente, mas aos locatários.

                Conclui, por isso, a Requerente pela ilegalidade das liquidações objecto do pedido arbitral, bem como do aludido despacho de indeferimento.

 

 

5.            Por seu turno a Requerida veio em resposta alegar, em síntese:

                Deverá ter-se presente que com a redacção dada ao art. 3º do CIUC pelo DL 41/2016, de 1 de Agosto (a Requerida faz sempre referência ao longo do articulado ao DL 41/2006 o que se assume como lapso), e atendendo a que os actos tributários em causa se referem, respectivamente, aos anos de 2013 e de 2018, são dois – e diferentes - os regimes legais aplicáveis.

                A pretensão da Requerente assenta em equívoco, que resulta, não só de enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

                Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, o certo é que o legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.

                Em resultado da controvérsia jurisprudencial gerada em torno do art. 3º do CIUC – e, designadamente, que até à alteração legal ocorrida em 2016, à luz da letra daquele preceito, o contribuinte podia demonstrar que, ainda que constasse do registo automóvel como titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, não era efectivamente o titular desse direito à data da liquidação – o legislador fiscal entendeu por bem alterar aquela norma, esclarecendo, definitivamente, que a tributação incide sobre o titular do direito de propriedade do veículo automóvel, talqualmente como ele se encontra no registo automóvel.

                Pelo que, desde 2016-08-02 o art. 3º, n.º 1 do CIUC deixou de consagrar qualquer presunção legal como vinha entendendo a jurisprudência, ou seja, por via da alteração legislativa a incidência incide sobre a pessoa que detém o registo da propriedade automóvel ou, se se preferir, o proprietário registado, quer dizer, a pessoa cujo nome figura no registo automóvel.

                Como, no que se refere ao veículo com a matrícula ..., a Requerente não levou a registo o pretenso contrato de locação financeira subjacente ao mesmo, nem deu cumprimento à obrigação de comunicação prevista no art. 19º do CIUC, inexiste à data do facto gerador do imposto qualquer registo de locação financeira que, para efeitos de IUC, possa equiparar o locatário a proprietário.

                E assim é uma vez que, com a aludida alteração legislativa, o registo automóvel passou a ser o elemento definidor das regras de incidência, tendo sido afastada qualquer hipótese de ilisão.

                Ainda que se concluísse estar perante um contrato de locação financeira, sempre cabia à Requerente demonstrar ter dado

                Desse modo, hoje inexiste qualquer presunção ilidível do disposto naquele artigo.

                A interpretação defendida pela Requerente do art. 3º, n.º 1 do CIUC, na redacção actual, seria desconforme à Constituição, por violação dos princípios da confiança, da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade.

                Conclui a Requerida pela legalidade dos acto tributários em crise, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços.

 

6. Por despacho de 19-03-2019 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT.

 

7. Tendo sido concedido prazo para apresentação de alegações escritas, só a Requerente o veio a fazer, nas quais, além de sustentar o vertido no pedido inicial, vem defender que o art. 33º, n.º 1 e 2 do CIUC, contém, pese embora a redacção introduzida pelo DL 41/2016, uma presunção ilidível.

 

* * *

 

SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

A cumulação de pedidos é legal (artigo 3º, n.º1 do RJAT).

 

B. DECISÃO

 

1. MATÉRIA DE FACTO

 

1.1. FACTOS PROVADOS

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente é uma instituição de crédito, assumindo especial relevância, na sua actividade comercial, o financiamento ao sector automóvel, designadamente através da celebração de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração.

b)           A Requerente foi notificada da liquidação de IUC relativo ao ano de 2013, com referência ao veículo automóvel com a matrícula ..., relativamente ao qual celebrou contrato de aluguer sem condutor com início em 24-05-2007 e termo em 15-06-2013.

c)            A Requerente foi notificada da liquidação de IUC relativo ao ano de 2018, com referência ao veículo automóvel com a matrícula ..., relativamente ao qual celebrou contrato de locação financeira com início em 28-08-2017 e termo em 25-08-2024.

c)            A Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente ao IUC incidente sobre a matrícula ... e, na sequência do seu indeferimento, recurso hierárquico para a Direcção de Serviços de IMT, IS, IUC e CE, o qual foi objecto de despacho de indeferimento pela Senhora Directora dos Serviços Centrais de 24-07-2018.

d)           A Requerente procedeu ao pagamento do imposto a que respeitam os presentes autos.

 

1.2          Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo pela Requerente, cuja autenticidade não foi posta em causa pela requerida.

 

1.3          FACTOS NÃO PROVADOS

               

                Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.

 

1.4          O DIREITO

 

A primeira questão de fundo a apreciar no presente processo reside, por um lado, na interpretação a dar ao n.º 1 do art. 3º do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão ou se, pelo contrário, contém uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário. E, por outro lado, se tal entendimento foi alterado com a nova redacção dada àquele preceito pelo DL 41/2016, de 1 de Agosto.

 

Dispunha o n.º 1 do art. 3º do CIUC, antes daquela alteração legislativa, que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”.

 

Com base na redacção deste preceito, sustenta a Requerida - AT - que a base de incidência pessoal, que este define, não comportava qualquer presunção legal, uma vez que aquele transmitia de forma expressa e intencional o pensamento do legislador tributário, no sentido de se considerar, de modo irrefutável, como sujeitos passivos do IUC as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.

 

Aduz em abono da sua tese, razões hermenêuticas de interpretação da lei, com apelo não só à sua literalidade, como aos elementos sistemático e teleológico.

 

Invocação plena de sentido, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 11º da LGT, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. É que, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação a tal artigo, “… sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir”.

 

É, pois, dentro deste quadro de interpretação da lei fiscal, no caso o art. 3º, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a Requerente e a AT.

 

Para a Requerida é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel, de modo a que será considerado como tal, de modo irreversível, aquele em nome de quem este está registado.

 

O registo de propriedade de veículos é, face ao disposto no art. 5º, n.º 1, a) e n.º 2 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, obrigatório, pelo que, qualquer direito de propriedade que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.

 

Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do referido DL 54/75), da “… presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

 

Temos, por isso, que a inscrição de registo de propriedade do veículo é, também ela, uma presunção de que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.

 

Quer dizer, o registo de propriedade automóvel não constitui qualquer condição de validade dos contratos a ele sujeitos, à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel); pelo contrário, o registo tem uma função meramente declarativa.

 

Acontece que o art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, impõe que “os factos sujeitos a registos só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”. Do que parece resultar que tal bastaria para que a AT invocasse a ausência de registo para fazer funcionar de imediato o art. 3º, n.º 1 do CIUC, exigindo o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.

 

Sucede que o n.º 4 do art. 5º do Código do Registo Predial restringe tal entendimento, ao determinar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Donde resulta que, por essa via, nunca a AT estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.

 

Posto isto em termos gerais, há que apurar se, pese embora o que vem de referir-se, o n.º 1 do art. 3º do CIUC continha ou não, na sua versão originária, uma presunção legal.

 

Tudo está, em suma, em determinar se a expressão “considerando-se”, ali utilizada, tinha a natureza de presunção legal.

 

Diga-se, desde já, que nos parece ofensivo da unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, em oposição aos n.º 2 e 3 do art. 11º da LGT - que um indivíduo venha a considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e tenha de o ser necessariamente para efeitos tributários.

 

Ao que acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, insíto ao ditame constitucional da capacidade contributiva.

 

Seja como for, parece evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão “considerando-se”, adoptada no n.º 1 do art. 3º do CIUC contemplava inequivocamente uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade da expressão, nem o ordenamento tributário.

 

A este propósito, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pag. 651: “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, como sucede, por exemplo, nos n.º 1 a 5 do art. 6º, na alínea a) do n.º 3 do art. 10º, no art. 19º e 40º, n.º 1, do CIRS. No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real …”, enumerando-se depois um conjunto de exemplos.

 

Entendemos que é precisamente esse o caso que o art. 3º, n.º 1 do CIUC contempla: uma presunção implícita. Presunção, aliás, que sempre existiu no domínio do imposto de circulação automóvel, pese embora anteriormente definido de forma explícita.

 

É, pois, para nós incontroverso que o art. 3º, n.º 1 do CIUC consagrava uma presunção de incidência subjectiva. Era, aliás, pacífico o entendimento jurisprudencial arbitral nesse sentido (vejam-se a título meramente exemplificativo as decisões proferidas nos processos do CAAD nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013 e 154/2014 539/2016-T, 580/2016-T, 623/2016-T, 109/2017-T, 145/2017-T ou 185/2017-T (omitindo-se aqui a referência às decisões proferidas pelo signatário no mesmo sentido), bem como dos tribunais estaduais (Cf. Ac. TCA Sul de 19-03-2015 – Proc. 08300/14).

 

Ora, o n.º 2 do art. 350º do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei.

 

E, no que respeita à ilisão das presunções, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18 de Maio) - para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral - defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): “… as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure er de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado”.

 

Por seu turno, no âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária, como a que o n.º 1 do art. 3º do CIUC consagra, são juris tantum e, como tal, ilidíveis.

 

Diga-se, aliás, que também a Requerida, pese embora as longas considerações tecidas no seu articulado, propende a aceitar o mesmo entendimento.

 

Mas, se assim era antes da aludida alteração legislativa, há que apurar se o legislador pretendeu que fosse outro o sentido e alcance do art. 3º do CIUC.

 

Após a entrada em vigor do referido DL 41/2016 de 1 de Agosto, o n.º 1 do art. 3º do CIUC passou a ter a seguinte redacção:

- “São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”.

 

Face a esta nova redacção defende a Requerida que, desde 02-08-2016 (data da entrada em vigor do DL 41/2016), “o artigo 3º, n.º 1 do CIUC deixou de consagrar qualquer presunção legal” e que, por via da alteração legislativa, “a opção tomada pelo legislador foi muito clara: a incidência incide sobre a pessoa que detém o registo da propriedade automóvel ou, se se preferir, o proprietário de direito ou o proprietário registado”.

 

Pelo contrário, sustenta a Requerente, designadamente nas alegações que apresentou, que tal alteração legislativa nada trouxe de novo além de uma clarificação, porque, “via de regra, a propriedade dos veículos automóveis e o registo da mesma coincidem … e não coincidindo o proprietário de direito ou o proprietário registado há-de fazer prova do contrário, com todas as consequências legais que daí advêm na delimitação subjectiva do imposto”. Daí que os n.ºs 1 e 2 do art. 3º do CIUC continuem a contemplar uma presunção ilidível da propriedade dos veículos.

 

Vejamos. Não desconhecemos a decisão arbitral (Proc. 333/2018-T) que a Requerente invoca para defesa da sua tese e na qual se conclui que a nova redacção daquele preceito em nada altera o sentido de o mesmo conter uma mera presunção ilidível.

 

Todavia, não a podemos acompanhar.

 

E tal conclusão não contende com o entendimento acima sufragado de que o registo de propriedade de veículo tem um efeito meramente declarativo e não constitutivo de qualquer direito.

 

É que a nova redacção do n.º 1 do art. 3º do CIUC não remete, como regra de incidência subjectiva, para o conceito de propriedade - como até então fazia ao dizer que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados – mas antes para uma delimitação fáctica: a mera existência do registo, circunstância que entendemos passou a ser o elemento definidor da incidência subjectiva do imposto.

 

E diga-se que precisamente em virtude de se ter agora “empurrado a tónica do imposto determinante da incidência do imposto para o registo” – “são sujeitos passivos as pessoas em nome das quais se encontre registada a propriedade” - e não para o instituto da propriedade em si, como então – “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” -, a incidência do imposto nos moldes actuais é diferente da que tínhamos antes da alteração legislativa. Dizemos mais. Como até aí o elemento delimitador da incidência era a propriedade e como o registo dessa mesma propriedade não tem efeitos constitutivos mas meramente declarativos, obviamente que feita prova da não propriedade, estaria afastada a presunção contemplada no art- 3º do CIUC, o que, bem ou mal, actualmente não existe.

 

O intérprete deve aplicar a lei partindo do seu elemento literal não descurando os demais como o contexto histórico, teleológico ou a unidade do sistema (art. 9º, n.º 1 do C. Civil), mas deve assumir que o legislador se soube exprimir correctamente (n.º 2).

 

Ora, o próprio preâmbulo do DL 41/2016 justifica a alteração introduzida com a “necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto”.

 

Aliás, não tendo o legislador pretendido que assim não fosse, não se vislumbra que necessidade de alteração ou esclarecimento careceria o art. 3º do CIUC.

 

É certo que o IUC tem como pressuposto o custo ambiental e viário da utilização efetiva do automóvel, pretendendo onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária. O que faz acolhendo os princípios, com consagração no nosso ordenamento comunitário e até constitucional, do poluidor-pagador e da equivalência. Face a tais preocupações de ordem ambiental e energética, pretender-se-á que os custos decorrentes dos danos ambientais provocados pela utilização dos veículos automóveis sejam suportados pelos reais proprietários (e não pelos presumidos proprietários).

 

Todavia – face à reconhecida dificuldade em tributar os efectivos proprietários, decorrentes do incumprimento de obrigações registrais - num equilíbrio e ponderação de interesses terá o legislador fiscal pretendido fazer prevalecer a existência do registo, à da efectiva propriedade, como elemento delimitador da incidência do imposto.

 

Somos, por isso, forçados a concluir que o art. 3º do CIUC, na redacção dada pelo DL 41/2016 não contempla qualquer presunção, cuja ilisão a afaste da incidência do imposto.

 

Donde nenhuma censura nos merece a liquidação de IUC contestada nos autos relativamente ao veículo com a matrícula ..., com referência ao ano de 2018.

 

No que respeita a à liquidação sobre a matrícula ... alega a Requerida que, não tendo a Requerente dado cumprimento à comunicação prevista no art. 19º do CIUC, nunca se poderia ter por afastada a presunção de propriedade pelo que estará de forma inelutável sujeita a imposto.

 

Rejeitamos liminarmente tal tese, acrescentando-se que a delimitação de incidência dum imposto nunca poderia resultar do incumprimento duma obrigação tributária acessória, como tal entendimento propugna.

 

Por outro lado, dos elementos probatórios trazidos aos autos pela Requerente, designadamente de contrato escrito – e que não foi impugnado pela Requerida – resulta, de forma inequívoca, que a Requerente era locadora, através de contrato de aluguer de longa duração, na data de pagamento da liquidação relativa a 2013.

 

Provada tal circunstância e uma vez que a AT não tem legitimidade para opôr a ausência de registo, por não ser para tais efeitos tida como terceiro, impõe-se a anulação da liquidação de IUC objecto do presente pedido arbitral.

 

JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

 

No caso em apreço, é manifesto que ocorreu, de facto, erro imputável à AT na liquidação em crise que por sua iniciativa o praticou sem suporte legal.

 

Pelo que assiste à Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios relativamente àquele imposto.

 

 

3. DECISÃO

 

Face ao exposto, decide-se:

 

                a)            julgar parcialmente procedente, por vício de violação de lei, o pedido de anulação do acto tributário correspondente à liquidação de IUC relativa ao ano de 2013. com referência à matrícula ..., bem como do despacho de indeferimento proferido em sede de reclamação graciosa;

                b) julgar improcedente o demais peticionado dele absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira;

                c)            condenar as partes nas custas do processo na proporção do respectivo decaimento, sendo 192,00 € a cargo da Requerente e 114,00 € a cargo da Requerida.

 

 

VALOR DO PROCESSO:   De acordo com o disposto nos art. 306º, n.º 2 do Código de Processo Civil, art. 97º-A, n.º 1, a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e art. 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 51,41 € (cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos).

 

 

CUSTAS:              Nos termos do disposto no art. 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 306,00 € (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de Junho de 2019

 

O árbitro

 

António Alberto Franco