Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 699/2018-T
Data da decisão: 2019-05-27  IMI  
Valor do pedido: € 6.399,76
Tema: AIMI - Terreno para construção.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

1.            A..., LDA., com o NIF..., com sede na ..., n.º..., em ..., doravante designada por “Requerente”, veio solicitar a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2º e na alínea a) do n.º 1 do art.º 10º do Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentando pedido de pronúncia arbitral visando a declaração da ilegalidade e a anulação do ato de liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI) com o n.º 2018...,  referente a 2018, no montante de € 6.399,76.

2.            É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).

3.            O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 28-12-2018.

4.            A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 03-01-2019.

5.            Dado que a Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, foi o signatário designado como árbitro, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.

6.            Em 15-02-2019 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11.º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

7.            Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 07-03-2019.

8.            A Requerente fundamenta o pedido de pronúncia arbitral alegando, em síntese, o seguinte:

a)            O ato de liquidação ora impugnado resulta da indevida tributação em AIMI de um terreno para construção afeto a serviços;

b)           A Requerente jamais poderia licitamente construir no lote de terreno em causa qualquer edificação afeta a habitação, dado que nunca poderá dispor de licença com essa finalidade, que sempre seria nula nos termos dos artigos 68.º, n.º 1, a) e 77.º, n.ºs 1 e 3, do RJUE;

c)            O alvará de loteamento especifica que o lote de terreno em causa se destina à edificação de uma unidade turística;

d)           O legislador não quis tributar em AIMI o titular de edifícios comerciais ou para serviços durante a fase da sua construção, ao mesmo tempo que o exonera do AIMI relativamente aos seus edifícios comerciais já construídos;

e)           O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção será sempre menos de metade do valor patrimonial tributário das edificações neles autorizadas ou previstas nos termos do disposto no artigo 45.º do CIMI;

f)            No caso vertente, o VPT do terreno para construção corresponde a 35% do valor patrimonial da edificação nele prevista, conforme resulta do n.º 2 do artigo 45.º do CIMI conjugado com o respetivo zonamento municipal;

g)            O coeficiente de localização utilizado pela AT para avaliar o terreno foi o correspondente ao zonamento para a afetação serviços, de 2,1 – em lugar do coeficiente de localização de 1,6 correspondente ao zonamento habitação;

h)           De igual modo, o coeficiente de afetação aplicado na avaliação do lote de terreno tem o valor de 1,10, e não de 1, o que significa que, também na perspetiva da AT, o mesmo está, nos termos do artigo 41.º do CIMI, afeto a serviços e não a habitação;

i)             A liquidação impugnada atinge, assim, injustamente, o proprietário com a capacidade contributiva mais precária, ao mesmo tempo que exonera o proprietário com capacidade contributiva plena;

j)             A AT tem divulgado uma subsunção meramente mecânica e literal dos terrenos para construção – seja qual for a sua afetação ou destino – à previsão normativa do artigo 135.º-B do CIMI, a qual conduz à incoerência e à insegurança sistemática;

k)            Constituindo o lote de terreno em causa nestes autos um ativo imobiliário afeto a uma atividade comercial, quer em termos físicos e económicos, quer nos termos em que a lei os define, sobre a sua propriedade não incide o AIMI;

l)             Entre um resultado da interpretação que está de acordo com a Constituição e um outro que o não está, deve prevalecer aquele que salva a constitucionalidade da norma;

m)          A entender-se que a norma de incidência de AIMI exclui os edifícios comerciais aptos ao funcionamento, mas inclui os edifícios comerciais ainda em fase de construção, haveria violação manifesta do princípio da igualdade vertical;

n)           A interpretação que a AT faz da base de incidência do AIMI – e do correspetivo campo de exclusão – ignora por completo a capacidade contributiva como pressuposto, critério e medida do imposto, ferindo assim o princípio da igualdade perante a Lei;

o)           A interpretação da AT não só inviabiliza a pretendida neutralidade do AIMI relativamente aos ativos imobiliários afetos a uma atividade económica, como dá azo a um impacto agravado na atividade económica, em resultado da distorção concorrencial causada pela tributação de apenas certos comerciantes – e logo aqueles com menor capacidade contributiva;

p)           Mesmo que se entendesse que o entendimento da AT encontra respaldo no texto, fim e sentido da norma do n.º 2 do artigo 135.º-B do CIMI, sempre se haveria de concluir pela sua flagrante inconstitucionalidade e, consequentemente, pela ilegalidade da liquidação do AIMI sobre a ora Requerente com fundamento nessa norma.

9.            A Requerida apresentou Resposta, na qual apresentou defesa por impugnação, sustentando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral com base nos argumentos que de seguida se sintetizam:

a)            O art.º 135.º-B do CIMI consagra a incidência do AIMI sobre os prédios urbanos classificados como “habitacionais” e “terrenos para construção” nos termos das alíneas a) e c) do nº 1 do art.º 6.º do CIMI;

b)           O prédio em causa encontrava-se, à data do facto tributário, classificado como “terreno para construção”;

c)            Caso venha a existir uma edificação, teremos um novo facto tributário, um novo VPT e uma nova realidade jurídico-tributária que terá, no momento de verificação do novo facto tributário, o seu tratamento em sede de tributação efetuado em consonância com essa nova realidade;

d)           O legislador não fez qualquer distinção relativamente aos terrenos para construção em razão da sua afetação ou dos fins prosseguidos pelos seus titulares;

e)           A tese a que se propõe a Requerente contende direta e frontalmente com o princípio da tipicidade consagrado no artigo 130.º da CRP;

f)            O AIMI institui uma particular tributação sobre o património, nos termos de uma imposição real e objetiva, em que o respetivo sujeito passivo é determinado simplesmente pela qualidade de ser titular de certo direito real sobre prédios com as características legislativamente fixadas;

g)            No campo da tributação patrimonial, a regra da uniformidade o que impõe é uma igualdade horizontal, ou seja, que todos os que são titulares da mesma forma de riqueza sejam tributados da mesma maneira;

h)           Bem se compreende a solução legislativa de sujeitar a tributação todos os sujeitos passivos em atenção à titularidade das situações jurídicas relevantes sobre os prédios objeto da incidência objetiva, com independência da estruturação jurídica ou económica que possam possuir esses sujeitos passivos;

i)             Para efeitos do AIMI, e diferentemente da verba 28.1 (onde a Requerida tenta, em vão, escorar a sua argumentação), a lei não especifica que apenas são abrangidos pela incidência os “terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação”, e se a letra da lei não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo;

j)             É inconstitucional o artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI, quando interpretado no sentido de que excluídos da tributação aí prevista estão também os prédios classificados como terrenos para construção cujo fim potencial não seja habitacional, pois viola o princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. artigos 202.º e 203.º da CRP), bem como do princípio constitucional da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP) e, bem assim, do princípio da legalidade formulado nos artigos 103.º/2 e 165.º/1-i), todos da CRP;

k)            Qualquer interpretação que exclua a Requente do âmbito de incidência subjetiva do AIMI, em face dos imóveis constituírem o substrato da sua atividade, é também inconstitucional pois viola o princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. artigos 202.º e 203.º da CRP), bem como do princípio constitucional da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP) e, bem assim, do princípio da legalidade formulado nos artigos 103.º/2 e 165.º/1-i), todos da CRP.

10.          Na sua resposta, a AT requereu ao Tribunal que, em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral, seja determinada a notificação ao Ministério Público da decisão arbitral, com fundamento no disposto no artigo 280.º, n.º 3, da CRP e no artigo 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.

11.          Por despacho de 11-04-2019, este Tribunal, ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), tendo em conta que não foram suscitadas exceções e que não foi requerida a produção de prova adicional, decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinar que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas, a apresentar pelas Partes no prazo simultâneo de 10 dias, conforme previsto no artigo 91.º, n.º 5, do CPTA, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

12.          As Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram os argumentos constantes do pedido de pronúncia arbitral e da resposta.

 

II – SANEADOR

13.          Não foram suscitadas exceções.

14.          A apresentação do pedido de pronúncia arbitral foi tempestiva.

15.          As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

16.          Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.

 

III. MÉRITO

III. 1. MATÉRIA DE FACTO

§1.         Factos provados

17.          O Tribunal considera provados os seguintes factos:

a)            A Requerente é proprietária do terreno para construção sito na ..., denominado “Lote...”, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... e ... sob n.º ... e descrito na CRP de ... sob n.º ... (docs. n.ºs 2, 3 e 4, juntos aos autos pela Requerente), com o valor patrimonial tributário de € 1.599.940;

b)           A Requerente dedica-se à exploração e gestão de estabelecimentos hoteleiros e de empreendimentos turísticos (doc. n.º 5, junto aos autos pela Requerente);

c)            O Lote ... acha-se titulado pelo alvará de loteamento n.º .../2000, emitido em 20 de abril de 2000, e respetivos aditamentos emitidos pela Câmara Municipal de ..., (docs. n.ºs 6, 7 e 8, juntos aos autos pela Requerente);

d)           De acordo com o especificado no alvará de loteamento, incluindo nos seus aditamentos, o Lote ... em causa nos presentes autos perfaz uma área total de 3.904 m2 e destina-se à edificação de uma unidade turística (docs. n.ºs 6, 7 e 8, juntos aos autos pela Requerente);

e)           A Requerente requereu ao Presidente da Câmara Municipal de ... que a autorizasse a iniciar a respetiva obra de construção do estabelecimento hoteleiro, assim especificado no alvará de loteamento (doc. n.º 9, junto aos autos pela Requerente);

f)            Em 2018, a AT liquidou o AIMI relativo ao imóvel melhor descrito supra – liquidação n.º 2018..., de 30/06/2018 – daí resultando um valor de AIMI a pagar de €6.399,76;

g)            O AIMI impugnado foi integralmente pago pela Requerente no dia 24 de setembro de 2018 (doc. n.º 10, junto aos autos pela Requerente).

§2. Factos não provados

18.          Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

19.          Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

§1.         Questões decidendas e enquadramento legal

20.          A questão que constitui o thema decidenduum reconduz-se a saber se o terreno para construção referido nos autos, atendendo a que se destina a uma edificação para fins “comerciais, industriais ou serviços” ou considerando que o mesmo constitui substrato da atividade económica da Requerente, está abrangido pelas normas de incidência objetiva do AIMI, previstas no artigo 135.º-B do CIMI, pelo que há que decidir sobre a legalidade ou ilegalidade da liquidação impugnada.

21.          Em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral há que decidir, ainda, sobre o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, formulado pela Requerente, bem como sobre o requerimento de notificação da decisão arbitral ao Ministério Público, formulado pela Requerida em sede de Resposta.

22.          A Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2017) aditou ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) o capítulo XV, com os artigos 135.º-A a 135.º-K, que contêm o regime jurídico do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI).

23.          No artigo 135.º-A do CIMI define-se a incidência subjetiva do AIMI, prevendo-se aí que “são sujeitos passivos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis as pessoas singulares ou coletivas que sejam proprietários, usufrutuários ou superficiários de prédios urbanos situados no território português” (n.º 1), sendo “equiparados a pessoas coletivas quaisquer estruturas ou centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica que figurem nas matrizes como sujeitos passivos do imposto municipal sobre imóveis, bem como a herança indivisa representada pelo cabeça de casal” (n.º 2).

24.          O artigo 135.º-B define a incidência objetiva do AIMI, nos seguintes termos:

“(…)

1 - O adicional ao imposto municipal sobre imóveis incide sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos situados em território português de que o sujeito passivo seja titular.

2 - São excluídos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do nº 1 do artigo 6º deste Código.

(…)”.

25.          O artigo 6.º do CIMI prevê o seguinte:

“(…)

1 - Os prédios urbanos dividem-se em:

a) Habitacionais;

b) Comerciais, industriais ou para serviços;

c) Terrenos para construção;

d) Outros.

2 - Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.

3 - Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos. 

4 - Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da excepção do n.º 3”.

26.          A primeira questão que importa analisar e decidir é, então, a que se prende com saber se um terreno para construção cuja edificação potencial seja para comércio, indústria ou serviços está, ou não, sujeito a AIMI.

27.          A jurisprudência arbitral é reveladora de uma divergência significativa quanto à resposta a dar a esta questão.

28.          Uma parte da jurisprudência arbitral, com base numa interpretação literal dos preceitos normativos relevantes, entende que os terrenos para construção de edifícios para comércio, indústria ou serviços estão sujeitos a AIMI, uma vez que não estão abrangidos pela exclusão de incidência prevista no n.º 2 do artigo 135.º-B do CIMI (refiram-se, neste sentido, e a título exemplificativo, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 654/2017-T, 664/2017-T, 667/2017-T, 676/2017-T, 678/2017-T, 682/2017-T, 683/2017-T, 684/2017-T, 685/2017-T, 690/2017-T, 692/2017-T, 401/2018-T e 574/2018-T).

29.          Uma outra parte da jurisprudência arbitral, fundada numa interpretação extensiva do preceito contido no n.º 2 do artigo 135.º-B do CIMI, sustenta a exclusão da incidência de AIMI sobre os terrenos para construção de edifícios para comércio, indústria ou serviços (refiram-se, neste sentido, e a título exemplificativo, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 668/2017-T, 669/2017-T, 675/2017-T, 677/2017-T, 679/2017-T, 681/2017-T, 686/2017-T, 687/2017-T, 688/2017-T, 694/2017-T, 8/2018-T e 517/2018-T).

30.          Importa compreender as razões que estão na origem desta controvérsia, que, note-se, não nasceu com o AIMI.

 

§2.         Antecedentes históricos

31.          Na vigência da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, suscitou-se a questão de saber se os terrenos para construção com valor patrimonial igual ou superior a €1.000.000 se subsumiam, ou não, na espécie de “prédio com afetação habitacional”.

32.          À data, alguma doutrina entendia que que o conceito de “prédio com afetação habitacional”, para efeitos do disposto na verba n.º 28.1 da TGIS, compreendia quer os prédios edificados quer os terrenos para construção, e que a afetação habitacional, para efeitos de aplicação da verba 28, não implicava necessariamente a existência de edifícios ou construções, pelo que se aplicaria a terrenos para construção com essa afetação.

33.          Essa doutrina aduzia ainda o argumento de que a afetação do imóvel é um coeficiente que concorre para a avaliação e determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção.

34.          A jurisprudência propendeu, no entanto, para uma interpretação diferente, com destaque para o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23/04/2014, que, com base na distinção entre “prédios urbanos habitacionais” e “terrenos para construção”, entendeu que estes não podiam ser considerados para efeitos de incidência da verba 28.1 da TGIS.

35.          Esta jurisprudência veio a ser posta em crise no momento em que o legislador decidiu atribuir força de lei ao entendimento que sustentava a sujeição à verba 28 da TGIS dos terrenos para construção com afetação habitacional e, através da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, deu nova redação à verba 28.1 da TGIS.

36.          Com a entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, a verba 28.1 da TGIS passou abranger os terrenos para construção “cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI”.

37.          Esta alteração legislativa teve um significado importante: apesar de se ter mantido inalterada a classificação dos prédios urbanos contida no n.º 1 do artigo 6.º do CIMI, passou a reconhecer-se relevo jurídico-tributário, em sede de Imposto do Selo, à afetação da edificação autorizada ou prevista para cada terreno.

38.          Dito de outro modo, o legislador veio afirmar que, do ponto de vista jurídico-tributário, os terrenos para construção não são todos iguais.

39.          Os terrenos para construção passaram a ser objeto de tratamento diferenciado, em sede de Imposto do Selo, em função da afetação da edificação autorizada ou prevista.

40.          Assim, e apesar de não ter sido alterada a redação do artigo 6.º do CIMI, a doutrina e a jurisprudência passaram a fazer referência à afetação potencial da edificação dos terrenos para construção, como sucede, designadamente, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 378/2018, proferido no âmbito do Processo n.º 156/2016, no qual se decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aprovada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, e alterada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, na parte em que impõe a tributação anual sobre a propriedade de terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a €1.000.000,00”.

41.          Isto significa que o próprio Tribunal Constitucional reconhece que, no domínio jurídico-tributário, os terrenos para construção não são todos iguais.

42.          Tomando por base o artigo 6.º do CIMI, a classificação dos prédios urbanos como “terrenos para construção” [alínea c)] cruza-se, deste modo, com a classificação prédios urbanos “habitacionais” [alínea a)].

43.          Ou seja, a classificação de um prédio urbano como terreno para construção não exclui o relevo jurídico-tributário das classificações do artigo 6.º que têm como critério material subjacente a afetação dos prédios urbanos – alínea a): “habitacionais”; alínea b): “comerciais, industriais ou para serviços”; alínea d) “outros”.

44.          A evolução legislativa e jurisprudencial de que demos nota permite identificar a transição de um entendimento que distinguia claramente entre “terrenos para construção” e prédios habitacionais, para uma outra que combina a classificação “terrenos para construção” com a afetação da respetiva edificação potencial, com as consequências jurídico-tributárias expostas supra no caso de se estar perante o terreno para construção de habitação.

45.          A entrada em vigor do AIMI, e a revogação da verba 28 da TGIS, não apagou a referida evolução legislativa e jurisprudencial, que, não assumindo relevo decisivo no caso sub judice, mostra porque razão as dúvidas em torno dos “terrenos para construção” e do eventual relevo jurídico da afetação da respetiva edificação potencial mantém acuidade.

 

§3.         Quanto à ilegalidade da liquidação por erro de interpretação das normas aplicáveis

46.          O legislador do AIMI, no n.º 2 do artigo 135.º-B, decidiu excluir deste imposto os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º deste Código.

47.          Deste modo, o legislador sujeita a AIMI os prédios destinados a habitação e exclui a incidência do AIMI relativamente aos prédios destinados a comércio, indústria ou serviços e a outras atividades.

48.          Numa interpretação meramente literal do preceito, dir-se-ia que, não sendo feita referência aos “terrenos para construção” no preceito que exclui a incidência do AIMI (n.º 2 do artigo 135.º-B), então eles estariam sujeitos a AIMI por força do disposto no n.º 1 do artigo 135.º-B.

49.          Num outro percurso interpretativo, pode sustentar-se que se o legislador decidiu excluir a incidência de AIMI dos prédios urbanos destinados a comércio, indústria ou serviços ou a outras atividades, então os terrenos para construção de edifícios com alguma dessas afetações estão também excluídos do AIMI.

50.          Estamos perante dois sentidos interpretativos distintos para o preceito contido no n.º 2 do artigo 135.º-B do CIMI, pelo que o intérprete deve procurar o sentido que se revele sistemicamente mais coerente e que seja mais conforme à Constituição.

51.          Quanto a esta questão, este Tribunal subscreve a fundamentação contida na decisão arbitral n.º 686/2017-T, quando aí se afirma o seguinte:

“[…]

Sendo o facto tributário escolhido como índice de capacidade contributiva a titularidade de património imobiliário de valor considerado elevado, não terá coerência não aplicar o tributo a edifícios destinados a comércios, indústria ou serviços e aplicá-lo aos terrenos que se destinam à sua construção, cujo valor é incorporado no valor dos edifícios.

Assim, numa perspectiva que tenha em mente a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), que tem valor interpretativo decisivo, imposto pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica [BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, página 191], deverá interpretar-se extensivamente a exclusão prevista no n.º 2 do artigo 135.º-B do CIMI relativa aos prédios urbanos classificados como «para serviços» como expressando uma intenção legislativa de excluir também da tributação os terrenos destinados à construção desses prédios.

De qualquer forma, a adoptar-se uma interpretação literal desta norma, com o sentido de todos os terrenos para construção estarem abrangidos pela incidência do AIMI, ela será materialmente inconstitucional, sendo incompaginável com o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), ao considerar facto tributário a titularidade de terrenos para construção de prédios destinados a comércio, indústria e serviços e não a titularidade dos prédios neles construídos, por consubstanciar um tratamento desprivilegiado dos contribuintes que se encontram na primeira situação, sem justificação material, pois é necessariamente menor a capacidade contributiva indiciada pelo património imobiliário nessa situação, que terá de estar presente, e com aumento, na segunda.

[…]”.

52.          Assim, numa interpretação em conformidade com a Constituição, que atenda ao critério da capacidade contributiva, subjacente ao princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, e tendo em conta a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), deve interpretar-se extensivamente a exclusão prevista no n.º 2 do artigo 135.º- B do CIMI relativa aos prédios urbanos classificados como comércio, indústria e serviços, como expressando uma intenção legislativa objetiva de excluir também da tributação os terrenos destinados à construção desses prédios.

53.          No caso sub judice está em causa uma liquidação de AIMI referente a um terreno para construção de um estabelecimento hoteleiro, ou seja, um terreno para construção destinada a uma atividade comercial.

54.          Pelo exposto, é ilegal a totalidade da liquidação do AIMI impugnada, uma vez que o terreno para construção cujo valor patrimonial tributário foi considerado na liquidação se destina a uma atividade comercial.

55.          Entende a AT que o artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI, é inconstitucional quando interpretado no sentido de que exclusão de tributação aí prevista estão também os prédios classificados como terrenos para construção cujo fim potencial não seja habitacional, pois entende que tal interpretação viola o princípio constitucional da separação e interdependência de poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP) e do princípio da legalidade [artigos 103.º/2 e 165.º/1-i) da CRP].

56.          Sucede que, nos termos do artigo 204.º da CRP, os tribunais têm o poder-dever de, nos casos concretos submetidos a julgamento, desaplicar as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade), pelo que tal desaplicação em nada colide com o princípio da separação e interdependência de poderes.

57.          Mas sendo possível adotar uma interpretação normativa compatível com a Constituição, o tribunal deve acolhê-la, aproveitando, assim, a norma em causa e evitando um juízo de inconstitucionalidade sobre a mesma, o qual levaria à respetiva desaplicação.

58.          Foi precisamente uma interpretação em conformidade com a Constituição a adotada por este tribunal no caso sub judice, a qual conduziu à interpretação extensiva do artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI.

59.          A norma contida no artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI não foi julgada inconstitucional por este tribunal, nem foi a mesma desaplicada no caso sub judice.

60.          Ao contrário do que sustenta a AT, ao invés de violar o princípio da igualdade, a interpretação adotada permite compatibilizar a norma do artigo 135.º-B, n.º 2, da CIMI, com este princípio constitucional, na medida em que evita o tratamento injustificadamente desprivilegiado dos proprietários de terrenos para construção destinada a comércio, indústria e serviços relativamente aos proprietários de prédios edificados com a mesma afetação, atendendo a que é necessariamente menor a capacidade contributiva indiciada pelo património imobiliário dos primeiros do que dos segundos.

61.          Também não se vê em que media pode estar a ser violado o princípio da legalidade, uma vez que é aplicada a norma contida no artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI, interpretada em conformidade com a Constituição e tendo em linha de conta a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

62.          Concluindo-se pela ilegalidade da totalidade da liquidação de AIMI impugnada, é desnecessário analisar a questão referente à alegada inconstitucionalidade do artigo 135.º-B do CIMI por sujeitar a AIMI prédios urbanos que constituam substrato da atividade económica desenvolvida pelos respetivos proprietários.

 

§4.         Quanto ao pedido de reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios

63.          A Requerente pede que este Tribunal determine o reembolso dos montantes indevidamente suportados, e condene a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.

64.          De acordo com o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º do RJAT, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários […] [r]estabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

65.          Esta norma do RJAT é coerente com a previsão contida no artigo 100.º da Lei Geral Tributária, cujo texto é o seguinte:

«A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.»

66.          Quanto à possibilidade de o tribunal arbitral reconhecer o direito a juros indemnizatórios, prevê o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário».

67.          E, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, «[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

68.          Face à total procedência do pedido de pronúncia arbitral, reconhece-se à Requerente o direito ao reembolsado do montante indevidamente pago, pois tal reembolso é essencial para o restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto da presente decisão arbitral não tivesse sido praticado.

69.          Este Tribunal reconhece, igualmente, que a ilegalidade da liquidação em causa nos presentes autos resultou de erro imputável aos Serviços da Administração Tributária, traduzido na errada interpretação e aplicação da lei, pelo que se reconhece à Requerente o direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, sobre o montante a reembolsar.

70.          Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento até ao integral reembolso, por aplicação da taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

§5.         Quanto a outros pedidos formulados no processo

71.          A AT requereu ao Tribunal que, em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral, fosse determinada a notificação ao Ministério Público da decisão arbitral, com fundamento no disposto no artigo 280.º, n.º 3, da CRP e no artigo 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.

72.          Sucede que na presente decisão arbitral não é recusada a aplicação de qualquer norma, pelo que não é aplicável o artigo 280.º, n.º 3, da CRP nem o artigo 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que se indefere o pedido da AT de notificação da decisão arbitral ao Ministério Público para os efeitos previstos nesses artigos.

 

IV – DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Declarar ilegal e anular na totalidade, com todas as consequências legais, a liquidação de AIMI n.º 2018..., referente ao ano de 2018;

c)            Julgar procedente o pedido de reembolso do montante pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data do pagamento até integral reembolso, tudo conforme for apurado em sede de execução de sentença, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efetuar tal reembolso acrescido de juros;

d)           Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

V- VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 6.399,76.

 

VI – CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 27/05/2019

   

O Árbitro

(Paulo Nogueira da Costa)