Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 463/2018-T
Data da decisão: 2019-04-23  IRC IVA  
Valor do pedido: € 308.114,06
Tema: IVA e IRC - Cláusula geral antiabuso.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

          1. A..., S.A., com o número de matrícula e contribuinte n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ...– Vila Nova de Famalicão, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC e IVA e de liquidação de juros compensatórios, no montante global de € 308.114,06, referentes aos anos de 2014 e 2015.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

Os actos de liquidação adicional baseiam-se no relatório de inspeção tributária iniciado em 2018, que replica os relatórios de 2016 e 2017, relativos aos exercícios económicos de 2012 e  2013, e cujas liquidações neles fundadas foram objecto de impugnação judicial perante o tribunal administrativo e fiscal de Braga, violando-se desse modo o disposto no n.º 4 do artigo 63.º da LGT, segundo o qual só poderá haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço.

 

Viola ainda o disposto no artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA) quanto ao lugar do procedimento de inspeção, porquanto o Relatório qualifica o procedimento da inspeção como “externo” quando a Autoridade Tributária não desenvolveu uma real atividade inspectiva nas instalações do sujeito passivo.

 

Além de que as notas de liquidação são ininteligíveis quanto ao conteúdo, na medida em que os fundamentos delas constantes não permitem uma clara justificação dos critérios subjacentes aos valores exigidos para pagamento, quanto às taxas de juro aplicadas e aos períodos de tributação considerados.

 

Quanto à aplicação da cláusula antiabuso, a Autoridade Tributária não efectua a prova de que a Requerente integra um grupo societário, quando é certo que existe apenas um conjunto de empresas que representam um “grupo” em termos de relações comerciais ou de parceria de tal modo que, todas as relações que se foram estabelecendo entre a sociedade, aqui impugnante, e as sociedades suas clientes geraram obrigações de imposto  em sede de IRC e de IVA.

 

O fundamento principal da Autoridade Tributária para as liquidações de IVA e de IRC assenta em que a impugnante terá exercido ilegalmente a sua atividade de aluguer de viaturas quando é certo que desenvolve a sua actividade de acordo com as exigências legais desde 16 de agosto 2011, com base num pedido inicial de “licenciamento” segundo o regime jurídico em vigor e tendo obtido o alvará por intermédio da entidade competente (IMTT), que procedeu à sua actualização, em 2 de março de 2015, em consequência da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 181/2012 de 6 de Agosto.

 

A Requerente, por opção de organização empresarial, realizou negócios jurídicos normais de aluguer de veículos, consubstanciando esses alugueres em operações de exploração comercial conforme o seu objeto social, sendo irrelevante se o fez com estrito cumprimento do regime jurídico do aluguer de veículos previsto no Decreto-Lei n.º 181/2012.

Por efeito da actividade de aluguer de veículos que realizou, a Requerente adquiriu o direito de dedução do IVA suportado na aquisição dos veículos e a dedução como gastos em sede de IRC e da sua não sujeição a tributação autónoma, daí não resultando qualquer evitação de imposto

Sendo inaplicável a cláusula geral antiabuso por falta de preenchimento dos pressupostos legais, mormente quanto aos elementos meio, resultado, motivo, intelectual e sancionatório.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a acção inspectiva aplicou todos os princípios subjacentes ao procedimento de inspeção tributária, dando cumprimento ao disposto nos artigos 266.º, n.º 1, da Constituição e 55.º da LGT, e a decisão encontra-se suficientemente fundamentada mediante a exposição das razões de facto e de direito que permitiram que o sujeito passivo tenha compreendido perfeitamente o sentido e alcance do acto.

 

No que se refere à aplicação da cláusula geral antiabuso, resulta dos factos evidenciados no Relatório de Inspecção Tributária que estamos perante um grupo de empresas ligadas por vínculos jurídico-financeiros integrados no universo sociedade B..., com órgãos de administração comuns e com capacidade de influência mútua e que partilham a mesma sede.

 

Conclui-se ainda que foi efetuado um investimento em activos fixos tangíveis na ordem de um milhão e quatrocentos mil euros, incluindo a aquisição de veículos automóveis de alta gama e três embarcações de recreio e os únicos clientes da actividade de aluguer são as empresas do grupo.

O que significa que, na prática, a Requerente gere a frota de veículos utilizada em Portugal pelas empresas do Grupo B... a que pertence, daí resultando vantagens fiscais quanto à dedução do IVA, na medida em que a Requerente consegue evitar a exclusão do direito à dedução em relação a despesas de aquisição de viaturas de turismo e barcos de recreio, com o argumento de que se trata de despesas que respeitem a bens cuja exploração constitua objecto de actividade do sujeito passivo (artigo 21.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), do Código do IVA).

Assim como permite obter vantagens em sede de IRC mediante a aceitação das depreciações como gastos fiscalmente dedutíveis e a não sujeição a tributação autónoma dos encargos efectuados ou suportados com viaturas ligeiras por se tratar de viaturas destinadas ao exercício da actividade normal de aluguer.

 

Conclui no sentido da verificação dos pressupostos da cláusula geral antiabuso.

 

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações por prazo sucessivo.

 

Em alegações as partes mantiveram as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 4 de abril de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

3. As partes apresentaram alegações escritas, por prazo sucessivo, em que analisaram a matéria de facto e reiteraram as suas anteriores posições.

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

3. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. A Requerente foi objeto de procedimento de natureza externa, com referência aos anos de 2014 e 2015, credenciado pelas ordens de serviço n.º OI2017... e OI2017..., visando averiguar negócios jurídicos que pudessem encontrar-se cobertos pela cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;
  2. A acção inspectiva teve como razão justificativa a circunstância de num procedimento inspectivo referente ao ano de 2013 se terem detectado negócios jurídicos dirigidos à eliminação da incidência de impostos, por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, e que poderiam ser replicados nos anos subsequentes;
  3. A Requerente foi notificada do projecto de Relatório de Inspecção Tributária por ofício datado de 2 de outubro de 2017 para exercer o direito de audição;
  4. A Requerente exerceu o direito de audição nos termos que constam de fls. 56 do processo administrativo e que foi objecto de apreciação no âmbito do Relatório de Inspecção Tributária (fls. 105-108 do processo administrativo); 
  5. No Relatório de Inspecção Tributária foram propostas correcções em sede de IVA, no montante global de € 27.570,67, para o ano de 2014, e de  6.963,71, para o ano de 2015, em sede de IRC, no montante de € 170.335,38, para  ano de 2014, e de € 166.545,92, para o ano de 2015, e em tributações autónomas no montante de € 98.924,34, para o ano de 2014, e de € 95.598,21, para o ano de 2015;
  6. As conclusões do Relatório de Inspecção Tributária foi objecto de despacho de concordância da Directora de Finanças de Braga, de 4 de maio de 2018;
  7. Foram emitidos os actos de liquidação n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., no valor total de impostos e de juros de € 308.114,06;
  8. A Requerente foi notificada, por ofício datado de 6 de maio de 2016, do Relatório de Inspecção Tributária referente ao ano de 2012 no âmbito de uma acção inspectiva credenciada pela ordem de serviço n.º OI2016..., no qual foram propostas correcções à matéria tributável por indevida dedução de IVA, não aceitação fiscal de depreciações e em sede de tributação autónoma;
  9. A Requerente foi notificada, por ofício datado de 23 de março de 2017, do Relatório de Inspecção Tributária referente ao ano de 2013, no âmbito de uma acção inspectiva credenciada pelas ordens de serviço n.º OI2016..., no qual foram propostas correcções à matéria tributável por indevida dedução de IVA, não aceitação fiscal de depreciações e em sede de tributação autónoma;
  10. A Requerente impugnou judicialmente perante o tribunal administrativo e fiscal de Braga as liquidações de imposto em IVA e IRC que tiveram como fundamento o Relatório de Inspecção Tributária mencionado na antecedente alínea H);
  11. A Requerente impugnou judicialmente perante o tribunal administrativo e fiscal de Braga as liquidações de imposto em IVA e IRC que tiveram como fundamento o Relatório de Inspecção Tributária mencionado na antecedente alínea I);
  12. Em 16 de Agosto de 2011, a Requerente apresentou perante a Direcção Regional de Mobilidade e Transportes do Norte um pedido de licenciamento para a actividade de aluguer sem condutor de veículos automóveis de passageiros e mercadorias;
  13. A Requerente foi autorizada pelo alvará n.º .../2011, emitido em 23 de setembro de 2011, a exercer a actividade de aluguer de veículos ligeiros de passageiros sem condutor;
  14. A Requerente foi autorizada pelo alvará n.º .../2011, emitido em 23 de setembro de 2011, a exercer a actividade de aluguer de veículos de mercadorias sem condutor;
  15. A Requerente foi notificada pelo Instituto de Mobilidade e Transportes, IP, na sequência do novo regime jurídico de acesso à actividade de aluguer de veículos ligeiros de passageiros estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 181/2012, de 6 de Agosto, a apresentar, para regularização da situação, cópia do modelo de contrato tipo de adesão que contenha cláusulas contratuais gerais, habitualmente entregue ao locatário, e actualização de outros elementos, designadamente no que se refere ao estabelecimento fixo de atendimento ao público, aos veículos utilizados na actividade de rent-a-car e à idoneidade do requerente ou dos administradores, directores ou gerentes;
  16. Na sequência dessa notificação, a Requerente, por comunicação datada de 24 de março de 2015, remeteu modelo de contrato tipo, certidão permanente da sociedade, registos criminais dos gerentes e identificou as viaturas afectas à actividade de rent-a-car, informando que o estabelecimento fixo de atendimento ao público funciona na sede da empresa;
  17. A aplicação da cláusula geral antiabuso foi autorizada por despacho da Directora Geral da Autoridade Tributária de 11 de abril de 2018.


 

Não se provou que a Requerente dispusesse de um horário de funcionamento para disponibilização de veículos ao público dentro em locais específicos de atendimento.

 

 O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

            Matéria de direito

 

Vícios procedimentais

 

5. A Requerente começa por invocar como fundamento para a anulação dos actos de liquidação o recurso abusivo a sucessivos procedimentos de inspecção, com violação dos princípios da proporcionalidade, adequação e irrepetibilidade, baseando-se no disposto no n.º 4 do artigo 63.º da LGT.

 

Para assim concluir, alega que o Relatório de Inspecção Tributária de 2018, que incidiu sobre os anos económicos de 2014 e 2015, replicam os anteriores relatórios de 2017, que tinha por objecto o período de tributação de 2013, e de 2016, que abrangia o período de tributação 2012, e que a justificação dada para desencadear a acção inspectiva foi a circunstância de terem sido detectadas irregularidades relativamente aos anos de 2012 e 2013 que poderiam continuar a verificar-se nos anos subsequentes.

 

Conforme dispõe o citado artigo 63.º, n.º 4, da LGT, “o procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objectivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direito que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas”.

 

Como logo resulta do dispositivo, a limitação estabelecida para a abertura de um novo procedimento inspectivo reporta-se às situações em que se pretende averiguar a situação tributária do mesmo sujeito passivo, com referência ao mesmo imposto e período de tributação, sendo que só nessa circunstância é que a Administração carece, para renovar o procedimento, de invocar factos novos que permitam alargar a averiguação. Estando em causa, no procedimento inspectivo a que se refere o presente pedido arbitral, a averiguação da situação fiscal do sujeito passivo com referência aos exercícios de 2014 e 2015, logo se vê que não existe a identidade quanto ao período de tributação que é exigida pela falada norma do artigo 63.º, n.º 4, da LGT para obstar à abertura de um novo procedimento externo de fiscalização.

 

É também claro que não tem qualquer relevância para o caso que o sujeito passivo tenha, entretanto, impugnado judicialmente perante o tribunal tributário os actos adicionais de liquidação referentes aos anos de 2012 e 2013, que tiveram origem nos anteriores relatórios de inspecção tributária. A impugnação judicial de actos de liquidação referentes a períodos de tributação pretéritos não coarcta a Administração de desencadear um novo procedimento inspectivo para verificar o cumprimento das obrigações fiscais dos sujeitos passivos relativamente a exercícios económicos posteriores. E não pode deixar de ter-se em consideração que o prazo geral de exercício do direito de liquidação dos tributos é de quatro anos a contar do termo do ano em que se verificou o facto tributário (artigo 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT), prazo esse que só se suspende “em caso de litígio judicial de cuja resolução dependa a liquidação do tributo, desde o seu início até ao trânsito em julgado da decisão” (artigo 46.º, n.º 2, alínea a), da LGT).

 

Nestes termos, não havendo qualquer relação de dependência entre os processos impugnatórios e os factos tributários que são objecto de averiguação no novo procedimento inspectivo, não poderia ocorrer a suspensão do prazo de caducidade, pelo que a inércia administrativa relativamente à indagação desses outros factos tributários – ainda que com fundamento na precedente impugnação judicial – implicaria o risco de extinção do direito de liquidação pelo decurso do prazo de caducidade.

 

Não se verifica, por conseguinte, a alegada violação do disposto no n.º 4 do artigo 63.º da LGT.

 

6. A Requerente invoca ainda a ininteligibilidade das notas de liquidação e a falta de fundamento dos actos tributários e da aplicação da cláusula geral antiabuso, o que deve entender-se como se reconduzindo a um vício de falta de fundamentação.

 

A arguição afigura-se, no entanto, inteiramente inconsistente.

 

A fundamentação dos atos administrativos encontra-se especialmente prevista na Lei Geral Tributária, que, no seu artigo 77.º, na parte que mais interessa considerar, determina:

 

1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de fato e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2 - A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos fatos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo. 

(…).

 

 E, como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do ato administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do ato decidiu como decidiu e não de forma diferente.

 

Ora, no caso vertente – como decorre da parte III do Relatório de Inspecção Tributária – a Administração descreve o enquadramento societário do sujeito passivo (III.1.1.1) e a sua relação com outras entidades que são os exclusivos locatários das viaturas destinadas a aluguer (III.1.1.6), assim como refere a existência de administradores comuns nos diversos órgãos de gestão das sociedades relacionadas (III.1.1.5.). Analisa ainda a actividade do sujeito passivo no âmbito do aluguer de veículos sem condutor (III.1.2.2.), bem o regime jurídico aplicável (III.1.2.1.), e os contratos de aluguer registados (III.1.2.4.), e anota a disfuncionalidade do exercício da actividade em relação à legislação que regula o sector (III.1.2.5.). Enuncia ainda muito desenvolvidamente as razões que justificam a aplicação da cláusula geral antiabuso (III.1.3.1.), e, por fim, formula as propostas de correcção, quer em IVA (III.2.1.1.), quer em IRC (III.2.2.1.), quer em tributações autónomas (III.2.2.2.), mencionando em relação a cada desses tributos as disposições aplicáveis, qualificando e quantificando os factos tributários e descrevendo as operações de apuramento da matéria colectável e do tributo a liquidar.

 

Em suma, o Relatório de Inspecção Tributária concluiu que a Requerente, apesar de possuir um alvará para aluguer de veículos ligeiros de passageiros sem condutor, não exerce essa actividade, mas sim a gestão de um conjunto de veículos de topo de gama para um grupo empresarial. E muito dificilmente um destinatário normal não teria compreendido essa ilação que se encontra fundada em todos os demais considerandos que são expendidos no Relatório.

 

E o certo é que a Requerente, embora expressando de modo algo prolixo os seus pontos de vista - o que não é imputável aos termos em que o Relatório se encontra fundamentado -, não deixou de compreender o sentido e o alcance das correcções propostas e dos consequentes actos de liquidação.

 

Não há nenhum motivo, por todo o exposto, para considerar verificado o apontado vício de falta de fundamentação.

 

              7.  Alega ainda a Requerente que a Autoridade Tributária classificou o procedimento inspectivo como externo, mas não desenvolveu uma real atividade inspectiva nas instalações do sujeito passivo, o que representa uma violação do princípio da verdade material e da legalidade e pode conduzir à invalidade do acto tributário final.

              Uma das condições para a classificação do procedimento como externo é que os actos de inspecção se realizem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências do sujeito passivo e que não resultem da mera análise formal dos documentos detidos ou obtidos pela Administração no âmbito do procedimento (artigo 13.º do RCPITA).

              No caso, consta do Relatório de Inspecção Tributária que a ação inspectiva se iniciou, em 10 de julho de 2017, no local da sede do sujeito passivo, com a assinatura da ordem de serviço pelo contabilista certificado, e que os actos de inspecção se consideraram concluídos em 25 de setembro de 2017 com a notificação das notas de diligências ao contribuinte. Nada permite concluir, à luz dos elementos que constam do processo, que não tenham sido realizados actos de inspecção nas instalações do sujeito passivo, tanto que o procedimento se iniciou com a deslocação dos inspectores ao local da sede social,  e, por outro lado, houve lugar à notificação à Requerente das diligências que foram efectuadas no decurso do procedimento, o que sugere que a acção inspectiva se não limitou a uma mera análise formal de documentos que já se encontrassem na posse da Administração.

              Em todo o caso, a Requerente não indica – como lhe competia – quais as diligências instrutórias de que veio a ser notificada de modo a poder demonstrar que essas diligências não extravasam o âmbito meramente interno do procedimento, pelo que não é possível concluir no sentido da inobservância do disposto no artigo 13.º do RCPITA e da consequente violação do princípio da verdade material e da legalidade.

              8. Na formulação do pedido, a Requerente também invoca a violação do direito de audição prévia, mas não só se trata de uma arguição que não tem o mínimo fundamento material, como também o impugnante não efectua qualquer desenvolvimento específico, no contexto da peça processual, sobre essa pretensa causa de pedir.

              E, na verdade, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audiência prévia quanto ao projecto de Relatório de Inspecção Tributária e exerceu esse direito dando como reproduzido tudo o que tinha alegado anteriormente no âmbito dos procedimentos inspectivos relativos aos anos de 2012 e 2013 e nas impugnações judiciais deduzidas contra os actos tributários de liquidação proferidos na sequência dessas acções de inspecção (alíneas C) e D) da matéria de facto).

              E a Administração Tributária deteve-se sobre os argumentos invocados em relação aos anteriores procedimentos inspectivos e tomou posição expressa quanto a eles, pelo que é inteiramente contrário ao princípio da boa fé processual afirmar que não houve lugar à audiência prévia.

 

Cláusula geral antiabuso e correcções à matéria colectável

 

9. No âmbito do procedimento inspectivo de aplicação da norma geral antiabuso, a Autoridade Tributária determinou a desconsideração para efeitos fiscais da actividade de aluguer de veículos ligeiros de passageiros sem condutor, com a consequente correcção do IVA indevidamente deduzido na aquisição das viaturas e nas despesas de utilização, transformação e reparação, e da correcção de IRC por efeito da não aceitação como gasto fiscal das depreciações das viaturas na parte correspondente ao custo de aquisição e ainda da sujeição a tributação autónoma dos encargos relacionados com essas viaturas.

 

Para assim concluir, a Administração assenta essencialmente no pressuposto de que a Requerente, apesar de formalmente possuir um alvará de aluguer de veículos sem condutor, exerce de facto a actividade de gestão de um conjunto de veículos no âmbito de um grupo empresarial. E baseia-se em diversos factos que apontam para a existência de relações especiais entre a Requerente e as empresas que são beneficiárias da actividade de locação de veículos, a saber: (a) a A..., S.A. é participada em 99% pela C..., S.A. e em 0,625% pela D..., S. A.; (b) o presidente do conselho de administração da E..., S.A. é administrador da C... e da D..., S. A.; (c) um vogal do conselho de administração da A..., S.A. é presidente da C... e administrador da D..., S. A.; um outro vogal do conselho de administração da E..., S.A. é presidente do conselho de administração da D..., S. A. e vogal do conselho de administração da C...; (d) a C...está relacionada com a D..., S. A., F..., S.A, G..., S.A, H..., S. A. e I..., Lda; (e) essas entidades, directa ou indirectamente relacionadas com o sujeito passivo, seja por via participação social ou da administração e gerência comuns, são os locatários das viaturas que o sujeito passivo disponibiliza; (f) a sede social do sujeito passivo é comum a outras empresas relacionadas, não detém outras instalações, nem um local específico de atendimento ao público.

 

          Contestando esta perspectiva, a Requerente limita-se a dizer que não integra um grupo societário mas mantém apenas relações comerciais ou de parceria com as empresas locatárias dos veículos, detém o alvará de licenciamento para a atividade de aluguer de viaturas, sendo irrelevante para efeito de exercer os correspondentes direitos fiscais que não preencha os requisitos definidos no regime jurídico do aluguer de veículos previsto no Decreto-Lei n.º 181/2012.

A questão a decidir é, pois, a de saber se tem lugar, nas circunstâncias do caso, a aplicação da cláusula antiabuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, o que justifica que se comece pela caracterização dessa figura como mecanismo de controlo da fraude à lei fiscal.

 

A citada disposição da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Complementarmente, o artigo 63.º do CPPT prevê um procedimento tributário específico para a aplicação da disposição antiabuso e impõe à Administração um especial de dever de fundamentação dessa decisão que há de compreender necessariamente (i) a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; e (ii) a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. 

 

Segundo assinala Sérgio Vasques, a claúsula geral antiabuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pág. 374).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula antiabuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Exige-se, por conseguinte, que tenha sido praticado um acto ou negócio artificioso ou fraudulento que represente um abuso das formas jurídicas e que tenha tido como objectivo único ou principal a obtenção de uma vantagem fiscal (sobre estes aspectos, Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, págs. 430-433).

 

A aplicação da cláusula antiabuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acordão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

 

No caso vertente, subsistem factos indiciários suficientes - que a Requerente não contraditou na petição inicial - da existência de relações especiais entre o sujeito passivo e as diversas empresas que são locatárias dos veículos que constam do activo imobilizado, quer por via da participação social quer por via da administração comum. Constata-se ainda que a Requerente não cumpre os requisitos legais do exercício da actividade de aluguer de veículos sem condutor, especialmente no que se refere à disponibilização dos veículos ao público dentro de um horário de funcionamento em locais de atendimento.

 

A Requerente alega que dispõe do competente alvará para o exercício da actividade, mas esse é justamente o meio artificioso que se destina a obter vantagens fiscais que não seriam alcançadas se o sujeito passivo se limitasse a gerir uma frota automóvel em benefício dos seus sócios e administradores ou de empresas com quem mantém relações especiais.

 

Nos termos do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA, exclui-se do direito à dedução o imposto contido nas “despesas relativas à aquisição, fabrico ou importação, à locação, à utilização, à transformação e reparação de viaturas de turismo, de barcos de recreio, helicópteros, aviões, motos e motociclos”. Todavia, segundo a alínea a) do n.º 2 desse mesmo artigo, a exclusão não se verifica nas despesas que “respeitem a bens cuja venda ou exploração constitua objecto de actividade do sujeito passivo”. O que significa que, por via do exercício meramente formal da actividade de aluguer de veículos ligeiros sem condutor, através da obtenção do correspondente alvará que não tem qualquer correspondência com a realidade, o sujeito passivo, ao abrigo desta última disposição, pode deduzir indevidamente o IVA suportado na aquisição de viaturas quando não exerce, na prática, a actividade que lhe confere essa vantagem fiscal.

 

Do mesmo modo, o artigo 34.º, n.º 1, alínea e), do Código do IRC, em excepção ao regime geral das depreciações de elementos do activo sujeitos a deperecimento (artigo 29.º), não aceita como gastos fiscais “as depreciações das viaturas ligeiras de passageiros ou mistas (…), desde que tais bens não estejam afetos ao serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo”. E também por essa via, com abuso das formas jurídicas, o sujeito passivo logrou fazer reflectir no apuramento no lucro tributável em IRC depreciações que apenas poderiam ser fiscalmente dedutíveis se exercesse efectivamente a actividade de aluguer de veículos ligeiros sem condutor.

 

Ainda nos termos do artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC, “são tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros”, excluindo-se da tributação, segundo o disposto na alínea a) do n.º 6 os encargos relacionados com “viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo”.

 

Também neste caso o sujeito passivo obtém uma indevida vantagem fiscal por efeito do suposto exercício de uma actividade que não tem correspondência com a realidade.

 

Verificando-se, nos termos acabados de expor, os pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso, não há motivo para a pretendida declaração de ilegalidade dos actos tributários em causa.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido arbitral.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 308.114,06, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 23 de abril de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

 

Francisco Pessoa Vaz

 

O Árbitro vogal

 

 

Olívio Mota Amador