Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 422/2018-T
Data da decisão: 2019-05-13  IRC  
Valor do pedido: € 64.108,51
Tema: Liquidação; Acto consequente; Invalidade subsequente.
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DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 31 de Agosto de 2018, A..., S.A., NIPC..., com sede Rua..., n.º..., ... -..., ...-..., Amadora, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos tributários de liquidação referentes ao exercício de 2015:

a)            Demonstração de liquidação de IRC n.º 2016..., de 12-12-2016, que apurou um valor a pagar de € 64.108,51;

b)           Demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., de 07-02-2018, no mesmo valor, e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2018..., de 12-02-2018; e

c)            Demonstrações de liquidação de juros de mora n.º 2016..., de 15-12-2016 e n.º 2018..., de 12-02-2018.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que os fundamentos utilizados pela Requerida para efetuar as correções, não só estão em desconformidade com a lei, como redundam no desrespeito a princípios elementares da nossa ordem jurídica, para além de se verificar ainda falta de fundamentação.

 

3.            No dia 03-09-2018, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Dr. Paulo Mendonça, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Dr. Nuno Maldonado de Sousa.

 

5.            Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.

 

6.            Na sequência de requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi designado árbitro-presidente nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e do artigo 5.º do Regulamento de Selecção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, o Dr. José Pedro Carvalho, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.

 

7.            Em 08-11-2018, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

8.            Em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 28-11-2018.

 

9.            No dia 29-11-2018, a Requerente apresentou requerimento a desistir do pedido de suspensão da instância, formulado no Requerimento inicial.

 

10.          No dia 15-01-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

11.          Por requerimento de 31-01-2019, a Requerente exerceu o contraditório relativamente à matéria de excepção arguida pela Requerida.

 

12.          Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

13.          Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

14.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.

 

15.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            As liquidações objecto do presente processo arbitral têm origem em correcções promovidas pela AT ao exercício fiscal de 2015.

2-            Estas correcções decorrem de correcções aos exercícios fiscais anteriores (desde 2011), as quais tiveram por base a aplicação de regras de preços de transferência.

3-            A Requerente apresentou pedidos de pronúncia arbitral contra as liquidações adicionais de 2011 e 2012 (Proc. n.º 733/2015-T) e de 2013 e 2014 (Proc. 162/2018-T), ambos já julgados procedentes.

4-            Em sede de execução voluntária das respetivas decisões arbitrais, AT já procedeu à reposição integral da situação factual dos exercícios fiscais de 2011 e 2012.

5-            No que respeita aos exercícios fiscais 2013 e 2014, foram pela AT determinados os procedimentos já efectuados com vista à anulação das liquidações contestadas e à reposição dos prejuízos fiscais dedutíveis, incluindo a anulação total da nota de cobrança n.º 2016..., da certidão de dívida 2017... e do processo de execução fiscal n.º ... 2016..., referentes ao exercício de 2015.

6-            Alguns dos procedimentos referidos já foram concretizados e outros aguardam finalização.

7-            A Requerente, a 12-06-2017, apresentou reclamação graciosa contra as liquidações adicionais de 2015, objecto da presente acção arbitral.

8-            Por ofício de 06-03-2018, mediante carta registada a Requerente foi notificada do projecto de indeferimento da reclamação graciosa.

9-            Tendo a Requerente exercido por escrito o direito de audição, foi proferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

10-         A Requerente foi notificada da referida decisão mediante carta regista de 30-04-2018.

11-         Para cobrança coerciva da liquidação de IRC n.º 2016..., relativa a 2015, foi instaurado, pelo Serviço de Finanças de Amadora ..., o processo de execução fiscal n.º ...2017... .

12-         Com vista à respectiva suspensão, a Requerente apresentou junto do Serviço de Finanças de Amadora ... a garantia bancária autónoma n.º GAR/..., emitida pelo Banco ..., S.A., no valor de € 81.387,65 constante da citação.

 

A.2. Factos dados como não provados

1- Que a AT haja anulado:

a)            A demonstração de liquidação de IRC n.º 2016..., de 12-12-2016;

b)           A demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., de 07-02-2018, e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2018..., de 12-02-2018; e

c)            As demonstrações de liquidação de juros de mora n.º 2016..., de 15-12-2016 e n.º 2018..., de 12-02-2018.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

O facto dado como não provado deve-se à ausência de qualquer prova que o demonstre.

Efectivamente, embora em sede de alegações a Requerida refira que os “atos colocados em crise (...) já foram anulados em sede de execução de julgados.”, o certo é que não foi junto qualquer elemento que o demonstre, sendo certo que nas mesmas alegações a Requerida remete para os pontos 86.º a 94.º da Resposta, onde, para além do mais, se referia que estava em falta “a emissão de nova liquidação para o ano de 2015”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

a. Da matéria de excepção

 

                Começa a Requerida a sua defesa arguindo que a “pretensão da Requerente prende-se, tão só, com a apreciação, em sede arbitral, da execução das decisões arbitrais que determinaram a procedência dum pedido de anulação dos atos tributários de liquidação de IRC dos exercícios de 2011 a 2014, mas tal pretensão extravasa a competência do Tribunal arbitral”.

                Conclui, assim, pela “incompetência material do Tribunal para a apreciação do pedido respeitante à execução de julgado arbitral consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e determina a absolvição da entidade requerida da instância, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) do CPC e da alínea a) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT”.

                Conforme é pacífico há muito tempo, “a competência afere-se pelo pedido do autor, sendo uma questão a resolver, unicamente, de acordo com os termos da sua pretensão (compreendidos, aí, os respectivos fundamentos)” .

                O pedido formulado pela Requerente, é o seguinte:

“a)          A declaração de ilegalidade e anulação das correções aritméticas à matéria tributável de IRC do exercício de 2015, efetuadas na sequência das correções efetuadas aos exercícios de 2013 a 2014 em sede de preços de transferência;

b)           Em consequência de a), a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação de IRC n.º 2016.., de 12.12.2016, e respetiva liquidação de juros de mora, ambas relativas ao exercício de 2015;

c)            Também em consequência de a), a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação de IRC n.º 2018.., de 07.02.2018, e respetiva liquidação de juros de mora, ambas relativas ao exercício de 2015;

d)           Ainda em consequência de a), a reposição integral da situação existente em data anterior às correções promovidas, designadamente ao nível dos prejuízos fiscais utilizados e disponíveis para dedução;

e)           Por último, a condenação da Fazenda Pública no pagamento de indemnização para ressarcimento dos custos incorridos com a prestação de garantia bancária para obstar à cobrança coerciva do imposto.”.

                Como se vê, o pedido formulado pela Requerente é o da declaração de ilegalidade e anulação das correcções operadas relativas ao exercício de 2015, consubstanciadas nos actos de liquidação de IRC n.º 2016..., de demonstração de liquidação de IRC n.º 2018.., de demonstração de acerto de contas n.º 2018..., de 12-02-2018,  e de demonstrações de liquidação de juros de mora n.º 2016... e n.º 2018..., com os devidos e legais efeitos daí decorrentes.

                Daí que não se tenha dúvidas a apreciação de tal pedido se integra no âmbito da previsão do art.º 2.º/1/a) do RJAT, na medida em que se reconduz à “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos”.

                De resto, a própria Requerida reconhece, como não poderia deixar de ser que as competências dos Tribunais arbitrais a funcionar no CAAD compreende, inequivocamente, “condenações (...) decorrentes dos (...) poderes declaratórios com fundamento em ilegalidade”.

                Não obsta à conclusão referida a possibilidade de o mesmo resultado prático poder ser obtido noutras sedes, ou por via de outros meios processuais, designadamente e no caso, pela via de execução de julgados.

                Com efeito, sendo o contencioso tributário, consabidamente, um contencioso objectivista, estruturado, por norma, à volta do paradigma do “processo a um acto”, não são incomuns situações em que o mesmo resultado prático pretendido pelo contribuinte, possa ser obtido por vários meios e em diferentes sedes, como acontecerá, por exemplo, nos casos de impugnação de actos tributários que não impliquem liquidação de tributos (por exemplo, denegação ou revogação de benefícios fiscais), impugnação de actos de liquidação de tributos, oposição à execução fiscal,  ou reclamações de actos do órgão de execução fiscal.

                Não é, assim, o resultado material visado com o meio processual utilizado a definir a idoneidade daquele, e/ou a competência do Tribunal, mas antes o concreto pedido formulado.

                Ora, no caso, como se viu, o pedido formulado é o de anulação de um acto de liquidação, e suas decorrências, o que, inquestionavelmente, se insere na competência dos Tribunais Arbitrais a funcionar no CAAD.

                De resto, os fundamentos invocados pela Requerida, salvo o devido respeito, reconduzem-se a uma situação análoga à prevista no art.º 535.º/1/c), ou seja, à utilização de processo declarativo em situações de existência de título com força executiva.

                Efectivamente, e no fundo, o que a Requerida alega, é que a Requerente, por força do decidido nos processos arbitrais n.º 733/2015-T e 162/2018-T, dispõe já de título executivo para obter os efeitos que pretende obter na presente acção.

                Tal situação, todavia, não configura qualquer excepção, mas implica meramente a responsabilidade por custas do A., nos termos da norma do CPC referida.

                No caso, contudo, tal relevância não ocorre, porquanto tendo a Requerente optado por indicar árbitro, as custas ficarão, mesmo em caso de procedência integral do pedido, a cargo da mesma, conforme decorre do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 12.º, e n.º 4 do art.º 22.º, do RJAT.

                Daí que deve improceder a arguida incompetência material deste Tribunal arbitral.

 

*

                A Requerida reitera, ainda, a incompetência material deste Tribunal, “caso o Tribunal considere encontrar-se implicitamente peticionado a fixação dos prejuízos fiscais a relevar no exercício de 2015”.

                Como se vem de ver, não é esse o caso, pelo que considerando-se que o peticionado pela Requerente é a anulação, por ilegalidade, de um acto de liquidação, e suas decorrências, não deverá, igualmente, proceder, por esta via, a excepção arguida e ora em apreço.

 

*

b. Do fundo da causa

                Conforme se expôs já, a questão que se coloca nos presentes autos de processo arbitral é a da aferição da legalidade das correcções operadas pela AT relativas ao exercício de 2015, consubstanciadas nos actos de liquidação de IRC n.º 2016..., de demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., de demonstração de acerto de contas n.º 2018..., de 12-02-2018,  e de demonstrações de liquidação de juros de mora n.º 2016... e n.º 2018... .

                Conforme é pacífico entre as partes, as correcções em questão decorrem de correcções aos exercícios fiscais anteriores (2011 a 2014), as quais tiveram por base a aplicação de regras de preços de transferência, correções essas que foram anuladas por decisões proferidas nos processos arbitrais n.º 733/2015-T (2011 e 2012) e 162/2018-T (2013 e 2014), ambos do CAAD.

                Tendo por base as circunstâncias referidas, pretende a Requerente que, em consequência, sejam anuladas as correções efetuadas ao exercício de 2015, consubstanciadas nos actos tributários objecto da presente acção arbitral.

                Face ao apurado, não se poderá concluir, julga-se, que não pela razão da Requerente.

                Efectivamente, como a própria Requerida reconhece, os actos tributários objecto da presente acção arbitral são actos consequentes e conexos dos actos anulados nos processos arbitrais n.º 733/2015-T e 162/2018-T.

                Ora, como se escreveu no Ac. do STA de 30-01-2007, proferido no processo 040201A:

“VI - Acto conexo será aquele que tem com o acto anterior uma relação que seria susceptível de determinar necessariamente a invalidade do segundo, se acaso este tivesse sido praticado, nos termos em que efectivamente o foi, num momento em já tivesse sido decretada a anulação do primeiro.

VII - A invalidade do acto conexo resulta, pois, de uma causa autónoma em relação àquela que determinou a queda do acto que o precedeu, que diz respeito aos seus próprios requisitos de validade e que se concretiza num vício próprio, atinente a um dos seus elementos estruturais: procedimento, sujeito, objecto, conteúdo.

VIII - Um acto conexo será, pois, nulo se a definição jurídica contida no acto anulado tiver constituído o fundamento da emissão desse acto, em termos de se poder afirmar que representou um elemento essencial da sua emissão, no sentido do art°133° do CPA, ao nível do sujeito, do objecto, dos pressupostos, do conteúdo...- elemento que não existiria se, no momento em que o acto conexo foi praticado, o acto precedente já tivesse sido anulado - e que a anulação veio remover com efeitos retroactivos - fornecia um elemento essencial ao acto conexo.”.

                O referido Acórdão foi proferido no quadro da anterior redacção do CPA que, no seu art.º 133.º/1/i) previa a nulidade dos “actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente”.

                O CPA actual abandonou aquela previsão, não constando do novo art.º 161.º qualquer previsão análoga.

                Não obstante, apesar não se considerarem, agora, feridos de nulidade os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, não poderão deixar de se considerar anuláveis os mesmos actos.

                Assim, como explica o Sr. Prof. Doutor José Carlos Vieira de Andrade :

“Há a considerar, por fim, uma situação especial, que diz respeito à anulação de “actos consequentes” de actos anulados.

Estes actos eram até 2015 considerados nulos, embora com reserva dos interesses legítimos de contrainteressados, mas passam agora a ser apenas anuláveis, tendo em conta a sua remoção do elenco de nulidades estabelecido no (actual) artigo 161.º.

No entanto, nos termos do artigo 172.º, n.º 2, a Administração, quando proceda à anulação administrativa de um acto, no quadro do seu dever de reconstituição da situação hipotética actual – isto é, da situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado sem o vício que gerou a anulabilidade) –, pode ter o dever de “anular, reformar ou substituir os actos consequentes” e, acrescenta-se, “ sem dependência de prazo”.

O Código de Processo (CPTA) estabelecia já um regime específico para a invalidação dos actos consequentes de actos anulados judicialmente, regime que agora é, no essencial, transposto para a anulação administrativa, ressalvando-se a posição dos beneficiários de boa fé de actos consequentes praticados há mais de um ano, em termos primários ou, pelo menos, mediante indemnização (172.º, n.º 3, do CPA), além da fixação de um regime específico para situações de trabalhadores (172.º, n.º 4).

Este regime implica, no entanto, um cuidado especial na delimitação do conceito de acto consequente e na aplicação do respectivo regime invalidatório.

Desde logo, na linha de uma jurisprudência que se veio consolidando no quadro da anulação judicial, são actos consequentes para este efeito apenas os actos cuja manutenção seja incompatível com a reconstituição da situação hipotética exigida pela anulação, considerados os respectivos fundamentos e alcance.

Depois, em nosso entender, contra a posição dominante na doutrina e na jurisprudência, não deverão ser protegidos apenas os interesses de terceiros, estranhos à relação jurídica tocada pelo acto anulado, mas também os interesses dos beneficiários directos do acto consequente, que podem estar de boa fé, apesar de não desconhecerem a precariedade da sua situação.

Diga-se, por fim, que não se compreenderia, no contexto normativo do CPA, uma anulação do acto consequente “sem dependência de prazo” no sentido de uma anulação a qualquer momento – na realidade, quer dizer-se “mesmo que o acto se tenha tornado inimpugnável”, valendo os limites temporais fixados no artigo 168.º: o que estabelece um prazo de seis meses após o conhecimento do vício e o prazo geral de cinco anos para qualquer anulação administrativa, contado do momento da prática do acto. Na prática, a anulação do acto consequente terá lugar até na sequência imediata da anulação administrativa, que está sujeita a esses limites.”.

                Nestes termos, não restando dúvidas que a manutenção dos actos tributários objecto da presente acção arbitral é incompatível com a reconstituição da situação hipotética exigida pela anulação dos actos objecto dos processos arbitrais n.º 733/2015-T e 162/2018-T, considerados os respectivos fundamentos e alcance, nas palavras do Ilustre Professor, e que a definição jurídica contida nos actos anulados nos processos arbitrais n.º 733/2015-T e 162/2018-T constituiu o fundamento da emissão dos actos objecto da presente acção arbitral, em termos de se poder afirmar que representaram um elemento essencial da sua emissão, nas palavras do STA, não se poderá deixar de considerar que a “invalidade do acto conexo resulta, pois, de uma causa autónoma em relação àquela que determinou a queda do acto que o precedeu, que diz respeito aos seus próprios requisitos de validade e que se concretiza num vício próprio, atinente a um dos seus elementos estruturais”.

                Invalidade esta que haverá que ser reconhecida, nos termos expostos, determinando, portanto, a anulação dos actos objecto da presente acção arbitral.

                Não se verifica, ao contrário do que a Requerida propugna, qualquer “situação de impossibilidade ou inutilidade da lide.”.

                Efectivamente, tal situação apenas se poderia dar, caso se provasse que, até à data, tivesses sidos anulados os actos tributários objecto da presente acção arbitral.

                Não sendo esse o caso, conforme resulta dos factos dados como provados, mantém-se na ordem jurídica o objecto da acção, pelo que não há qualquer impossibilidade ou inutilidade da lide.

                Face ao exposto, deverá proceder o pedido arbitral, determinando-se a anulação dos actos tributários que integram o objecto da presente acção, e ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Requerente.

 

*

A Requerente formulou pedido de indemnização por garantia indevida.

A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais tributários restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, conforme resulta expressamente da alínea b) do art.º 24.º do RJAT.

No mesmo preceito “o legislador deixou claro que os efeitos aí previstos são “sem prejuízo dos demais efeitos previstos no Código do Procedimento e do Processo Tributário”. Considera-se a este propósito que o legislador aqui se está a referir a todos os efeitos que decorram do CPPT, para o sujeito passivo, e que são aplicáveis após a consolidação na ordem jurídica de uma determinada situação jurídico-fiscal, decorrente de uma decisão definitiva seja ela graciosa ou judicial.”

Não obstante o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação, pode nele ser proferida condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por garantia indevida, conforme resulta do art.º 171.º do CPPT.

Como se referiu na decisão proferida no Processo nº 28/2013-T  “é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação. O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.”

Conclui-se, assim, que este tribunal é competente para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

“1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”

No caso em apreço, verifica-se que o erro que padecem os actos de liquidação parcialmente anulados é imputável à Entidade Requerida pois as liquidações foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.

Tem, por isso, a Requerente direito a indemnização pela garantia prestada.

No entanto, não foram alegados nem provados os encargos que a Requerente suportou para prestar a garantia, pelo que é inviável fixar aqui a indemnização a que aquela tem direito, o que poderá ser efectuado, se necessário, em execução desta decisão.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular a  demonstração de liquidação de IRC n.º 2016..., de 12-12-2016, que apurou um valor a pagar de € 64.108,51, a demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., de 07-02-2018, no mesmo valor, e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2018..., de 12-02-2018, as demonstrações de liquidação de juros de mora n.º 2016..., de 15-12-2016 e n.º 2018..., de 12-02-2018;

b)           Condenar a Requerida no pagamento à Requerente de indemnização pela prestação de garantia indevida, nos termos supra-indicados.

 

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 64.108,51, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Maio de 2019

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Paulo Mendonça)

 

O Árbitro Vogal

(Nuno Maldonado de Sousa)