Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 237/2018-T
Data da decisão: 2019-02-12  IRS  
Valor do pedido: € 578.011,90
Tema: IRS - Cláusula Geral Anti Abuso (CCGA).
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Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)

                Os árbitros, Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente), Dra.  Marisa Almeida Araújo e Dr. Olívio Mota Amador, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

                               1. Relatório

A..., contribuinte número..., e B..., contribuinte número..., ambos residentes na Rua ..., n.º..., ...-... ..., doravante designados como “Requerentes”, vieram ao abrigo da al. a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou ”RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral requerendo a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRS n.ºs 2018..., 2018... e 2018... e de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018... e 2018..., referentes aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, dos quais resultou um valor global a pagar de € 578.011,90, emitidos na sequência do relatório final de inspecção tributária e a indemnização prevista nos arts. 171.º do CPPT e 53.º da LGT.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, de ora em diante designada por “AT” ou “Requerida”.

 

1.1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09-05-2018.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 28-06-2018 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 18-07-2018.

Em 31-10-2018, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente.

Foi marcada a reunião a que alude o art. 18.º do RJAT que se realizou no dia 11-12-2018, com inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, devidamente identificadas na acta da reunião junta aos autos tendo a AT prescindido da inquirição das suas testemunhas.

Na mesma reunião foi concedido prazo para alegações, tendo a Requerente apresentado as suas alegações a 21-12-2018 e a Requerida a 21-01-2018, e designado o dia 18-02-2019 para o efeito de prolação da decisão arbitral.

 

1.2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

O tribunal é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Quanto a este último pressuposto é suscitada, como pedido subsidiário e para o caso de se considerar aplicável a CCGA, a ilegitimidade dos Requerentes. Considerando que a ilegitimidade é suscitada subsidiariamente e em caso de improcedência do pedido de pronúncia arbitral o tribunal decide que este pressuposto será analisado se a conditio em que é a excepção suscitada se suscitar.

O processo não enferma de nulidades.

 

1.3. Os Requerentes sustentam o seu pedido alegando, em síntese, que,

i.             Em 31 de Dezembro de 1993 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de ... a constituição da sociedade designada C..., SGPS, S.A., com o capital social de € 11.057.395,00, representado por 2.211.479,00 acções e o valor nominal de € 5,00 cada e o seu objecto social consistia na gestão de participações sociais em outras sociedades, como forma indirecta do exercício de actividades económicas, estando esta sociedade regulada pelo Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro.

ii.            A esta data, a estrutura accionista desta sociedade resumia-se do seguinte modo:

NOME  N.º de acções    V. nominal          %

D..., LDA.             1.326.887             € 5,00    60%

A...         162.000                € 5,00    7%

B...         59.148   € 5,00    3%

E...         221.148                € 5,00    10%

F...         221.148                € 5,00    10%

G...        221.148                € 5,00    10%

TOTAL   2.211.479             € 5,00    100%

iii.           Na origem da constituição da sociedade C..., SGPS, S.A. esteve uma intenção de reorganização da estrutura do Grupo H..., iniciada justamente em 1993, e que incluiu, além da constituição desta holding, a criação de uma sub-holding, designada I..., SGPS, S.A., para controlo de uma área específica da actividade.

iv.           Além desta sociedade, que detinha a 89,99%, a C..., SGPS, S.A. passou ainda a deter 90% do capital social da J..., S.A., 90% do capital social da K..., S.A., 90% da L... e 90% da M..., S.A.:

 

v.            O capital social da sociedade C..., SGPS, S.A. manteve-se inalterado, desde a origem até 26 de Fevereiro de 2016, data em que o mesmo veio a ser reforçado, passando a cifrar-se em € 14.529.635,00.

vi.           Em 12 de Junho de 1991 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de ... a constituição da sociedade por quotas então designada N..., LDA., com um capital social de € 9.975,96, representado por duas quotas iguais, uma pertencente a A... e outra pertencente a B... e teve, desde a constituição, como actividade o comércio de produtos de cosmética e perfumaria.

vii.          Em 4 de Junho de 2007, a sociedade constituída – que, em 2005, cessou a sua actividade de comércio de produtos de cosmética e perfumaria e passou a adoptar a designação O..., S.A. e a dedicar-se à actividade de compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e investimentos imobiliários, e, como actividade acessória, ao arrendamento de bens imóveis e à prestação de serviços relacionados com a disponibilização de bens imóveis –, viu o seu capital social aumentar para € 50.000,00, aumento este integralmente realizado em dinheiro e subscrito, no montante de € 38.774,04, pelos sócios A... e B..., e, no montante de € 1.250,00, por quatro novos sócios: os três filhos do casal, P..., Q... e R..., e a mãe de A..., S... .

viii.         Simultaneamente, a sociedade foi transformada em sociedade anónima, resumindo-se a respectiva estrutura accionista nos termos que se seguem:

NOME  Capital detido   %

A...         € 24.375,00         48,75%

B...         € 24.375,00         48,75%

P...         € 400,00               0,80%

Q...        € 400,00               0,80%

R...         € 400,00               0,80%

S...         € 50,00 0,10%

TOTAL   € 50.000,00         100%

 

ix. Segundo os Requerentes passou a ser um objectivo concentrar numa única sociedade as participações que cada um detinha na sociedade C... SGPS, S.A. – bem como, outras em que pudessem vir futuramente a investir –, permitindo já um efeito de partilha das mesmas (ainda que por via indirecta) aos seus três filhos. Em vista desse objectivo, foi outorgado, em 29 de Dezembro de 2005, um Termo de Transacção e Contrato de Compra e Venda de Acções, mediante o qual os aqui Requerentes transmitiram à sociedade por si detida – O..., S.A. –, as 221.148 acções de que eram titulares na sociedade C..., SGPS, S.A. – representativas de 10% do respectivo capital social –, pelo preço de € 5.490.285,35 (correspondente a € 24,83 por acção).

x. Este valor foi determinado, segundo os Requerentes, com base nos capitais próprios da sociedade em causa à data da transmissão, à luz dos princípios contabilísticos em vigor, que justamente procuravam captar o justo valor dos activos e dos passivos, tal como, de resto, entendido pela AT.

xi. A aquisição foi perspectivada também, tendo em vista, a necessidade de unificação das participações sociais dos Requerentes e da sua passagem para a titularidade de uma sociedade que melhor assegurasse a sua protecção contra eventuais disputas patrimoniais de natureza familiar, mormente considerando a existência de uma acção de reconhecimento da paternidade intentada em 2006 por U... contra o pai da Requerente.

xii. O mesmo raciocínio esteve subjacente à transformação da sociedade em sociedade anónima, verificada em 2007. A este facto seguiu-se a celebração, em 27 de Junho de 2018, de um acordo-quadro relativo à reorganização do Grupo H..., celebrado entre os membros da segunda geração da família T...– grupo em que não se inseriu U...–, assinado no Cartório Nacional de ...  e de um acordo de partilha em vida, de forma a nela ser incluída a autora da referida acção, cuja escritura foi outorgada em 30 de Junho de 2016.

xiii. A concentração, numa única sociedade, dos 7% detidos pelo Requerente A... e dos 3% detidos pela Requerente B..., assegurar-lhe-ia (à sociedade adquirente) a titularidade de acções representativas de 10% do capital social da C..., S.A. e, assim, o acesso às possibilidades legais que este limiar de titularidade confere, designadamente, nos termos do artigo 392.º do Código das Sociedades Comerciais, o direito a propor um administrador (pelo menos) para o conselho de administração da C... SGPS, S.A., e, nos termos do artigo 291.º do Código das Sociedades Comerciais.

xiv. Acresce ainda que a manutenção das participações até aí detidas pelos Requerentes na O..., S.A. – e, mais tarde, da V... SGPS, S.A. – permitia que, num envolvimento gradual e controlado, os filhos do casal passassem também a ter acesso aos investimentos por aqueles detidos, passando estes a usufruir e participar, em alguma medida, do exercício da actividade empresarial dos pais, oferecendo-lhes novas perspectivas de envolvimento nos negócios que a partir daí viessem a ser realizados.

xv. A mais-valia registada pelos Requerentes na sequência desta operação beneficiou da exclusão de tributação prevista na al. a) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS, que desonerava de tributação em IRS as mais-valias derivadas da alienação de acções detidas pelos seus accionistas há mais de doze meses.

xvi. O preço acordado para a transacção não foi de imediato pago aos Requerentes, tendo sido reconhecido na contabilidade da O..., S.A. um débito em favor dos mesmos, naquele valor.

Entre 29 de Dezembro de 2005 e 24 de Maio de 2011, esse valor foi reduzido no montante de € 1.039.704,08, passando a ascender a € 4.450.581,27. Deste modo, segundo os Requerentes, permitiu-se que a O..., S.A. – e, mais tarde, a V... SGPS, S.A. – adquirisse os referidos títulos, sob as condições de mercado que sempre lhe estariam impostos, com recurso a um financiamento dos seus accionistas, a quem sempre incumbe um dever de particular zelo e auxílio na prossecução do respectivo objecto.

xvii. Esta sociedade dificilmente suportaria ou, em alguma medida, estaria apta a beneficiar de um financiamento externo, pelo que, os accionistas ficaram com a consciência de que o crédito em referência, contraído no âmbito da sua responsabilidade como parte da sociedade, apenas lhe seria restituído se o património líquido da sociedade assim o permitisse, não lhes ficando de todo a dúvida de que este, por estas vicissitudes, seria um crédito de uma natureza muito diferente da de um comum credor.

xviii. Esta afigurou-se, à data, como apenas uma das possíveis vias a seguir para dotar a sociedade de um nível de meios financeiros adequado, tendo sido seleccionada entre as demais possibilidades por ser a que melhor correspondia aos objectivos que estavam em causa em primeira linha – a estabilidade financeira da sociedade e a desburocratização do processo de aquisição, segundo os Requerentes.

xix. Consideraram os Requerentes que, além da actividade directa da compra e venda de bens imobiliários, com a passagem do tempo e o surgimento de novas oportunidades, a sociedade O..., S.A. foi alargando a sua actividade a novas áreas, designadamente à (indirecta) de participação no capital social de outras sociedades e para dissipar o risco de uma eventual “contaminação”, foi  constituída a V... SGPS, S.A., em 2011, mediante o destaque e transferência, para constituição do respectivo capital, de uma participação social relativa a 10 % do capital social da sociedade C..., SGPS, S.A., com o valor contabilístico de € 5.490.285,35. Do ponto de vista de todo o Grupo H..., a detenção das diversas participações sociais directamente por parte da V... SGPS, S.A. traria o benefício imediato da simplificação e racionalização da estrutura empresarial global, bem como, consequentemente, o de permitir, a prazo, a recolha dos frutos de uma gestão mais profissional e especializada daquele e de outros activos financeiros.

xx. De resto, segundo os Requerentes, só desse modo a holding V... SGPS, S.A. passaria a assumir, de facto e definitivamente, a função estratégica para que fora constituída: a de plataforma para novas oportunidades de negócio.

Para os efeitos aludidos, projectou-se a realização de uma operação jurídica através da qual se procederia ao destaque do património da O... da participação social que ela detinha na C..., SGPS, e à transmissão dessas participações para a V... . Do ponto de vista jurídico-societário, a operação em causa constituiu uma cisão-constituição, de acordo com a modalidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 118º do Código das Sociedades Comerciais (CSC): o património da Impugnante foi cindido, sem que se verificasse a dissolução desta, e o segmento destacado foi usado para a constituição de outra sociedade, a V... SGPS, S.A.. Do ponto de vista organizacional, as participações em causa apartavam-se claramente do universo económico e financeiro ligado à actividade imobiliária, composto por outros activos que não participações, e revestiam uma identidade própria, isto é, uma estratégia de diversificação clara e o propósito de darem corpo ao projecto de criar um Grupo plurissectorial e não exclusivamente voltado para a compra e venda de imóveis.

xxi. Por estarem intimamente ligadas, segundo os Requerentes, a esta nova unidade económica e organizacional, com a participação social relativa a 10 % do capital social da sociedade C..., SGPS, S.A., foram também transmitidas para a V... SGPS, S.A., um depósito bancário à ordem no valor de € 50.000,00; e um passivo relativo à dívida existente em virtude da aquisição da participação social transmitida no valor de € 4.450.581,27, até então detidos pela O..., S.A.. Para além das prestações indicadas, foram ainda transferidos por efeito da cisão-fusão todos os demais direitos, deveres, posições jurídicas contratuais e processuais que cabiam na esfera da O..., S.A., associadas à posição societária em questão.

xxii. A operação pode ser representada graficamente da seguinte forma:

 

xxiii. No que concerne ao seu tratamento jurídico-tributário, a operação foi efectuada ao abrigo do regime especial de neutralidade fiscal das reestruturações empresariais, previsto nos artigos 67º e seguintes do Código do IRC. Todas as condições legalmente exigidas para a aplicação do regime foram observadas, segundo os Requerentes, nomeadamente as constantes do n.º 3 do artigo 74º, pelo que os elementos patrimoniais objecto de destaque e transmissão por cisão foram inscritos na contabilidade da C... SGPS, S.A. (sociedade beneficiária ou incorporante) de acordo com os exactos valores por que figuravam na contabilidade da O..., S.A. (sociedade cindida) – num valor global de € 5.490.285,35.

xxiv. Fazem notas os Requerentes que as participações transferidas para a V... SGPS, S.A. por efeito da aludida cisão permanecem ainda hoje na esfera patrimonial desta sociedade. A sociedade V... SGPS, S.A., foi constituída sob a forma de sociedade gestora de participações sociais (SGPS), por um lado, dotar o GRUPO H... de uma estrutura semelhante à de outros grupos nacionais de base familiar, que fosse, ao mesmo tempo, adequada às opções tomadas pela família T... quanto ao tipo de composição de interesses desejado.  Por outro lado, a partir do momento em que o propósito dos membros da família foi o de separar os interesses das famílias nucleares, promovendo a melhor defesa dos respectivos interesses e uma eventual sucessão, forçoso era agrupar as participações de uns e outros numa holding, que seria detida por cada um dos filhos T..., respectivos filhos e cônjuges, para concentração das participações do Grupo H... e, ao lado destas, aquelas outras que cada uma daquelas famílias nucleares pudessem ter interesse em investir de per se.

xxv. A mesma estratégia foi prosseguida, segundo os Requerentes, por cada um dos filhos T... que, de forma absolutamente autónoma, e na defesa dos seus interesses próprios e do respectivo agregado nuclear, optaram por constituir uma SGPS própria: as sociedades

a.            W... SGPS, LDA., detida em partes iguais por F... e pelo seu marido X...;

b.            Y... SGPS, LDA., detida em partes iguais por E... e pela sua mulher Z...; e

c.            AA... SGPS, LDA., detida em partes iguais por BB... e pelo seu marido CC... .

xxxvi. Cada uma destas sociedades destinou-se, pois, a servir de holding para cada um dos sub-ramos da família T..., permitindo a gestão separada dos diversos interesses e a protecção do património inerente ao Grupo H... .

xxvii. Até ao ano de 2010, a V... SGPS, S.A. recebeu o montante de € 1.020.102,52 a título de dividendos e as amortizações dos empréstimos de accionistas foram de apenas, segundo os Requerentes, de € 143.908,04.

xxviii. No mesmo período, os accionistas reforçaram os empréstimos à sociedade no valor de € 48.157,50. No período de 2011 a 2014, verifica-se, por outro lado, que os montantes dos reembolsos realizados pela V... SGPS, S.A. em benefício dos accionistas não coincidiram, podendo ter coincidido, com as importâncias por ela recebidos das suas participadas a título de dividendos, sendo o valor destas relevantemente superior ao valor dos ditos reembolsos.

xxix. Numa análise que recua a 2005, data da alienação da participação na C... SGPS, S.A. à sociedade O..., S.A., os dividendos recebidos pela C... SGPS, S.A. totalizaram € 3.364.271,32 e as amortizações apenas o montante de € 2.580.726,08.

xxx. A diferença – no valor de € 783.545,24 –, não usada, segundo os Requerentes, para o reembolso de crédito aos accionistas, foi, de outra forma, usada na actividade – que era real e efectiva – da sociedade, designadamente para assegurar investimentos e a gestão corrente dos activos. E ainda no decurso do ano de 2016, foram realizados suprimentos pelos accionistas individuais à sociedade (V... SGPS, S.A.), no valor de € 375.000,00.

xxxi. Segundo os Requerentes o n.º 2 do artigo 38.º faz depender a aplicação da cláusula em análise de quatro requisitos essenciais: O primeiro desses requisitos consta do elemento “meio” da letra da lei: é necessário estarmos, no caso concreto, perante a utilização, por parte do sujeito passivo, de um ou mais actos ou negócios jurídicos. Quanto ao segundo requisito, ele resulta do elemento “resultado”: afigura-se como indispensável que a celebração daqueles actos ou negócios se venha a traduzir numa vantagem fiscal — isto é, na eliminação, redução ou diferimento temporal dos impostos. O terceiro pressuposto prende-se com o elemento “intelectual” da lei: a motivação fiscal referida deve ser o motivo único, essencial ou principal do sujeito passivo para celebrar ou praticar aqueles negócios ou actos e, finalmente, encontramos o elemento “normativo”, o qual implica que a actuação do contribuinte, tendente à obtenção de uma vantagem fiscal, deva merecer uma reprovação normativo sistemática, por se ter traduzido num abuso de formas jurídicas, isto é, na utilização de institutos cuja criação ou surgimento ocorreu por motivos económicos que não presidem, total ou essencialmente, às operações concretas do sujeito passivo.

xxxii. Caso todos os pressupostos elencados estivessem verificados, podia então a AT, em cumprimento do elemento “sancionatório” da CGAA (correspondente à estatuição e não à hipótese da norma contida no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, diversamente do que a AT parece entender), decretar a ineficácia, no campo tributário, dos actos ou negócios em causa, os quais lhe passam, assim, a ser inoponíveis.

xxxiii. Os Requerentes entendem que não estão verificados e, para além disso, invocam que a AT faz interpretação errónea do preceito já que não é o elemento “resultado” (a obtenção da vantagem fiscal comparativa) que justifica verdadeiramente a criação de uma norma do tipo da CGAA, mas sim os elementos “meio” e “normativo”: conforme veremos melhor, o que o legislador considera censurável — aquilo que ele considera um “abuso” — é o “artifício” (a utilização de formas jurídicas insólitas, absolutamente impróprias), porque ele é que permite concluir pela total ausência de razões economicamente válidas.

xxxiv. Daí que concluam que, entre as situações que se devem considerar fora do âmbito da CGAA, por não traduzirem um “abuso de formas jurídicas”, estão, por natureza, aquelas em que a vantagem fiscal é obtida através do recurso a uma norma ou conjunto de normas criadas, precisamente, para os contribuintes delas retirarem vantagens fiscais (e cuja utilização, em muitos desses casos, se pode mesmo concluir que é incentivada pelo legislador).

xxxv. Por outro lado, concluem os Requerentes que foram aplicadas as normas jurídicas que, consagrando de facto regimes fiscais favoráveis, são no entanto as estritamente correspondentes aos negócios ou actos em questão, nenhuma utilização das mesmas se conseguindo identificar como insólita, inusitada ou artificial, com intuitos completamente distintos daqueles para os quais o legislador as pensou. Pelo que não houve, segundo os Requerentes, qualquer subversão do sistema jurídico: os factos em apreço reconduzem-se, pura e simplesmente, a uma situação de mera opção fiscal (não censurável) — e a actuação da AT redunda na exigência — ilegal e inconstitucional — de que o contribuinte escolha a via fiscalmente mais onerosa.

xxxvi. Para além disso, invocam os Requerentes o princípio da liberdade de escolha fiscal como limite interpretativo fundamental de qualquer cláusula destinada a evitar o abuso de formas jurídicas em sede tributária

xxxvii. Concluindo que não há fundamento para a aplicação da CCGA.

xxxviii. Subsidiariamente, por outro lado concluem que a aplicar-se a CCGA os Requerentes sempre seriam partes ilegítimas já que, a ineficácia alcançada, a posteriori, através da neutralização de quaisquer vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos referidos meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas, sendo que esta neutralização deve ocorrer, com efeito, nos termos legais, através da reposição da tributação que ocorreria na ausência daqueles meios, independentemente do beneficiado ou beneficiados.

xxxix. Segundo os Requerentes não se vê como se pode interpretar uma CGAA – criada precisamente para, garantindo o cumprimento do princípio da igualdade tributária, “prevenir que a lei fiscal seja defraudada através da manipulação das formas jurídicas” –, de um modo tal que deixasse de fora todas aquelas (muitas) obrigações de pagamento cujo cumprimento se faz através de retenção na fonte. Sendo que, segundo os Requerente, no caso em análise, sendo propugnada a tese segundo a qual o rendimento distribuído aos accionistas deveria, para efeitos fiscais, ter sido tratado de acordo com a metodologia de tributação aplicável às distribuições de dividendos, não pode admitir-se outro procedimento senão aquele que supõe que é sobre a entidade distribuidora, substituta tributária – neste caso, à C... SGPS, S.A. –, que se reflecte o acto de liquidação e as demais consequências da aplicação da CGAA.

xl. A retenção na fonte é, para o substituto tributário, uma obrigação de pagamento do imposto na qualidade de seu devedor principal. É-o assim, segundo os Requerentes, também na presente situação: se o rendimento tributável provém de uma distribuição de dividendos, a sua tributação é feita, através do regime da substituição tributária, por retenção na fonte, sendo o imposto, então, exigível, nos termos do Código do IRS, a pessoa diversa do beneficiário do rendimento. Considera-se, assim, a substituta, para todos os efeitos fiscais, como devedor principal do imposto. É do substituto, com efeito, a obrigação principal de pagar e cumpre-a através do mecanismo da retenção na fonte de parte do rendimento de que um terceiro (o substituído) é titular, pelo montante correspondente ao encargo tributário.

xli. Além do vício de ilegitimidade os Requerentes sustentam que a AT não cumpriu convenientemente o ónus de fundamentação a que está obrigada por força das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, designadamente ao nível da descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam e da demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.

xlii. Por outro lado, suscitam ainda os Requerentes que a interpretação da AT da norma do n.º 2 do artigo 38.º da LGT foi aplicada, no caso concreto, com o sentido de que se trata de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma sorte de aplicação analógica das normas tributárias, na medida em que admite que, desconsiderando, para efeitos fiscais, a personalidade jurídica de uma sociedade, a cuja constituição o contribuinte foi expressamente incentivado pela lei – como se viu –, a AT possa tributar como dividendos aquilo que reconhece expressamente ser uma restituição de um financiamento contraído junto dos accionistas, no plano jurídico-civil. Ora, interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola, segundo os Requerentes, o princípio constitucional da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do artigo 103.º, no artigo 104.º e na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.

xliii. Por outro lado, invocam os Requerentes que é erróneo e equívoco o método de liquidação oficiosa utilizado pela AT, com referência aos anos de 2013 e 2014, bem como violador do princípio da boa fé, e, uma vez mais, dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, em concretização do princípio da igualdade. Já que, se, por um lado, relativamente ao ano de 2015, a AT entende que a reconfiguração do reembolso de dívida em dividendo será sujeita a tributação autónoma à taxa de 28%, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do Código do IRS, relativamente aos anos de 2013 e 2014, o montante auferido deverá ser englobado na sua totalidade ao rendimento colectável de IRS dos beneficiários, sujeito às taxas gerais de imposto resultantes da aplicação da tabela constante do artigo 68.º do Código do IRS.

xliv. A finalidade da constituição da C... SGPS, S.A. como uma SGPS, da transmissão a esta sociedade das acções da C... SGPS, S.A. e da constituição do crédito, tiveram em mira a mesma finalidade que conduziu à consagração desses instrumentos jurídico-societários. Não foi, pois, para obter uma vantagem fiscal comparativa que os accionistas da V... SGPS, S.A. levaram a cabo aqueles actos (o que não é o mesmo que dizer que não tenha havido legítimas ponderações de índole fiscal), mas sim para que fossem libertados os excessos de liquidez verificados num determinado momento, para cumprimento da obrigação de pagamento do preço do activo adquirido e essencial à concretização do respectivo objecto.

xlv. As liquidações impugnadas são ilegais, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT e das normas constitucionais identificadas.

xlvi. Concluindo ainda pela ilegalidade dos juros compensatórios.

 

1.4. Por sua vez, a Requerida alega, em síntese que,

i.             Os sujeitos passivos descrevem o episódio do aparecimento de uma quinta herdeira do fundador do grupo H..., e da ação judicial que culminou no reconhecimento da respetiva paternidade, apontando-o como justificação para a transferência das ações das C... SGPS, detidas por A... e B..., para a O... .

ii.            Ora, tal argumento não pode colher, segundo a AT, uma vez que os 10% do capital da C... SGPS transmitidos em 29 de Dezembro de 2005 para a O... já estavam na posse dos contribuintes desde 1993 (com exceção de 1%, que lhes foram transmitidos pelo X... em 26-12-2005), e portanto, foram apenas transferidos da sua esfera individual para a esfera daquela sociedade por quotas, detida pelo casal em partes iguais (recorde-se que a mesma apenas foi transformada em sociedade anónima em 2007) – não se compreende em que medida tal operação pudesse impedir eventuais disputas patrimoniais familiares decorrentes do reconhecimento da referida herdeira, ou sequer estivesse relacionada com tal circunstância.

iii.           A única transmissão de participações sociais da C... SGPS que o fundador do grupo efetuou aos seus filhos ocorreu em 26-12-2005, quando este transmitiu 88.460 ações daquela sociedade (22.115 ações a cada filho, correspondentes a 1% do capital social para cada um), pelo preço unitário de €24,83, totalizando €549.033,50 para cada filho.

iv.           Na tentativa de legitimar a concentração na O..., das ações individualmente detidas por cada um dos membros do casal A... e B..., estes escudam-se na faculdade, prevista no CSC, de os detentores de 10% do capital, terem direito a nomear um administrador. Mas, segundo a AT, este argumento cai por terra, porquanto é possível constatar que A... era já, e pelo menos desde 2001, membro do Conselho de Administração da C... SGPS, tal como se verifica através do excerto da Ata nº. 20 daquele órgão social, lavrada no dia 31 de Maio de 2001.

v.            Também o pretenso propósito de permitir um “envolvimento dos filhos na atividade empresarial dos pais” não se mostra provado, uma vez que se verifica que apenas R... (a filha mais velha) consta como vogal do Conselho de Administração da O... (e depois da V... SGPS) - não existindo evidências da sua efetiva intervenção na administração de qualquer uma daquelas sociedades. Recorde-se ainda que nenhuma delas possui pessoal ao seu serviço, e que os administradores não são remunerados.

vi.           A atipicidade e anormalidade dos atos e negócios jurídicos celebrados está nitidamente demonstrada, dado que, se os acionistas da C... SGPS e da V... SGPS pretendessem realizar os atos e negócios pelo seu fim económico e financeiro, decorrentes dos ganhos de competitividade, eficiência e massa crítica obtidos, com transferências das participações sociais da primeira para a nova SGPS criada, teriam ao seu dispor atos e negócios normais de efeito económico equivalente, alicerçados, contudo, em critérios de racionalidade económica.

vii.          A V... SGPS não possui nem nunca possuiu, segundo a AT, qualquer outra participação social (nem tão pouco qualquer outro ativo) para além dos 10% da C... SGPS.

viii.         Verifica-se, segundo a AT, que a V... SGPS constitui uma holding pura, porquanto foi constituída apenas com o objetivo de detenção da participação social no capital da C... SGPS.

ix.           A sua existência reduz-se, quase em exclusivo, segundo a AT, à receção de dividendos, dado que os restantes rendimentos que aufere são meramente acessórios, e têm um peso residual nos seus resultados, não realizando sequer operações tributáveis em sede de IVA que possam demonstrar que, de certa forma, interfere na gestão daquela sua única participada.

x.            Isto revela, só por si, segundo a AT, a falta de racionalidade económica destas operações, a qual, aliada á já demonstrada incoerência da argumentação relacionada com uma motivação patrimonial/familiar, não deixa dúvidas de que o seu escopo principal foi a obtenção de vantagens fiscais.

xi.           Mais, ainda que remotamente se admitisse que o objetivo da transmissão da titularidade das ações da C... SGPS para a O... tivesse sido qualquer um dos que A... e B... vêm alegar, tal desiderato podia e deveria ter acontecido pelo respetivo valor nominal (€5/ação), não se vislumbrando outro motivo para a fixação de um preço significativamente superior àquele (€24,83/ação) que não a possibilidade de retirada de dividendos da C... SGPS sob a forma encapotada de pagamento da dívida assim gerada.

xii.          A fim de concretizar esta gestão ativa e dinâmica das participações sociais detidas pela SGPS, para além do exercício dos direitos sociais inerentes às participações sociais detidas, o legislador admite a realização de diversas operações pela SGPS na prossecução dos seus interesses e das relações com as suas participadas, o que não se verifica no caso da V... SGPS nos anos em análise, segundo a AT.

xiii.         Esta sociedade, segundo a AT, serviu essencialmente para receber os lucros pagos pela C... SGPS e permitir a sua retirada pelos acionistas que controlam ambas as sociedades, agora transformados na figura de reembolso de crédito. Ou seja, apesar do legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 495/88, ter criado condições favoráveis para facilitar e incentivar a criação de grupos económicos, enquanto instrumentos adequados a contribuir para o fortalecimento do tecido empresarial português e proporcionar aos empresários um quadro jurídico que lhes permitisse reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada e especializada, no presente caso, não se atingiu este objetivo, mas apenas se procedeu à mera alteração de uma titularidade jurídica direta por uma titularidade indireta, (visto que os acionistas da V... SGPS, continuam a deter o poder (controlo) efetivo sobre 10% da C... SGPS) atingindo através deste artifício um fim essencialmente fiscal.

xiv.         Contrariamente ao que os sujeitos passivos pretendem veicular, o que os factos revelam é que, volvidos 12 anos desde a transferência das ações da C... SGPS com destino à O... (atualmente, e desde 2011, detidas pela V... SGPS), as mesmas se mantiveram exatamente na mesma: constituindo o único ativo de cada uma das SGPS indicadas, nenhuma das quais exerce qualquer outra atividade relevante, ou aufere quaisquer outros rendimentos, para além dos dividendos pagos pela sua exclusiva participada: a C... SGPS.

xv.               Tudo visto, a figura jurídica da SGPS foi artificiosamente desfuncionalizada. Para verificação do quão longe se ficou da motivação normativa subjacente à constituição das SGPS, tenha-se em conta o que consta no preâmbulo do D.L. nº. 495/88, de 30/12, concernente à introdução das SGPS na ordem jurídica nacional: “facilitar e incentivar a criação de grupos económicos, enquanto instrumentos adequados a contribuir para o fortalecimento do tecido empresarial português” e “proporcionar aos empresários um quadro jurídico que lhes permita reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada”. Ora nada disto aconteceu segundo a AT.

xvi.         Não só não houve a constituição de qualquer grupo económico novo, nem reunião de ativos e atividade numa única sociedade, como, ao invés, cada um dos acionistas da própria sociedade mãe – a C... SGPS – constituiu a sua própria SGPS, e tudo ficou materialmente como estava antes da constituição das ditas SGPS no que respeita às participações sociais e à gestão.

xvii.        Note-se que as SGPS mantiveram como único ativo as participações que os seus acionistas e administradores únicos tinham na sociedade mãe e que lhes foram transmitidas por estes; e os administradores únicos de cada SGPS continuaram a ser os administradores da sociedade mãe, e a ter sobre ela o controlo e domínio.

xviii.       A fundamentação do projeto de decisão e a aplicação da CGAA seguiu, nos termos da lei, o estipulado no nº. 3 do artigo 63º do CPPT. Mais se adianta que, antes de ser dado cumprimento ao preceituado no nº. 4 do mesmo dispositivo legal – e conforme superiormente instruído - foi solicitada, à DSPCIT - Direção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspeção Tributária, parecer sobre a aplicação desta norma anti abuso, o qual, mostrando-se favorável, foi vertido na Informação nº. 124/2017, datada de 28/06/2017.

xix.         A alegada participação da O... – e depois da V... SGPS – na reestruturação do grupo H... nunca se concretizou: depois de adquirir, em 29/12/2005, os 10% da C... SGPS, esta sociedade detida pelo casal A... e B..., não voltou a adquirir ou alienar fosse o que fosse, atuando de facto como um mero “cofre” daquela participação social; é incorreto arguir a possibilidade de nomeação de um administrador que a posse de 10% do capital proporcionaria, quando é sabido que A... integra o Conselho de Administração da C... SGPS desde a sua constituição, sendo frequentemente citado pelas suas intervenções nas Atas das Assembleias Gerais, tanto mais que é inegável que o objetivo da detenção daquela percentagem se prende antes com a necessidade de cumprimento dos requisitos previstos no ex-artigo 46.º do CIRC (vigente à data) para que a O... pudesse beneficiar da eliminação da dupla tributação económica dos dividendos que a C... SGPS viria a distribuir no futuro;

xx.          Reconhecendo que a exclusão de tributação na alienação de ações detidas durante mais de 12 meses era um aspeto relevante no desenho da operação, os contribuintes confirmam que só essa neutralidade fiscal permitiria anular a sua onerosidade, pelo que nada mais temos a acrescentar;

xxi.         Quanto ao crédito que foi concedido pelos acionistas à O... – e depois, à V... SGPS – no pagamento das ações alienadas, diga-se apenas que os contribuintes não atingiram, desse modo, o suposto intuito de “dotar a sociedade de condições de maximização dos investimentos realizados, em vista do esperado lucro”, visto que aquelas suas sociedades nunca lhes distribuíram quaisquer lucros – aqui reside assim outro dos pilares essenciais da artificialidade destas operações – é que, se o fizesse, tais rendimentos seriam irremediavelmente tributados em sede de IRS na esfera dos contribuintes;

xxii.        Realçando que a V... SGPS amortizou a dívida aos seus acionistas em montantes inferiores aos dividendos que recebeu da C... SGPS, estes pretendem demonstrar o exercício de uma atividade real e efetiva por parte desta sociedade – porém, tal não é assim, porquanto, conforme descrito no RIT, a atividade da O... (e em especial, da V... SGPS), se resume à detenção desta participação e ao pagamento da respetiva dívida, à medida que recebe os dividendos associados à mesma.

xxiii.       No que concerne á verificação cumulativa dos pressupostos consagrados na previsão legal da aplicação da CGAA: elemento meio: os negócios jurídicos em causa prendem-se com as alienações de partes de capital da C... SGPS à sociedade detida (e depois, à SGPS constituída) pelos contribuintes, de uma forma pré planeada, como o demonstra o facto de as mesmas não possuírem recursos financeiros para as pagar a pronto, mostrando-se necessário a utilização, ao longo dos anos, dos dividendos pagos pela participada, para amortizar a dívida assim gerada; o elemento resultado: este pressuposto também se verifica, já que foram utilizadas, por um lado, na transmissão das ações da esfera individual para a esfera da sociedade O..., a exclusão de tributação prevista na lei para a alienação de ações detidas há mais de 12 meses, e, por outro lado, a isenção de tributação estipulada no artigo 51º do CIRC – eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos; o elemento intelectual: também no caso concreto ocorre o terceiro pressuposto, pois que a motivação fiscal dos contribuintes se revelou preponderante, face às alegadas motivações familiares/económicas; o elemento normativo: a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida verifica-se quando o comportamento dos sujeitos passivos se revela anti jurídico, atento o espírito da norma isentadora de imposto, desde logo porque a interposição da sociedade O... e da V... SGPS – que funcionam como veículos – teve como único fim o aproveitamento da exclusão de tributação dos dividendos auferidos por pessoas coletivas;

xxiv.      Segundo a AT, esta conceção é também acolhida ao nível das instâncias jurisdicionais comunitárias, manifestada em vários Acórdãos do TJUE, destacando-se o Acórdão Cadbury-Schwepps, no qual se decidiu que, quando a minimização da tributação diga apenas respeito aos expedientes puramente artificiais destinados a contornar o imposto normalmente devido, não deverá aceitar-se a posição do sujeito passivo;  sendo certo que a liberdade de gestão fiscal tem a sua expressão nas liberdades de iniciativa e de empresa, contempladas na CRP, a mesma, quando vista pelo lado do Estado, concretiza-se no princípio da neutralidade fiscal, norma em que se estabelece como incumbência prioritária do Estado assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, reprimindo os abusos;  assim, não estando, nem podendo estar em causa a liberdade de escolha dos contribuintes na conformação dos seus negócios, ou seja, o exercício da sua autonomia privada, o que a aplicação desta CGAA pretende limitar é a possibilidade de a vontade dos sujeitos passivos ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal.

xxv.       Conclui a AT que estamos perante um manifesto abuso das formas jurídicas: os sujeitos passivos conseguiram, mediante interposição da sociedade que já detinham – a O... – e, desde 2011, da SGPS que surgiu da cisão daquela – a V... SGPS - que mais não é do que mero “cofre” de participações sociais da C... SGPS - receber dividendos desta última sem estarem sujeitos a qualquer tributação, através da utilização abusiva da figura do reembolso de dívida. Terá sido esta a intenção do legislador ao instituir o Regime Jurídico das SGPS (através do Decreto-Lei nº. 495/88)?

xxvi.      A posição dos sujeitos passivos que se encontram fora do âmbito da CGAA as situações em que a vantagem fiscal se concretiza com recurso a normas cuja utilização é incentivada pelo legislador. Mas, aqui, não existem opções alternativas, dentro dos parâmetros da lei, à tributação dos dividendos pagos pela C... SGPS – trata-se de rendimentos de capitais, que caem no âmbito de incidência do IRS, na categoria E. A dita “opção viável disponível” que A... e B... asseguram ter, mais não é do que planeamento fiscal ilegítimo, visto que, conforme já amplamente demonstrado, visa unicamente subtrair à tributação esses mesmos rendimentos, configurando-os artificiosamente como reembolsos de uma dívida especificamente criada para o efeito.

xxvii.     As normas anti-abuso visam combater a evasão fiscal concretizada por negócios jurídicos/ atos jurídicos formalmente lícitos. Trata-se, portanto de obstar, pela simples manipulação da forma jurídica, a que se obtenha uma redução dos encargos fiscais.

xxviii.    Citando Saldanha Sanches, a AT conclui que “Um negócio será artificioso (um requisito que se verifica, ou não, depois da comparação entre o negócio jurídico utilizado e aquele que teria sido fora a lei fiscal), e por isso, e num certo sentido, fraudulento quando a sua utilização só pode ser explicada por razões de natureza fiscal: ou seja, o negócio jurídico é celebrado com uma determinada intenção, obrigando-se, na aplicação da lei, a ajuizar sobre a intenção do agente”; pelo que, a alienação onerosa das ações que A... e B... possuíam na C... SGPS (correspondentes a 9% do respetivo capital), tendo sido detidas pelos mesmos durante mais de 12 meses, encontravam-se excluídas de tributação por força do disposto na alínea a) do nº. 2 do artigo 10º do CIRS (norma entretanto revogada pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, vigente até ao ano de 2009); esta exclusão de tributação das mais-valias de partes de capital, foi aproveitada pelos contribuintes para estipularem um preço suficientemente elevado para a referida transação, de modo a permitir-lhes maximizar a posterior retirada de dividendos dessa sociedade, sob a forma de pagamento da dívida constituída por essa via;  note-se que, relativamente à transmissão dos restantes 1% do capital da C... SGPS por eles detido, não foi apurada qualquer mais-valia (foram vendidas ao mesmo preço a que foram adquiridas 3 dias antes - €24,83 por ação);

xxix.      Caso a houvesse, ela seria tributada porque não cumpria o prazo de detenção estipulado na lei para beneficiar da aludida exclusão;

xxx.       Os sujeitos passivos efetivamente abdicaram da participação direta que tinham no capital da C... SGPS – a qual, recorde-se, somava 9% para o casal, e foi aumentada para os 10% através da aquisição dos restantes 1% ao X... E..., apenas 3 dias antes – mas mantiveram essa mesma participação de forma indireta, por via da O... (depois V... SGPS), sociedades nas quais participam a 100%.

xxxi.      Segundo a AT a artificialidade desta operação reside precisamente nestes dois vetores: por um lado, no preço estipulado para a mesma - o qual poderá corresponder ao respetivo valor de mercado, não é isso que se questiona - mas que se revela incomportável para a estrutura financeira que a sociedade adquirente possuía; e por outro, na circunstância de, por esse mesmo motivo e porque obviamente não esperavam (nem precisavam) de ser ressarcidos do preço no imediato, os alienantes terem decidido não o receber, ou melhor, terem decidido recebê-lo através dos dividendos que a C... SGPS viesse a pagar, premissa que A... controlava, uma vez que sempre foi administrador da C... SGPS.

xxxii.     Com esta operação, os sujeitos passivos não renunciaram a essa parte do seu património – apenas o transferiram, com absoluta segurança – da sua esfera individual para a esfera de uma sociedade pelos mesmos detida e totalmente controlada.

xxxiii.    Na prática, e em termos de direitos associados à qualidade de acionistas, e de expetativas de ganhos futuros, elas mantiveram-se inalteradas, dado que, na qualidade de acionistas únicos e administradores da nova sociedade detentora dos 10% da C... SGPS, os mesmos fluiriam (como vimos, efetivamente têm vindo a fluir, ainda para mais sem qualquer tributação) para A... e B... exatamente da mesma forma.

xxxiv.    A alegada participação da O... – e depois da V... SGPS – na reestruturação do grupo H... nunca se concretizou: depois de adquirir, em 29/12/2005, os 10% da C... SGPS, esta sociedade detida pelo casal A... e B..., não voltou a adquirir ou alienar fosse o que fosse, atuando de facto como um mero “cofre” daquela participação social; é incorreto arguir a possibilidade de nomeação de um administrador que a posse de 10% do capital proporcionaria, quando é sabido que A... integra o Conselho de Administração da C... SGPS desde a sua constituição, sendo frequentemente citado pelas suas intervenções nas Atas das Assembleias Gerais, tanto mais que é inegável que o objetivo da detenção daquela percentagem se prende antes com a necessidade de cumprimento dos requisitos previstos no ex-artigo 46º do CIRC (vigente à data) para que a O... pudesse beneficiar da eliminação da dupla tributação económica dos dividendos que a C... SGPS viria a distribuir no futuro;

xxxv.     Reconhecendo que a exclusão de tributação na alienação de ações detidas durante mais de 12 meses era um aspeto relevante no desenho da operação, os contribuintes confirmam que só essa neutralidade fiscal permitiria anular a sua onerosidade, pelo que nada mais temos a acrescentar; quanto ao crédito que foi concedido pelos acionistas à O...– e depois, à V... SGPS – no pagamento das ações alienadas, diga-se apenas que os contribuintes não atingiram, desse modo, o suposto intuito de “dotar a sociedade de condições de maximização dos investimentos realizados, em vista do esperado lucro”, visto que aquelas suas sociedades nunca lhes distribuíram quaisquer lucros – aqui reside assim outro dos pilares essenciais da artificialidade destas operações – é que, se o fizesse, tais rendimentos seriam irremediavelmente tributados em sede de IRS na esfera dos contribuintes; realçando que a V... SGPS amortizou a dívida aos seus acionistas em montantes inferiores aos dividendos que recebeu da C... SGPS, estes pretendem demonstrar o exercício de uma atividade real e efetiva por parte desta sociedade – porém, tal não é assim, porquanto, conforme descrito no RIT, a atividade da O... (e em especial, da V... SGPS), se resume à detenção desta participação e ao pagamento da respetiva dívida, à medida que recebe os dividendos associados à mesma.

xxxvi.    Os Requerentes, segundo a AT, criaram, artificiosamente, a obrigação de restituição de uma dívida para consigo, por parte da sociedade por si detida e gerida, a O..., que instrumentalizaram para o efeito. Caso os seus propósitos tivessem sido genuinamente as razões económicas válidas que invocam, não haveria necessidade sequer de constituir qualquer dívida: as ações da C... SGPS poderiam, pura e simplesmente, ter sido entregues para concretizar um aumento de capital realizado em espécie, da O..., ou ainda, para a realização do capital inicial da V... SGPS.

xxxvii.   Mas o objetivo dos contribuintes era obviamente outro – que estes aliás, confessam – era “fazer aceder aos acionistas os meios financeiros com que estes haviam tornado possível (…) a aquisição das participações sociais da C... SGPS”, o que equivale a dizer, fazer afluir aos investidores a remuneração do capital investido – a qual, como é sabido, apenas pode operar por duas vias: através do pagamento de dividendos ou por intermédio da realização de mais-valias. Estando esta última fora de hipótese, dado estarmos perante partes de capital fundamentais do grupo H..., que a família naturalmente pretende manter, restava a primeira: distribuição dos lucros gerados.

xxxviii.  Segundo a AT, não estamos perante nenhuma restituição de bens entregues à sociedade – como o seriam a constituição de Prestações Acessórias, ou a realização/aumento do capital – visto que A... e B... não se desfazem das partes de capital daquela sociedade, apenas as transferem para outra, por si detida, no intuito de auferir os dividendos respetivos sem qualquer tributação. O tipo de negócio jurídico escolhido para materializar esta transferência é que foi anómalo e artificioso: tivesse sido o normal e adequado aos propósitos por eles defendidos, não geraria qualquer dívida.

xxxix.    Foi justamente o “encadeado das operações”, a sua sequência e artificialidade, que confirmou que as mesmas foram planeadas tendo em vista a obtenção do resultado fiscal pretendido. Estamos aqui perante as denominadas step by step transactions, caracterizadas por envolverem uma sucessão de atos/negócios coordenados entre si, embora possam ocorrer em momentos temporais diversos, com o objetivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Não fora esse o seu móbil, as mesmas revelariam possuir racionalidade económica, o que de facto não se verificou.

xl.           A AT conclui que não há qualquer inconstitucionalidade na interpretação que faz do preceito legal.

xli.          Relativamente aos erros suscitados pelos Requerentes na liquidação oficiosa de IRS relativa aos períodos de 2013 e 2014, nomeadamente no que se refere ao regime regra de tributação mediante retenção na fonte a título definitivo à taxa de 28%, e ainda ao facto de que os contribuintes apenas podem englobar os rendimentos por sua opção expressa, a AT mantem a posição que assumiu no RIT.

xlii.         Segundo a AT, é seguro afirmar que não tinha o legislador em mente permitir a prática de um conjunto de actos que resultaram numa requalificação de um pagamento de uma dívida artificiosamente criada pelos accionistas junto da sociedade por si controlada em dividendos;

xliii.        A análise efectuada permite concluir, sem dúvida, que estão reunidos os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, o que impunha a aplicação da CGAA e a concretização das correcções para efeitos de liquidação do imposto devido.

 

2. Matéria de facto

 Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o RIT juntos aos autos, bem como a prova testemunhal arrolada, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos infra elencados.

 

2.1. Factos provados

 

1.            Em 31 de Dezembro de 1993 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de ... a constituição da sociedade designada C..., SGPS, S.A., com o capital social de € 11.057.395,00, representado por 2.211.479,00 acções e o valor nominal de € 5,00 cada e o seu objecto social consistia na gestão de participações sociais em outras sociedades, como forma indirecta do exercício de actividades económicas, estando esta sociedade regulada pelo Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro.

2.            A esta data, a estrutura accionista desta sociedade resumia-se do seguinte modo:

NOME  N.º de acções    V. nominal          %

D..., LDA.             1.326.887             € 5,00    60%

A...         162.000                € 5,00    7%

B...         59.148   € 5,00    3%

E...         221.148                € 5,00    10%

F...         221.148                € 5,00    10%

G...        221.148                € 5,00    10%

TOTAL   2.211.479             € 5,00    100%

3.            Na origem da constituição da sociedade C..., SGPS, S.A. esteve uma intenção de reorganização da estrutura do Grupo H..., iniciada justamente em 1993, e que incluiu, além da constituição desta holding, a criação de uma sub-holding, designada I..., SGPS, S.A., para controlo de uma área específica da actividade.

4.            Além desta sociedade, que detinha a 89,99%, a C..., SGPS, S.A. passou ainda a deter 90% do capital social da J..., S.A., 90% do capital social da K..., S.A., 90% da L... e 90% da M..., S.A.:

 

5.            O capital social da sociedade C..., SGPS, S.A. manteve-se inalterado, desde a origem até 26 de Fevereiro de 2016, data em que o mesmo veio a ser reforçado, passando a cifrar-se em € 14.529.635,00.

6.            Em 12 de Junho de 1991 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de ... a constituição da sociedade por quotas então designada N..., LDA., com um capital social de € 9.975,96, representado por duas quotas iguais, uma pertencente a A... e outra pertencente a B... e teve, desde a constituição, como actividade o comércio de produtos de cosmética e perfumaria.

7.            Em 4 de Junho de 2007, a sociedade constituída – que, em 2005, cessou a sua actividade de comércio de produtos de cosmética e perfumaria e passou a adoptar a designação O..., S.A. e a dedicar-se à actividade de compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e investimentos imobiliários, e, como actividade acessória, ao arrendamento de bens imóveis e à prestação de serviços relacionados com a disponibilização de bens imóveis –, viu o seu capital social aumentar para € 50.000,00, aumento este integralmente realizado em dinheiro e subscrito, no montante de € 38.774,04, pelos sócios A... e B..., e, no montante de € 1.250,00, por quatro novos sócios: os três filhos do casal, P..., Q... e R..., e a mãe A..., S... .

8.            Simultaneamente, a sociedade foi transformada em sociedade anónima, resumindo-se a respectiva estrutura accionista nos termos que se seguem:

NOME  Capital detido   %

A...         € 24.375,00         48,75%

B...         € 24.375,00         48,75%

P...         € 400,00               0,80%

Q...        € 400,00               0,80%

R...         € 400,00               0,80%

S...         € 50,00 0,10%

TOTAL   € 50.000,00         100%

9.            Passou a ser um objectivo dos Requerentes concentrar numa única sociedade as participações que cada um detinha na sociedade C... SGPS, S.A. – bem como, outras em que pudessem vir futuramente a investir.

10.          Foi outorgado, em 29 de Dezembro de 2005, um Termo de Transacção e Contrato de Compra e Venda de Acções, mediante o qual os aqui Requerentes transmitiram à sociedade por si detida – O..., S.A. –, as 221.148 acções de que eram titulares na sociedade C..., SGPS, S.A. – representativas de 10% do respectivo capital social –, pelo preço de € 5.490.285,35 (correspondente a € 24,83 por acção).

11.          O objectivo era concentrar numa única sociedade as participações que cada um detinha na sociedade C... SGPS, S.A. – bem como, outras em que pudessem vir futuramente a investir –, permitindo já um efeito de partilha das mesmas (ainda que por via indirecta) aos seus três filhos. Em vista desse objectivo, foi outorgado, em 29 de Dezembro de 2005, um Termo de Transacção e Contrato de Compra e Venda de Acções, mediante o qual os aqui Requerentes transmitiram à sociedade por si detida – O..., S.A. –, as 221.148 acções de que eram titulares na sociedade C..., SGPS, S.A. – representativas de 10% do respectivo capital social –, pelo preço de € 5.490.285,35 (correspondente a € 24,83 por acção).

12.          Este valor foi determinado com base nos capitais próprios da sociedade em causa à data da transmissão.

13.          A aquisição foi perspectivada também em vista da necessidade de unificação das participações sociais dos Requerentes e da sua passagem para a titularidade de uma sociedade que melhor assegurasse a sua protecção contra eventuais disputas patrimoniais de natureza familiar, mormente considerando a existência de uma acção de reconhecimento da paternidade intentada em 2006 por U... contra o pai da Requerente.

14.          O mesmo objectivo esteve subjacente à transformação da sociedade em sociedade anónima, verificada em 2007.

15.          Em 27 de Junho de 2018, de um acordo-quadro relativo à reorganização do Grupo H..., celebrado entre os membros da segunda geração da família T...– grupo em que não se inseriu U...–, assinado no Cartório Nacional de ... e de um acordo de partilha em vida, de forma a nela ser incluída a autora da referida acção, cuja escritura foi outorgada em 30 de Junho de 2016.

16.          A concentração, numa única sociedade, dos 7% detidos pelo Requerente A... e dos 3% detidos pela Requerente B..., assegurar-lhe-ia (à sociedade adquirente) a titularidade de acções representativas de 10% do capital social da C... SGPS, S.A.

17.          A mais-valia registada pelos Requerentes na sequência desta operação beneficiou da exclusão de tributação prevista na al. a) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS, que desonerava de tributação em IRS as mais-valias derivadas da alienação de acções detidas pelos seus accionistas há mais de doze meses.

18.          O preço acordado para a transacção não foi de imediato pago aos Requerentes, tendo sido reconhecido na contabilidade da O..., S.A. um débito em favor dos mesmos, naquele valor.

19.          Entre 29 de Dezembro de 2005 e 24 de Maio de 2011, esse valor foi reduzido no montante de € 1.039.704,08, passando a ascender a € 4.450.581,27

20.          Foi constituída a V... SGPS, S.A., em 2011, mediante o destaque e transferência, para constituição do respectivo capital, de uma participação social relativa a 10 % do capital social da sociedade C..., SGPS, S.A., com o valor contabilístico de € 5.490.285,35, através de uma operação jurídica de cisão-constituição, de acordo com a modalidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 118º do Código das Sociedades Comerciais (CSC): o património da sociedade foi cindido, sem que se verificasse a dissolução desta, e o segmento destacado foi usado para a constituição de outra sociedade, a V... SGPS, S.A..

21.          Foram também transmitidas para a V... SGPS, S.A., um depósito bancário à ordem no valor de € 50.000,00; e um passivo relativo à dívida existente em virtude da aquisição da participação social transmitida no valor de € 4.450.581,27, até então detidos pela O..., S.A..

22.          Até ao ano de 2010, a V... SGPS, S.A. recebeu o montante de € 1.020.102,52 a título de dividendos e as amortizações dos empréstimos de accionistas foram de € 143.908,04.

23.          No mesmo período, os accionistas reforçaram os empréstimos à sociedade no valor de € 48.157,50.

24.          Os dividendos recebidos pela V... SGPS, S.A. totalizaram € 3.364.271,32 e as amortizações o montante de € 2.580.726,08.

25.          A AT realizou uma ação inspectiva externa aos requerentes respeitante aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, que decorreu entre 06-09-2017 e 12-09-2017, e foi credenciada pelas Ordens de Serviço nºs. OI2017..., OI2017... e OI2017...,

26.          Os requerentes foram notificados, através do ofício n.º..., de 18-09-2017, do projeto do Relatório de Inspeção para efeitos do direito de audição, ao abrigo do artigo 60.º da LGT e do artigo 60.º do RCPITA, tendo exercido esse direito, em 12-10-2017.

27.          O Relatório de Inspeção, de 16-10-2017, que se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, mereceu despacho concordante do Diretor de Finanças de..., de 17-11-2017, e foi notificado aos requerentes através do ofício n.º..., de 27-12-2017.

28.          O Relatório de Inspeção, com base nos factos descritos, aplicou o disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e do artigo 63.º do CPPT e considerou ineficaz que os dividendos distribuídos pela C..., SGPS à V..., SGPS, nos anos de 2013, 2014 e 2015, no valor respetivamente de €177 566,44, €217 388,48 e €1 053 770,22, não fossem tributados, nos termos do artigo 51.º do CIRC, devendo a tributação ocorrer, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS.

29.          As correções à matéria colectável dos Requerentes, propostas no Relatório de Inspeção, resultaram nos actos de liquidação de IRS n.ºs 2018..., 2018... e 2018... e de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018... e 2018..., referentes aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, no valor global de € 578.011,90.

30.          Por não ter sido efetuado o pagamento voluntário das quantias referentes às liquidações, identificadas no n.º anterior, foram instaurados os processos de execução fiscal n.ºs ...2018..., ...2018... e ...2018..., entretanto apensados, que correm os seus termos no Serviço de Finanças de..., tendo os Requerentes apresentado, em 09-04-2018, garantia bancária do DD..., até ao montante de € 732 420,76, para efeitos do disposto nos artigos 169.º e 170.º do CPPT e do artigo 52.º da LGT.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pelos Requerentes com o pedido de pronúncia arbitral, bem como com os elementos do RIT, posição das partes vertidas nas respectivas peças.

A prova testemunhal foi relevante quanto ao esclarecimento dos seguintes factos:

A testemunha EE..., advogado e amigo da família dos Requerentes, sobretudo do pai da Requerente mulher. Mostrou conhecimento directo sobre os factos a que depôs e, sobretudo, participação directa, ainda que mais como amigo do que como advogado sobre a questão familiar subjacente às movimentações societárias que a família deu causa considerando o eventual – mas que acabou por se concretizar – reconhecimento de uma filha do pai da Requerente mulher.

De facto, a testemunha declarou que teve conhecimento, pelo pai da Requerente, ainda no final da década de 90 à, alegada e depois demonstrada, existência de uma filha deste – do qual a família teve conhecimento já em 2005 – e que implicou, por parte destes, a necessidade de tomada de decisões sobre o património familiar. Alias, em 2006 a acção de reconhecimento de paternidade acabou por dar entrada e, mais tarde decretada.

A questão familiar apresenta-se como relevante, o que a testemunha, de forma clara e precisa abonou. Tanto assim é que, mais tarde, a família dos Requerente, em conjunto com a irmã cuja paternidade acabou por ser reconhecida acabaram por outorgar uma partilha em vida tendo não só sido transigida a matéria relativa a eventuais tornas como houve renúncia a qualquer direito à anulação do documento.

De facto, o que se percebe é que os Requerentes e a família, com exclusão da filha, entretanto, reconhecida tinham um interesse em mente, afastar este novo elemento de qualquer posição no corpo de acionistas das empresas fundadas pelo pai da Requerente.

Parece certo, considerando que as acções eram já dos Requerentes aquando da entrada da acção de reconhecimento de paternidade e as mesmas foram alienadas para empresa do qual os Requerentes eram sócios que estes não queriam esconder património mas sim tornar inacessível – mesmo em eventual situação de redução por inoficiosidade – as acções do grupo H..., ao novo membro da família. Ou seja, sem prejuízo de eventuais tornas – como acabou por acontecer na partilha em vida outorgada – o escopo, que parece evidente, é que os membros da família confiassem a terceiros (sociedades comerciais) as acções por forma a manter neste núcleo familiar – com exclusão do novo membro – qualquer participação no grupo de sociedades da H... .

Como a testemunha referiu, uma forma de criar entraves ao novo elemento da família. Não à (futura) herança – em que o trajecto das acções era evidente e não foi escondido ou sub-repticiamente escamoteado – mas sim às acções, enquanto parte da (futura) herança.

Parece evidente que a dinâmica desta família – dos Requerentes – estava, pelo menos para eles, posta em causa com o novo membro familiar o que parece ter ditado, para os Requerentes, a necessidade de reajustar a composição societária.

Por sua vez, a testemunha UU..., consultora fiscal do grupo H..., respondeu com clareza e conhecimento de causa sobre o que levou à determinação do preço das acções tendo sido considerado o valor dos capitais próprios da sociedade. Afirmou que a permuta de participações sociais, in casu, não alteraria o critério de determinação do valor considerando os requisitos do art. 73.º, n.º 5 do CIRC.

Por sua vez, a testemunha FF..., bancária, esclareceu que a sociedade V..., SGPS tem actividade junto do banco para o qual é trabalhadora, nomeadamente através da compra e venda de activos.

Demonstra que a empresa tem outra actividade ainda que, em comparação, com menor expressão do que a que resulta da titularidade das acções do grupo H... mas, quanto a isso, sempre poderia ser difícil ter um exercício de paridade já que, em termos de normalidade, o grupo H... se apresenta, também ele, com dinâmica e expressão empresarial de grande monta.

A testemunha GG..., TOC, esclareceu que entre o recebimento de dividendos e as amortizações do preço de venda das acções não há relação directa e que a empresa tem recursos financeiros, incluindo valores mobiliários.

Quanto à testemunha HH..., esclareceu que, aquando do processo de cisão, foi consultado. A empresa detinha acções e aplicações financeiras e o objectivo era que não houvesse contaminação entre as diferentes actividades.

Posições consentâneas entre si, e com os Requerentes, todas com conhecimento directo.

 

3. Matéria de direito:

 

No âmbito do procedimento inspectivo constante dos presentes autos a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) através da aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, determinou a ineficácia, no âmbito tributário, da consideração dos dividendos, distribuídos pela C... SGPS aos acionistas da V... SGPS, durante os anos de 2013, 2014 e 2015, como rendimentos não tributados, ao abrigo do artigo 51.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC). Em consequência, a tributação ocorreu de acordo com o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º e na alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) – para os montantes atribuídos em 2013 e 2014 – e na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS – para os montantes atribuídos em 2015 - não produzindo as vantagens fiscais para os Requerentes, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 38° da LGT. Daqui, resultaram as liquidações de IRS e dos respetivos juros compensatórios, supra identificadas, relativas aos anos de 2013, 2014 e 2015 no montante total de € 578.011,90.

Os Requerentes contestam o entendimento da AT e alegam, em síntese, que a situação em apreço nos autos configura um caso que se encontra fora do perímetro de aplicação da cláusula geral anti-abuso, não podendo através dela serem objeto de qualquer censura.

A questão a decidir é, pois, a de saber se tem lugar, nas circunstâncias do caso, a aplicação da cláusula anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

Apreciando,

 

3.1. A questão da cláusula anti-abuso no caso sub judice.

O artigo 38.º, n.º 2, da LGT, com a redação plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, estabelece uma cláusula geral anti-abuso, nos termos da qual «(…) são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

A norma atrás citada é complementada pelo artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que define os parâmetros conformadores do procedimento específico para a aplicação das disposições anti-abuso. Nesse âmbito, o artigo 63.º do CPPT impõe à Administração Fiscal um especial de dever de fundamentação da decisão relativamente: (i) à descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; e (ii) à demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.  

De acordo com SÉRGIO VASQUES, a cláusula geral anti-abuso consagrada no artigo 38.º, n.º 2, da LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (cfr., Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pág. 374).

Só a verificação cumulativa destes três elementos faz operar a cláusula anti-abuso, porque, como salienta SÉRGIO VASQUES, “O cuidado posto pelo legislador na construção da cláusula anti-abuso exprime a preocupação de isolar os casos em que o exercício da autonomia privada e o direito ao planeamento atentam grosseiramente contra a igualdade tributária. É o caso em que o artifício dos esquemas negociais adotados pelo contribuinte e o propósito manifesto de com eles obter um ganho meramente fiscal mostram que inexiste uma expectativa legítima que no concreto mereça ser protegida por invocação da segurança jurídica.” (vd., ob. cit., p.375).

                Conforme a posição adoptada na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 461/2017-T, acórdão cujo colectivo foi presidido pelo também aqui Árbitro Presidente, e que continuamos a defender, o sentido geral da norma, constante do n.º 2 do artigo 38.º da LGT “(…) é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados. 

Exige-se, por conseguinte, que tenha sido praticado um acto ou negócio artificioso ou fraudulento que represente um abuso das formas jurídicas e que tenha tido como objectivo único ou principal a obtenção de uma vantagem fiscal (sobre estes aspectos, SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, págs. 430-433).”

 

Por outro lado, importa ter presente na senda do disposto no acórdão do CAAD proferido no proc. 180/2014-T «(…) a natureza de norma excecional [absolutamente excecional] da CGAA».  A referida natureza excepcional  da norma geral anti abuso resulta quer do facto de permitir que a tributação seja efetuada por aplicação de outras regras que não as normas gerais que a lei prevê para o(s) negócio(s) efetivamente praticados, quer, mais importante, por constituir um desvio ao princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de previsibilidade da lei fiscal aplicável, que é um princípio basilar do direito fiscal.

Segurança e previsibilidade implicam que os contribuintes possam confiar na tipicidade do tipo legal de imposto, e ter a certeza que, uma vez praticados os negócios que a norma de incidência prevê, serão tributados de acordo com a respetiva estatuição.

Nestes termos, ao intérprete é completamente vedado dar à CGAA um âmbito de aplicação mais vasto, nomeadamente através da interpretação extensiva, que aquele que decorre do próprio texto legal, mesmo que sob o pretexto de realização da justiça material no caso concreto.

 

Dir-se-á que, assim sendo, fica, em muito, reduzida a eficácia da CGAA no combate a formas de elisão fiscal que se poderão, razoavelmente, considerar abusivas. Só que tal decorre, inquestionavelmente, da natureza excecional da norma e do que tal natureza impõe ao intérprete e ao julgador.

Além disso, o artigo 38.º da LGT – como bem decidiu o acórdão do TCA Sul, de 15 de fevereiro de 2011 no processo n.º 04255/10 –tem de ser interpretado conforme à Constituição, especialmente na vertente de liberdade de iniciativa económica e de gestão empresarial. Assim, a liberdade de iniciativa económica, estabelecida na Constituição da República Portuguesa (CRP), pressupõe, não apenas a liberdade de iniciar uma determinada actividade económica, mas, também, a liberdade de organização e de ordenação dos meios institucionais necessários para levar a cabo essa actividade, aí cabendo a possibilidade de escolha da melhor forma de reorganização societária.

                A aplicação da norma geral anti-abuso, justificada no plano constitucional como meio de evitar a fraude ao espírito da lei fiscal, encontra-se condicionada também por um especial dever de fundamentação, que constitui uma garantia do contribuinte e que está justificada, não só pelo efeito restritivo que a norma produz na esfera privada, como, também, por se tratar de uma cláusula geral aberta integrada por conceitos indeterminados cuja concretização casuística envolve o exercício de uma margem de livre decisão.

Cabe também salientar que de acordo com as regras de direito probatório, que resultam do artigo 74.º da LGT, cabe à Administração Tributária a prova dos factos constitutivos da aplicação da cláusula anti-abuso. Por outro lado, a convicção sobre a existência e o conteúdo do facto tributário deve basear-se em meios probatórios idóneos e em pressupostos objectivos, não bastando a invocação de meras conjecturas ou pressuposições. 

 

Conforme a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 461/2017-T, já citada, “A aplicação da cláusula anti-abuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acordão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014). “. Assim, iremos em seguida aferir da legalidade das liquidações constantes dos presentes autos verificando se estão preenchidos os pressupostos cumulativos de aplicação do regime anti-abuso constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Os actos e negócios jurídicos em causa nos presentes autos arbitrais são: a constituição da sociedade O..., S.A., a transmissão onerosa àquela sociedade das acções representativas do capital social da C... SGPS, S.A., de que eram titulares os ora Requerentes, e, finalmente, a restituição parcial da dívida constituída por efeito do não pagamento imediato do preço relativo à referida transmissão aos aqui Requerentes. Pela prova documental e testemunhal produzida verifica-se que os referidos actos e negócios jurídicos foram realizados para executar a reorganização societária do grupo H..., imposta primordialmente por razões familiares e sucessórias. Sem prejuízo de outras razões economicamente válidas, ficou patente, pela prova produzida, que as questões de natureza familiar e sucessória constituíram um importante factor condicionante das opções tomadas na reorganização empresarial do Grupo H.... Assim, os referidos actos e negócios jurídicos realizados pelos requerentes, nesse âmbito, afiguram-se legítimos, com substrato económico e não revelam indícios de negócios artificiosos ou fraudulentos.

A denominada "step transaction doctrine", teoria construída nos ordenamentos anglo-saxónicos e que a AT refere na sua resposta, consiste num conjunto complexo de atos ou negócios jurídicos que surgem no âmbito de um plano global, composto por atos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, para além do ato ou negócio jurídico que é objetivamente censurado, na medida em que somente através da sua visão completa se deteta o esquema elisivo. Ora, conforme decorre da matéria de facto provada, os atos e negócios jurídicos, supra identificados, estão inseridos num conjunto de operações relativas à reorganização empresarial do Grupo H... com motivações claras e evidente justificação, que não configura a existência de um puzzle elisivo.

Não é de nenhum modo evidente, em face da prova produzida, que a acção dos Requerentes possa ser entendida como um expediente puramente artificial a que se deva atribuir uma exclusiva, ou principal, motivação para obtenção de vantagem fiscal.  Cabe salientar que aos contribuintes não está vedado optarem pelo regime, previsto na lei, que lhes for fiscalmente mais vantajoso, desde que não utilizem meios fraudulentos e artificiosos.

Em suma, da prova constante dos presentes autos não fica demonstrada a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral anti-abuso, e, em consequência, não há lugar à aplicação da estatuição da norma, referente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente ao que é pretendido pela AT.

Pelo exposto, não se encontram preenchidos nos autos os pressupostos de aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, nem a AT conseguiu demonstrar a sua verificação, como lhe era exigido pelo artigo 63º, n.º 3, do CPPT. Por isso, julgamos procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS n.ºs 2018..., 2018..., 2018... e de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018... e 2018..., referentes aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, no valor global de € 578.011,90., por enfermarem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação.

 

3.2.        Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral por vício de violação de lei, o que proporciona eficaz tutela do interesse dos Requerentes, fica prejudicado, por ser inútil [artigo 130.º do Código do Processo Civil (CPC)] o conhecimento das demais questões colocadas.

 

3.3.        Do direito a juros indemnizatórios

A par da anulação das liquidações e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, os Requerentes solicitam ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT

No art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, estabelece-se que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

O caso constante nos presentes autos suscita a aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, quer a título de imposto, quer de juros compensatórios, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

Assim, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data de pagamento relativos a cada uma das liquidações anuladas.

3.4.        Do direito à indemnização pelas despesas com a prestação da garantia bancária

 

De acordo com os factos provados (vd., n.º 30 do ponto 2.1. supra) os Requerentes apresentaram garantia bancária para suspender os processos de execução entretanto instaurados.

No pedido de pronúncia arbitral os Requerentes requerem a indemnização prevista no artigo 171.º do CPPT e no artigo 53.º da LGT, caso venha a ser julgada indevida a garantia apresentada, mas não quantificaram o montante das despesas em que incorreram.

O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta expressamente do artigo 171.º, n.º 1, do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT.

Concordamos com o entendimento expresso na Decisão Arbitral n.º 239/2016-T ao afirmar que a expressão «erro imputável aos serviços na liquidação do tributo», constante do n.º 2 do artigo 53.º da LGT, abrange todas as ilegalidades que afectem a validade da liquidação. Sendo assim, é de concluir, no presente caso, que os Requerentes têm direito à indemnização por garantia indevida, porque o erro que afecta a validade das liquidações de IRS e de juros compensatórios é exclusivamente imputável à AT.

Nestes termos, procede o pedido de condenação da AT a pagar aos Requerente a indemnização pelas despesas que suportaram com a prestação da garantia bancária, cujo montante não foi indicado até à presente data e consequentemente deverá ser apurado em execução de julgado.

 

3.5. Da responsabilidade pelo pagamento de custas arbitrais

 

Nos termos do artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi 29.º, n.º 1, e) do RJAT, estabelece que será condenada em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.

 

Em face do exposto deve a Requerida ser condenada em custas.

 

3.            Decisão:

Nestes termos e com a fundamentação supra, o tribunal decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular os actos de liquidação de IRS n.ºs 2018..., 2018... e 2018... e de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018..., 2018... e 2018..., referentes aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, dos quais resultou um valor global a pagar de € 578.011,90.

 

b)           Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados desde a data do pagamento do imposto e dos juros compensatórios, até à data de emissão da nota de crédito, nos termos dos artigos 24.º, n.º 5 do RJAT, 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

c)            Condenar a Requerida ao pagamento da indemnização prevista no artigo 171.º do CPPT, cujo montante deverá ser fixado em execução de julgado.

 

d)           Condenar a Requerida ao pagamento das custas do processo.

 

4. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento, fixa-se o valor da causa em €578 011,90 (quinhentos e setenta e oito mil e onze euros e noventa cêntimos).

 

5. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8 874,00 (oito mil, oitocentos e setenta e quatro euros) nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique

Lisboa, 12 de fevereiro de 2019

 

O Árbitro Presidente

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha)

 

O árbitro vogal

(Marisa Almeida Araújo)

 

O Árbitro Vogal

(Olívio Mota Amador)